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1 Universidade Estadual do Ceará / Faculdade de Veterinária Bioquímica Veterinária II Prof. Dr. Genário Sobreira Santiago GLICONEOGÊNESE: gliconeogênese em aves e ruminantes 1. GLICONEOGÊNESE EM AVES A maior diferença entre as aves e os mamíferos é que a alanina e o piruvato não são tão importantes precursores de glicose. Por outro lado, o lactato e o glicerol têm maior importância quantitativa. A razão bioquímica dessa diferença se baseia na localização da fosfoenolpiruvato carboxiquinase que, nas aves, é exclusivamente mitocondrial (quadro 2), de modo que o PEP formado a partir do OAA é que sai da mitocôndria retornando ao citosol. Portanto, não se produzem suficientes equivalentes redutores NADH + H+ (malato →OAA) disponíveis no citoplasma, que podem utilizar-se na inversão da glicólise para converter 1,3-difosfoglicerato em gliceraldeido-3-fosfato (figura 1). Nas aves, os agentes redutores são produzidos mediante a conversão do lactato em piruvato, o que explica o fato dos músculos das aves terem uma concentração muito maior de lactato, do que músculos de mamíferos. A alanina não é um precursor importante da glicose em aves, porque resultaria na formação de piruvato sem a produção de agentes redutores necessários para completa gliconeogênese. A razão biológica para a não conversão de alanina em glicose é possivelmente porque as aves não produzem uréia, sendo o ácido úrico a principal 2 forma de excreção nitrogenada. A conversão de alanina em glicose, em mamíferos está estreitamente relacionada à produção de uréia. Outra forma de eliminar o problema da falta de agentes redutores nas aves é mediante a formação de glicose a partir do glicerol, através da diidroxiacetona fosfato e gliceraldeído-3-fosfato, produtos intermediários da glicólise. Os outros dois desvios da gliconeogênese são mostrados na figura 1. Figura 1 Relação entre as vias para gliconeogênese e os precursores da glicose. Identificação das enzimas (a) piruvato carboxilase; (b) malato desidrogenase; (c) PEP-carboxiquinase; (d) frutose-1,6- difosfatase; (e) glicose-6-fosfatase (fonte: NUSSIO et al., 2006) 3 Em suma, as aves são capazes de consumir dietas em que toda a energia provenha de lipídeos e proteínas e produzir glicose por gliconeogênese. Mas isto não é interessante do ponto de vista econômico, porque reduz a disponibilidade de aminoácidos para síntese protéica e, portanto, compromete o desempenho produtivo do animal. 2. GLICONEOGÊNESE EM RUMINANTES Em geral a fermentação microbiana de carboidratos no rúmen determina que seja muito escassa a glicose absorvida diretamente ao conduto gastrointestinal. Pode haver uma exceção a esta regra quando os animais consomem grandes quantidades de amido que é degradado lentamente. Em consequência, a glicose necessária em nível tissular é aportada principalmente via gliconeogênese, a partir de propionato, aminoácidos, glicerol e lactato. Apesar das etapas metabólicas extras que são necessárias para proporcionar glicose aos tecidos, os ruminantes têm as mesmas necessidades de glicose para seu metabolismo basal, que outras espécies, mesmo que sua glicemia (40 a 60 mg/dL) seja quase metade daquela dos animais não ruminantes, como mostra o quadro 1. Existem cinco tecidos, pelo menos, que precisam de glicose: nervoso, muscular, adiposo, glândula mamária e feto. O sistema nervoso central dos ruminantes difere daquele dos não ruminantes porque pode tolerar longos períodos de hipoglicemia, tão baixa quanto como 18 mg % durante 6 h sem efeitos prejudiciais. Os pesos do encéfalo e da medula espinhal tendem a ser menor, como % do peso corporal, em ruminantes que em outros animais. Por exemplo, o peso do encéfalo e da medula espinhal das ovelhas é de 130 g aproximadamente, enquanto no homem é de 1.400 g. Assim, em termos de necessidade de glicose do animal inteiro, o sistema nervoso das ovelhas precisa de 15 a 20 % do aporte total de glicose, enquanto no homem esta cifra seria de 70 a 80 %. O músculo necessita glicose principalmente para produzir glicogênio, ainda que oxide diretamente uma pequena quantidade de glicose. O tecido muscular do 4 ruminante contém muito menos glicogênio (quadro 1) que outras espécies, refletindo a menor quantidade de glicose disponível a nível tissular. A glicose é necessária também para o metabolismo da gordura, já que proporciona NADPH (via das pentoses), que é utilizada como agente redutor nas etapas intermediárias na síntese dos ácidos de cadeia longa. Quadro 1. Glicogênio hepático e limiar renal para a glicose Espécie Animal Glicogênio (% peso corpo) Glicemia (mg/%) Limiar renal (mg%) Bovídeos adultos 1,5 – 4,0 35 – 55 - Vaca em lactação 1,0 - - Vaca 3,0 35 – 55 98 – 102 Terneiro 2,0 – 5,0 - - Cabra - 45 – 60 70 – 130 Camelo - 48 - Carneiro - 35 – 60 160 – 200 Ovelha 3,8 - - Cavalo - 65 – 100 180 – 200 Porco 2,0 65 – 95 - Leitão 5,2 76 – 149 - Cão 6,1 55 – 90 175 – 200 Gato - 60 – 100 - Galinha 3,0 190 – 300 - Ganso 5,0 - - Fonte : BACILA (1980) O desenvolvimento fetal e a produção e produção de leite consomem as maiores quantidades de glicose nos ruminantes. O feto recebe um aporte contínuo de glicose 5 procedente da mãe e é sua principal fonte de carboidratos. O metabolismo fetal de glicose pode supor de 40 a 70 % da glicose total metabolizada pelo organismo completo das ovelhas durante o final da gestação. As necessidades de glicose para lactação são inclusive maiores que as exigidas pelo feto. Somente a produção de lactose pode consumir 2 Kg glicose/dia em uma vaca leiteira de alta produção e 200 g / dia em uma ovelha que cria gêmeos. Em ruminantes com alta produção, a formação de lactose pode supor de 60 a 85 % do metabolismo total de glicose corporal. A principal diferença metabólica entre animais ruminantes e não ruminantes consiste na quantidade de acetato que usam os ruminantes em lugar de glicose, como o substrato principal para armazenamento e sua dependência da gliconeogênese para obter glicose, tanto quando recebem alimentos ou quando são submetidos a jejum. Em consequência a taxa de gliconeogênese nos ruminantes é máxima pouco depois de receber ração momento em que são mais abundantes os substratos para gliconeogênese. Além disso, a localização da enzima PEP-carboxiquinase (quadro 2 e figura 1). O propionato é o único AGV que exerce uma contribuição líquida na síntese de glicose, e é quantitativamente o precursor mais importante. Estudos com técnica de diluição isotópica sugerem que de 27 a 54 % da glicose se forma a partir do propionato. Nestes estudos se apreciou que parte do propionato se converte em lactato que também fica disponível para síntese de glicose. Como consequência, mais de 27 a 54 % da glicose pode ter no propionato seu precursor original. A quantidade de propionato absorvida no rúmen varia com a quantidade e tipo de dieta consumida (quadro 3). Em uma ovelha alimentada com feno de alfafa, 30 % da glicose procedem do propionato, enquanto 66% procedem do propionato, quando os ruminantes consomem uma dieta rica em cereais. Os aminoácidos podem ser usados para gliconeogênese com exceção da lisina e leucina. O fígado utiliza parte dos aminoácidos excedentes procedentes da dieta e/ou os procedentes do intercâmbio normal das proteínas corporais e do plasma para a formação de glicose ou uréia (figura 5). Nem todos os aminoácidos que chegam ao intestino delgado estão disponíveis para formação de glicose. 6 Quadro 2. Localização da enzima PEP-carboxiquinase, conforme espécie animal Localização Espécie Citosol Mitocôndria Rato X Camundongo X Coelho X Suíno X Galinha X Ruminante X X Cobaia X X Homem X Fonte: Modificado de HARPER (1977) Parte é metabolizada pelo tecido intestinale usada para formação de quilomícrons, crescimento de células novas da mucosa ou são desaminados e utilizados para aportar energia. Nem todos os aminoácidos absorvidos gozam da mesma capacidade para formação de glicose no fígado. Sobre uma base molar, alanina, glutamina, glicina e serina representam 70 % dos aminoácidos retirados pelo fígado. Quadro 3. Exemplos de concentração de AGVs no rúmen Proporção molar de AGVs (%) Dieta Espécie AGV total (mM) Acético Propiônico Butírico Feno Ovelha 106 69 20 11 Grão Ovelha 76 53 34 13 Capim Vaca 148 70 19 11 Grão Vaca 122 46 42 12 Fonte: BERGMAN (1990) 7 Alanina e glutamina são os aminoácidos com maior capacidade gliconeogênica e dão origem de 40 a 60 % da glicose formada em ovelhas a partir de aminoácidos. O fato de que a alanina e glutamina sejam os principais aminoácidos destinados leva a perguntar-se a respeito das fontes não dietéticas destes aminoácidos para o fígado. Dados procedentes tanto de ruminantes como de não ruminantes, demonstram que esses aminoácidos são liberados dos músculos esqueléticos. Isto sugere que outros aminoácidos sejam desaminados até ácidos orgânicos e que posteriormente o nitrogênio é transaminado com piruvato, α-cetoglutarato ou glutamato para formar alanina ou glutamina. Este sistema tem várias vantagens. Primeiro como a uréia não pode ser sintetizada nos músculos, os aminoácidos podem seguir sendo oxidados sem liberar quantidades tóxicas de amônia. Segundo, proporciona ao fígado precursores gliconeogênicos e ao rim glutamina para neutralização de ácidos, especialmente durante a acidose. Os animais alimentados em nível de mantença convertem em glicose e uréia a maior parte dos aminoácidos absorvidos no intestino. Em herbívoros bem alimentados, o rim é uma fonte importante de glutamina e aporta quase metade da glutamina que retira o fígado. Durante o jejum, aumenta a quantidade de alanina glutamina liberada dos músculos para cobrir as necessidades do fígado e rim. O glicerol é o terceiro composto utilizado para gliconeogênese, sendo que sua maior parte presente no organismo aparece ligada a ácidos graxos para formar triacilgliceróis e somente é liberado durante a lipólise. O glicerol é captado pelo fígado e rim, e usado para síntese de glicose, formação de triacilgliceróis ou oxidação até CO2. Nas ovelhas, o glicerol constitui 5 % aproximadamente dos carbonos de toda a glicose sintetizada. No entanto, em ruminantes em jejum a absorção de propionato cai intensamente e o glicerol exerce maior contribuição para a síntese de glicose. O lactato se forma do metabolismo anaeróbico de glicose em quase todos os tecidos e podem produzir-se grandes quantidades no rúmen quando os animais consomem dietas ricas em cereais. 8 2.1. Controle dietético e hormonal da gliconeogênese A quantidade de precursor gliconeogênico disponível para o fígado é o principal fator que determina a quantidade de glicose produzida. As quantidades de propionato e lactato disponíveis para gliconeogênese estão relacionados diretamente com a quantidade de carboidratos não estruturais da dieta e com a quantidade de dieta ingerida. Ao contrário, as quantidades de glicerol e aminoácidos disponíveis estão sob controle hormonal complexo. Se diminuir a concentração de glicose no sangue, se inicia a gliconeogênese hepática e o fígado libera glicose. Simultaneamente, cai a produção de insulina pelo pâncreas e aumenta a de glucagon. A proporção molar entre insulina e glucagon pode ser mais importante na taxa de gliconeogênese de que a quantidade real de cada hormônio. Como o fígado é mais sensível ao glucagon que a insulina, um quociente insulina / glucagon ≤ 6 reflete um efeito sobre o fígado devido ao glucagon mais que o da insulina. Caso prossiga a deficiência de glicose, serão estimulados os receptores de glicose no hipotálamo que enviarão impulsos a medula adrenal que aumenta a secreção de epinefrina. Quando cai insulina e aumenta glucagon e epinefrina se incrementa a gliconeogênese e se estimula a lipólise no tecido adiposo, determinando uma mobilização de glicerol e ácidos graxos. O maior quociente glucagon / insulina estimula rapidamente a liberação de aminoácidos do tecido muscular, dispondo, assim, de mais precursores de glicose, especialmente alanina e glutamina. Glucagon, cortisol e GH aumentam a captação de aminoácidos pelo fígado. O glucagon, em especial, aumenta rapidamente a captação de alanina, glutamina e de outros aminoácidos glicogênicos. 3. LEITURA “Metabolismo de ácidos graxos voláteis” Os ruminantes (por ex., bovinos, ovinos e caprinos) e os pseudo-ruminantes (por ex., equinos e coelhos) contam amplamente com a produção de acetato, propionato, butirato e valerato por fermentação anaeróbica de carboidratos dietéticos e outros 9 constituintes alimentares no rúmen e no ceco. Verifica-se uma produção menor dos mesmos produtos finais via fermentação no intestino grosso de todos os animais. Dependendo da composição da dieta, os AGV podem suprir até 80% da energia total necessária para ruminantes. Como a fermentação em geral é extensa, uma vaca leiteira, por exemplo, normalmente tem menos de 10% de suas exigências diárias de glicose disponíveis para absorção do intestino delgado e precisa, então, contar amplamente com a gliconeogênese para satisfazer tais exigências de glicose. Outros componentes dietéticos também fornecem carboidratos para a síntese de AGV. Por exemplo, quando, em vez do amido, a celulose é o principal carboidrato dietético para bovinos, o acetato é o AGV mais importante. O incremento na produção de amido aumenta a produção ruminal de propionato e valerato e diminui a produção de acetato e butirato. Além da produção dos AGV, a fermentação dos constituintes dietéticos por numerosas espécies de bactérias e protozoários no trato digestório de animais resulta em formação de CO2 e metano. Estes dois gases desaparecem no meio ambiente, ao passo que os AGV são eficientemente absorvidos e transportados via sistema circulatório porta para o fígado. Antes de serem metabolizados pelos tecidos, os AGV devem ativados por sintases específicas de acordo com a seguinte reação: 𝐴𝐺𝑉 + 𝐶𝑜𝐴𝑆𝐻 + 𝐴𝑇𝑃 → 𝐴𝐺𝑉𝐶𝑜𝐴 + 𝐴𝑀𝑃 + 𝑃𝑃𝑖 O fígado remove eficazmente o propionato, o butirato e o valerato do sangue porta, porém muito acetato atravessa o fígado em direção aos tecidos periféricos para subsequente metabolismo. O propionato é um importante precursor da síntese de glicose no fígado. Quando metade do butirato absorvido através da parede ruminal se transforma em β-hidroxibutirato, que é metabolizado mais pelos tecidos periféricos do que pelo fígado. 4. BIBLIOGRAFIA 10 BACILA, M. Bioquímica Veterinária. São Paulo: Varela, 1980, 534p. BERGAMAN, E.N. Energy contributions of volatile fatty acids from the gastrointestinal tract in various species. Physiological Reviews, v.70, n.2, p.567-590, 1990. CHAMPE, P.C., HARVEY, R.A. Bioquímica Ilustrada. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996, 446p. CHURCH, D.C. The ruminant animal: digestive physiology and nutrition. Englewood Cliff: Prince Hall, 1988, 564p. HARPER, H.A. Manual de Química Fisiológica. São Paulo: Atheneu, 1977, 600p. MARZZOCO, A., TORRES, B.B. Bioquímica Básica. São Paulo: Guanabara Koogan, 2007, 386p. NUSSIO, L. G., CAMPOS, F. P., LIMA, M. L. M. Metabolismo de carboidratos estruturais. In: BERCHIELLI, T. T., PIRES, A. V., OLIVEIRA, S. G. Nutrição de ruminantes. Jaboticabal: Funep, 2006. p. 183-228. RIEGEL, R.E. Bioquímica. São Leopoldo: Unisinos, 2005, 547p. SWENSON, M.J., REECE, W.O. Fisiologia dos animais domésticos. São Paulo: Guanabara Koogan, 1996, 856p.