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Politica-Externa-21-03-Marco-Aurelio-Garcia

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Paraguai, Brasil e o Mercosul
,"
Marco Aurélio Garcia
The article analyses the impeachment of Paraguayan President Fernando Lugo and the reaction such an act of
force provoked within Mercosul, Unasul and the Brazilian Government. The circumstances of Lugo's election
are retraced, revealing the fragility of his political support base. The predominance of a very conservative
national political system and political class is a matter of specific concern, as well as the strategies which were
being developed in Paraguay and Latin America in reaction to the advent of progressive governments during
the last decade. The inconsistency of arguments which led the Senate to impeach Fernando Lugo and the
arbitrary nature of his judgment are highlighted. Reasons for paraguay's suspension from Mercosul and Unasul
are explained, against the backdrop of a regional integration process increasingly contingent on an unwavering
commitment to democracy. Finally, reference is made to the conditions for paraguay's return to the commu-
nity of South American nations.
A eleição de Femando Lugo para presi-
dente do Paraguai, em 2008, foi vista na
América Latina como um importante passo
no processo de democratização daquele país.
Ex-bispo da Igreja Católica, ligado a
movimentos sociais, sobretudo do campo,
Lugo chegou à Presidência pela força do
voto popular, com um programa que en-
fatizava o combate à pobreza e à desigual-
dade, problemas que faziam do Paraguai
o país mais pobre da América do Sul.
Apesar de crítico ao establishment, Lugo
compreendeu as dificuldades de ganhar
sozinho as eleições e buscou ampliar a base
de sustentação política de sua candidatura.
Formou a Alianza Patriotica para el Cambio
(APC), uma coligação integrada por oito
partidos. Nela, tinha lugar de destaque o
Partido Liberal Radical Autêntico (PLRA),
mais conhecido como Partido Liberal, que
lhe propiciou seu companheiro de chapa, o
vice-presidente Federico Franco.
A aliança de forças de esquerda com um
partido de centro-direita, como o Liberal,
aparecia como conveniente para ambos
os lados.
Lugo ampliava a base social e política
de sua candidatura e, ao mesmo tempo,
procurava precaver-se em relação às difi-
culdades que seu projeto mudancista en-
frentaria em um país marcado pelo con-
servadorismo e instabilidade do seu siste-
ma político.
A queda do ditador Alfredo Stroessner
em fevereiro de 1989, que permanecera por
mais de 30 anos no poder, fora resultado de
um golpe palaciano, chefiado por um pró-
ximo colaborador do caudilho, o general
Andrés Rodriguez. Carente de raízes sociais,
o movimento de Rodriguez dificilmente
Marco Aurélio Garcia é assessor chefe da Assessoria
Especialda presidenta Dilma Rousseff, função que ocupou
igualmente nos dois governos Lula da Silva (2003-2010).
Diplomata, doutor em Sociologia (UnB) e mestre em
Ciência Política (Unicamp). Esteartigo foi escrito a título
pessoal e não reflete necessariamente posições oficiais
do Ministério da Relações Exteriores.
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ARTIGOS
poderia ensejarI uma efetiva ruptura demo-
crática no país.
A tortuosa - e inacabada - transição
paraguaia para a democracia enfrentou
sucessivas crises. É o que mostra a tenta-
tiva frustrada de golpe contra o presiden-
te Juan Carlos Wasmozy, em 1996, dirigida
pelo general Uno Oviedo, personagem
que, 16 anos mais tarde, teria papel central
na derrubada de Fernando Lugo.
O sucessor de Wasmozy, Raul Cubas, foi
destituído pelo Congresso Nacional e subs-
tituído pelo presidente do Senado, Gonzá-
lez Macchi. Durante esse tumultuado pro-
cesso institucional, o vice-presidente Ar-
gana foi assassinado nas ruas de Assunção.
O paradoxo desse período de aguda
instabilidade está em que, em nenhum
momento, a hegemonia do Partido Colo-
rado (denominação dada à Alianza N acio-
nal Republicana) foi abalada. Cevado no
regime Stroessner, com forte presença no
aparelho de Estado, sobretudo em sua
burocracia, esse Partido governou o país
até a eleição de Lugo em 2008.
Os liberais viram no apoio ao bispo -
um candidato eleitoralmente competitivo
- a oportunidade de desalojar os colorados
de um poder que ocupavam há décadas.
A aliança entre um candidato à Presi-
dência com forte apoio popular, mas sem
sólida base partidária, com uma organiza-
ção de perfil conservador apresentava
grandes riscos. A história se encarregou de
mostrar o quão reais eram esses riscos.
Eleito Presidente, e sem apoio parla-
mentar/ Fernando Lugo viu muitas de
suas iniciativas paralisadas no Congresso
paraguaio. Até mesmo questões triviais,
mesmo que relevantes, como a aprovação
de embaixadores,' foram bloqueadas no
Legislativo, provocando desconfortável
paralisia do governo.
Na avalancha das mudanças sociais e
políticas pelas quais vem passando a Amé-
rica do Sul nos últimos 15 anos - da qual
a eleição de Lugo era mais um exemplo -
três caminhos se abriam para conferir
governabilidade aos novos presidentes.
Em países onde havia correspondência
entre o voto majoritário e o voto propor-
cional, como é o caso do Uruguai, a gover-
nabilidade estava plenamente assegurada,
a menos que ocorressem fissuras no bloco
majoritário.
Em países em que não havia correspon-
dência automática entre a votação para o
Executivo e o Legislativo, cabia ao presi-
dente construir uma maioria parlamentar,
em base a acordos programáticos e a for-
mação de um Ministério que refletisse a
coligação hegemônica. O exemplo brasi-
leiro expõe as vantagens e as desvantagens
do que se tem chamado comumente de
"presidencialismo de coalizão".
Finalmente, naqueles países onde o
ingresso de novos atores sociais na cena
política se chocava com instituições obso-
letas, faziam-se necessárias transforma-
ções políticas profundas, capazes de via-
bilizar as promessas de reformas econômi-
cas e sociais que haviam levado os novos
governantes ao poder.
Colocava-se nesses casos, a necessidade
de uma refundação institucional que se
ajustasse à nova correlação de forças reve-
lada nas urnas. Na maioria dos casos esse
anseio de refundação pôs na ordem do dia
a convocação de Assembleias Constituin-
tes capazes de desenhar uma nova institu-
cionalidade.
Este foi o caminho seguido, na última
década, por Venezuela, Equador e Bolívia.
As Constituintes fizeram surgir nesses três
países uma nova ordem institucional, le-
gitimada em referendas populares, e con-
feriram a seus Presidentes a governabili-
dade de que careciam seus antecessores.3
Lugo não seguiu nenhuma dessas al-
ternativas.
Seu governo não logrou construir uma .
base parlamentar que lhe desse efetiva
10 POLfTlCA EXTERNA
PARAGUAI, BRASIL E O MERCOSUL
sustentação, nem convocar os movimentos
sociais para pressionar em favor de um
câmbio institucional que permitisse realizar
as mudanças exigidas por seus eleitores.
A consequência dessa indecisão sobre
o caminho a seguir foi, de um lado, a des-
mobilização de sua base social e, de outro,
uma crescente mobilização dos partidos e
grupos tradicionais contra o presidente, aí
incluindo os liberais. Poucas semanas após
a posse de Lugo, em agosto de 2008, o
vice Federico Franco já proclamava, sem
inibição, estar "pronto para substituir o
presidente"!
Entre 2008 e 2012, vinte e três acusações
constitucionais foram apresentadas contra
o chefe do governo paraguaio. A primeira
delas, antes mesmo de sua posse.
O governo Lugo pôde contabilizar, nos
seus quase quatro anos de duração, indis-
cutíveis êxitos. O Paraguai logrou índices
apreciáveis de crescimento - em 2010 foi
o segundo país que mais cresceu no mun-
do - , sem comprometer o equilíbrio ma-
croeconômico. O governo iniciou um vi-
goroso programa de combate à pobreza e
de inclusão social. No plano externo, a
exitosa renegociação com o Brasil para
obter uma maior participação nos benefí-
cios da Itaipu-Binacional, propiciou ao
governo do Paraguai popularidade e im-
portantes recursos orçamentários. Na
campanha eleitoral Lugo havia dado gran-
de importância à "defesa da soberania
energética", o que envolvia a reabertura
dadiscussão sobre a participação dos dois
países em Itaipu. O acordo logrado trouxe
inequívocas vantagens para o Paraguai,
sem que fosse necessário renegociar o
Tratado firmado no passado.
A mudança do relacionamento com o
Brasil permitiu também ao Paraguai aufe-
rir mais vantagens no Mercosul. A cons-
trução de uma linha de transmissão ligan-
do Itaipu às imediações de Assunção é
exemplo significativo. Financiada pelo
Fundo para a Convergência Estrutural do
Mercosul (FOCEM), com aportes majori-
tariamente brasileiros, essa obra, de caráter
estruturante, terá forte impacto sobre o
futuro do país, na medida em que criará a
infraestrutura energética necessária a sua
industrialização.
Os maiores problemas enfrentados
pelo presidente Fernando Lugo se concen-
traram, no entanto, na esfera política.
Hesitante, quando não paralisado, o novo
grupo dirigente subestimou a capacidade
das oposições de articularem-se e de for-
jarem sua unidade, ainda que transitória,
para enfrentar o inimigo comum, cada vez
mais indesejado.
Lugo havia ganho uma eleição, mas não
o poder. Até porque o poder não é um lugar,
que se possa "tomar", como as esquerdas
acreditaram durante um certo tempo. O
poder é, antes, a expressão de uma correla-
ção de forças que envolve fatores econômi-
cos, sociais, políticos e culturais. Para alte-
rar essa correlação de forças não basta
chegar ao governo, menos ainda a uma
parte dele, como ocorreu no Paraguai. É
necessário ter ideias e instrumentos de
mobilização capazes de constituir maiorias
em torno de um projeto de mudança.
Décadas de ditadura, e uma transição
para a democracia controlada do alto por
forças que haviam apoiado o governo
Stroessner e se locupletado nele, deixaram
marcas profundas na sociedade e no siste-
ma político, emperrando a mudança de
ambos.
O esforço de Lugo para alterar a reali-
dade e a imagem do país acabou por chocar-
-se com grupos que ocupavam importantes
posições no aparato de Estado e que dispu-
nham de considerável poder econômico.
Alguns desses grupos eram historicamente
apontados como envolvidos em ações ilíci-
tas, como o narcotráfico e o contrabando.
Faltou, assim, ao governo a compreen-
são de que as mudanças em curso em seu
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ARTIGOS
país, e as que estavam ocorrendo no resto
da América do Sul, mesmo que limitadas
e realizadas dentro da lei, feriam interesses
profundos e, por essa razão, dificilmente
seriam toleradas.
Passada a era das intervenções milita-
res, de recente e triste memória, começava
a desenhar-se uma nova engenharia gol-
pista na região. Nela, teriam papel de
destaque enclaves conservadores nas ins-
tituições, grupos sociais originários do
ancien regime e setores da mídia.
A destituição do presidente Zelaya, de
Honduras, já prenunciara essa nova estra-
tégia de desestabilização dos governos
progressistas na América Latina. A leniên-
cia com que este golpe na América Central
foi tratado por alguns países do hemisfério
e a acolhida favorável que recebeu da
parte de setores políticos e da imprensa,
indicavam a existência de uma nova e
perigosa ameaça à democracia.
Nesse período começam a ganhar es-
paço teses que procuravam desqualificar
a soberania popular como fator fundamen-
tal de constituição de toda ordem demo-
crática. "Não bastam eleições" para legiti-
mar um governo como democrático, pas-
saram a proclamar os porta-vozes dessas
posições.
O alargamento do espaço público e a
correspondente incorporação de novos
sujeitos sociais à vida política dos países
da região eram vistos como sinal de um
perigoso renascimento do "populismo",
noção historicamente utilizada por setores
conservadores para desqualificar, fustigar
- e, sempre que possível - derrubar Go-
vernos comprometidos com mudanças
estruturais profundas.4
Surpreende, igualmente, na ação do
Congresso paraguaio contra o presidente
o fato dela ter sido desencadeada menos
de um ano antes das eleições presidenciais,
nas quais Fernando Lugo não poderia
concorrer, pois a Constituição paraguaia
proíbe o mecanismo da reeleição. O man-
datário enfrentava dificuldades, até mes-
mo, de apresentar um candidato competi-
tivo que pudesse dar continuidade à sua
administração.
Caberá aos historiadores reconstruir e
explicar as circunstâncias e as razões da
iniciativa das oposições, nelas incluindo o
Partido Liberal que, somente dois dias antes
do impeachment, rompeu formalmente com
o governo, apesar da dissidência anterior
de muitos de seus parlamentares.
É possível que pressões externas tenham
pesado no açodamento da ação oposicio-
nista. Não estará excluído, igualmente, que
as oposições, conjunturalmente separadas,
mas historicamente ligadas por interesses
comuns, tenham estabelecido um pacto
para enfrentar conjuntamente o problema
da sucessão, sem a presença do incômodo
"convidado de pedra" que a política para-
guaia havia recebido quatro anos antes,
quando Fernando Lugo foi eleito.
Outro elemento - de caráter conjuntu-
ral, mas relevante - está ligado ao massa-
cre de Curuguaty, ocorrido na semana
anterior à votação do impeachment.
Uma ação de reintegração de posse em
propriedade ocupada por carperos (como
são chamados os sem-terra no Paraguai)
provocou um enfrentamento do qual re-
sultaram 17 mortos, entre camponeses e
policiais. Testemunhos do incidente men-
cionaram a presença de elementos estra-
nhos ao conflito como responsáveis pelos
disparos.
O lamentável e até agora obscuro epi-
sódio faz parte de uma série de conflitos
no campo paraguaio, que o governo vinha,
desde seu início, tentando resolver pela
negociação. É bom lembrar que a visibili-
dade que o então bispo Fernando Lugo
ganhara no país antes de chegar à Presi-
dência estava ligada a sua luta pacífica
para reformar uma estrutura fundiária
marcada pela alta concentração de terras.
12 POlÍTICA EXTERNA
- -
PARAGUAI, BRASIL E O MERCOSUL
Diante da gravidade da situação criada
no 15 de junho, data do massacre, Lugo
destituiu o chefe de polícia e seu ministro
do Interior, Carlos Filizola, e formou uma
comissão independente para, com obser-
vação internacional, estabelecer a verdade
dos fatos.
É sintomático que a investigação não
tenha prosperado, depois do impeachment,
pois Federico Franco, já como presidente
da República, decidiu pela dissolução da
comissão encarregada de investigar o
massacre. A surpreendente decisão presi-
denciat encobrindo os verdadeiros res-
ponsáveis do incidente, deu força à tese de
que os acontecimentos de Curuguaty fize-
ram parte de uma provocação de grupos
paramilitares com o objetivo de apressar
a desestabilização e ulterior derrubada do
governo Lugo.
A acusação constitucional
A oposição não perdeu tempo e, de
forma acelerada, pôs em marcha o disposi-
tivo de cassação do Presidente da Repúbli-
ca, processo desencadeado formalmente a
21 de junho e concluído no dia seguinte.
Invocando o Artigo 225 da Constituição
paraguaia, a Câmara dos Deputados iniciou
o juízo político contra o presidente Lugo,
que seria concluído pelo Senado. Cumprida
expeditamente essa primeira formalidade,
foi dado o prazo de cerca de 12 horas para
que os advogados do presidente preparas-
sem sua defesa e duas horas para exercer
esse direito na sessão plenária.5
À época, mencionou-se que a contesta-
ção de uma multa de trânsito em Assunção
merecia um prazo maior - três dias.
O trabalho da defesa foi adicionalmen-
te dificultado não só pela exiguidade do
tempo oferecido aos advogados como,
sobretudo, pelo caráter vago e subjetivo
da ata acusatória contra Fernando Lugo.
O Presidente era acusado de
• não punir os camponeses que invadiam
propriedades em Nacundai;
• não garantir a segurança dos cidadãos
e de não demonstrar vontade de enfren-
tar o exército Paraguaio do Povo (EPP),
um grupo guerrilheiro que realizou
algumas ações no interior do país;
• ter autorizado, três anos antes, uma
manifestação de movimentos sociais na
frente do Comando de Engenharia das
Forças Armadas;
• ter sido negligente nos acontecimentos
de Curuguaty e em outros conflitos de
terrae, finalmente,
• ter assinado o Protocolo de Ushuaya-2,
do Mercosul.
O fato desse último documento esten-
der e aprofundar a cláusula democrática
que já existia no Bloco (o Protocolo de
Ushuaya-I) , foi considerado, pelos parla-
mentares, como um "atentado à soberania
do Paraguai", o que diz muito sobre suas
reais concepções e intenções.
De nada valeu o pedido dos advogados
de um tempo maior para a preparação da
defesa do presidente. Lugo foi destituído
pela imensa maioria do Senado (49 a 4), o
que confortou os parlamentares, pois con-
sideraram o julgamento conforme com a
Constituição e referendado por uma maio-
ria mais do que expressiva.
Chamou a atenção na peça acusatória
a ausência de provas, pois os senadores
consideravam os fatos elencados "de no-
tório conhecimento público" e que "dis-
pensavam comprovação". 6
Aparentemente, tudo ocorreu como se
o país vivesse sob regime parlamentarista,
onde uma eventual maioria de deputados
e / ou senadores pode mudar o governo com
um simples "voto de desconfiança".
Mas a destituição de um chefe de go-
verno, eleito por sufrágio universal, em
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ARTIGOS
um regime presidencialista, diferentemen-
te do que ocorre no parlamentarismo, tem
de se dar por meio de acusação constitu-
cional. Esta exige claro fundamento legal,
garantias efetivas de defesa, consistência
de provas e não simplesmente divergência
política, como foi o caso.
A rapidez do desfecho da crise para-
guaia surpreendeu a totalidade dos gover-
nos sul-americanos, ainda que as Chance-
larias - em especial a brasileira - estives-
sem atentas para a crescente deterioração
do quadro político nacional, alimentada
pelas ações oposicionistas e por uma certa
paralisia do governo. Mas é evidente que
o incidente de Curuguaty, imprimiu uma
velocidade inesperada à crise.
O que poderia ter sido visto como outra
tentativa de acusação constitucional contra
Fernando Lugo - foram mais de vinte an-
teriormente! - transformou-se no episódio
final de uma longa batalha de boa parte da
classe política paraguaia contra este outsíder
que, quatro anos antes, havia rompido com
décadas de controle político do país pelos
eternos donos do poder.
Não é pertinente a comparação que
alguns pretenderam fazer entre as reações
dos governos da região frente à crise de
junho de 2012 com a precedente, de 1996,
quando a intervenção diplomática dos
presidentes do Mercosul, entre eles Fer-
nando Henrique Cardoso, frustrou a ten-
tativa de golpe de Estado do General Lino
Oviedo contra o presidente Wasmosy. As
circunstâncias eram totalmente distintas.
Em 1996,o pronunciamiento de Oviedo
foi uma ação golpista clássica, ancorada em
parte das Forças Armadas. Sua iniciativa
atingia o primeiro presidente civil, eleito por
sufrágio universal, depois de décadas de
regime militar. Tratava-se de uma ruptura
com a precária ordem institucional vigente,
uma ameaça de regressão do país aos tem-
pos de Stroessner, em um momento em que
a região, ainda traumatizada pelo ciclo
autoritário do qual saíra recentemente, bus-
cava realizar sua transição para a democracia.
Não havia diferenças de fundo entre Was-
mozy e Oviedo (um dissidente colorado),
ambos oriundos do serralho stroessnerista,
ainda que o extremismo do general pudesse
ser visto com suspeitas pela maioria do esta-
blíshment, que temia maiores perturbações
em uma transição até então sob seu controle.
Em 1996 os partidos tradicionais esta-
vam divididos; em 2012 eles se uniram
contra Lugo.
Em 2012, como haviam feito em 1996,
os três governos do Mercosul respaldaram
o presidente constitucional. Mas, na atual
conjuntura, distinta da precedente, a maio-
ria da classe política paraguaia não hesitou
em embarcar na aventura golpista. Con-
fiava na suposta legalidade e legitimidade
da frágil acusação constitucional apresen-
tada contra o Chefe do governo.
Em 2012, em lugar de contingentes
militares, o papel central coube aos parla-
mentares. Em lugar da observação da lei,
eles tergiversaram a legalidade, supondo,
irresponsavelmente, que a comunidade
internacional ficaria insensível a essa for-
ma de neogolpismo, anteriormente exitosa
em Honduras. Não contavam com a reação
unânime do Mercosul e da Una sul.
Desconsideraram a evolução política
da região. Não se deram conta de que a
democracia não era um simples adorno no
processo de integração regional, mas seu
componente essencial.
Por essa razão, qualquer atentado con-
tra a ordem democrática exigia pronta e
firme resposta. Essa firmeza era essencial
para preservar o futuro da integração.
Foi essa a percepção dos chefes de Esta-
do e dos ministros de Relações Exteriores,
que se encontravam no Rio de Janeiro,
participando da RIO+ 20 naquele 22 de
junho de 2012.
Mais do que conselhos eI ou ameaças te-·
lefônicas, os Chefes de Estado e de Governo
14 POlÍTICA EXTERNA
PARAGUAI, BRASIL E O MERCOSUL
do Mercosul e da Unasul optaram por en-
viar os Ministros de Relações Exteriores da
América do Sul, que se encontravam no Rio,
à Assunção para observar in loco as condi-
ções em que se estava desenvolvendo o
processo de acusação constitucional contra
Fernando Lugo.
Lá, e depois de muitas consultas e
tentativas de mediação, não foi difícil
constatar que o Senado paraguaio se ha-
via transformado em um verdadeiro tri-
bunal de exceção, insensível à qualquer
ponderação.
Por meio de um rito sumário, e ampa-
rado em um documento de extraordinária
inconsistência factual e jurídica, foi deci-
dida a cassação de um presidente eleito
pelo voto popular, sem que a ele fosse
dado o tempo necessário para fazer uma
defesa consistente de seu mandato.
O fato de Lugo ter aceito seu afastamen-
to, obviamente para evitar um derrama-
mento de sangue, foi usado pelo senadores
como argumento adicional para legitimar
sua decisão.
A cláusula democrática
O açodamento com que o impeachment
foivotado, a despeito da iniciativa dos chan-
celeres sul-americanos, presentes em Assun-
ção, mostrou que não havia disposição para
o diálogo por parte do bloco de oposição que
se aprestava a governar o Paraguai.
Na semana que decorreu entre a queda
de Lugo e a Cúpula conjunta do Mercosul e
da Unasul, em Mendoza, prosperou nos go-
vernos da região a decisão de que o Paraguai
deveria ter sua participação suspensa nestas
duas instâncias de integração regional até o
retorno da ordem democrático-institucional
no país.
Essa posição se baseava em disposições
do Mercosul e da Unasul materializadas,
respectivamente, no Protocolo de Ushuaya-I
e no Protocolo Adicional ao Tratado Cons-
titutivo da Unasul.
No arrazoado jurídico do governo bra-
sileiro, apresentado na cúpula de Mendoza
e, posteriormente, no documento conjunto
em que Argentina, Uruguai e Brasil contes-
taram (e derrotaram) o recurso do novo
governo do Paraguai ao Tribunal Perma-
nente de Revisão do Mercosul, se argumen-
tou que o Protocolo de Ushuaya-I oferecia
base jurídica suficiente para a decisão. Os
novos governantes alegavam que Protocolo
Ushuaya-I1 não havia sido aprovado pelo
Senado paraguaio e, portanto, não podia
embasar a decisão do Mercosul.
Não passou despercebido, no entanto, a
hostilidade dos parlamentares anti-Lugo ao
Protocolo de Ushuaya-I1, instrumento que
fortalecia os mecanismos de defesa da demo-
cracia no continente. Os senadores conside-
raram que esse documento, como foi mencio-
nado antes, "feria a soberania do Paraguai"
e fizeram de sua aprovação por Fernando
Lugo (ainda que ad referendum do Senado) um
dos argumentos centrais da acusação consti-
tucional. Buscava-se, preventivamente, anu-
lar o remédio para preservar a doença.
A evolução do processo de integração
sul-americanos mostra que a adoção de
cláusulas democráticas, tanto pelo Merco-
sul, como pela Unasul, correspondeu à
necessidade de enfrentar situações críticas
pelas quais havia passado a região, evitan-
do sua repetição.
O Protocolo de Ushuaya-I foi uma res-
posta à tentativa de golpe de 1996.
Ushuaya-I1 buscava aperfeiçoar o primei-
ro documento e levava em conta também
novas ameaçasà estabilidade da região. Já
o Protocolo Adicional da Unasul foi ado-
tado depois da tentativa frustrada de de-
posição do presidente Rafael Correa, a
partir de uma ação de setores da polícia
equatoriana. Havia, pois, razões de sobra
para proteger a democracia da América do
Sul das ameaças reais que sofria.
15 VOL 21 N" 3 jAN/FEV/MAR 2013
ARTIGOS
Antes mesmo da decisão final da reunião
de Mendoza, o Brasil defendeu que a sus-
pensão do Paraguai do Mercosul não envol-
vesse a adoção de sanções econômicas
contra esse país. O governo brasileiro, avesso
a esse tipo particular de punição, considera
que ela golpeia muito mais à população civil
do que aos governantes do país punido.
Essa posição foi consensualmente aceita por
todos os demais países sul-americanos.
Na reunião de Mendoza, Argentina,
Brasil e Uruguai decidiram também, e por
consenso, resolver uma questão pendente
há anos: a formalização do ingresso da
Venezuela no Bloco, aprovada pelos Con-
gressos dos países do Mercosul, à exceção
do Paraguai.
A resistência de senadores paraguaios
em votar o ingresso da Venezuela no Mer-
cosul, deu margem a muitas especulações,
que não é caso de aqui mencionar. O dis-
curso desenvolvido por esses políticos
apontava o regime venezuelano como não
democrático e, portanto, incompatível com
as exigências do Mercosul. Mas esses mes-
mos políticos foram os autores do ato de
força contra o presidente Fernando Lugo.
Perspectivas
As relações Brasil-Paraguai, assim como
desse país com o Mercosul e a Unasul, de-
verão normalizar-se após as eleições do ano
que vem, quando for escolhido um novo
presidente, em pleito livre, transparente e
sob observação dos países da região.
A política do Brasil vis-à-vis o Paraguai
seguirá os parâmetros que têm orientado
a diplomacia brasileira nos últimos dez
anos na América do Sul, quando foi deci-
dido associar o destino do país ao das na-
ções vizinhas. Essa é a maneira de enfrentar
conjuntamente os grandes desafios de um
mundo multipolar em construção, sobre-
tudo em tempos de crise.
Houve momentos, sobretudo durante
os períodos autoritários, em que o Para-
guai aparecia para os governantes brasi-
leiros apenas sob um prisma geopolítico.
Para falar mais claro, como um instrumen-
to de hegemonia na região e de contenção
da Argentina. Esse espírito esteve presen-
te na decisão de construir a Itaipu Binacio-
nal com o Paraguai, uma decisão correta
do ponto de vista do desenvolvimento do
Brasil, mas com um discutível subtexto
político. Paraguai deve ser entendido co-
mo sócio e tratado como aliado.
Sua configuração política interna não
foi obstáculo para que, durante os primei-
ros anos do governo Lula, o Brasil estabe-
lecesse uma excelente relação com esse
país vizinho. O acordo sobre Itaipu e as
maiores facilidades dadas aos chamados
"sacoleiros" na Ponte da Amizade ilustram
a disposição brasileira de apoiar o desen-
volvimento paraguaio. Essas medidas,
especialmente a negociação sobre Itaipu,
enfrentaram fortíssima resistência por
parte dos partidos de oposição no Brasil.
Nossa percepção era de que a transição
democrática avançava no país vizinho e
de que a eleição de Lugo confirmava esse
sentimento.
O bom relacionamento estabelecido
entre o governo brasileiro com os presi-
dentes Nicanor e Lugo - de signos políticos
bem distintos - poderá ser restabelecido
tão pronto volte a democracia àquele país,
não importando o perfil ideológico dos
futuros governantes.
A crise paraguaia ensejou, finalmente,
a publicação de novos atestados de óbito
do Mercosul. Faltou percepção a seus au-
tores de que o Bloco saiu fortalecido do
episódio. Ampliou-se e aumentou seu
poder de atração sobre outros países mas,
sobretudo, fez da preservação da demo-
cracia na região um tema central.
Novembro de 2012
16 POL!TICA EXTERNA
PARAGUAI, BRASIL E O MERCOSUL
Notas
1. A conspiração que derrubou o velho ditador ficou
restrita a setores das Forças Armadas e surpreendeu a
imensamaioria de população, como sedepreende, entre
outras fontes, dos trinta depoimentos de intelectuais,
artistas, políticos e jornalistas que integram o livro or-
ganizado por Alfredo Boccia Paz, ?Qué hacias aquella
noche?, Asunción, Servi Libro, 2008.
2. Lugo conseguiu eleger apenas 3 senadores de um
total de 45 e um deputado de um total de 80.
3. Depois do Caracazo, em fevereiro de 1989, a Vene-
zuela entrou em um prolongado período de turbulência
política. Colapsou o condomínio Acción Democrátical
COPEI, os dois partidos que se revezavam no poder
desde a queda do ditador Perez Jimenez, em 1959.
Carlos Andrés Perez, em seu segundo mandato, sofreu
impeachment. O coronel Hugo Chávez tentou sem êxito
chegar ao poder por meio de um levante militar, em
1992. Rafael Caldera, então como um outsider desvin-
eulado do COPEI,se elegeu presidente e fracassou em
seu projeto reformista. Com a eleíção de Hugo Chávez
em 1998 e a criação da V República, fruto de uma Cons-
tituinte, o país logrou uma governabilidade, capaz de
superar as tentativas de golpe de Estado de 2002 e de-
sestabilização, por via de um lockout, que durou mais
de dois meses.A Bolivia, por sua parte, veio a estabílizar-se
depois de uma crise que consumiu, nos três anos que
antecederam a eleição de Evo Morales, três outros pre-
sidentes: Sanchez de Lozada, Carlos Meza e Francisco
Rodrigues. No Equador, finalmente, a eleição de Rafael
Correa para a Presidência pôs fim a um período de ins-
tabilidade que, em dez anos, conheceu oito presidentes.
4. A lista é significativa. Vai da derrubada de Arbenz, na
Guatemala (1954), à queda de Zelaya, em Honduras
(2010), passando pelos golpes contra Perón (1955),
Goulart (1964), Allende (1973), para só citar exemplos
de grande reverberação. Nos últimos dez anos, o fracas-
sado golpe contra Chávez (2002) também pode ser in-
cluído nesta série de acontecimentos que afetaram
quase todos os países da América Latina.
5. O Grupo De Alto Nível da Unasul, que acompanha a
situação paraguaia, no documento publicado em 31 de
outubro de 2012, compara o prazo de 12 horas, dado à
defesa de Lugo, com os cinco dias que os defensores de
Raúl Cubas tiveram para seu trabalho (em 1999) e os seis
dias que foram oferecidos aos procuradores do presi-
dente González Macchi, em 2002, quando o Senado não
aceitou a acusação a esse mandatário, proposta pela
Câmara. Sobre essa questão o documento acrescenta
que "EI respecto ai devido proceso legal y ai ejercicio dei
derecho de contradicción son princípios generales dei
Derecho que se reflejan en el artículo 17 de Ia Constitu-
ción. Esos mismos princípios también se reflejan en el
artículo 8°. Dei Pacto de San José, incorporado ai orde-
namiento jurídico paraguayo por médio de Ia Ley 1/89.
6. Essasexpressões aberrantes foram retiradas posterior-
mente do sítio do Senado, mas sobreviveram em docu-
mentos escritos examinados pela comissão da Unasul
que viajou no .22 de junho a Assunção.
17 VOL 21 N" 3 JAN/FEV /MAR 2013

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