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Brasil. O processo de modernização das relações entre Estado e sociedade havia realmente avançado ao longo de toda a década de 1990. Na passagem do século XX para o XXI parecia que o Brasil havia finalmente encontrado o caminho para se livrar de uma vez por todas do seu passado. O GOVERNO LULA A ESTABILIDADE ECONÔMICA PROPORCIONADA PELO PLANO REAL E A GRANDE REFORMA DO ESTADO BRASILEIRO, OPERACIONALIZADA PELO GOVERNO FHC, DERAM ALICERCE SÓLIDO PARA A SEMPRE INSTÁVEL DEMOCRACIA BRASILEIRA, A PONTO DE TRANSFORMAR AS ELEIÇÕES DE 2002 EM UM EVENTO REALMENTE HISTÓRICO. A ECONOMIA BRASILEIRA ESTAVA EM FRANCO PROCESSO DE EXPANSÃO, ENTRANDO EM ESTÁGIO AMADURECIDO E COLHENDO OS FRUTOS DE TODO O PROCESSO QUE HAVIA SIDO INAUGURADO PELAS POLÍTICAS DE FERNANDO HENRIQUE CARDOSO. NINGUÉM JAMAIS PODERIA IMAGINAR QUE, EM UM MOMENTO COMO AQUELE, SERIA ELEITO UM PRESIDENTE ORIUNDO DA CLASSE TRABALHADORA E DE UM PARTIDO DE ESQUERDA. O último presidente que havia se aproximado da classe trabalhadora e que nutria simpatia pela esquerda — João Goulart — havia sofrido um golpe militar. A julgar pelas bandeiras históricas do Partido dos Trabalhadores — levantadas no final da década de 1970 e início da de 1980 — e pela postura do partido ao longo dos anos — seja no Congresso, seja no Senado —, de oposição à política neoliberal de FHC, julgava-se que a desaceleração desse processo criaria embates na política brasileira. Embora tenha ocorrido uma modernização da economia e uma estabilidade econômica que contribuía para o bem-estar social, na era FHC não havia ocorrido uma mudança substancial nas condições de vida da parcela mais pobre da população. Esperava-se que, no governo Lula, o foco no desenvolvimento econômico que beneficiava uma elite fosse direcionado para questões sociais em benefício do povo. Governando em um momento propício da economia do país, Lula conseguiu fazer com que a política socioeconômica do Estado brasileiro convergisse para uma agenda única. A criação de programas de distribuição de renda para aqueles que viviam na linha da miséria, combinada com o aumento da oferta de crédito para a classe média, fez com que um princípio básico da economia ocorresse de forma sistemática, e o aumento do poder aquisitivo da população fez girar a roda da economia. Esse giro libera uma reação em cadeia: maior consumo, maior produção, melhores resultados no comércio e nos serviços, aquecimento econômico, pleno emprego e uma sensação generalizada de bem-estar social. Entre 2002 e 2010, vivíamos no melhor dos mundos possíveis. No entanto, entre 2005 e 2006, uma denúncia de compra de votos/parlamentares no Congresso Nacional para a aprovação de projetos de interesse do governo — o chamado Mensalão — trouxe de volta os velhos fantasmas que o povo brasileiro esperava que tivessem ficado no passado. O BRASIL NÃO TEM POVO? Embora abalado pelas denúncias de corrupção — que tinham levado políticos importantes para a cadeia —, o Partido dos Trabalhadores conseguiu fazer seu sucessor nas eleições de 2010. Em uma eleição histórica no Brasil, pela primeira vez, uma mulher, no período republicano, assumia o Executivo do país: Dilma Roussef. No entanto, o entusiasmo com o governo e com a economia do país — que dava sinais de retração —, nos anos iniciais do governo Dilma, havia caído da frigideira para a brasa. Havia algum entusiasmo capitalizado pela Copa do Mundo de futebol da Fifa, que se realizaria em 2014. Os preparativos para a Copa implicavam a construção de estádios grandiosos para a realização dos jogos. Todos eles deveriam seguir o chamado padrão Fifa de qualidade. Muitos em regiões empobrecidas e carentes de serviços básicos. A Arena da Amazônia, por exemplo, em Manaus, custou cerca de R$ 800 milhões, em um estado em que apenas 36% da população tem acesso à rede de água, e a coleta de esgoto atende a apenas 4% da população. As exigências do padrão Fifa irritaram profundamente os brasileiros. Unidas a uma crise de representação política surgida no escândalo do Mensalão, levam o povo às ruas para exigir o mesmo padrão Fifa pelo qual o governo construía os estádios da Copa, para hospitais, escolas, estradas, transporte público, moradias populares, que no país ainda são precários. A parceria exitosa entre governo e iniciativa privada na construção da infraestrutura da Copa foi fruto da vontade política para que tudo se materializasse. O povo percebeu que, se houvesse essa mesma vontade política para a construção de hospitais, escolas, creches ou infraestrutura — saneamento, água etc. —, o país poderia ser melhor. Os recursos existiam na sétima economia mais robusta do mundo e havia uma disparidade entre essa posição no ranking da riqueza e a posição (85 a ) no ranking do IDH (Índice de Desenvolvimento Humano). O povo percebeu também que, se a mesma vontade política não acontecia nos serviços básicos, era porque eles haviam sido também privatizados: a educação, por meio do avanço das escolas particulares em todos os níveis, e a saúde, por meio da proliferação dos planos de saúde. Em um quadro como esse, é claro que serviços públicos de excelência nesses setores serão vistos como uma interferência do Estado na economia, na livre concorrência. O problema se agrava pelo meio-termo que se vive entre, de um lado, o lobby de grandes empresas desses setores que simplesmente impedem o investimento em nome da livre concorrência, e de outro a ineficiência do Estado com falta de projetos consistentes nessas áreas. Ficou claro que, quando existe vontade política, as coisas acontecem, e, quando não há interesse das elites políticas e econômicas, as coisas são simplesmente procrastinadas e os interesses particulares se sobrepõem aos coletivos. A falta de solução e a procrastinação em torno da questão do grave problema de saneamento básico, além do desconforto evidente que causa à população, é responsável por inúmeras doenças em adultos e crianças. Portanto, no Brasil, é mera falta de interesse e de vontade política, e não falta de recursos. A perversão e o sadismo, nesse caso, são algo desumano e uma tortura sistemática e cotidiana contra os desfavorecidos do país. O povo brasileiro, porém, tem uma capacidade única de surpreender. As grandes manifestações populares, que sacudiram o Brasil em 2013, não foram resultado apenas da crise de representação política que tomou conta do país por ocasião das denúncias do Mensalão. Crise econômica e gastos exorbitantes com a Copa, de um lado, e, de outro, a sensação cotidiana da ausência do Estado, levaram o povo a surtar e a ter um rompante anarquista. O resultado: incêndios nas ruas e a repressão do Estado numa espécie de Primavera Árabe que — para o terror da classe política e dos donos do poder — havia chegado ao Brasil. A LUTA DE TODOS CONTRA TODOS ENTRE OS ANOS 2009 E 2014, O BNDES (BANCO NACIONAL DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO E SOCIAL) MANTEVE UM PROGRAMA, O PSI (PROGRAMA DE SUSTENTAÇÃO DE INVESTIMENTOS), VOLTADO PARA CONCEDER EMPRÉSTIMOS A GRANDES EMPRESAS BRASILEIRAS E MULTINACIONAIS, QUE MOVIMENTOU O MONTANTE DE R$ 362 BILHÕES. ENTRE AS EMPRESAS QUE TOMARAM ESSES EMPRÉSTIMOS ESTÃO A FIAT-CHRYSLER, COM R$ 3 BILHÕES E JUROS DE 4,7% AO ANO; O GRUPO VALE, COM R$ 3 BILHÕES E JUROS DE 4,2% AO ANO; A RENAULT, COM R$ 1,5 BILHÃO E JUROS DE 5,1% AO ANO; A FORD, COM R$ 1,2 BILHÃO E JUROS DE 4% AO ANO; A TIM, COM R$ 1 BILHÃO E JUROS DE 3,5% AO ANO (SÓ PARA CITAR AS DA CASA DO BILHÃO). Em qualquer país, o governo concede empréstimos subsidiados ao setor privado com o intuito de aquecer a economia. Fato é que, no Brasil, qualquer brasileiro que queira ou precise de um aportefinanceiro tem que recorrer ao cheque especial ou ao cartão de crédito, cujos juros bateram, em média (2015), a casa dos 290% e 430% ao ano, respectivamente, e acaba entrando numa dívida impagável. Ou seja, facilidades de condições para os grandes empresários, de um lado, e, de outro, uma sucessão de obstáculos impostos ao povo, que, tendo no cheque especial e no cartão de crédito suas formas mais acessíveis de aporte financeiro, torna-se refém de um sistema bancário predatório. Não por acaso, nesse mesmo período, 2009-2014, registram-se recordes históricos no lucro dos bancos. Em 2014, os cinco maiores bancos do país levaram juntos quase R$ 60 bilhões. Em 2015, foram R$ 68 bilhões, aproximadamente.