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Paraguai, Brasil e o Mercosul ," Marco Aurélio Garcia The article analyses the impeachment of Paraguayan President Fernando Lugo and the reaction such an act of force provoked within Mercosul, Unasul and the Brazilian Government. The circumstances of Lugo's election are retraced, revealing the fragility of his political support base. The predominance of a very conservative national political system and political class is a matter of specific concern, as well as the strategies which were being developed in Paraguay and Latin America in reaction to the advent of progressive governments during the last decade. The inconsistency of arguments which led the Senate to impeach Fernando Lugo and the arbitrary nature of his judgment are highlighted. Reasons for paraguay's suspension from Mercosul and Unasul are explained, against the backdrop of a regional integration process increasingly contingent on an unwavering commitment to democracy. Finally, reference is made to the conditions for paraguay's return to the commu- nity of South American nations. A eleição de Femando Lugo para presi- dente do Paraguai, em 2008, foi vista na América Latina como um importante passo no processo de democratização daquele país. Ex-bispo da Igreja Católica, ligado a movimentos sociais, sobretudo do campo, Lugo chegou à Presidência pela força do voto popular, com um programa que en- fatizava o combate à pobreza e à desigual- dade, problemas que faziam do Paraguai o país mais pobre da América do Sul. Apesar de crítico ao establishment, Lugo compreendeu as dificuldades de ganhar sozinho as eleições e buscou ampliar a base de sustentação política de sua candidatura. Formou a Alianza Patriotica para el Cambio (APC), uma coligação integrada por oito partidos. Nela, tinha lugar de destaque o Partido Liberal Radical Autêntico (PLRA), mais conhecido como Partido Liberal, que lhe propiciou seu companheiro de chapa, o vice-presidente Federico Franco. A aliança de forças de esquerda com um partido de centro-direita, como o Liberal, aparecia como conveniente para ambos os lados. Lugo ampliava a base social e política de sua candidatura e, ao mesmo tempo, procurava precaver-se em relação às difi- culdades que seu projeto mudancista en- frentaria em um país marcado pelo con- servadorismo e instabilidade do seu siste- ma político. A queda do ditador Alfredo Stroessner em fevereiro de 1989, que permanecera por mais de 30 anos no poder, fora resultado de um golpe palaciano, chefiado por um pró- ximo colaborador do caudilho, o general Andrés Rodriguez. Carente de raízes sociais, o movimento de Rodriguez dificilmente Marco Aurélio Garcia é assessor chefe da Assessoria Especialda presidenta Dilma Rousseff, função que ocupou igualmente nos dois governos Lula da Silva (2003-2010). Diplomata, doutor em Sociologia (UnB) e mestre em Ciência Política (Unicamp). Esteartigo foi escrito a título pessoal e não reflete necessariamente posições oficiais do Ministério da Relações Exteriores. 9 VOL 21 N" 3 JAN/FEV/MAR 2013 ARTIGOS poderia ensejarI uma efetiva ruptura demo- crática no país. A tortuosa - e inacabada - transição paraguaia para a democracia enfrentou sucessivas crises. É o que mostra a tenta- tiva frustrada de golpe contra o presiden- te Juan Carlos Wasmozy, em 1996, dirigida pelo general Uno Oviedo, personagem que, 16 anos mais tarde, teria papel central na derrubada de Fernando Lugo. O sucessor de Wasmozy, Raul Cubas, foi destituído pelo Congresso Nacional e subs- tituído pelo presidente do Senado, Gonzá- lez Macchi. Durante esse tumultuado pro- cesso institucional, o vice-presidente Ar- gana foi assassinado nas ruas de Assunção. O paradoxo desse período de aguda instabilidade está em que, em nenhum momento, a hegemonia do Partido Colo- rado (denominação dada à Alianza N acio- nal Republicana) foi abalada. Cevado no regime Stroessner, com forte presença no aparelho de Estado, sobretudo em sua burocracia, esse Partido governou o país até a eleição de Lugo em 2008. Os liberais viram no apoio ao bispo - um candidato eleitoralmente competitivo - a oportunidade de desalojar os colorados de um poder que ocupavam há décadas. A aliança entre um candidato à Presi- dência com forte apoio popular, mas sem sólida base partidária, com uma organiza- ção de perfil conservador apresentava grandes riscos. A história se encarregou de mostrar o quão reais eram esses riscos. Eleito Presidente, e sem apoio parla- mentar/ Fernando Lugo viu muitas de suas iniciativas paralisadas no Congresso paraguaio. Até mesmo questões triviais, mesmo que relevantes, como a aprovação de embaixadores,' foram bloqueadas no Legislativo, provocando desconfortável paralisia do governo. Na avalancha das mudanças sociais e políticas pelas quais vem passando a Amé- rica do Sul nos últimos 15 anos - da qual a eleição de Lugo era mais um exemplo - três caminhos se abriam para conferir governabilidade aos novos presidentes. Em países onde havia correspondência entre o voto majoritário e o voto propor- cional, como é o caso do Uruguai, a gover- nabilidade estava plenamente assegurada, a menos que ocorressem fissuras no bloco majoritário. Em países em que não havia correspon- dência automática entre a votação para o Executivo e o Legislativo, cabia ao presi- dente construir uma maioria parlamentar, em base a acordos programáticos e a for- mação de um Ministério que refletisse a coligação hegemônica. O exemplo brasi- leiro expõe as vantagens e as desvantagens do que se tem chamado comumente de "presidencialismo de coalizão". Finalmente, naqueles países onde o ingresso de novos atores sociais na cena política se chocava com instituições obso- letas, faziam-se necessárias transforma- ções políticas profundas, capazes de via- bilizar as promessas de reformas econômi- cas e sociais que haviam levado os novos governantes ao poder. Colocava-se nesses casos, a necessidade de uma refundação institucional que se ajustasse à nova correlação de forças reve- lada nas urnas. Na maioria dos casos esse anseio de refundação pôs na ordem do dia a convocação de Assembleias Constituin- tes capazes de desenhar uma nova institu- cionalidade. Este foi o caminho seguido, na última década, por Venezuela, Equador e Bolívia. As Constituintes fizeram surgir nesses três países uma nova ordem institucional, le- gitimada em referendas populares, e con- feriram a seus Presidentes a governabili- dade de que careciam seus antecessores.3 Lugo não seguiu nenhuma dessas al- ternativas. Seu governo não logrou construir uma . base parlamentar que lhe desse efetiva 10 POLfTlCA EXTERNA PARAGUAI, BRASIL E O MERCOSUL sustentação, nem convocar os movimentos sociais para pressionar em favor de um câmbio institucional que permitisse realizar as mudanças exigidas por seus eleitores. A consequência dessa indecisão sobre o caminho a seguir foi, de um lado, a des- mobilização de sua base social e, de outro, uma crescente mobilização dos partidos e grupos tradicionais contra o presidente, aí incluindo os liberais. Poucas semanas após a posse de Lugo, em agosto de 2008, o vice Federico Franco já proclamava, sem inibição, estar "pronto para substituir o presidente"! Entre 2008 e 2012, vinte e três acusações constitucionais foram apresentadas contra o chefe do governo paraguaio. A primeira delas, antes mesmo de sua posse. O governo Lugo pôde contabilizar, nos seus quase quatro anos de duração, indis- cutíveis êxitos. O Paraguai logrou índices apreciáveis de crescimento - em 2010 foi o segundo país que mais cresceu no mun- do - , sem comprometer o equilíbrio ma- croeconômico. O governo iniciou um vi- goroso programa de combate à pobreza e de inclusão social. No plano externo, a exitosa renegociação com o Brasil para obter uma maior participação nos benefí- cios da Itaipu-Binacional, propiciou ao governo do Paraguai popularidade e im- portantes recursos orçamentários. Na campanha eleitoral Lugo havia dado gran- de importância à "defesa da soberania energética", o que envolvia a reabertura dadiscussão sobre a participação dos dois países em Itaipu. O acordo logrado trouxe inequívocas vantagens para o Paraguai, sem que fosse necessário renegociar o Tratado firmado no passado. A mudança do relacionamento com o Brasil permitiu também ao Paraguai aufe- rir mais vantagens no Mercosul. A cons- trução de uma linha de transmissão ligan- do Itaipu às imediações de Assunção é exemplo significativo. Financiada pelo Fundo para a Convergência Estrutural do Mercosul (FOCEM), com aportes majori- tariamente brasileiros, essa obra, de caráter estruturante, terá forte impacto sobre o futuro do país, na medida em que criará a infraestrutura energética necessária a sua industrialização. Os maiores problemas enfrentados pelo presidente Fernando Lugo se concen- traram, no entanto, na esfera política. Hesitante, quando não paralisado, o novo grupo dirigente subestimou a capacidade das oposições de articularem-se e de for- jarem sua unidade, ainda que transitória, para enfrentar o inimigo comum, cada vez mais indesejado. Lugo havia ganho uma eleição, mas não o poder. Até porque o poder não é um lugar, que se possa "tomar", como as esquerdas acreditaram durante um certo tempo. O poder é, antes, a expressão de uma correla- ção de forças que envolve fatores econômi- cos, sociais, políticos e culturais. Para alte- rar essa correlação de forças não basta chegar ao governo, menos ainda a uma parte dele, como ocorreu no Paraguai. É necessário ter ideias e instrumentos de mobilização capazes de constituir maiorias em torno de um projeto de mudança. Décadas de ditadura, e uma transição para a democracia controlada do alto por forças que haviam apoiado o governo Stroessner e se locupletado nele, deixaram marcas profundas na sociedade e no siste- ma político, emperrando a mudança de ambos. O esforço de Lugo para alterar a reali- dade e a imagem do país acabou por chocar- -se com grupos que ocupavam importantes posições no aparato de Estado e que dispu- nham de considerável poder econômico. Alguns desses grupos eram historicamente apontados como envolvidos em ações ilíci- tas, como o narcotráfico e o contrabando. Faltou, assim, ao governo a compreen- são de que as mudanças em curso em seu 11 VOL 21 N" 3 JAN!FEV!MAR 2013 ARTIGOS país, e as que estavam ocorrendo no resto da América do Sul, mesmo que limitadas e realizadas dentro da lei, feriam interesses profundos e, por essa razão, dificilmente seriam toleradas. Passada a era das intervenções milita- res, de recente e triste memória, começava a desenhar-se uma nova engenharia gol- pista na região. Nela, teriam papel de destaque enclaves conservadores nas ins- tituições, grupos sociais originários do ancien regime e setores da mídia. A destituição do presidente Zelaya, de Honduras, já prenunciara essa nova estra- tégia de desestabilização dos governos progressistas na América Latina. A leniên- cia com que este golpe na América Central foi tratado por alguns países do hemisfério e a acolhida favorável que recebeu da parte de setores políticos e da imprensa, indicavam a existência de uma nova e perigosa ameaça à democracia. Nesse período começam a ganhar es- paço teses que procuravam desqualificar a soberania popular como fator fundamen- tal de constituição de toda ordem demo- crática. "Não bastam eleições" para legiti- mar um governo como democrático, pas- saram a proclamar os porta-vozes dessas posições. O alargamento do espaço público e a correspondente incorporação de novos sujeitos sociais à vida política dos países da região eram vistos como sinal de um perigoso renascimento do "populismo", noção historicamente utilizada por setores conservadores para desqualificar, fustigar - e, sempre que possível - derrubar Go- vernos comprometidos com mudanças estruturais profundas.4 Surpreende, igualmente, na ação do Congresso paraguaio contra o presidente o fato dela ter sido desencadeada menos de um ano antes das eleições presidenciais, nas quais Fernando Lugo não poderia concorrer, pois a Constituição paraguaia proíbe o mecanismo da reeleição. O man- datário enfrentava dificuldades, até mes- mo, de apresentar um candidato competi- tivo que pudesse dar continuidade à sua administração. Caberá aos historiadores reconstruir e explicar as circunstâncias e as razões da iniciativa das oposições, nelas incluindo o Partido Liberal que, somente dois dias antes do impeachment, rompeu formalmente com o governo, apesar da dissidência anterior de muitos de seus parlamentares. É possível que pressões externas tenham pesado no açodamento da ação oposicio- nista. Não estará excluído, igualmente, que as oposições, conjunturalmente separadas, mas historicamente ligadas por interesses comuns, tenham estabelecido um pacto para enfrentar conjuntamente o problema da sucessão, sem a presença do incômodo "convidado de pedra" que a política para- guaia havia recebido quatro anos antes, quando Fernando Lugo foi eleito. Outro elemento - de caráter conjuntu- ral, mas relevante - está ligado ao massa- cre de Curuguaty, ocorrido na semana anterior à votação do impeachment. Uma ação de reintegração de posse em propriedade ocupada por carperos (como são chamados os sem-terra no Paraguai) provocou um enfrentamento do qual re- sultaram 17 mortos, entre camponeses e policiais. Testemunhos do incidente men- cionaram a presença de elementos estra- nhos ao conflito como responsáveis pelos disparos. O lamentável e até agora obscuro epi- sódio faz parte de uma série de conflitos no campo paraguaio, que o governo vinha, desde seu início, tentando resolver pela negociação. É bom lembrar que a visibili- dade que o então bispo Fernando Lugo ganhara no país antes de chegar à Presi- dência estava ligada a sua luta pacífica para reformar uma estrutura fundiária marcada pela alta concentração de terras. 12 POlÍTICA EXTERNA - - PARAGUAI, BRASIL E O MERCOSUL Diante da gravidade da situação criada no 15 de junho, data do massacre, Lugo destituiu o chefe de polícia e seu ministro do Interior, Carlos Filizola, e formou uma comissão independente para, com obser- vação internacional, estabelecer a verdade dos fatos. É sintomático que a investigação não tenha prosperado, depois do impeachment, pois Federico Franco, já como presidente da República, decidiu pela dissolução da comissão encarregada de investigar o massacre. A surpreendente decisão presi- denciat encobrindo os verdadeiros res- ponsáveis do incidente, deu força à tese de que os acontecimentos de Curuguaty fize- ram parte de uma provocação de grupos paramilitares com o objetivo de apressar a desestabilização e ulterior derrubada do governo Lugo. A acusação constitucional A oposição não perdeu tempo e, de forma acelerada, pôs em marcha o disposi- tivo de cassação do Presidente da Repúbli- ca, processo desencadeado formalmente a 21 de junho e concluído no dia seguinte. Invocando o Artigo 225 da Constituição paraguaia, a Câmara dos Deputados iniciou o juízo político contra o presidente Lugo, que seria concluído pelo Senado. Cumprida expeditamente essa primeira formalidade, foi dado o prazo de cerca de 12 horas para que os advogados do presidente preparas- sem sua defesa e duas horas para exercer esse direito na sessão plenária.5 À época, mencionou-se que a contesta- ção de uma multa de trânsito em Assunção merecia um prazo maior - três dias. O trabalho da defesa foi adicionalmen- te dificultado não só pela exiguidade do tempo oferecido aos advogados como, sobretudo, pelo caráter vago e subjetivo da ata acusatória contra Fernando Lugo. O Presidente era acusado de • não punir os camponeses que invadiam propriedades em Nacundai; • não garantir a segurança dos cidadãos e de não demonstrar vontade de enfren- tar o exército Paraguaio do Povo (EPP), um grupo guerrilheiro que realizou algumas ações no interior do país; • ter autorizado, três anos antes, uma manifestação de movimentos sociais na frente do Comando de Engenharia das Forças Armadas; • ter sido negligente nos acontecimentos de Curuguaty e em outros conflitos de terrae, finalmente, • ter assinado o Protocolo de Ushuaya-2, do Mercosul. O fato desse último documento esten- der e aprofundar a cláusula democrática que já existia no Bloco (o Protocolo de Ushuaya-I) , foi considerado, pelos parla- mentares, como um "atentado à soberania do Paraguai", o que diz muito sobre suas reais concepções e intenções. De nada valeu o pedido dos advogados de um tempo maior para a preparação da defesa do presidente. Lugo foi destituído pela imensa maioria do Senado (49 a 4), o que confortou os parlamentares, pois con- sideraram o julgamento conforme com a Constituição e referendado por uma maio- ria mais do que expressiva. Chamou a atenção na peça acusatória a ausência de provas, pois os senadores consideravam os fatos elencados "de no- tório conhecimento público" e que "dis- pensavam comprovação". 6 Aparentemente, tudo ocorreu como se o país vivesse sob regime parlamentarista, onde uma eventual maioria de deputados e / ou senadores pode mudar o governo com um simples "voto de desconfiança". Mas a destituição de um chefe de go- verno, eleito por sufrágio universal, em 13 VOL 21 W 3 JAN!FEV!MAR 2013 ARTIGOS um regime presidencialista, diferentemen- te do que ocorre no parlamentarismo, tem de se dar por meio de acusação constitu- cional. Esta exige claro fundamento legal, garantias efetivas de defesa, consistência de provas e não simplesmente divergência política, como foi o caso. A rapidez do desfecho da crise para- guaia surpreendeu a totalidade dos gover- nos sul-americanos, ainda que as Chance- larias - em especial a brasileira - estives- sem atentas para a crescente deterioração do quadro político nacional, alimentada pelas ações oposicionistas e por uma certa paralisia do governo. Mas é evidente que o incidente de Curuguaty, imprimiu uma velocidade inesperada à crise. O que poderia ter sido visto como outra tentativa de acusação constitucional contra Fernando Lugo - foram mais de vinte an- teriormente! - transformou-se no episódio final de uma longa batalha de boa parte da classe política paraguaia contra este outsíder que, quatro anos antes, havia rompido com décadas de controle político do país pelos eternos donos do poder. Não é pertinente a comparação que alguns pretenderam fazer entre as reações dos governos da região frente à crise de junho de 2012 com a precedente, de 1996, quando a intervenção diplomática dos presidentes do Mercosul, entre eles Fer- nando Henrique Cardoso, frustrou a ten- tativa de golpe de Estado do General Lino Oviedo contra o presidente Wasmosy. As circunstâncias eram totalmente distintas. Em 1996,o pronunciamiento de Oviedo foi uma ação golpista clássica, ancorada em parte das Forças Armadas. Sua iniciativa atingia o primeiro presidente civil, eleito por sufrágio universal, depois de décadas de regime militar. Tratava-se de uma ruptura com a precária ordem institucional vigente, uma ameaça de regressão do país aos tem- pos de Stroessner, em um momento em que a região, ainda traumatizada pelo ciclo autoritário do qual saíra recentemente, bus- cava realizar sua transição para a democracia. Não havia diferenças de fundo entre Was- mozy e Oviedo (um dissidente colorado), ambos oriundos do serralho stroessnerista, ainda que o extremismo do general pudesse ser visto com suspeitas pela maioria do esta- blíshment, que temia maiores perturbações em uma transição até então sob seu controle. Em 1996 os partidos tradicionais esta- vam divididos; em 2012 eles se uniram contra Lugo. Em 2012, como haviam feito em 1996, os três governos do Mercosul respaldaram o presidente constitucional. Mas, na atual conjuntura, distinta da precedente, a maio- ria da classe política paraguaia não hesitou em embarcar na aventura golpista. Con- fiava na suposta legalidade e legitimidade da frágil acusação constitucional apresen- tada contra o Chefe do governo. Em 2012, em lugar de contingentes militares, o papel central coube aos parla- mentares. Em lugar da observação da lei, eles tergiversaram a legalidade, supondo, irresponsavelmente, que a comunidade internacional ficaria insensível a essa for- ma de neogolpismo, anteriormente exitosa em Honduras. Não contavam com a reação unânime do Mercosul e da Una sul. Desconsideraram a evolução política da região. Não se deram conta de que a democracia não era um simples adorno no processo de integração regional, mas seu componente essencial. Por essa razão, qualquer atentado con- tra a ordem democrática exigia pronta e firme resposta. Essa firmeza era essencial para preservar o futuro da integração. Foi essa a percepção dos chefes de Esta- do e dos ministros de Relações Exteriores, que se encontravam no Rio de Janeiro, participando da RIO+ 20 naquele 22 de junho de 2012. Mais do que conselhos eI ou ameaças te-· lefônicas, os Chefes de Estado e de Governo 14 POlÍTICA EXTERNA PARAGUAI, BRASIL E O MERCOSUL do Mercosul e da Unasul optaram por en- viar os Ministros de Relações Exteriores da América do Sul, que se encontravam no Rio, à Assunção para observar in loco as condi- ções em que se estava desenvolvendo o processo de acusação constitucional contra Fernando Lugo. Lá, e depois de muitas consultas e tentativas de mediação, não foi difícil constatar que o Senado paraguaio se ha- via transformado em um verdadeiro tri- bunal de exceção, insensível à qualquer ponderação. Por meio de um rito sumário, e ampa- rado em um documento de extraordinária inconsistência factual e jurídica, foi deci- dida a cassação de um presidente eleito pelo voto popular, sem que a ele fosse dado o tempo necessário para fazer uma defesa consistente de seu mandato. O fato de Lugo ter aceito seu afastamen- to, obviamente para evitar um derrama- mento de sangue, foi usado pelo senadores como argumento adicional para legitimar sua decisão. A cláusula democrática O açodamento com que o impeachment foivotado, a despeito da iniciativa dos chan- celeres sul-americanos, presentes em Assun- ção, mostrou que não havia disposição para o diálogo por parte do bloco de oposição que se aprestava a governar o Paraguai. Na semana que decorreu entre a queda de Lugo e a Cúpula conjunta do Mercosul e da Unasul, em Mendoza, prosperou nos go- vernos da região a decisão de que o Paraguai deveria ter sua participação suspensa nestas duas instâncias de integração regional até o retorno da ordem democrático-institucional no país. Essa posição se baseava em disposições do Mercosul e da Unasul materializadas, respectivamente, no Protocolo de Ushuaya-I e no Protocolo Adicional ao Tratado Cons- titutivo da Unasul. No arrazoado jurídico do governo bra- sileiro, apresentado na cúpula de Mendoza e, posteriormente, no documento conjunto em que Argentina, Uruguai e Brasil contes- taram (e derrotaram) o recurso do novo governo do Paraguai ao Tribunal Perma- nente de Revisão do Mercosul, se argumen- tou que o Protocolo de Ushuaya-I oferecia base jurídica suficiente para a decisão. Os novos governantes alegavam que Protocolo Ushuaya-I1 não havia sido aprovado pelo Senado paraguaio e, portanto, não podia embasar a decisão do Mercosul. Não passou despercebido, no entanto, a hostilidade dos parlamentares anti-Lugo ao Protocolo de Ushuaya-I1, instrumento que fortalecia os mecanismos de defesa da demo- cracia no continente. Os senadores conside- raram que esse documento, como foi mencio- nado antes, "feria a soberania do Paraguai" e fizeram de sua aprovação por Fernando Lugo (ainda que ad referendum do Senado) um dos argumentos centrais da acusação consti- tucional. Buscava-se, preventivamente, anu- lar o remédio para preservar a doença. A evolução do processo de integração sul-americanos mostra que a adoção de cláusulas democráticas, tanto pelo Merco- sul, como pela Unasul, correspondeu à necessidade de enfrentar situações críticas pelas quais havia passado a região, evitan- do sua repetição. O Protocolo de Ushuaya-I foi uma res- posta à tentativa de golpe de 1996. Ushuaya-I1 buscava aperfeiçoar o primei- ro documento e levava em conta também novas ameaçasà estabilidade da região. Já o Protocolo Adicional da Unasul foi ado- tado depois da tentativa frustrada de de- posição do presidente Rafael Correa, a partir de uma ação de setores da polícia equatoriana. Havia, pois, razões de sobra para proteger a democracia da América do Sul das ameaças reais que sofria. 15 VOL 21 N" 3 jAN/FEV/MAR 2013 ARTIGOS Antes mesmo da decisão final da reunião de Mendoza, o Brasil defendeu que a sus- pensão do Paraguai do Mercosul não envol- vesse a adoção de sanções econômicas contra esse país. O governo brasileiro, avesso a esse tipo particular de punição, considera que ela golpeia muito mais à população civil do que aos governantes do país punido. Essa posição foi consensualmente aceita por todos os demais países sul-americanos. Na reunião de Mendoza, Argentina, Brasil e Uruguai decidiram também, e por consenso, resolver uma questão pendente há anos: a formalização do ingresso da Venezuela no Bloco, aprovada pelos Con- gressos dos países do Mercosul, à exceção do Paraguai. A resistência de senadores paraguaios em votar o ingresso da Venezuela no Mer- cosul, deu margem a muitas especulações, que não é caso de aqui mencionar. O dis- curso desenvolvido por esses políticos apontava o regime venezuelano como não democrático e, portanto, incompatível com as exigências do Mercosul. Mas esses mes- mos políticos foram os autores do ato de força contra o presidente Fernando Lugo. Perspectivas As relações Brasil-Paraguai, assim como desse país com o Mercosul e a Unasul, de- verão normalizar-se após as eleições do ano que vem, quando for escolhido um novo presidente, em pleito livre, transparente e sob observação dos países da região. A política do Brasil vis-à-vis o Paraguai seguirá os parâmetros que têm orientado a diplomacia brasileira nos últimos dez anos na América do Sul, quando foi deci- dido associar o destino do país ao das na- ções vizinhas. Essa é a maneira de enfrentar conjuntamente os grandes desafios de um mundo multipolar em construção, sobre- tudo em tempos de crise. Houve momentos, sobretudo durante os períodos autoritários, em que o Para- guai aparecia para os governantes brasi- leiros apenas sob um prisma geopolítico. Para falar mais claro, como um instrumen- to de hegemonia na região e de contenção da Argentina. Esse espírito esteve presen- te na decisão de construir a Itaipu Binacio- nal com o Paraguai, uma decisão correta do ponto de vista do desenvolvimento do Brasil, mas com um discutível subtexto político. Paraguai deve ser entendido co- mo sócio e tratado como aliado. Sua configuração política interna não foi obstáculo para que, durante os primei- ros anos do governo Lula, o Brasil estabe- lecesse uma excelente relação com esse país vizinho. O acordo sobre Itaipu e as maiores facilidades dadas aos chamados "sacoleiros" na Ponte da Amizade ilustram a disposição brasileira de apoiar o desen- volvimento paraguaio. Essas medidas, especialmente a negociação sobre Itaipu, enfrentaram fortíssima resistência por parte dos partidos de oposição no Brasil. Nossa percepção era de que a transição democrática avançava no país vizinho e de que a eleição de Lugo confirmava esse sentimento. O bom relacionamento estabelecido entre o governo brasileiro com os presi- dentes Nicanor e Lugo - de signos políticos bem distintos - poderá ser restabelecido tão pronto volte a democracia àquele país, não importando o perfil ideológico dos futuros governantes. A crise paraguaia ensejou, finalmente, a publicação de novos atestados de óbito do Mercosul. Faltou percepção a seus au- tores de que o Bloco saiu fortalecido do episódio. Ampliou-se e aumentou seu poder de atração sobre outros países mas, sobretudo, fez da preservação da demo- cracia na região um tema central. Novembro de 2012 16 POL!TICA EXTERNA PARAGUAI, BRASIL E O MERCOSUL Notas 1. A conspiração que derrubou o velho ditador ficou restrita a setores das Forças Armadas e surpreendeu a imensamaioria de população, como sedepreende, entre outras fontes, dos trinta depoimentos de intelectuais, artistas, políticos e jornalistas que integram o livro or- ganizado por Alfredo Boccia Paz, ?Qué hacias aquella noche?, Asunción, Servi Libro, 2008. 2. Lugo conseguiu eleger apenas 3 senadores de um total de 45 e um deputado de um total de 80. 3. Depois do Caracazo, em fevereiro de 1989, a Vene- zuela entrou em um prolongado período de turbulência política. Colapsou o condomínio Acción Democrátical COPEI, os dois partidos que se revezavam no poder desde a queda do ditador Perez Jimenez, em 1959. Carlos Andrés Perez, em seu segundo mandato, sofreu impeachment. O coronel Hugo Chávez tentou sem êxito chegar ao poder por meio de um levante militar, em 1992. Rafael Caldera, então como um outsider desvin- eulado do COPEI,se elegeu presidente e fracassou em seu projeto reformista. Com a eleíção de Hugo Chávez em 1998 e a criação da V República, fruto de uma Cons- tituinte, o país logrou uma governabilidade, capaz de superar as tentativas de golpe de Estado de 2002 e de- sestabilização, por via de um lockout, que durou mais de dois meses.A Bolivia, por sua parte, veio a estabílizar-se depois de uma crise que consumiu, nos três anos que antecederam a eleição de Evo Morales, três outros pre- sidentes: Sanchez de Lozada, Carlos Meza e Francisco Rodrigues. No Equador, finalmente, a eleição de Rafael Correa para a Presidência pôs fim a um período de ins- tabilidade que, em dez anos, conheceu oito presidentes. 4. A lista é significativa. Vai da derrubada de Arbenz, na Guatemala (1954), à queda de Zelaya, em Honduras (2010), passando pelos golpes contra Perón (1955), Goulart (1964), Allende (1973), para só citar exemplos de grande reverberação. Nos últimos dez anos, o fracas- sado golpe contra Chávez (2002) também pode ser in- cluído nesta série de acontecimentos que afetaram quase todos os países da América Latina. 5. O Grupo De Alto Nível da Unasul, que acompanha a situação paraguaia, no documento publicado em 31 de outubro de 2012, compara o prazo de 12 horas, dado à defesa de Lugo, com os cinco dias que os defensores de Raúl Cubas tiveram para seu trabalho (em 1999) e os seis dias que foram oferecidos aos procuradores do presi- dente González Macchi, em 2002, quando o Senado não aceitou a acusação a esse mandatário, proposta pela Câmara. Sobre essa questão o documento acrescenta que "EI respecto ai devido proceso legal y ai ejercicio dei derecho de contradicción son princípios generales dei Derecho que se reflejan en el artículo 17 de Ia Constitu- ción. Esos mismos princípios también se reflejan en el artículo 8°. Dei Pacto de San José, incorporado ai orde- namiento jurídico paraguayo por médio de Ia Ley 1/89. 6. Essasexpressões aberrantes foram retiradas posterior- mente do sítio do Senado, mas sobreviveram em docu- mentos escritos examinados pela comissão da Unasul que viajou no .22 de junho a Assunção. 17 VOL 21 N" 3 JAN/FEV /MAR 2013