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Código Logístico Fundação Biblioteca Nacional ISBN 978-85-387-6419-9 Dennison de Oliveira / Lorena Zom er História Contem porânea IESDE BRASIL S/A 2018 História Contemporânea Dennison de Oliveira Lorena Zomer Todos os direitos reservados. IESDE BRASIL S/A. Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482. CEP: 80730-200 Batel – Curitiba – PR 0800 708 88 88 – www.iesde.com.br Capa: IESDE BRASIL S/A. Imagens da capa: SSGT F. Lee Corkran - DoD photo, USA. Wikimedia Commons. GÉRARD, François. La bataille d’Austerlitz. 1805. 1 óleo sobre tela: color: 510 x 958 cm. Musée de Trianon, Paris, França. StockQuest/iStockphoto. CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ O51h Oliveira, Dennison de História contemporânea / Dennison de Oliveira, Lorena Zo- mer. - [2. ed.] - Curitiba, PR : IESDE Brasil, 2018. 176 p. : il. ; 21 cm. Inclui bibliografia ISBN 978-85-387-6419-9 1. História contemporânea. I. Zomer, Lorena. II. Título. 17-46165 CDD: 909.82CDU: 94(100) © 2018 – IESDE BRASIL S/A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito dos autores e do detentor dos direitos autorais. Apresentação Este livro abrange os séculos XIX, XX e XXI, a partir das mudanças ocasionadas pela Revolução Francesa. Nele são discutidos os principais acontecimentos, tendências e instituições que mais influência exerceram sobre a conformação da sociedade na qual vivemos. Por se tratar de uma síntese, espera-se que ele sirva como material de introdução ao estudo da História Contemporânea e também como guia para que o leitor iden- tifique os temas mais importantes desse período e possa aprofundar os assuntos aqui tratados. Pretende-se que o texto de cada capítulo seja inteligível em si mes- mo. Contudo, é indispensável não perder de vista que tanto o viver social quanto o tempo histórico são um todo contínuo e indivisível e, se o divi- dimos formalmente, é apenas para fins de estudo. O leitor deve atentar para as diferentes durações dos fenômenos históricos e sociológicos aqui descritos, as quais recorrentemente transcendem o conteúdo abarcado em cada capítulo. Além disso, é indispensável não perder de vista que a disciplina de História exige um constante exercício de erudição. É necessário, tanto quanto possível e, na medida dos interesses de cada um, ler as obras com- pletas, confrontar os originais com as diferentes leituras que deles são feitas e tentar manter-se atualizado com os contínuos avanços da ciência da história. Como qualquer outro campo do conhecimento, a história está em constante transformação no que se refere à elaboração de novas inter- pretações e à descoberta de novas fontes e registros. Mais do que um conjunto de informações e conteúdos, a história é um método de entendimento das diferentes perspectivas que podemos ter da realidade. Não é nem pretende ser apenas e tão somente o estu- do do que já se passou, ou o estudo do passado. O que se pretende com este livro é contribuir para que o leitor desenvolva uma forma de pensar historicamente o processo de constituição da sociedade na qual vive e, dessa forma, possa aperfeiçoar o entendimento dos fenômenos que lhe são contemporâneos. Sobre os autores Dennison de Oliveira Pós-doutor em Estudos Estratégicos pelo Instituto de Estudos Estratégicos da Universidade Federal Fluminense (INEST/UFF). Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Mestre em Ciência Política pela Unicamp. Bacharel e licenciado em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Professor titular do depar- tamento de História da UFPR. Interesses de pesquisa: história política e história militar relacionadas ao período da História Contemporânea. Lorena Zomer Doutora e mestre em História pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Especialista em Educação Especial pela Escola Superior Aberta do Paraná (Esap) e licenciada em História pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG-PR). Tem experiência como profes- sora de História no ensino superior (presencial e EAD), bem como na Educação Básica. 6 História Contemporânea Sumário 1 Política e sociedade após a Revolução Francesa 9 1.1 A França de Bonaparte 10 1.2 Nação e nacionalismos 16 1.3 Operariado e a primavera dos povos 17 2 A cidade, a indústria e a classe trabalhadora 27 2.1 A ideia de progresso, o liberalismo e o mundo burguês 28 2.2 Construção de nações e a democracia 29 2.3 Trabalhadores, arte e ciência 32 3 O mundo ao alvorecer do século XX 43 3.1 A predominância da Europa 43 3.2 Os EUA, a Alemanha e o Japão como potências emergentes 44 3.3 A Segunda Revolução Industrial 46 3.4 O imperialismo 47 3.5 As forças da tradição e da transformação 49 4 Primeira Guerra Mundial 53 4.1 A política de alianças e as causas imediatas da guerra 53 4.2 O impasse militar: a guerra de trincheiras 55 4.3 As novas tecnologias e a guerra no ar e no mar 56 4.4 O desfecho da guerra 57 4.5 Consequências do conflito 58 5 Revoluções socialistas e movimento operário 63 5.1 Os vários socialismos e suas origens 63 5.2 O movimento operário 65 5.3 A Revolução Russa 67 5.4 Outras revoluções socialistas 68 5.5 A social-democracia 69 História Contemporânea 7 Sumário 6 Modelos econômicos: o desenvolvimento do capitalismo 75 6.1 O taylorismo e o fordismo 75 6.2 A urbanização 78 6.3 A divisão internacional do trabalho 80 6.4 A crise de 1929 e as relações internacionais 81 7 Modelos econômicos: o desenvolvimento do comunismo 87 7.1 A nova sociedade socialista 87 7.2 A planificação e seus objetivos 89 7.3 A industrialização, urbanização e educação 90 7.4 A coletivização e o fim da propriedade privada 91 7.5 Economia, política e sociedade sob a ordem comunista 91 8 Segunda Guerra Mundial 95 8.1 A ascensão do nazifascismo e do militarismo japonês 95 8.2 A mundialização do conflito 97 8.3 As novas tecnologias: a guerra no ar e no mar 99 8.4 O desfecho da guerra 100 8.5 Consequências do conflito 104 9 Guerra Fria e bipolarização 109 9.1 Origens da Guerra Fria 109 9.2 A bipolarização e as superpotências 111 9.3 As guerras localizadas e a bipolarização 112 9.4 A Guerra Fria, a descolonização e o Terceiro Mundo 114 9.5 O fim da Guerra Fria 116 10 Socialismo: seus limites e possibilidades 121 10.1 A economia planificada e seus êxitos 121 10.2 As limitações do planejamento centralizado e suas manifestações 122 10.3 As reações do autoritarismo soviético 125 10.4 A era da “estagnação” 125 10.5 O fim do socialismo 127 8 História Contemporânea Sumário 11 Capitalismo: suas crises e superações 133 11.1 O estado do bem-estar social (welfare state) e o keynesianismo 133 11.2 O fordismo como projeto de sociedade 135 11.3 As tensões e contradições do fordismo e do welfare state 136 11.4 Os excluídos do sistema e suas manifestações 138 11.5 O declínio e crise do fordismo e do keynesianismo 139 12 Neoliberalismo, globalização e mundialização do capital no final do século XX 143 12.1 O choque do petróleo e suas implicações 143 12.2 A nova sociedade capitalista: a “acumulação flexível” 145 12.3 O “Estado mínimo” 146 12.4 O neoliberalismo e suas bases sociais e culturais de apoio 147 12.5 O fim do socialismo, o desenvolvimento das comunicações e a era da globalização 148 13 Terrorismo, guerras e conflitos 153 13.1 Historicidade do terrorismo 153 13.2 A questão palestina e o terrorismo 154 13.3 As guerras árabe-israelenses 155 13.4 Os grupos terroristas nos países do Primeiro Mundo 157 13.5 As guerras no Iraque e Afeganistão 158 14 Economia e sociedade no século XXI 163 14.1 O fim da política 163 14.2 Os EUA como única superpotência 164 14.3 A ascensão da China 166 14.4 O aquecimento global e os problemas ambientais 167 14.5 A questão demográfica 168 História Contemporânea 9 1 Política e sociedade após a Revolução Francesa Um inglês que não se sinta cheio de estima e admiração pela maneira sublime com que estáagora se efetuando uma das mais IMPORTANTES REVOLUÇÕES que o mundo jamais viu deve estar morto para todos os sentidos da virtude e da liberdade; nenhum de meus patrícios que tenha tido a sorte de presenciar as ocorrências dos últimos três dias nesta grande cidade fará mais que testemunhar que minha linguagem não é hiperbólica. (The Morning Post, 21 de julho de 1789, sobre a queda da Bastilha, apud HOBSBAWM, 2009, p. 97, grifos do original) Essa citação traz o entusiasmo de alguém empolgado com o que vivenciou nos dias da Revolução Francesa. Os franceses da época talvez pensassem que a família real e a nobreza saberiam o que é um dia de trabalho ou de pagamento de impostos e achassem que todos poderiam ler, argumentar e ter ideias. Não sabemos exatamente onde situar o entusiasta exposto na citação. Mas podemos compreender que a Revolução Francesa inaugurou uma nova política no mundo ocidental contemporâneo. Isso também ocor- reu com o conceito de revolução, que até aquele período significava movimento gira- tório (relacionado ao movimento de um astro percorrendo a sua órbita), e, após esse momento, passou a ser compreendido como algo transformado e que não retornaria ao seu estado anterior. Como afirma o historiador Reinhart Koselleck, a experiência não caberia mais no horizonte de expectativa sentido nesse tempo (KOSELLECK, 2006, p. 65-69). Ao mesmo tempo, a burguesia – composta de representantes mais ou menos abastados e com pouca representação política – e também os grupos mais populares que logo defenderam a Revolução Francesa poderiam ter focado em construir uma política que protegesse a liberdade, para que, desse modo, construíssem uma demo- cracia mais igualitária na Nova República. Já os grupos menos abastados buscaram segurança nas novas propostas políticas, sem se preocupar ou refletir sobre os abusos possíveis em uma política não igualitária. Nesse caso, o Estado passou a representar mais a própria burguesia. Lorena Zomer Política e sociedade após a Revolução Francesa1 História Contemporânea10 Este capítulo tem por objetivo apresentar ideias sobre o contexto político, social, cultural e econômico da França com base em alguns acontecimentos após a Revolução Francesa e os seus efeitos. Concentramos nossas atenções no período posterior à Revolução Francesa, retomando em alguns momentos acontecimentos do contexto re- volucionário francês – e em parte na Inglaterra –, por entendermos que os rumos toma- dos na França influenciaram, em diversos âmbitos, outros países europeus e também americanos (devido ao fim da escravidão de suas colônias e a conquista da república). Não obstante, as novas conquistas como ideais de república, de democracia, de igual- dade e até mesmo de constituições em alguns países fomentaram movimentos sociais que buscavam direitos de representação, sociais e trabalhistas. Entre eles, estão o movi- mento operário, o Manifesto do Partido Comunista, a Primavera dos Povos e a formação nacionalista após 1830, temas que colaboraram em nosso entendimento sobre a constru- ção do mundo contemporâneo capitalista, assim como a influência da Inglaterra no que diz respeito à indústria. Essas ideias têm por base uma perspectiva do historiador Eric Hobsbawm, que afirma: “Se a economia do mundo do século XIX foi formada principal- mente sob a influência da Revolução Industrial britânica, sua política e ideologia foram formadas fundamentalmente pela Revolução Francesa.” (HOBSBAWM, 2009, p. 97). Ou seja, o historiador deixa evidente que os contextos de ambos os países não são contrá- rios, mas complementares. Por isso, este capítulo contempla a reflexão sobre a Europa nova que estava em formação, muitas vezes visando acabar com os resquícios do Antigo Regime, assim como convocar as massas por meio de associações e propagandas. Diante disso, algumas décadas foram necessárias para que uma nova ordem se erguesse e, junto a ela, muitas ideias sociais e políticas. 1.1 A França de Bonaparte O marco da Revolução Francesa é 1789, ano da tomada de Versailles, de Paris e dos principais centros e instituições representantes do Antigo Regime e da monarquia. Mas se a Revolução não começou em 1789 – visto que foram muitos os acontecimentos para que ela ocorresse –, também não finalizou nessa data. Foram necessários cerca de dez anos para que o período revolu- cionário alcançasse um novo patamar político, com o 18 de Brumário de Napoleão Bonaparte e sua tomada de poder, e a futura disputa dos Bourbons com a expulsão de Bonaparte. Nesse sentido, a ideia de revolução de Hannah Arendt no livro Entre o passado e o futuro, de 1987, colabora para entendermos que o contexto francês era de opressão e de muita pobreza para as massas. A filósofa ressalta que não houve anteriormente na história francesa qual- quer levante como o Grande Medo ou a Tomada da Bastilha, acontecimentos nos quais o povo tomou diversas propriedades particulares e públicas, representando o desejo de mudança. Entretanto, para ela, a burguesia – que promoveu ideologicamente esses acontecimentos e que se via como classe – logo tomou a direção e manipulou o sentido de liberdade e de igual- dade com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. A filósofa faz a seguinte afirmação: Vídeo Política e sociedade após a Revolução Francesa História Contemporânea 1 11 [...] aqueles que precisavam ser liberados de seus senhores, ou da necessidade [...] correram em auxílio àqueles que desejavam criar um espaço para a liberdade pública – com a consequência inevitável de que a prioridade teve de ser dada à liberação e de que os homens da revolução se desviaram cada vez mais da- quilo que originalmente haviam considerado seu mais importante objetivo [...]. (ARENDT, 1979, p. 185) Entendemos nessa citação que o espaço criado pela burguesia e pela luta do povo logo após a Revolução Francesa foi utilizado tendo-se em vista um caráter prioritário de ques- tões sociais, cujo objetivo não foi uma política que defendesse a liberdade, mas a segurança social, algo inexistente no Antigo Regime (ARENDT, 1979, p. 106)1. Lynn Hunt, historiadora cultural francesa2 e especialista em Revolução Francesa, por sua vez, explica: A falta de definição social da nova classe política tornou a experiência da Revolução ainda mais incisiva em sua contestação do costume e da tradição. A busca de uma nova identidade nacional levou à rejeição de todos os mode- los e padrões de autoridade anteriores [...] Recém-chegados, jovens notáveis que haviam saído de sua terra para estudar, comerciantes que viajavam pelo inte- rior, advogados com contatos na capital departamental ou em Paris [...] todos esses indivíduos tinham probabilidade de se tornar formadores de redes políti- cas. Suas profissões e posições sociais eram em geral diferentes, porém, seus pa- péis como agentes de cultura e do poder eram fundamentalmente semelhantes. (HUNT, 2007, p. 249-250) O que Hunt sugere é a diversidade que compunha o início da revolução, com grupos de- sejosos de uma nova política social que não tinham outros pontos em comum e que precisavam ter um “acordo” para que pudessem implementar uma nova política. Grupos que poderiam for- mar redes políticas, dependendo de seus contatos e estratégias no mundo pós-revolução. Tanto Hannah Arendt quanto Lynn Hunt têm um ponto em comum: a Revolução Francesa, devido ao período conturbado após 1789 e pela pluralidade de questões sociais, acabou por não dar um sentido político ao conceito de liberdade, o qual daria segurança às questões sociais. A historiadora Lynn Hunt aponta logo no prefácio de sua obra que a Revolução Francesa nos grandes centros foi liderada pelos burgueses comerciantes e manufatores marxistas, mas que a crítica era de que advogados e altos funcionários públicos seriam os líderes (HUNT, 2007, p. 9). Hunt aponta que encontrou, em sua pesquisa, os líderes burgueses, mas de modo esparso e não homogêneo, ou seja, em alguns lugares eles tiveram destaque; em outros, nãotiveram ou perderam. A fim de responder a tal questão, a historiadora afirma: “a política de esquerda seduziu mais consistentemente em lugares distantes, relativamente atrasados e desprovidos de manufatura em grande escala” (HUNT, 2007, p. 10). Contraditoriamente, os 1 A filósofa Hannah Arendt tem larga produção sobre processos totalitários e ideia de liberdade, os quais dialogam com diversos conceitos do mundo contemporâneo. Outra produção relacionada ao capítulo é ARENDT, Hannah. Sobre a revolução. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. 2 O livro Política, cultura e classe na Revolução Francesa foi lançado em 1987. Porém, em uma reedição de aniversário, em 2007, Hunt faz novas considerações no prefácio, cujas perspectivas foram utiliza- das neste texto. HUNT, Lynn. Política, cultura e classe na Revolução Francesa. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. Política e sociedade após a Revolução Francesa1 História Contemporânea12 Estados mais revolucionários foram os que menos se industrializaram. Nesse caso, apenas se considerados os aspectos culturais, como a existência de lojas maçônicas, dos laços de casamentos, dos indivíduos do Antigo Regime e dos influenciadores regionais (professores, viajantes), podemos compreender que a Revolução Francesa, a fim de forjar novas identida- des políticas durante a década de 1790, teve em sua gênese “componentes culturais impor- tantes” (HUNT, 2007, p. 10), para além de uma perspectiva econômica ou social. Hobsbawm, por sua vez, também lembra a presença maçônica – uma das poucas ex- periências democráticas conhecidas até 1789, visto que poucas instituições ou associações “aceitavam” o parecer ou a opinião de todos os participantes igualmente. Segundo o autor: A ideologia de 1789 era a maçônica, expressa com tão sublime inocência na Flauta Mágica de Mozart (1791) uma das primeiras grandes obras de arte propa- gandistas de uma época em que as mais altas realizações artísticas pertenceram tantas vezes à propaganda. Mais especificamente, as exigências do burguês fo- ram delineadas na famosa Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789. Este documento é um manifesto contra a sociedade hierárquica de pri- vilégios nobres, mas não um manifesto a favor de uma sociedade democrática e igualitária: “os homens nascem e vivem iguais perante as leis” [...] mas ela [a Constituição] também prevê a existência de distinções sociais [...] (HOBSBAWM, 2009, p. 106, grifos do original) Desse modo, compreendemos que a bandeira da Revolução Francesa levantada sob a égide Liberdade, Igualdade, Fraternidade tinha uma ideia diferente do que boa parte da massa revolucionária acreditava. Para Klaus Eggennsperger (2010), a ópera de Mozart traz a ideia de luz e de livros, ligando-se aos princípios iluministas, em um universo masculino, cujo trajeto é da escuridão à luz. França, Alemanha, Áustria e Inglaterra debatiam-se diretamente contra o Antigo Regime. Tanto nessa ópera quanto na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, Hobsbawm observa elementos que permitem pensar as diferenças sociais, tanto políticas quanto de classe. O que podemos compreender nesse início é que a república almejada – que seria construída no decorrer do século XIX – já encontrava em seu projeto entraves e dificuldades. Lynn Hunt faz uma análise de associações e atas dos conselhos municipais na França pré e pós-revolução, chegando à conclusão de que A classe política revolucionária pode ser considerada “burguesa” tanto da pers- pectiva da posição social como da consciência de classe. As autoridades revo- lucionárias eram os proprietários dos meios de produção; eram comerciantes com capital, profissionais liberais qualificados, artesãos com oficinas próprias ou, mais raramente, camponeses com terras. Não foram encontrados homens sem qualificação ocupacional, trabalhadores diaristas e camponeses sem terra em posições de liderança e nem sequer sua representatividade foi expressiva entre as bases militantes. (HUNT, 2007, p. 207) Com essa análise de Hunt, na qual a historiadora traz a ideia de que apenas uma “bur- guesia” pode ser vista como classe no período, e também considerando os grupos culturais Política e sociedade após a Revolução Francesa História Contemporânea 1 13 diferentes que existiam na França naquele momento, é possível dizer que o pós-1789 não tinha um sentido ou uma trajetória definidos. Camponeses – sem terras – estavam espalha- dos pela França, muitos sem participar das organizações políticas, mas que colaboraram com o Grande Medo e a Tomada da Bastilha. Frisamos: Hunt (2007), ao sustentar que a classe revolucionária era a burguesa, não diminui a participação do povo, que, aliás, foi grande e deu outro caráter à revolução. Hobsbawm caracteriza o caráter revolucionário e a importância do povo como muito maior que o próprio projeto liberal burguês em 1789, ainda antes da revolução. Entretanto, esse caráter teve mais voz nas assembleias daquele ano, em especial, nas eleições dos estados gerais – visto que muitos camponeses e trabalhadores pobres não eram alfabetizados –, com participações políticas mais simples e imaturas no Terceiro Estado (HOBSBAWM, 2009, p. 107). Por sua vez, a burguesia constitucionalista eleita trazia, em maioria, ideias de defesa da propriedade privada e estava desejosa de que o voto fosse individual e não por Estado (HOBSBAWM, 2009, p. 108). Logo em seguida, os burgueses obtiveram vitória no que diz respeito a uma assembleia nacional que faria a Constituição francesa, pouco antes do Grande Medo e da Tomada da Bastilha. Uma monarquia constitucional foi promulgada em 1791, período no qual a primeira Constituição foi publicada e cujos artigos foram determinados por uma prática política cen- sitária. Apenas a burguesia referente ao Terceiro Estado teve voto, almejando um programa liberal não aceito pelas alas mais radicais e de esquerda. A Convenção Nacional, fase do governo organizada após a morte de Luís XVI, rei de- posto após a Revolução Francesa, acabou liderada pelos jacobinos3 (pequena burguesia4 e sans-culottes5) (HOBSBAWM, 2009, p. 109-113). Estes – de uma esquerda mais radical – cria- ram novos impostos sobre os ricos entre 1793 e 1794, fizeram “caças” a todo tipo de cor- rupção, construíram escolas, regulamentaram salários e preços sobre produtos, além de ter o apoio das massas. Contudo, os jacobinos tiveram o governo desgastado e sofreram com cisões dentro do próprio partido, em consequência do caráter agressivo e ditatorial em rela- ção à rainha e a qualquer oponente do Antigo Regime, quando foram mortas cerca de 35 mil pessoas. Foi também no período jacobino que houve a propagação de ideais franceses, isto é, por meio de associações, clubes, leituras, panfletos, proclamava-se quais deveriam ser as inspirações sociais e culturais para que a França se tornasse uma república como exemplo para todas as outras (HOBSBAWM, 2009, p. 121-125). 3 O grupo mais radical reunia-se no mosteiro de São Tiago, em latim Jacobus, por isso o nome. Senta- vam-se mais à esquerda e por isso há uma relação de esquerda e política mais radical. HOBSBAWM, E. J. A Revolução Francesa. In: _____. A era das revoluções: 1789-1848. São Paulo: Paz e Terra, 2009. 4 Sobre esse movimento, ver: POGREBINSCHI, T. Emancipação política, direito de resistência e direi- tos humanos em Robespierre e Marx. Dados, Rio de Janeiro, v. 46, n. 1. Disponível em: <http://www. scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0011-52582003000100004>. Acesso em: 24 out. 2017. 5 Grupo de pequenos artesãos, comerciantes, entre outros de origem simples, que apoiaram os jaco- binos mais radicais. Não conquistaram grande liderança, nem ao menos participaram ativamente do poder. Mas, junto a esse grupo, os jacobinos ganharam apoio da massa, em especial, no primeiro ano de poder. HOBSBWAM, E. A era das revoluções: 1789-1848. São Paulo: Paz e Terra, 2009, p.125-127. Política e sociedade após a Revolução Francesa1 História Contemporânea14Essas situações causaram o enfraquecimento dos jacobinos e sua substituição pelos gi- rondinos (alta burguesia), grupo mais conservador, que revogou diversas medidas toma- das anteriormente, visto que desejavam o programa econômico mais liberal de 1789-1791, mas que não fosse nem um governo radical, nem a possibilidade de um retorno do Antigo Regime. Ainda em 1796, o jornalista Graco Babeuf, um sobrevivente desse período, começou a propagar suas ideias, defendendo a igualdade entre todos6 ao trazer consigo alguns segui- dores. Ele promoveu a Conjuração dos Iguais, uma insurreição para tomar o poder e para que jocobinos e socialistas vivessem em comunidades de iguais, mas acabou executado pelo Diretório, o regime político adotado pelos girondinos. Justamente isso fez com que os girondinos precisassem do exército (criado no período jacobino), a fim de conter as revoltas causadas pelas novas medidas, por cerca de cinco anos. O exército, por sua vez, fortaleceu-se cada vez mais, em especial um nome: Napoleão Bonaparte. Segundo Hobsbawm, isso se deu da seguinte forma: De um levée en masse de cidadãos revolucionários, ele logo se transformou em uma força de combatentes profissionais, pois não houve recrutamento entre 1793 e 1798, e os que não tinham gosto ou talento para o militarismo desertaram em massa. Portanto, ele reteve as características da Revolução e adquiriu as caracte- rísticas do interesse estabelecido, a típica mistura bonapartista. (HOBSBAWM, 2009, p. 127, grifos do original) A alta burguesia, cansada da instabilidade francesa após a revolução, deu apoio ao ge- neral Napoleão Bonaparte para que ele tomasse o poder junto a um exército treinado e que acreditava estar resolvendo os impasses franceses. O exército instituiu o Consulado, prática política dividida entre três cônsules, embora Bonaparte fosse o mais atuante. Ele logo criou o Banco da França, buscando reconciliar os interesses da burguesia – e de investimentos – com os das massas, beneficiados pelo Código Civil Napoleônico, cuja premissa era igualdade en- tre todos os cidadãos, embora preservasse a propriedade privada (acabando com qualquer resquício feudal), rebaixasse as mulheres a uma segunda categoria e permitisse novamente a escravidão nas colônias. Não obstante, assinou em 1801 uma concordata com a Igreja cató- lica, em que ela poderia novamente ter poder dentro da França, prática questionada desde a Revolução Francesa. Portanto, é nesse período que o projeto liberal burguês ganhou espaço mais signi- ficativo até então. Sobre o liberalismo, embora seja um conceito complexo7, podemos entender que [...] surgiu no século XVIII a partir do Iluminismo, teve seu auge no século XIX e pode ser dividido em liberalismo econômico e liberalismo político. Vigorou principalmente na Europa ocidental e na América Latina até o período do entre 6 Grupo de pequenos artesãos, comerciantes, entre outros de origem simples, que apoiaram os jaco- binos mais radicais. Não conquistaram grande liderança, nem ao menos participaram ativamente do poder. Mas, junto a eles, os jacobinos ganharam apoio da massa, em especial no primeiro ano de poder (HOBSBWAM, 2009, p. 125-127). 7 Para mais detalhes e perspectivas historiográficas do conceito, ver: SILVA, K. V.; SILVA, M. H. Dicio- nário de conceitos históricos. São Paulo: Contexto, 2009, p. 258-262. Política e sociedade após a Revolução Francesa História Contemporânea 1 15 guerras, quando sofreu severa crise com os regimes fascistas, ressurgindo no último quartel do século XX, revitalizado na teoria político-econômica do neoli- beralismo. A base social do pensamento liberal era a burguesia, que, ascenden- do economicamente durante a Idade Moderna, almejava tomar o poder político. Economicamente, o liberalismo é uma teoria capitalista, que defende a livre-ini- ciativa e a ausência de interferências do Estado no mercado. O liberalismo políti- co, por sua vez, emergiu como uma nova forma de organizar o poder, contrária ao Absolutismo (SILVA; SILVA, 2009, p. 258) Nessas condições, a burguesia passou a influenciar a organização político-econômica depois da Revolução Francesa, que, após o fim da monarquia constitucionalista (em 1848), ocasionou ao país o fortalecimento do Estado em um caráter mais liberal. Além disso, criou a Associação das Indústrias Nacionais, que tinha por objetivo a união entre cientis- tas, intelectuais, industriais e indivíduos que defendiam uma postura econômica moderna (HOBSBAWM, 2009, p. 145-148). Em 1804, quando Bonaparte foi eleito imperador em um plebiscito, com 60% dos votos, ele já assumiu dispondo de um exército maior cujas pilhagens trouxeram riquezas à França e também alteraram o mapa geográfico-político. Bonaparte co- mandou invasões ao antigo Império Germânico, à Holanda, a Portugal, à Espanha, à Bélgica e a diversos países do Leste. É interessante observarmos que essa prática de ganho de terri- tório formando uma nação (no sentido apenas territorial) é algo que impulsionou diversas potências ao longo do século XIX e influenciou ideias e perspectivas mais nacionalistas e imperialistas (HOBSBAWM, 2009, p.145-148). Napoleão Bonaparte acabou perdendo duas batalhas importantes entre 1812 e 1813. Isso o fez abdicar do trono, mas, mesmo exilado, retornou e permaneceu no governo por mais 100 dias. Ele centralizou os interesses franceses, fez com que o país se industrializasse, mas também teve atitudes autoritárias, visto que proibiu sindicatos e organizações traba- lhistas e, segundo Hunt (2007, p. 261), “Bonaparte substituiu eleições por plebiscitos, proi- biu os clubes e expandiu o serviço militar. Manteve o princípio da soberania popular, mas fez de si mesmo o único agente político real, removendo assim a perigosa imprevisibilidade da mobilização popular organizada”. Ao seu modo, ele dirigiu uma economia liberal burguesa, agradando àqueles que eram mais poderosos, mas retirando do povo os direitos que estavam nascendo. Após a segun- da expulsão de Bonaparte, Luís XVIII assumiu o poder, marcando o retorno dos Bourbons como monarquia constitucional, o que será questionado nas décadas seguintes até o fim desse regime político, em 1848. Entre 1814 e 1815, o Congresso de Viena fez uma revisão nas alterações geográficas causadas por Bonaparte. Entretanto, se os dez anos de Revolução Francesa e mais o período de Bonaparte não promoveram a liberdade e a igualdade para todos, também não apagou essas experiências políticas. Para Lynn Hunt Democracia, terror, socialismo e autoritarismo foram, todos, possibilitados pela expansão do espaço político e da participação organizada das classes populares. O terror era impensável sem a experiência prévia da democracia; foi o lado dis- ciplinador da comunidade democrática, invocado embora de emergência e justi- ficado pelas necessidades de virtude e defesa da nação. O governo usou o Terror Política e sociedade após a Revolução Francesa1 História Contemporânea16 para obter o controle do movimento popular, mas sem o movimento popular não teria havido demanda pelo terror. (HUNT, 2007, p. 260) A historiadora está se referindo à postura marxista sobre os resultados da Revolução; tal postura entendia que era necessário o terror (sinônimo de erradicação de processos ou de grupos que se colocavam contra) para se chegar à democracia ou ao socialismo. Para Hunt (2007), pensar a Revolução Francesa até Bonaparte é entender que novas práticas sociais e políticas estavam objetivando construir a ideia de democracia, um termo ainda “jovem” no período. Se não conseguiram, apenas uma análise minuciosa do cotidiano da época poderia explicar. Portanto, a Revolução Francesa trouxe para o mundo uma nova cultura política e incentivou muitos países a buscarem as próprias revoluções políticas e sociais. 1.2 Nação e nacionalismos Entre os séculos XIX e XX, os conceitos de nação e de nacionalismo so- freram inovações e transformações. Tanto a Revolução Francesa quanto a independência dos EstadosUnidos alteraram diversas concepções políticas. As primeiras ideias nacionalistas vieram de grupos pequenos, porém orga- nizados e influenciados pelos ideais de Giuzeppe Mazzini, depois de 1830. Para Eric Hobsbawm, esse é “o marco da desintegração do movimento revolucionário euro- peu em segmentos nacionais” (HOBSBAWM, 2009, p. 151). O historiador inglês ressalta que pequenos proprietários foram apoiadores em toda a Europa desse movimento, visto que seus interesses não eram corroborados pela alta burguesia, que era liberal. As revoluções de 1848 (tema da próxima seção) impulsionaram ainda mais a busca pela definição de nação, como também lançaram uma reflexão sobre o cotidiano dos habitantes. Se propagandas em massa, literatura e a cultura em geral foram utilizadas para disseminar ideias, de alguma forma também chegavam às massas, as quais começariam a questionar alguns princípios vinculados. Para Benedict Anderson (2008), o nacionalismo surge na me- dida em que se imagina a nação, além das três expectativas existentes anteriormente nesses contextos, quais sejam: A primeira delas é a ideia de que uma determinada língua escrita oferecia um acesso privilegiado à verdade ontológica, justamente por ser uma parte indisso- ciável dessa verdade. Foi essa ideia que gerou as grandes irmandades transcon- tinentais da cristandade, do Ummah islâmico e de outros. A segunda é a crença de que a sociedade se organizava naturalmente em torno e abaixo de centros elevados – monarcas à parte dos outros seres humanos, que governavam por uma espécie de graça cosmológica (divina). [...] A terceira é uma concepção da temporalidade em que a cosmologia e a história se confundem, e as origens do mundo e do homem são essencialmente as mesmas. Juntas, essas ideias enraiza- vam profundamente a vida humana na própria natureza das coisas, conferindo um certo sentido às fatalidades diárias da existência e oferecendo a redenção de maneiras variadas. (ANDERSON, 2008, p. 69) Vídeo Política e sociedade após a Revolução Francesa História Contemporânea 1 17 Observamos que, em especial, as duas últimas estão relacionadas a um tipo de fé, pers- pectiva que se modificou já no período Moderno na Europa e mais ainda no Contemporâneo, ou seja, nem tudo é natural ou de acordo com a vontade de Deus ou dos deuses. O sociólogo Anderson (2008) reitera: tais crenças são lugares demarcados no imaginário, respeitados como senso comum. As transformações ocorridas a partir da Revolução Francesa não permitiriam que ou- tros países ou impérios permanecessem como estavam. Se nação, no sentido mais básico, significava até então unidade política, segundo Hobsbawm passa a ser vista como um prin- cípio de nacionalidade, que se tornou um dos principais objetos de disputa dentro da nova cultura política do século XIX (HOBSBAWM,1991, p. 126). Na próxima seção, trazemos outra revolução importante: a dos trabalhadores. Não em relação a seus termos de trabalho ou de modos de produção, mas analisando as consequên- cias de suas lutas no século XIX e buscando compreender como esses movimentos colabora- ram com outros maiores que se seguiram. 1.3 Operariado e a primavera dos povos Para governar é preciso ter Mantos ou condecorações em brasões Nós tecemos para vós, grandes da terra, E nós, pobres operários, sem lençol onde nos enterrar Somos nós os operários Nós estamos todos nus Mas nosso reino irá chegar Quando o vosso reino terminar Então, nós teceremos a mortalha do velho mundo Porque já se percebe a revolta que troa Somos nós os operários Não estaremos nus A canção exposta anteriormente e ressaltada por Hobsbawm em sua obra (2009, p. 319) mostra o desejo dos tecelões de Lyon de se organizar ou resistir de alguma forma nas déca- das de 1830 e 1840. O paradoxo está entre as condecorações recebidas por aqueles que repre- sentavam o Estado, ao tempo em que outros (aqueles que produziam para que os primeiros vivessem com conforto) não tinham como dar um enterro digno aos seus entes. Além disso, no trecho “quando o vosso reino terminar” fica evidente a intenção que havia de mudar esse contexto. Nesse cenário, Karl Marx lançou suas ideias junto a Friedrich Engels, no livro Manifesto Comunista, em 1848. Vídeo Política e sociedade após a Revolução Francesa1 História Contemporânea18 Figura 1 – Karl Marx (1818-1883). Fonte: John Jabez Edwin Mayall/Wikimidia Commons. Desde a pré-revolução industrial na Inglaterra dos séculos XVII e XVIII, o mundo ocidental já sentia as primeiras mudanças em relação aos novos princípios capitalis- tas, os quais se tornariam a perspectiva econômica mais comum. O trabalho árduo das fábricas, o relógio que controlava e determinava o valor de seu trabalho, as tradições esquecidas e abandonadas pela perda de propriedades ou pelo êxodo rural também são sintomas desse período. Nesse sentido, o modo de produção capitalista industrial trou- xe inúmeras desvantagens ao operariado, desde problemas de saúde decorrentes das condições insalubres das indústrias e das casas, que mais pareciam cortiços pelo excesso de pessoas e pela falta de qualquer conforto. Sobre esse período ainda, o historiador Edgar Salvadori de Decca faz a seguinte afirmação: [...] a reunião dos trabalhadores na fábrica não se deveu a nenhum avanço das técnicas de produção. Pelo contrário, o que estava em jogo era justamente um alargamento do controle e do poder por parte do capitalista sobre o conjunto de trabalhadores que ainda detinham os conhecimentos técnicos e impunham a di- nâmica do processo produtivo. Na fábrica, a hierarquia, a disciplina, a vigilância e outras formas de controle tornaram-se tangíveis a tal ponto que os trabalhado- res acabaram por se submeter a um regime de trabalho ditado pelas normas dos mestres e contramestres, o que representou, em última instância, o domínio do capitalista sobre o processo de trabalho. (DECCA, 1996, p. 22-24) Percebemos que, além de conviver com toda exploração e falta de condições salubres, operários foram transformados em marionetes, perdendo sua autonomia. Uma prática que tornou o trabalho de muitos desses homens e mulheres automático, sem vida, apenas uma obrigação. Hannah Arendt sugere que isso é proposital e faz parte do último estágio de uma classe de operários, em que estes apenas se “deixavam levar” e “é perfeitamente concebível que a era moderna [...] venha a terminar na passividade mais mortal e estéril que a história jamais conheceu” (ARENDT, 1983, p. 336), o que entendemos como uma alienação almejada. http:// Política e sociedade após a Revolução Francesa História Contemporânea 1 19 Entretanto, salientamos algumas perspectivas sobre a ideia de classe, de acordo com o historiador Edward Palmer Thompson: Por classe, entendo um fenômeno histórico, que unifica uma série de aconteci- mentos díspares e aparentemente desconectados, tanto da matéria-prima da ex- periência como na consciência. Ressalto que é um fenômeno histórico [...] a noção de classe traz consigo a noção de relação histórica. Como qualquer outra relação, é algo fluido que escapa à análise ao tentarmos imobilizá-la num dado momento e dissecar sua estrutura. (THOMPSON, 1987, p. 9, grifo do original) O que o historiador explica é o cuidado em não reduzir o operariado a uma classe com- preensível apenas em princípios capitalistas industriais (os quais também são contextuais). A formação de uma classe ocorre nas relações humanas, por meio de experiências herdadas ou partilhadas e acabam por articular suas perspectivas identitárias entre si. E é nesse sen- tido que Thompson retoma a ideia sobre o operariado, não como uma classe que surgiu em função do mundo fabril, mas que se uniu também em função dele: [...] os trabalhadores ingleses, em sua maioria, vieram a sentir uma identidade de interesses entre si, e contra seus dirigentes e empregadores. Essa classe diri- gente estava, ela própria, muito dividida, e de fato só conseguiu maior coesão nesses mesmos anos porquecertos antagonismos se dissolveram (ou se tornaram relativamente insignificantes) frente a uma classe operária insurgente. Portanto, a presença operária foi, em 1832, o fator mais significativo da vida política britâ- nica. (THOMPSON, 1987, p. 12) Entretanto, se a Reforma e a Contrarreforma provocaram resistências tanto por meio da cultura popular quanto por revoltas, o operariado do século XIX também não deixou de resistir. Na visão do proletariado, a criminalidade também foi uma arma de revolta, e a destruição de máquinas pode ser vista como uma reação, mesmo que descontextualizada de um movimento organizado. Muitas dessas ações difundiram o julgamento de que operários e operárias eram vagabundos, preguiçosos, criminosos etc. Com o surgimento de sindicatos e organizações de trabalhadores a partir de 1830, a França começou a ver os operários como grupos. Como ressaltamos, o Manifesto Comunista foi, sem dúvida, um livro que reuniu ideias a respeito da luta de classes que incentivou muitos a lutarem. Entretanto, embora tenha sido lançado ainda em 1848, não era conhecido dos líderes operários desde o início, assim como nem todos tiveram acesso à obra de imediato. Sobre a situação social de muitos operários desse período, Hobsbawm faz algumas considerações: A bebida não era o único sinal desta desmoralização. O infanticídio, a prostitui- ção, o suicídio e a demência têm sido relacionados com este cataclismo econô- mico e social, graças em grande parte ao trabalho pioneiro na época daquilo que hoje em dia seria chamado de medicina social. O mesmo se deu em relação ao aumento da criminalidade e da violência crescente e frequentemente despropo- sitada que era uma espécie de ação pessoal cega contra as forças que ameaçavam engolir os elementos passivos [...] Eram tentativas de escapar do destino de ser Política e sociedade após a Revolução Francesa1 História Contemporânea20 um trabalhador pobre ou, na melhor das hipóteses, de aceitar ou de esquecer a pobreza e a humilhação. (HOBSBAWM, 2009, p. 325) Situações sociais muitas vezes “causadas” pela falta de opção, de proteção social e po- lítica, visto que, naquele período, raros eram os direitos trabalhistas e sociais reconhecidos. Hobsbawm (2010) chama a nossa atenção ao fato de que diversos crimes ou preconceitos relacionados às camadas sociais mais simples muitas vezes tinham origem nas diferenças sociais acirradas. Epidemias de cólera, por exemplo, só foram uma preocupação das autori- dades quando começaram a atingir as camadas sociais mais abastadas. Esse panorama social comum em muitos centros industriais é uma forma de resistência ao Estado e ao sistema capitalista em partes, pois inicia com revoltas individuais – que são os crimes já mencionados, além de destruição de máquinas das fábricas – partindo para revoltas em grupos, como as greves e os sindicatos. Estes últimos começaram a funcionar a partir dos anos de 1840 como espaços de solidariedade e de consciência de classe. Um dos movimentos, que não podem ser reduzidos a apenas “destruições de máquinas”, foi o ludis- mo, cuja perspectiva é apontada por Thompson a seguir: Só quebraram as armações dos que tinham reduzido o valor dos salários dos empregados; os que não tinham abaixado o valor, ficaram com suas armações intactas; num estabelecimento, na noite passada, quebraram quatro entre seis ar- mações; as outras duas, que pertenciam a mestres que não tinham abaixado seus salários, não mexeram nelas. (MERCURY apud THOMPSON, 1998, p. 126-133) Nesse caso, compreendemos que as ações dos ludistas tinham por objetivo reivindicar direitos trabalhistas e não aceitar a exploração direta e cotidiana que vinham sofrendo, as- sim como o não cumprimento de um pagamento pré-combinado. Quando o Manifesto Comunista foi escrito por Engels e Marx, o objetivo central era ex- por os estatutos da Liga Comunista, embora isso não seja citado no documento. Isso ocorre porque a intenção de escrever tal panfleto era criar uma ideia de classe, revelar a opressão sentida pelos operários que, embora já se rebelassem de diferentes formas, ainda não se reconheciam como uma organização comum com uma pauta de reivindicações. Marx, em sua escrita no Manifesto Comunista, estabelece uma relação entre proletariado e a intenção do capitalismo. De acordo com Hobsbawm, A visão que tinha o Manifesto do desenvolvimento histórico da “sociedade bur- guesa”, inclusive a classe operária por ele gerada, não levava necessariamente à conclusão de que o proletariado derrubaria o capitalismo e, com isso, abriria caminho para o desenvolvimento do comunismo, porque a visão e a conclusão não provinham da mesma análise. O objetivo do comunismo, adotado antes que Marx se tornasse “marxista”, não procedia de uma análise da natureza e do de- senvolvimento do capitalismo, mas de uma discussão filosófica, na realidade escatológica, sobre a natureza e o destino do homem. A ideia – fundamental para Política e sociedade após a Revolução Francesa História Contemporânea 1 21 Marx a partir de então – de que o proletariado era uma classe que não poderia se libertar sem libertar a sociedade como um todo surgiu como “uma dedução filosófica e não como um produto da observação”. (HOBSBAWM, 2011, p. 111) O historiador, ao mencionar dedução filosófica, objetiva afirmar que o operariado e a sociedade (de cada contexto) nunca viveram até então um processo de ruptura e de liberda- de, portanto, a práxis nesse caso não pode ser compreendida em sua teoria. Nesse período, o comunismo era uma filosofia, visto que, para Karl Marx, o destino da humanidade seria o fim da luta de classes, uma possibilidade caso o capitalismo fosse dominado pelo operaria- do. Entretanto, como reitera o próprio Hobsbawm, o manifesto foi um grande divulgador do comunismo no século XX, mas não seria ouvido ou lido se grupos não se organizassem e difundissem os primeiros ideais ou, nas palavras do historiador, “as covas precisam ser abertas por ação humana” (HOBSBAWM, 2011, p. 114). Portanto, a ideia de que o proletariado desenvolveria uma consciência revolucionária sobre o capitalismo era uma das possibilidades, visto que nem sempre estavam em oposi- ção. Hobsbawm (2009) cita diversas realidades europeias do início do século, pioradas com as más colheitas de 1817, 1832 e 1847, ou seja, camponeses sem propriedade ou com terras inférteis que já eram muito pobres, somavam-se aos trabalhadores urbanos e suas péssimas condições de existência. É nesse contexto que surgem as revoluções da Primavera dos Povos. Inúmeras e rá- pidas, espalharam-se por toda a Europa, em especial, nos grandes centros. Trabalhadores estavam cansados, não somente pela falta de direitos trabalhistas, mas por conta da ausência de um Estado mais responsável pelo povo, visto que na Europa, até então, a maior parte dos Estados era monárquica, inclusive a França (com os Bourbons). Alguns casos ainda eram piores, como os da Alemanha e da Itália, pois naquela época ainda não eram países, restando aos seus trabalhadores acordos locais. Direitos civis, educacionais, políticos e de saúde esti- veram na pauta de diversos grupos que estavam cansados de tantas condições ruins de vi- vência e de trabalho, como também o êxodo contínuo e os ideais franceses disseminados aos quatro cantos – Liberdade, Igualdade e Fraternidade –, porém, que poucos conheceram.Todas as barricadas, entre 1848 a 1849, foram logo derrubadas (Figura 2). Poucos não foram presos ou mortos. Muitos, inclusive, foram deportados à Argélia. Mas se logo foram massacrados, por que essas barricadas foram tão importantes para a história dos movimentos dos traba- lhadores? De acordo com Hobsbawm, embora fossem movimentos de trabalhadores pobres, “a experiência da classe trabalhadora injetou nele [no proletariado], pelo menos, na França, novos elementos institucionais fundamentados na prática dos sindicatos e da ação coopera- tiva” (HOBSBAWM, 1982, p. 51). Com exceção da derrubada da monarquiana França, todas as outras se mantiveram, porém, podemos afirmar que, ao longo das décadas seguintes, no- vos acordos entre sindicatos e donos dos meios de produção foram alcançados. Uma árdua trajetória que até o século XXI continua, visto que sempre será uma disputa entre grupos diferentes e, às vezes, opostos. Política e sociedade após a Revolução Francesa1 História Contemporânea22 O Manifesto Comunista, de 1848, foi a maneira que Karl Marx e Friedrich Engels encontraram para que suas ideias chegassem ao mundo do opera- riado no século XIX. Marx almejava que uma leitura de fácil compreensão fosse entendida por vários e, principalmente, que sua condição quando Figura 2 – VERNET, Horace. [Barricadas nas ruas de Paris durante a revolução de junho de 1848], color.: óleo sobre tela, 36 × 46 cm. Museu Histórico Alemão, Berlim. A França de 1789, amedrontada, faminta e baseada nos regimes absolutista e feudal, não é a França de 1850, com seus primeiros movimentos de trabalhadores, derrubando novamente a monarquia. Entretanto, não estamos falando apenas da França, pois vários foram os países e nações no mundo que começaram a trilhar novos rumos políticos e a debater comunismo, república, democracia, parlamento ou monarquia constitucional. Além disso, também são muitas as práticas culturais e sociais que demonstram o por- quê de tomarmos um caminho e não outro. A Revolução Francesa ou a industrial da Inglaterra moveram e movem o mundo. Lynn Hunt (2007) garante que a França pode ser odiada, amada ou temida, mas jamais – em termos políticos – causou ou causará indiferença nesse mundo contemporâneo. Ampliando seus conhecimentos Política e sociedade após a Revolução Francesa História Contemporânea 1 23 vista como classe poderia mudar seu modo de vida. Desejamos uma boa leitura de parte desse texto. Parte 1 - Burgueses e proletariado A burguesia submeteu o campo à cidade. Criou grandes centros urbanos; aumentou prodigiosamente a população das cidades em relação à dos campos e, com isso, arrancou uma grande parte da população do embru- tecimento da vida rural. Do mesmo modo que subordinou o campo à cidade, os países bárbaros ou semibárbaros aos países civilizados, subor- dinou os povos camponeses aos povos burgueses, o Oriente ao Ocidente. A burguesia suprime cada vez mais a dispersão dos meios de produção, da propriedade e da população. Aglomerou as populações, centralizou os meios de produção e concentrou a propriedade em poucas mãos. A con- sequência necessária dessas transformações foi a centralização política. Províncias independentes, apenas ligadas por débeis laços federativos, possuindo interesses, leis, governos e tarifas aduaneiras diferentes, foram reunidas em uma só nação, com um só governo, uma só lei, um só inte- resse nacional de classe, uma só barreira alfandegária. [...] Assistimos hoje a um processo semelhante. As relações burguesas de produção e de troca, o regime burguês de propriedade, a sociedade bur- guesa moderna, que fez surgir gigantescos meios de produção e de troca, assemelha-se ao feiticeiro que já não pode controlar as forças internas que pôs em movimento com suas palavras mágicas. Há dezenas de anos, a história da indústria e do comércio não é senão a história da revolta das forças produtivas modernas contra as atuais relações de produção e de propriedade que condicionam a existência da burguesa e seu domínio. Basta mencionar as crises comerciais que, repetindo-se periodicamente, ameaçam cada vez mais a existência da sociedade burguesia. Cada crise destrói regularmente não só uma grande massa de produtos já fabricados, mas também uma grande parte das próprias forças produtivas já desen- volvidas. Uma epidemia, que em qualquer outra época teria parecido um paradoxo, desaba sobre a sociedade - a epidemia da superprodução. Subitamente, a sociedade vê-se, reconduzida a um estado de barbaria momentânea, dir-se-ia que a fome ou uma guerra de extermínio corta- ram-lhe todos os meios de subsistência; a indústria e o comércio parecem aniquilados. E por quê? Porque a sociedade possui demasiada civiliza- ção, demasiados meios de subsistência, demasiada indústria, demasiado comércio. [...] Política e sociedade após a Revolução Francesa1 História Contemporânea24 Atividades 1. Caracterize o panorama social e político logo após a Revolução Francesa e explique o porquê da ascensão de Napoleão Bonaparte junto à burguesia. 2. A historiadora Lynn Hunt e a filósofa Hannah Arendt têm pesquisas sobre o caráter da Revolução Francesa – mais em especial sobre o porquê de ela ter sido direcionada de acordo com os interesses burgueses. De acordo com o exposto no texto, comente sobre as consequências disso. 3. Relacione as condições sociais de trabalhadores com a Primavera dos Povos e as lutas do movimento operário. 4. No Manifesto Comunista, Karl Marx expõe suas principais críticas em relação ao cres- cimento industrial. Elabore um texto com suas principais críticas, relacionando-as com esse contexto. Resolução 1. A burguesia, servos, operários e camponeses que promoveram a Revolução France- sa não encontraram pontos comuns de formação política após a tomada do poder. Em um primeiro momento, uma Monarquia Constitucional pareceu suficiente, po- rém, em 1791, com a fuga do rei, implantou-se outro regimento político. Napoleão Bonaparte ganhou confiança da burguesia pelas conquistas, militarização e enrique- cimento do exército. Este, diversas vezes foi chamado pelo diretório para reprimir revoltas e rebeliões. Desse modo, embora fosse um antigo aliado jacobino, Bonaparte se faz notar e com o apoio da burguesia chegou ao poder. 2. Para Lynn Hunt e a Hannah Arendt, o mundo político após a Revolução France- sa passou a ser disputado por grupos sociais diferentes, cujas preocupações eram os seus próprios anseios. Entretanto, esses mesmos grupos deveriam ter focado em construir uma política que protegesse a liberdade de todos e, após isso, poderiam disputar o poder de modo democrático. Ao mesmo tempo, os grupos mais oprimi- dos preocuparam-se, em um primeiro momento, com sua segurança – condição ofer- tada pela burguesia – e, depois, acabaram suscetíveis aos interesses da burguesia. O que ocorreu foi que a burguesia, grupo mais forte, acabou legitimando um poder que mais favorecia aos seus interesses, enquanto as outras camadas não tinham no Estado suas defesas sociais e políticas. Política e sociedade após a Revolução Francesa História Contemporânea 1 25 3. O movimento dos trabalhadores foi um levante ocorrido em diversos países da Eu- ropa no ano de 1848, de forma rápida e abrupta. Do mesmo modo acabou, visto que era conduzido por trabalhadores pobres, por isso, com pouca visibilidade e fraco politicamente. Entretanto, o Manifesto Comunista, as condições vividas por trabalha- dores e a falta de direitos, especialmente em países monarquistas, fez com que levan- tassem bandeiras e passassem a exigir uma representação tanto de si, por meio de sindicatos e organizações, quanto daqueles que deveriam protegê-los. 4. Marx relaciona a ideia de que o crescimento é alarmante, ao mesmo tempo em que não há um controle sobre a produção, gerando crises que muitas vezes recaem sobre os trabalhadores. É também uma crítica ao liberalismo burguês do período, cujo es- tado dava a liberdade de mercado, porém, não protegia ou dava segurança ao povo. História Contemporânea 27 2 A cidade, a indústria e a classe trabalhadora Nossa intenção neste capítulo é pensar algumas das mudanças políticas, sociais e culturais do século XIX. Em um primeiro momento, traçamos ideias sobre a política e o ideal do mundo burguês, o qual se aproveitou das novas formações políticas na Europa para forjá-las de acordo com seus interesses. Porém, consideramos que, se a Revolução Francesa, com seu período conturbado, e a própria Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão instigaram os interesses burgueses, os trabalhadores também veriamnesses acontecimentos uma possibilidade de cidadania, de alcançar a segu- rança social e igualdade política. Em seguida, buscamos compreender como a burguesia, com base nas ideias de Nação ou de Estado-nação, recentes em terras absolutistas, serviu-se dos princípios de democracia e de patriotismo para legitimar seu capitalismo e chegar à ideia de impe- rialismo. Este originou o que chamamos de globalização, alterando quase todas as cul- turas. Como objetivo final, buscamos compreender de que forma as novas formações políticas e culturais alteraram a literatura e a ciência de modo geral. Lorena Zomer A cidade, a indústria e a classe trabalhadora2 História Contemporânea28 2.1 A ideia de progresso, o liberalismo e o mundo burguês Após a Revolução Francesa, o regime monárquico já não era sufi- ciente para os interesses burgueses, em especial, se considerarmos a sua política econômica. Dessa forma, o Estado deveria representar a vontade do povo, em uma postura democrática por meio de suas leis. Desde 1789, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão já deixava isso evidente, mesmo que preservasse o direito à propriedade privada e que outros não pudessem tê-la. Aliás, esse aspecto é uma das defesas do liberalismo primário: “a ideologia do capitalismo comercial e manufatureiro em expansão e um ataque às regulações políticas produzidas pelas corporações de ofício e pelo Estado mercantilista” (MORAES, 2001, p. 10). De outro modo, O liberalismo pode ser entendido como uma ideologia que concede espaços à iniciativa e à autonomia individuais. Nessa filosofia, as ações dos indivíduos, desde que respaldadas por normas legais (e nesse caso o Direito é fundamen- tal para a instituição de uma sociedade liberal), podem manter uma autono- mia relativa ante o Estado. Este, por sua vez, deve exercer algumas funções específicas, limitadas, mas essenciais à ação livre dos cidadãos proprietários. Desse modo, há estreita relação entre o liberalismo político e o liberalismo econômico, na medida em que o Estado se estrutura para garantir os contra- tos. (SILVA; SILVA, 2009, p. 260) Considerando essas ideias, no período bonapartista, a burguesia teve liberdade para instituir seus meios de produção, sem grandes interferências. Com Luís XVIII, os três pode- res foram instituídos e o voto passou a ser censitário. Nesse caso, tanto a primeira quanto a segunda medida facilitaram os interesses da alta burguesia, para que adequasse as leis e votasse apenas no que desejasse. Outra medida desejada pela burguesia era a liberdade de mercado, sem a interferência do Estado. Porém, é preciso lembrar que, ao mesmo tempo em que esse era o objetivo da burguesia, a própria Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão sugeria a igualdade entre as diferentes camadas sociais. Tal ideia não era desconhecida ou foi esquecida. Hobsbawm afirma que as revoluções alteraram o panorama social, político e econômico novamente da Europa: A política de massa e a revolução de massa, com base no modelo de 1789, mais uma vez tornaram-se possíveis, e a dependência exclusiva das irmandades secre- tas. Os Bourbons foram derrubados em Paris por uma típica combinação de crise do que se considerava a política da monarquia Restaurada e da intranquilidade popular devida à depressão econômica [...] O segundo resultado foi que, com o progresso do capitalismo, o “povo” e os “trabalhadores” – isto é os homens que construíram as barricadas – podiam ser cada vez mais identificados com o novo proletariado industrial. (HOBSBAWM, 2009a, p. 194-195) Vídeo A cidade, a indústria e a classe trabalhadora História Contemporânea 2 29 A instabilidade do período parecia deixar evidente que os interesses burgueses ainda não estavam totalmente estruturados, porém, a partir de 1830, com a nova configuração política e as organizações operárias, a burguesia ganharia ainda mais espaço. Em 1830, as barricadas também lutavam pelo liberalismo, pois acreditavam que ao diminuir o poder do Estado também seriam beneficiadas (HOBSBAWM, 2009a, p. 195-215). A burguesia não teve o triunfo total na política, pois, como afirmamos, a mesma Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão que legitimou a propriedade privada e acabou com o feudalismo, segregando as diferenças sociais, fez com que trabalhadores, aos poucos, buscassem organizar um movimento operário. Desse movimento, diversos partidos, teorias e influências foram mobilizados, como o socialismo utópico, marxismo, entre outros. Mas a burguesia conseguiu manter-se no poder majoritariamente. Além disso, como veremos no último tópico, ela esteve diretamente ligada à ciência e às artes produzidas naquele tempo. Isso fez com que todo o conhecimento fosse produzido de acordo com o que se compreendia por progresso, que poderia ser entendido de forma breve como o que eleva a moral de uma sociedade, sustentando seus interesses econômicos e políticos. Se uma nação ou Estado- nação almejasse prosperar, deveria investir na ciência (fonte de conhecimento), de acordo com os interesses burgueses (capitalista). A separação entre trabalho, lazer e convívio era comum também aos burgueses em rela- ção aos seus interesses, pois ao mesmo tempo em que existiam tantos lugares e coisas a se fazer, também incentivava-se a intimidade, o individualismo. Em um contexto no qual o indivíduo podia escolher aonde ir e o que fazer, também era necessário proteger-se de olhares ao redor. Seu espaço era privado, ou seja, não era mais comunal, em grupo. O máximo de reuniões era o que ocorria nos salões de festas e concertos. Em casa, reservava-se apenas à família, o lu- gar de descanso. O historiador Phillipe Arriès (1997) afirma que três condições devem ser consideradas a fim de entender o que ocorreu entre a vida pública e comunal do medieval à vida privada contemporânea. As três são peculiares ao período Moderno: o fato de o Estado ser pensado e criado com base na divisão geral em três grupos sociais, cujos dois primeiros (sociedade cortesã, classes populares) não geraram um novo estado privado; a disseminação de escolas e da leitura, que aumentou o número de letrados e daqueles que liam para si; e as novas religiões decorrentes da Reforma, que estimulavam meditação e consciência sobre si. Esses três elementos colaboraram para sociedades mais introspectivas, ao tempo em que mudanças urbanas e rurais causavam novas formas de sociabilidade. Essas mudanças em re- lação ao comportamento e à moral não aconteceriam se os Estados europeus não estivessem procurando se construir como nação. A respeito desse assunto, estudaremos na próxima seção. 2.2 Construção de nações e a democracia A nação é o lugar no qual encontramos elementos comuns, que formam um território geográfico demarcado e que também são justificados por ele- mentos culturais, naturais e de laços com base em tradições. Conforme defi- nem Kalina Silva e Maciel Silva: Vídeo A cidade, a indústria e a classe trabalhadora2 História Contemporânea30 [...] a ideia de nação predominante no Ocidente até hoje é aquela eminentemente política. Construído para a realidade europeia, o conceito político de nação tam- bém foi empregado para aqueles territórios que se constituíram da colonização europeia, como a América. Nesse caso, as ideias de nação e Estado estão tão in- terligadas que deram origem a um outro conceito, o de Estado-nação. O Estado- -nação é uma realidade política, o cenário em que a existência social se desenrola (SILVA; SILVA, 2009, p. 309) Quando são reunidas essas características e compreendidas em um território, organiza- das em um sistema jurídico, temos um Estado-nação. Para tanto, as línguas faladas, a cultura e o modo de viver da população legitimam e impulsionam homens e mulheres a definirem o que querem de sua nação.No caso europeu do século XIX, desde o Congresso de Viena, no qual os Estados europeus se encontraram para definir os traços geográficos após a queda de Napoleão Bonaparte (HOBSBAWM, 2009a, p. 171-175),o continente não tinha vivido muitas formações de novas nações, diferentemente de uma perspectiva nacionalista, na qual emergiram os primeiros partidos de trabalhadores em meados desse século, na França. Eric Hobsbawm (2009c) explica que entre 1870-1914 surgiram os primeiros grupos políticos de direita, que definiram o termo nacionalista em outras perspectivas em relação aos anos de 1830, que poderiam ser entendidas da seguinte forma: A base dos “nacionalismos” de todos os tipos era igual: era a presteza com que as pessoas se identificavam emocionalmente com “sua” nação e podiam ser mo- bilizadas, como tchecos, alemães, italianos ou quaisquer outras, presteza que po- dia ser explorada politicamente. A democratização da política e especialmente a das eleições oferecia amplas oportunidades para mobilizar as pessoas. Quando os Estados faziam isso, chamavam de “patriotismo”. (HOBSBAWM, 2009c, p. 228) Nesse sentido, o sentimento de pertencimento, de experiências que indivíduos pode- riam ter em uma nação demarcada territorialmente levava a uma ideia de nacionalismo. E as possibilidades democráticas conquistadas ao longo do século XIX, especialmente após as revoluções de 1848, permitiram que alguns grupos sociais (considerando que em muitos países o voto era censitário) pudessem escolher, questionar ou ao menos servir aos interes- ses de outro grupo. Ainda, segundo Hobsbawm (2009a), os preceitos pelos quais as ideias de nacionalismo passaram, a fim de formar o conceito de nação e de nacionalismo, foram pen- sados com base em quatro interpretações ao longo do século XIX: o nacionalismo e o patrio- tismo como símbolos da direita; a autodeterminação de um Estado como nação econômica e politicamente viável só poderia ocorrer se fosse reconhecida por outros; tal reconhecimento não poderia ser feito por um Estado-nação considerado inferior a esse; e a língua seria um dos elementos centrais para se pensar o nacionalismo e, consequentemente, a nação. Tais perspectivas têm diversos pontos complexos que demonstram o modo como o sé- culo XIX originou, por meio de escolhas também democráticas e nacionalistas, países impe- rialistas europeus do fim do século XIX. Primeiramente, a partir do momento em que um grupo escolhe os elementos que compõem as características sociais, políticas e culturais que definem uma nação, automaticamente exclui outros povos ou minorias. Isso ocorre com A cidade, a indústria e a classe trabalhadora História Contemporânea 2 31 indivíduos já presentes nessa nação, imigrantes ou com vizinhos – os quais muitas vezes disputam o território próximo. Com base nessas considerações, Hobsbawm (2010) aponta que o Oeste da Europa, em especial Inglaterra e França, foi forjado por meio da liderança de seus grupos nacionalistas (muitas vezes de extrema direita), que definiram quais eram os elementos do princípio de nacionalidade, isto é, o direito de cada grupo formar uma nação de acordo com sua liberdade e suas características. Nesse caso, retomamos a citação de Hobsbawm a partir da ideia de patriotismo, pois essa se tornou objeto central de grupos que objetivavam definir o que era ser patriota, ao tempo em que excluíam os demais. Nesse sentido: Originalmente, a essência do nacionalismo de direita, que emergia em Estados- -nação já estabelecidos, era a reivindicação do monopólio do patriotismo para a extrema direita política, e por meio dela a estigmatização de todos os demais como traidores. O fenômeno era novo; durante a maior parte do século XIX, o nacionalismo fora identificado como movimentos liberais e radicais, bem como com a tradição da Revolução Francesa. (HOBSBAWM, 2009c, p. 228-229) A escolha democrática só aconteceu devido à ideia de cidadania – princípio presente em diversas lutas sociais após a Revolução Francesa – por ganhar respaldo em um pacto so- cial em relação ao bem-estar, ou seja, como algo que diz respeito a um grupo e suas diferen- ças em relação a outros, e como tornou-se inferior perante a eles. Portanto, após à formação da ideia de nação, cujo argumento central era o que havia em comum entre grupos, como justificar o domínio desejado em relação a novas nações julgadas como diferentes? Apenas pela estigmatização esses grupos encontraram bases suficientes. Se no fim do século XIX alguns Estados-nações já estavam formados, como Inglaterra e França (mesmo com problemas locais, como Alsácia e Lorena), outros ainda buscavam terri- tórios, como o Império Austro-Húngaro, Rússia, e as mais recentes, Itália e Alemanha. É nes- se contexto que a anexação de territórios tornou-se sinônimo de poder e, consequentemente, de disputa com base em questões étnicas, raciais e linguísticas. Da Revolução Francesa veio a ideia de nação, cujas novas organizações no século XIX geraram o que entendemos por Estado-nação (mundo capitalista). Este, por sua vez, ocasionou o nacionalismo, ao instituir práticas mais democráticas. Por meio de interesses tanto territoriais quanto capitalistas, os países citados utilizaram preceitos nacionalistas para conquistar outros, causando atritos diretos ou indiretos que culminaram nas principais causas da Primeira Guerra Mundial (1914-1918). O que salientamos é a ideia de que, para incentivar as disputas por territórios na corrida imperialista, o patriotismo e a supremacia linguística e, futuramente, racial e étnica também foram os pontos mais argumentados e incentivados. Portanto, ao partir da ideia de que a democracia é a ativa participação do povo, e a premissa de que o eleito pelo povo é a representação máxima de uma nação ou Estado-nação, podemos apontar que as manipulações e sentidos dados à democracia em um país justificam guerras e exploração de outros povos. Sobre isso, a filósofa Hannah Arendt tem o seguinte entendimento: A cidade, a indústria e a classe trabalhadora2 História Contemporânea32 O imperialismo surgiu quando a classe detentora da produção capitalista rejei- tou as fronteiras nacionais como barreira à expansão econômica. A burguesia se interessou na política por necessidade econômica: como não desejava abandonar o sistema capitalista, cuja lei básica é o constante crescimento econômico, a bur- guesia tinha de impor essa lei aos governos, para que a expansão se tornasse o objetivo final da política externa. (ARENDT, 2013, p. 156) Arendt (2013) afirma, portanto, que o imperialismo – que alterou o panorama geopo- lítico do mundo a partir da segunda metade do século XIX – é resultado de interesses ca- pitalistas. Para isso, a burguesia precisou aumentar seu poder no Estado que, por sua vez, era (e ainda é) a instituição representante da vontade democrática da maioria dos países organizados e formados no mundo contemporâneo. Nesse caso, a economia sustentava os interesses imperialistas de grupos nacionalistas, e o resultado disso é o que entendemos por imperialismo e mundo globalizado e alicerçado no capitalismo burguês. Porém, países imperialistas, como a Inglaterra, jamais estenderam sua organização estatal às colônias, mas apenas a ideia de nação – visto que não poderiam dar aos colonizados a mesma cidadania, para que não fossem responsáveis ou questionados por seus conceitos. Embora a força militar e a política imperialista europeia fossem muitas vezes superiores às pertencentes aos colonizados, por exemplo, eles também viam nascer em suas realidades um sentimento nacionalista quando oprimidos. Desse contexto, vieram as resistências e as lutas por independência no século XX. Entretanto, o mundo político não se formou apenas com base em interesses burgueses, assim como a cultura e as tradições deles não foram ho- mogêneas e predominantes. A respeito desse assunto, estudaremos na próxima seção. 2.3 Trabalhadores, arte e ciência Após o surgimento das ferrovias, as cidades tornaram-se o maior sím- bolo de progresso no século XIX. Mesmo que sejam números modestos para o século XXI, até aquele período não era relatado tanto progresso na Europa, nos Estados Unidos e empaíses como a Argentina e a Austrália. O frisson era o mundo urbano e tudo que ele alterava, trazia e oportunizava. Existiam cidades de 200 mil habitantes, mas muitas daquelas que se ajustavam ao redor delas chega- vam a ter 1 milhão de habitantes, como em Londres e Paris. Entretanto, Hobsbawm (2009b) reitera que não se tratava exatamente de uma cidade industrial, mas comercial, administra- tiva e de acesso aos transportes. Um entreposto que poderia ter tudo, ao mesmo tempo em que ainda se mantinha próximo – e muito – do campo (casos de trabalhadores que, quando em greve, cuidavam de suas pequenas plantações de batatas). O mundo da arte era destinado para poucas camadas sociais, visto que era preciso ter tempo e dinheiro para que se pudesse usufruir do que era oferecido. Portanto, esses dois aspectos eram muito caros aos trabalhadores, contudo, isso não quer dizer que o mundo da arte não entrava na vida dos operários. De acordo com Hobsbawm: Vídeo A cidade, a indústria e a classe trabalhadora História Contemporânea 2 33 As composições que entravam na consciência popular eram as árias de Verdi interpretadas pelos organistas populares italianos ou aqueles pequenos excer- tos de Wagner que podiam ser adaptados à música para casamentos, mas não as próprias óperas. Mas isso em si já implicava uma revolução cultural. Com o triunfo da cidade e da indústria, uma divisão cada vez maior se interpunha entre, de um lado, os setores “modernos” das massas, quer dizer, os urbaniza- dos, os instruídos, aqueles que aceitavam o conteúdo da cultura hegemônica – a sociedade burguesa – e, de outro lado, os setores “tradicionais” cada vez mais minados. (HOBSBAWM, 2009b, p. 451) Hobsbawm (2009b) deixa evidente a influência de uma cultura mais burguesa às mas- sas, porém, com adaptações, visto que esses grupos diferentes entre si precisavam manter distinções. Essas aumentavam se comparadas à vida daquelas comunidades com culturas tradicionais, que se mantinham mais resistentes à cultura da sociedade burguesa. O que parece ser a consideração mais pertinente sobre a citação, é a ideia de sustentar que as mu- danças sociais são evidentes, isto é, em uma sociedade mais camponesa, feudal e com carac- terísticas próprias da realidade absolutista, temos o cotidiano europeu das grandes cidades, repleto de práticas sociais e culturais muitos diferentes em cem anos. Um hábito cultural encontrado para um divórcio – prática não permitida no período Medieval pela Igreja católica e também até quase o fim do Moderno – era a venda das espo- sas. O historiador britânico Edward Palmer Thompson explica: A venda às vezes era precedida por um anúncio público, podia usar o si- neiro da cidade para dar a notícia ou o marido podia andar pelo mercado com um cartaz com o aviso da venda [...] A corda era essencial para o ritual. A mulher era levada ao mercado, presa por uma corda e em geral, amarrada ao redor do pescoço, às vezes ao redor da cintura. No merca- do alguém deveria fazer o leilão, o marido ou um funcionário do mer- cado. Quando a venda acontecia, os recém-casados saíam sós ou os três juntos – a esposa, o vendedor e o comprador. Após a venda, os envolvi- dos redigiam um contrato enquanto bebiam juntos. (THOMPSON, 1998, p. 316 e 320) Era um ritual na maior parte das vezes combinado, com acordos entre o novo e o ex- -casal. As camadas mais simples não eram casadas pelo clero, ao mesmo tempo em que o Estado também não exercia essa função. Dessa forma, o ritual demonstrava – desejando a mulher ou não – que o homem não deveria ser mais reconhecido como responsável pela mu- lher. Esse foi um dos costumes identificados por Thompson (1998). Eric Hobsbawm também traz algumas práticas sobre esse período: Na Inglaterra, a era na qual os music-halls multiplicaram-se nas cidades tam- bém foi a era na qual sociedades corais e bandas de música operária, com um repertório de “clássicos” populares da alta cultura, pulularam nas comunidades A cidade, a indústria e a classe trabalhadora2 História Contemporânea34 industriais. Mas é característico que nessas décadas o curso da cultura corresse em uma só direção – da classe média para baixo, ao menos na Europa. Mesmo aquilo que se transformaria na mais característica forma da cultura proletária, os esportes de massa, em nosso período era determinado pelos jovens da classe média, que fundaram os clubes e organizavam as competições , por exemplo, na Association Football. Só no final da década de 1870 e início da de 1880 que esses esportes seriam adotados e praticados pela classe operária. (HOBSBAWM, 2009b, p. 451, grifo do original) Comunidades operárias são lembradas pelo historiador como redutos que adaptam os clássicos da burguesia, porém, dando-lhes um tom seu. O que Hobsbawm (2009b, p. 451- -453) chama de cultura operária é, portanto, o resultado da influência sofrida por uma classe média/alta e da própria resistência da cultura mais tradicional desses grupos. A mesma situação teria acontecido com os operários da Boêmia que, com o passar do tempo, já canta- vam músicas nada parecidas com as de seus pais. Podemos perceber que a arte e a cultura, que atingiam a maior parte da população operária, eram originadas das classes em geral superiores. Entretanto, a resistência também permanecia. A vivência e a experiência de cada dia foram alteradas pelo ritmo frenético das ruas recém-urbanizadas ou em processo de urbanização, com parques construídos, cafés, correios, bancos das praças nos quais se liam os jornais com críticas literárias e descobertas da ciência, e calçadas que tinham senhoras e senhores desfilando suas melhores roupas en- quanto iam a um encontro furtivo. Trabalhadores, como floristas, datilógrafas, operários, secretárias, enfermeiros, e bur- gueses(as) em charretes e logo em carros, todos faziam (ou fariam) parte desse novo cená- rio. O caminho para o progresso era a estrada para a cidade. Lá, aos poucos, qualquer um poderia ler, estudar, adquirir novas relações e sentimentos. As camadas sociais eram bem divididas, porém, se cruzavam. A historiadora Michelle Perrot narra: Os “ratinhos” da Ópera de Paris eram meninas colocadas por suas mães sob a tutela de “mães da Ópera”, que lhes arrumavam “protetores”. Sarah Bernhardt não queria tornar-se atriz, mas sua mãe a fez entrar para o Conservatório; este era uma garantia de qualificação e de reconhecimento. (PERROT, 2007, p. 125) O exemplo de Perrot (2007) traz uma das profissões recém-descobertas ou conquis- tadas por mulheres. Se o século XIX foi um período de grandes opressões políticas, tam- bém foi de conquistas sociais e trabalhistas e, sobretudo, de gênero. Perrot (2007) ainda salienta o fato de que, somente na Constituição de 1852, atores e atrizes passaram a ser considerados cidadãos como os demais. Nesse campo, a maior parte vinha de camadas pobres e populares. A historiadora também recorda sobre as mulheres que vinham do campo e, ao não encontrarem emprego nas cidades, acabavam por se tornar costureiras. Esse emprego, embora bastante pejorativo e com preconceitos de gênero, permitiu que muitas delas tivessem seu próprio sustento, mesmo que trabalhassem em quartos quase sempre minúsculos e com más instalações. A cidade, a indústria e a classe trabalhadora História Contemporânea 2 35 Ambos exemplos tratam de espaços (a cidade, o mundo urbano, a ópera) estimulados pelos hábitos e interesses econômicos dos burgueses. Essas trabalhadoras nem sempre vi- viam de acordo com os padrões morais esperados, e conquistaram espaços até então proibi- dos às mulheres. E, além de alterar o mundo cultural, seus empregos estavam relacionados à tecnologia (e ao capitalismo). O trabalho necessário e exaustivo das costureiras, por exem- plo, estimulou o mercado das máquinas de costura, em especial, da Singer (PERROT, 2005, p. 121-123). Mas, não foi somente nas máquinas Singer ou nos passos apressados em direção às estações de trem ou aos metrôs – em Londres, inaugurados