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Os Lusíadas - Edição Didática

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Camões
Os Lusíadas
Edição didática · Vol. I
Com paráfrase de todas as estrofes e longos
comentários filológicos, históricos e literários
de Francisco de Sales Lencastre
Apresentação:
Rafael Falcón
Os Lusíadas (edição didática) - Vol. I, Camões
© Editora Concreta, 2018
Título original do poema: Os Lusíadas
Título original da edição didática: Os Lusíadas - Poema épico de Luís
de Camões - Edição anotada para leitura popular - Volume I
Os direitos desta edição pertencem à
EDITORA CONCRETA
Rua Dr. Vale, 24, sala 402 – Bairro Floreta – CEP: 90560-010
Porto Alegre – RS – Telefone: (51) 9916-1877 – e-mail: contato@editoraconcreta.com.br
EDITOR:
Renan Martins dos Santos
APRESENTAÇÃO:
Rafael Falcón
COMENTÁRIOS:
Francisco de Sales Lencastre
REVISÃO:
Gabriel Ceroni Lied
CAPA & DIAGRAMAÇÃO:
Hugo de Santa Cruz
ILUSTRAÇÕES:
Alfredo Roque Gameiro (1864–1935) e Manuel de Macedo (1839–1915)
retiradas de Os Lusíadas - Grande edição illustrada (Lisboa, 1900)
DESENVOLVIMENTO DE EBOOK:
Loope – design e publicações digitais
www.loope.com.br
FICHA CATALOGRÁFICA
Camões, Luís de, 1524–1580
C1829o Os Lusíadas - vol. I [versão eletrônica] / Comentários de Francisco de Sales Lencastre,
edição de Renan Santos. – 1ª edição. – Porto Alegre, RS: Concreta, 2018.
ISBN 978-85-68962-31-2
1. Poesia. 2. Literatura portuguesa. 3. Crítica literária. I. Título.
CDD-869.1
Reservados todos os direitos desta obra. Proibida toda e qualquer
reprodução desta edição por qualquer meio ou forma, seja ela eletrônica
ou mecânica, fotocópia, gravação ou qualquer meio.
www.editoraconcreta.com.br
SUMÁRIO
Capa
Folha de Rosto
Créditos
Apresentação | Um livro para ler – e entender
Prefácio do Editor
Notas sobre o cientificismo introdutório
Introdução
I. Título do poema
II. Argumento histórico dos Lusíadas
III. Ficções mitológicas
IV. Cosmografia
V. Geografia
VI. Flora dos Lusíadas
VII. Estilo
Os Lusíadas
Canto I
Canto II
Canto III
Canto IV
Canto V
Q
APRESENTAÇÃO
Um livro para ler – e entender
uando eu tinha quinze anos, abri uma edição “com notas” de Os
Lusíadas. Li o poema inteiro – isto é, fiz aquilo que, à época, eu chamava
de “ler” – e, para além de captar o sentido superficial da maioria das
estrofes e algo da entonação épica, não entendi bulhufas.
Camões é um clássico; é o clássico da língua portuguesa. Nele estão os sentimentos
morais, as virtudes, a dignidade da civilização lusa. Camões é o fundamento da
nossa cultura, é o herói dos nossos escritores.
Mas como arranhar as intuições poéticas, a elevação moral, os arroubos
sobrenaturais de um poeta, quando não se consegue juntar sujeito com predicado
em seus longos períodos? Quando suas expressões figuradas parecem enigmáticas e
até incompreensíveis? Quando não se sabe ao menos do que está ele a falar: quem é
Pacheco, em que ponto da Terra os heróis se encontram, que diabos é um
mauritano?
Os abecedários medievais começavam com os dizeres: legere et non intellegere,
neglegere est – ler, e não entender, é negligenciar. Na raiz etimológica de intellegere,
segundo uma tradição antiga, estavam as palavras intus legere (“ler dentro”); na de
neglegere, nec legere (“nem ler”); e a mesma frase, lida etimologicamente, assim se
traduz: ler, e não ler dentro, não é nem mesmo ler. Passar os olhos pelas letras,
apenas pressentindo seu significado, não é leitura de forma alguma. Só lê de fato
aquele que domina o campo semântico das palavras, sabe distingui-las de suas
parentas, ligá-las a suas amantes, apreciá-las em sua força específica.
E como se aprende a ler, senão com o guiamento de um mestre? Como qualquer
arte, a leitura passa pela memorização de alguns dados, e pela prática disciplinada de
certos movimentos mecânicos; e, como toda arte, ela só se realiza de fato na
articulação de palavras, movimentos e hábitos segundo uma razão complexa, cujo
registro completo em livro seria provavelmente impossível – em todo caso,
certamente nada prático – e que só pode ser transmitida apropriadamente por um
ser humano treinado e dedicado: um mestre de leitura, o grammaticus.
O grammaticus conhece todos os passos para ler adequadamente o gênero textual
mais exigente de todos – a poesia – e por isso lê bem tudo o mais. Sabe decodificar
os sons sem erro; sabe entonar e pausar; ler e interpretar. Identifica as figuras,
quando aparecem, e deduz sua função e sentido; estuda as referências e alusões,
reconstrói a sintaxe dos versos, domina-os como a palma de sua mão. Quanto disso
pode ser posto em livro? Muito pouco. Mas já nos primeiros séculos da nossa era,
quando a barbárie ameaçava as instituições do Império Romano, alguns mestres se
puseram a registrar o que podiam. Fizeram-no da maneira mais apropriada, mais
rica e mais útil: simulando por escrito suas aulas, explicando um poema verso a
verso, e criando assim o único gênero de material didático aceitável para aquele
modelo de ensino. A tradição de comentários didáticos se estendeu durante mais de
mil anos, até desfalecer subitamente em meados do século XX.
Hoje é segredo e mistério, mas um século atrás ainda se publicavam edições
comentadas de clássicos como Os Lusíadas. Eram belos livros escolares, com
paráfrases em prosa de cada estrofe, para garantir a compreensão da sintaxe; com
notas explicativas que, diferentemente das atuais, explicavam de verdade as
referências do texto e as figuras de linguagem; com introduções ricas e eruditas que
fundamentavam e aprofundavam a leitura. Não dispensavam o estudo disciplinado
e a presença do mestre, nem procuravam substituí-lo, como hoje se faz por meio de
“métodos” e “livros didáticos”, pretensas máquinas de educar que convertem os
professores em meros fiscais de sala – negando aos alunos, sob pretexto de evitar os
defeitos humanos, o privilégio de aprender o que só um ser humano pode ensinar: a
apreciação real e vital da poesia. Separado o domínio técnico da contemplação
poética, perde-se o sentido de todo o estudo, agora tornado mero formalismo; e o
vocabulário da arte, esvaziado da experiência estética integral, vira palavreado oco.
Os comentários, portanto, não visavam a substituir as aulas, mas a servir de apoio
para o estudo; preenchiam os vãos da ignorância histórica e lingüística,
possibilitando a discussão do poema em níveis mais altos; dispensavam o professor
de literatura de tornar-se um filólogo ou historiador, o que lhe tiraria, talvez, o
tempo e a disposição de estudar o poema enquanto poema, que é seu aspecto mais
interessante e útil; davam aos alunos os meios de ler e entender sozinhos, em casa, o
que de outro modo exigiria longas pesquisas, e na prática os tornaria dependentes
do professor para tudo.
Por que pararam de editar esses ótimos instrumentos do estudo? Por que, num
país em que 92% da população geral e 84% dos profissionais da educação são
incapazes de ler, os intelectuais e eruditos crêem que essas edições se tornaram
dispensáveis?
Talvez porque não lhes interesse divulgar Os Lusíadas. Os milhões de livros
didáticos despejados nas escolas públicas todos os anos, à custa – é bom lembrar –
de exorbitantes impostos, preferem analisar revistas em quadrinhos e obscenas
letras de “funk”. As publicações de divulgação científica, feitas por acadêmicos que
se doutoram na França e nos EUA – mais uma vez, com dinheiro público –
insistem em materiais semelhantes aos sobreditos e, se mencionam o nome de
Camões, é para equipará-lo a algum sambista pretensioso. Não é exagero dizer que
as tirinhas, letras de música (com o perdão da palavra) popular e crônicas de
jornalistas semiletrados bloqueiam eficazmente qualquer contato com a cultura
tradicional do nosso povo e civilização, para não falar do uso correto, expressivo e
belo da língua portuguesa.
Quem sabe qual é o interesse de toda uma classe letrada – nas atuais condições
seria mais justo chamá-la pseudoletrada – em tornar inacessível a obra mais
importante do nosso idioma? Quem sabe por que razões se investe tanto tempo e
dinheiro em desensinar a língua portuguesa e privar as crianças de todo contatocom valores morais básicos? Terá sido tudo isto feito conscientemente, ou será
fruto de um longo e paulatino processo de emburrecimento? Seja qual for a
resposta, a prudência aconselhará a mesma atitude: correr de volta ao passado e
recuperar os instrumentos didáticos que formaram nossos grandes homens. A
edição de Francisco de Sales Lencastre representa muito honradamente as virtudes
da tradição de comentadores escolares aos quais deveram tanto nossos
antepassados. Endividemo-nos também nós, para nosso bem, e das futuras gerações.
RAFAEL FALCÓN
Janeiro de 2018
Q
PREFÁCIO DO EDITOR
uis o destino reservar-nos a felicidade de recolocar no mercado editorial
esta tão necessária edição d’Os Lusíadas. É, na verdade, a primeira vez
que se publica oficialmente no Brasil a versão didática de Lencastre,
antes só presente em edições portuguesas, que, para a sorte de alguns leitores,
acabaram aportando em sebos tupiniquins. Um destes leitores, Jutay Rebouças, a
quem muito agradecemos, escaneou os dois volumes por sua própria iniciativa e os
disponibilizou na internet para todos os interessados – incluindo este editor, que
utilizou o arquivo para transcrever e corrigir[ 1 ] o texto que agora você tem em
mãos.
A edição de Francisco de Sales Lencastre (1839–1916) se insere numa longa
tradição de comentários ao maior poema da língua portuguesa. Lencastre não era
nenhum acadêmico de pompa e reconhecimento, mas um simples funcionário
público de carreira, responsável por administrar a alfândega de colônias
portuguesas na África. Exceto por esta edição d’Os Lusíadas, pouquíssimo publicou
em literatura e humanidades,[ 2 ] e no restante de sua parca bibliografia só se
encontram relatórios alfandegários e um índice remissivo da legislação portuguesa
da época. Talvez isso ajude a explicar sua predileção por uma abordagem mais
simples e didática ao poema, livre dos bizantinismos e questiúnculas que só
interessariam a acadêmicos e que tão pouco contribuem para a efetiva consolidação
de um clássico como Os Lusíadas.
O que mais sabemos sobre Lencastre? Que realizou muitos incursos pelo
continente africano a serviço do seu país – incluindo um período de muitas
dificuldades em Cabo Verde – e que colaborou no periódico Gazeta de Portugal,
onde deve ter convivido com gigantes como Camilo Castelo Branco e Feliciano de
Castilho. As informações são tão exíguas, que as poucas fontes sequer concordam a
respeito da forma precisa de seu sobrenome.[ 3 ] A partir dos dados que
conseguimos reunir, é possível vislumbrar um burocrata e homem prático com
algum amor pelas letras, e um amor ainda maior pelos versos de Camões – cujas
experiências de além-mar devem ter ressoado como um eco mitológico das próprias
experiências de Lencastre no séc. XIX. Tal intimidade com a matéria-prima de que
se servira o poeta provavelmente contribuiu para a formação desse leitor
capacitadíssimo, como ficará evidente nas páginas que se seguem.
Por fim, nem sempre a falta de informações biográficas é de se lastimar: parte o
homem, fica a obra. Que permaneça, portanto, a força intrínseca deste grande
trabalho de Francisco Lencastre, e que ele contribua para a boa formação de muitos
leitores brasileiros no século XXI. Isto é tudo o que importa.
NOTAS SOBRE O CIENTIFICISMO INTRODUTÓRIO
Incorreríamos também em bizantinismo ao apontar neste prefácio os poucos
defeitos do livro, especialmente quando seus méritos os ultrapassam por tão larga
escala. Mas podemos dizer que uma crítica é justificada sempre que seu objetivo se
identifica com o próprio objetivo da obra. Neste caso, uma edição relançada
justamente devido a seu poder educativo não pode transmitir certos vícios de sua
época (e ainda da nossa, em grande medida) de maneira impune. Seria o
equivalente a querer saciar a fome com uma farta ceia cuja entrada fosse uma taça
de veneno.
E é justamente na entrada o problema: em sua breve introdução,[ 4 ] Lencastre
discorre sobre o sistema planetário ptolemaico, que era basicamente a cosmologia
aceita no tempo de Camões, e da qual o poeta lança diversas imagens de gênio para
ilustrar seus versos. Do ponto de vista descritivo, é uma apresentação muito exata, e
tão didática quanto o restante dos comentários do volume. Porém, é no momento
de dar vazão aos seus juízos de valor (e de citar algumas informações históricas
equivocadas) que ele erra cabalmente. Não que isto eximisse Lencastre da sua
responsabilidade, mas o fato é que ele estava simplesmente repetindo os ecos de seu
tempo (grande parte da sua explicação sobre a cosmologia tradicional consiste de
uma longa citação de outro autor contemporâneo, o astrônomo francês Camille
Flammarion).
A verdade é que, no final dos tempos, talvez poucos séculos terão sido inundados
de tanto preconceito materialista e cientificista quanto o foi século XIX, época em
que escrevia Lencastre. Nesta era floresceram as máquinas, a indústria e o
positivismo, com impacto inclusive nas artes plásticas e nas letras, através do
naturalismo (que encontrou seu terreno mais fértil precisamente na França e em
Portugal). Obviamente essa onda invadiria também as ciências sociais,
especialmente a história, onde abundaram as invencionices e mentiras a respeito da
Idade Média, da Igreja Católica e da ciência antiga.[ 5 ] Ainda levaria décadas, após
o ano de publicação desta obra, para que diversos historiadores finalmente
começassem a questionar essa visão tão distorcida.
Embalados pela imensa vaga materialista, era difícil que Lencastre e seus
contemporâneos ficassem calados diante de uma cosmologia tão diferente da sua.
Acostumados desde o berço aos conceitos e à propaganda da ciência moderna –
especialmente da ciência mecanicista do séc. XIX, que faz os físicos de hoje
parecerem místicos da Nova Era –, era natural que entendessem a perspectiva
geocêntrica, as sete esferas e suas relações simbólicas – para não falar dos deuses e
mitos da Grécia Antiga – como simples “idéias (…) duma criança ignorante”,
conforme Lencastre resume na apresentação.[ 6 ]
O que se sabe é que houve no Ocidente uma imensa ruptura cultural na passagem
da Idade Média para a Idade Moderna, tão imensa quanto misteriosa, cujas causas
até hoje ainda carecem de uma verdadeira explicação. Repentinamente, no seio da
própria Teologia praticada nas universidades medievais, começavam a pipocar aqui
e ali os brotos de um pensamento em total desacordo com aquilo que os homens
nutriram em suas almas por milênios e milênios. O simbolismo natural perdia
força, e conceitos abstratos como “velocidade”, “inércia” e “matéria” começavam a
dirigir a vida humana. De súbito, a filosofia nominalista ganhou fama, e os
pensadores – motivados pelo sucesso das novas invenções – passaram a acreditar
mais nos conceitos descritivos de suas ciências do que na simples realidade em
torno. O Sol, por exemplo, deixava de ser o astro mais luminoso do céu (então
compreendido como o mapa da realidade), o símbolo por excelência da luz, da
inteligência e da realeza, para se tornar só mais uma estrela entre bilhões de outras,
num canto esquecido de uma galáxia qualquer, flanando pela poeira cósmica do
universo. Os seres à nossa volta perdiam o sentido e transformavam-se em simples
coisas, números, equações, medidas, conceitos. O cosmo deixava de ser um livro,
para se tornar um relógio.
O que esses cientistas talvez nunca tenham se perguntado é se, num mundo assim
tão sem graça, seria possível surgir um Camões, um Dante, um Shakespeare, um
Virgílio. Mas, o que têm a ver os cientistas com a poesia? A eles só interessa a casca
última, seca e já putrefata da linguagem, os conceitos prontos e palavras vazias,
fáceis de manipular por qualquer papagaio; a mera hipótese de um mundo
infinitamente mais vasto, mais rico e mais humano, para além dos simples
conceitos científicos, assombra os seus pesadelos. Mas esse mundo existe, e são os
poetas como Camões que guardam sua porta de entrada.
Sejamos, portanto, eternamente gratos a Francisco de Sales Lencastre por esta
maravilhosa edição d’Os Lusíadas. Eque um dia possamos encontrá-lo – e
agradecê-lo em pessoa – no Reino das “crianças ignorantes” (Mateus 18,3).
RENAN SANTOS
Fevereiro de 2018
[ 1 ] O processo de correção consistiu basicamente em atualizar a ortografia (para o acordo pré-
lulístico de 1990, quando a população ainda sabia utilizar tremas e acentos no Brasil), remover
algumas gralhas (erros de digitação do original) e aprimorar detalhes de algumas passagens mais ou
menos confusas. Também modificamos um pouco a formatação, sempre pensando em facilitar a
leitura e tornar a obra ainda mais didática.
[ 2 ] Nesta área, Lencastre ainda publicaria uma transcrição fonética dos Lusíadas e um manual de
português para leitores franceses (Nouvelle méthode pratique et facile pour apprendre la langue
portugaise, 1883).
[ 3 ] No Diccionario bibliographico portuguez, por exemplo, consta “Francisco de Sales de
Lencastre”.
[ 4 ] Originalmente intitulada Advertência, nome um pouco esquisito para essa seção nas edições
de hoje em dia. Sentimo-nos obrigados a modificá-la para Introdução.
[ 5 ] Hoje em dia a documentação a respeito é tão farta que fica difícil recomendar uma
bibliografia específica. Limitamo-nos a sugerir em especial as obras de Charles H. Haskins,
Christopher Dawson, David C. Lindberg, Etienne Gilson, Gordon Leff e Régine Pernoud. Há
também um livro que documenta – e refuta uma por uma – as calúnias do séc. XIX sobre a
existência de um suposto dogma da “Terra plana” durante a Idade Média: JEFFREY BURTON
RUSSELL, Inventing the Flat Earth: Columbus and Modern Historians, Nova York, Praeger, 1991.
[ 6 ] Página 21 desta edição.
E
INTRODUÇÃO
m 1892 saiu dos prelos da Imprensa Nacional de Lisboa uma edição do
primeiro canto dos Lusíadas, por mim anotada. A benévola apreciação
desse trabalho pela imprensa periódica deu-me incitamento para concluí-
lo. Então seguimos no texto as edições revistas pelo abalizado professor Sr. Dr.
Adolfo Coelho; agora transcrevemos a edição revista pela distinta romanista, a Sra.
D. Carolina Michaelis de Vasconcelos[ 1 ] (exceto na acentuação gráfica), e damos
também a versão do mesmo texto em prosa – conservando-lhe os vocábulos,
dispostos em ordem sintáxica regular, desfazendo-se hipérbatos e anacolutos,
acrescentando-se em tipo[ 2 ] diverso palavras subentendidas por elipse, silepse ou
circunlóquio, acrescentando-se, entre parênteses, vozes explicativas imediatamente
indispensáveis, e atendendo-se enfim ao intuito especial de prestar útil subsídio,
sem pretensões eruditas, para leitores não familiarizados com a antiga linguagem
clássica e poética, freqüentemente interrupta e transposta.
I. TÍTULO DO POEMA
O nosso épico identificou Portugal com a antiga Lusitânia, por simples ficção
poética, dando aos portugueses o nome de lusos ou lusitanos, que eram os
habitantes da Lusitânia – região constituída (no tempo do predomínio romano)
por uma faixa na parte ocidental da península hispânica, abrangendo grande
território, que em parte veio mais tarde a ser Portugal.
Segundo a lenda contada pelo poeta (III, 21), o nome “Lusitânia” deriva-se de
“Luso”, filho de Sículo, ou de Lísias, filho de Baco. O vocábulo “Lusíadas” foi
adotado – segundo a opinião que aceitamos do sábio professor Sr. Dr. Leite de
Vasconcelos – por analogia com as palavras latinas Aeneades (descendentes de
Enéias, romanos) e Illiades (descendentes do Ílion, troianos), para significar “os
descendentes do Luso” – os portugueses.
No título e na contextura dos Lusíadas, são manifestas as reminiscências dos dois
No título e na contextura dos Lusíadas, são manifestas as reminiscências dos dois
mais célebres poemas da Antiguidade:
1) A Eneida, poema latino de Virgílio (séc. I a.C.), que contém a narração dos
grandes feitos de Enéias, lendário herói que se bateu com os gregos no cerco de
Tróia, e que os romanos reputam seu progenitor;
2) A Ilíada, poema grego atribuído a Homero (séc. X a.C.), e que se ocupa dos
feitos notáveis acontecidos também por ocasião da guerra de Tróia (Ílion era o
nome grego de Tróia).
Por analogia, pois, o vocábulo Lusíadas significa rigorosamente, em linguagem
vulgar: “Os heróis portugueses”. E de fato nos Lusíadas está compendiada a história
dos gloriosos feitos dos portugueses ilustres que viveram até o reinado de D.
Sebastião. Na adoção do título, seguiu o poeta o uso das obras clássicas,[ 3 ]
formando um neologismo sonoro, com ressaibos de latinidade, para fugir ao
emprego dum termo vulgar; e não só no título, mas na contextura do poema se
manifestam, como fica dito, as reminiscências da Ilíada e da Eneida, e ainda as da
Odisséia, igualmente atribuída a Homero, assim como da Argonáutica de Valério
Flaco (séc. I) – poemas em que foram celebrados, como heróis, Aquiles, Ulisses,
Enéias, Jasão e os respectivos companheiros gregos e troianos (do séc. X a.C.).
II. ARGUMENTO HISTÓRICO DOS LUSÍADAS
O argumento principal dos Lusíadas é a viagem de Vasco da Gama à Índia – a
primeira, feita pelo Cabo da Boa Esperança, e da qual foi conseqüência para os reis
de Portugal adquirirem o vasto Império do Oriente. Contém a grande epopéia, ao
mesmo tempo, a história gloriosa de Portugal – desde a sua origem até os dias em
que viveu o poeta –, fingindo ser ela contada pela boca de Vasco da Gama até o
reinado de D. Manuel em conversações com o rei de Melinde e com o governador
de Calecut (cantos III, IV, V e VIII); e depois, a história subseqüente, por meio
duma ficção mitológica – a profecia feita por uma deidade, em conversação com o
mesmo Vasco da Gama, na fabulosa Ilha dos Amores (canto X). No majestoso
quadro aparecem notáveis episódios – não só da história pátria, mas também da
história universal –, a descrição geográfica da Europa, a exposição das doutrinas
astronômicas segundo os conhecimentos da época, e várias ficções baseadas na
fábula.
III. FICÇÕES MITOLÓGICAS
A Mitologia – história fabulosa dos deuses, semi-deuses e heróis da antiga idade –
tem na poesia o interesse de simples erudição clássica, porque os antigos faziam dos
mitos a base das suas produções poéticas como ornato literário e meio de amenizar
a leitura com linguagem figurada ou simbólica.
Ligando a história da linguagem com a da mitologia do diversos tempos e
diferentes países, os trabalhos dos filólogos modernos explicam os fundamentos das
invenções fabulosas. Vários sistemas se têm imaginado para expor a doutrina da
formação dos mitos, e um deles é fundado na suposição de que os homens
primitivos eram tão rudes, geralmente, que não podiam conceber idéias que
estivessem fora do mundo material; a mitologia, formando um conjunto de
símbolos materiais, foi o meio de se tornarem compreensíveis essas idéias; e a esses
símbolos ou deuses fabulosos se atribuía por isso a forma humana, ou a de certos
animais, ou a de monstros fantásticos. Tais sistemas confirmam o que já dizia
Aristóteles no século IV a.C.: “que as tradições – procedentes da mais remota
antiguidade e transmitidas à posteridade sob o véu da fábula – afirmavam que Deus
abrangia toda a natureza e que os mitos eram lendas inventadas para persuadirem o
vulgo e servirem a leis ou a interesses comuns”.
Várias classificações mitológicas se têm feito das diferentes divindades,
prevalecendo, porém, a que se baseia nos lugares habitados por elas, donde vem a
denominação de: celestes, terrestres, marítimas e infernais. Para inteligência dos
Lusíadas basta, porém, saber os nomes e os símbolos fabulosos ou atributos das
divindades aí referidas mais freqüentemente; o que se resume na seguinte lista:
Nomes dos divos ou deidades Símbolos ou atributos
Saturno, pai de Júpiter; devorava os filhos quando nasciam. O tempo.
Júpiter, denominado o “pai dos deuses”, mesmo por aqueles que não
eram seus filhos, em demonstração de respeito; derrubou Saturno
do supremo poder.
O casamento, a altivez, o ciúme e a
vingança.
Minerva, filha de Júpiter, denominada também Palas e Belona. As ciências e as artes.
Marte, filho de Júpiter e de Juno. A guerra.
Vulcano, filho de Júpiter e de Juno, que forjava os raios e astempestades.
O fogo.
Vênus, nascida da espuma do mar; mencionada na poesia com os
epítetos de (dos nomes de lugares em que era venerada): Citeréia,
Cípria e
A beleza.
Ericina
Mercúrio, filho de Júpiter e de Maia, mensageiro dos deuses. A eloqüência, o comércio, o roubo.
Apolo, filho de Júpiter e Latona; denominado também Febo. O sol, o oráculo da medicina, o dia, a
música, as ciências e as belas artes.
Diana, irmã de Apolo. A caça.
Baco, filho de Júpiter e de Semele; também denominado Tioneu
(por ser neto de Tione, mãe de Semele).
O vinho (nos Lusíadas simboliza a
estrela funesta aos companheiros de
Vasco da Gama).
Cupido, filho de Vênus. O amor.
Himeneu, filho de Apolo. O casamento.
Cibele, filha do Céu, esposa de Saturno, mãe de Júpiter. —
Vesta. O fogo, o lar doméstico.
Flora. As flores, a primavera.
Pomona. Os frutos.
Musas (eram nove); presidiam às artes liberais.[ 4 ] Belezas secundárias.
Netuno, filho de Saturno e de Ops. O mar.
Nereu, filho do Oceano e de Tétis.
Tétis, filha de Celo e de Vesta, esposa do Oceano.[ 5 ]
Oceano, filho de Celo e de Vesta.
Dóris, mulher de Nereu, filha de Oceano e de Tétis.
Plutão, rei dos Infernos, irmão de Júpiter, marido de Prosérpina.
Parcas, três divindades infernais, que presidiam à vida humana fabricando o fio da sua existência: Cloto, a que
presidia ao nascimento, era simbolizada por uma mulher com uma roca; outra, Láquesis, fazia girar o fuso; e a
terceira, Atropos, cortava o fio.
Nêmesis, a vingança.
Encontra-se no poema também a menção ou referência doutros personagens
poéticos do domínio da mitologia; tais são, por exemplo:
Bóreas – o vento norte.
Austro – o vento sul.
Éolo – a tempestade.
Zéfiro – a branda viração.
O motivo da promiscuidade, nos Lusíadas, de fatos históricos com ficções
mitológicas está explicado pelo próprio poeta (Canto X, 82), quando Tétis,
dirigindo-se a Vasco da Gama, diz que ela e as mais deusas “são fabulosas” –
acrescentando:
Fingidas de mortal e cego engano,
Só para fazer versos deleitosos
Servimos; e, se mais o trato humano
Nos pode dar, é só que o nome nosso
Nestas estrelas pôs o engenho vosso.
Nestes versos lembra o poeta que os nomes mitológicos se empregam, umas vezes,
como ornato poético, outras vezes, para designar os planetas ou as constelações a
que os astrônomos têm dado nomes da mitologia.
Nos Lusíadas, portanto, como na ação heróica dos clássicos poemas latinos, entra
a fábula ou a composição de coisas inventadas para ornamentação literária.
Principia o nosso épico por fingir que a primeira viagem de Vasco da Gama à Índia
foi contrariada por uma entidade malévola, simbolizada por Baco,[ 6 ] o que levou
os navegadores a padecerem grandes perigos no mar e graves estorvos nos portos de
escala, até serem superadas todas as dificuldades com o auxílio duma estrela
benévola – Vênus.[ 7 ]
Formosíssimo ornato literário é a ficção da Ilha dos Amores, habitada por mitos
(Canto X), e que no poema serve de artifício para inserir, em uma narrativa feita
por Tétis em 1497, a exposição de subseqüentes fatos históricos, por meio do
vaticínio. Deste modo, como partes integrantes e harmônicas, entram no poema
outros episódios fundados também na mitologia, e que serão anotados nas próprias
páginas.
IV. COSMOGRAFIA
Para complemento da interpretação dos Lusíadas, é indispensável proporcionar
aos indoutos algumas breves noções do sistema cosmográfico exposto pelo poeta, as
quais não poderiam caber em notas de cada estância. Às vezes exprime-se Camões
na linguagem mitológica e até na linguagem da humanidade primitiva, cujas idéias
sobre a forma do universo eram as duma criança ignorante.[ 8 ]
“O céu parece uma abóbada azul posta em cima da Terra chata e circular. Vemo-
nos no meio deste disco da Terra. Assim supõem os povos antes de terem viajado.
Cada um deles se julga no centro do mundo. A que distância chega o céu ao
horizonte? A resposta é vaga, porque, para qualquer lado que se caminhe, não se
chega a esse limite aparente. E a própria Terra onde pousa? É o que não se sabe, e
ninguém ousa perguntá-lo; supõe-se primeiramente que ela é infinita em
profundidade.
“Depois, vendo-se que o Sol, a Lua e as estrelas se levantam no horizonte, passam
por cima das nossas cabeças, vão mergulhar no lado oposto e tornam a aparecer no
dia seguinte outra vez no Oriente, sente-se que esses astros têm necessariamente
uma passagem por baixo da Terra. Supõe-se então que esta não tem raízes infinitas,
mas que é sustentada sobre montanhas ou colunas, entre as quais passam os
astros.”[ 9 ]
Homero (séc. IX a.C.) afirmava que a Terra era um disco rodeado pelo Oceano e
coberto por uma abóbada, debaixo da qual os astros do dia e da noite giravam sobre
carros. A escola de Pitágoras, na antiga Grécia (séc. VI a.C.), foi a primeira que
professou a idéia da esfericidade do globo terrestre.
No Canto X finge o poeta que a deusa Tétis, na Ilha dos Amores, está mostrando
a Vasco da Gama um globo translúcido, que se sustenta no ar e que representa a
estrutura do universo conforme a astronomia do tempo de Ptolomeu (séc. II d.C.).
Vinte nove anos antes da publicação dos Lusíadas, já fora impressa (1543) a obra
de Copérnico – astrônomo polaco, fundador da astronomia moderna; mas adiante
se dirá o motivo provável do ter adotado o poeta, na sua descrição cosmográfica, as
antigas teorias.
Agora expliquemos, para inteligência do texto, qual era o sistema chamado de
ptolomaico, e como se fundou.
Formada a idéia de que a abóbada celeste girava em volta de nós em 24 horas e de
que as estrelas estavam aderentes a essa abóbada – que se supunha sólida –, admitia-
se que a Terra era um globo – o qual, sem apoio algum, pairava no meio do
universo – e que a esfera celeste o envolvia completamente.
Este sistema de aparências era consolidado pelas observações dos navios no mar,
as quais confirmam ser esférica a Terra, visto que as montanhas vão desaparecendo
pela parte inferior à proporção do afastamento.
“A observação das estrelas que descem para baixo do horizonte ao norte,
aparecendo outras diferentes ao sul à proporção que o viajante vai caminhando das
nossas latitudes para o equador; e a observação da sombra da Terra – que se
desenha em círculo negro sobre a Lua eclipsada – acrescentam novas confirmações
à idéia de que habitamos um globo colocado no meio da esfera estrelada.
“Nota-se mais tarde que alguns astros se deslocam entre as estrelas. O primeiro
“Nota-se mais tarde que alguns astros se deslocam entre as estrelas. O primeiro
em que se notou o deslocamento foi Vênus – a radiante estrela da tarde e da manhã
–, cuja mudança de sítio é sensível de dia para dia, pois umas vezes aparece depois
do Sol posto, outras vezes precede o nascer do Sol.
“O segundo astro errante que se notou foi o brilhante Júpiter, que faz lentamente
a volta do céu em doze anos.
“Observou-se depois um terceiro astro errante, com menos brilho do que os dois
precedentes, mas às vezes muito rutilante: Marte, de irradiação avermelhada, que
faz o giro do céu em dois anos.
“Depois um quarto: Saturno, que se move através da esfera celeste com tal
lentidão, que emprega não menos de 30 anos em percorrer a sua órbita.
“Mais tarde notou-se ainda um quinto astro móvel: Mercúrio, que ora aparece de
tarde a Oeste, ora de manhã a Leste, da mesma maneira que Vênus – mas menos
brilhante –, e que se afasta menos do Sol; por isso mais difícil de se distinguir e
reconhecer.
“Estes astros foram denominados planetas, vocábulo que significa ‘errantes’ – por
oposição às outras estrelas (denominadas fixas, por se conservarem sempre no
mesmo lugar respectivo da abóbada celeste).
“Em conseqüência de aparecer o Sol todas as manhãs mais tardiamente do que as
estrelas e de não voltar ao mesmo ponto do céu senão depois de 365 dias e 6 horas,
supunha-se que ele estava adstrito a um círculo distinto da esfera estrelada, e dentro
desta se movia de leste para oeste em um ano.
“A Lua – executando uma revolução análoga em 27 dias e quase 8 horas –
supuseram-na adstrita a um círculocolocado mais próximo da Terra e girando
nesse círculo.
“A combinação deste movimento com o do Sol dava conta da série de fases
lunares, que se realizam em 29 dias e meio. A mais destes dois círculos (do Sol e
Lua) acrescentavam-se cinco para os cinco planetas que ficam nomeados, o que
perfazia ao todo sete círculos (sete céus) sucessivos a partir da Terra para o céu, por
esta ordem:
1º, da Lua (com um movimento de 27 dias);
2º, de Mercúrio;
3º, de Vênus, que tem freqüentemente mudado de posição;
4º, do Sol (365 dias);
5º, de Marte (2 anos);
6º, de Júpiter (12 anos);
7º, de Saturno (30 anos).
Superior a estes sete céus estava o 8º – o das estrelas fixas.
“Esta representação do universo, esta constituição do mundo físico (a etimologia
grega da palavra sistema quer dizer “constituição”) representava a natureza terrestre
e celeste, tal como parece à vista, e correspondia completamente ao testemunho dos
olhos. Facilmente se concebe que diferentes povos – em separado – tivessem
chegado a formar do mundo a mesma imagem geral e que a ciência astronômica –
baseada sobre o estudo de observação de muitos séculos – tivesse erigido este
conjunto em sistema absoluto, transmitindo-se, de geração para geração, duns
povos para outros povos. Deste modo foi comunicado da Ásia oriental – berço da
história humana – à China para leste; e da Caldéia ao Egito para sudoeste. Na
seqüência dos séculos, a Grécia inteligente e artística, tendo chegado a elevado grau
de esplendor, adotou do Egito os mesmos princípios, desenvolvendo-os e
completando-os com as próprias observações. Dessa nação – ilustrada pelos
monumentos gigantescos e pelas altas pirâmides – recebeu a Judéia também o
mesmo sistema astronômico, do qual Moisés e Jó nos guardaram fragmentos – do
mesmo modo que Hesíodo e Homero entre os gregos.
“O astrônomo cujos estudos mais contribuíram para estabelecer em sólida base o
sistema das aparências foi Hiparco (séc. I a.C.). As suas observações ainda hoje
prestam grande auxílio, o que não é para se admirar, quando se reflete que uma
observação bem feita serve à astronomia moderna fundada na realidade, da mesma
sorte que à astronomia antiga fundada sobre as aparências. A esse astrônomo se
deve o ter verificado que o Sol não está, em cada ano, sobre o mesmo ponto do céu
no momento do equinócio da primavera, mas que recua sucessivamente sob as
estrelas: as que se vêem ao Sul, por exemplo, em determinado instante, não se vêem
exatamente sobre o mesmo lugar no ano seguinte em igual instante; do mesmo
modo vemos também as do Norte deslocarem-se, de sorte que o céu estrelado
executa uma revolução completa calculada em 25.870 anos.
“Ao movimento da Terra é hoje atribuída esta grande revolução do céu –
chamada ‘precessão dos equinócios’ –, que se supunha ser efetuada pela própria
abóbada estrelada; e esse movimento secular é devido à atração do mar e do Sol
sobre a protuberância equatorial do nosso globo. Deste modo as observações, sobre
as quais se tinha estabelecido o sistema da imobilidade da Terra e do movimento
dos céus, servem hoje para a teoria do movimento da Terra.
“Aristóteles (séc. IV a.C.) expusera e tentara demonstrar solidamente o sistema
das aparências. O ilustre preceptor de Alexandre consagrou a vida a escrever uma
enciclopédia dos conhecimentos humanos, na qual a astronomia ocupava o
primeiro lugar.
“Até o século XVI, a Europa – ou para melhor dizer, as corporações de ensino –,
reconhecendo em Aristóteles[ 10 ] o grande mestre, não quiseram admitir senão o
que estava escrito nas suas obras; e ele tinha sustentado:
1º Que a Terra se conservava imóvel no centro do Universo;
2º Que o movimento de todas as esferas celestes procedia de origem inesgotável,
2º Que o movimento de todas as esferas celestes procedia de origem inesgotável,
inerente à própria essência do céu mais alto, designado pelo nome de Primeiro
móbil;
3º Que, para além das estrelas fixas e do Primeiro móbil, estava a última e mais
vasta esfera, que encerrava todas as outras, chamada Empíreo;
4º Que o Universo tinha portanto um limite: era verdadeiramente fechado pela
última esfera imensa, além da qual não existia mais nada.
“Esta representação do Universo fez objeto de livro especial – o mais venerado
dos tratados de astronomia –, intitulado Almagesto (vocábulo que quer dizer “o
grande”) devido a Cláudio Ptolomeu. Este geógrafo-astrônomo coligiu toda a
astronomia antiga (completada pelos trabalhos de Hiparco) e depois da sua obra –
escrita no século II da nossa era – designou-se sob o seu próprio nome o antigo
sistema do mundo, sob a denominação de Sistema de Ptolomeu.
“Os sucessores de Ptolomeu tiveram, como artigo de fé, a crença – aliás tão
natural, aparentemente – da imobilidade da Terra no meio do universo. Tudo
estava classificado no seu lugar e regrado para toda a duração do mundo. Dois
elementos, a terra e a água, eram distinguidos cá em baixo: a terra, mais pesada,
formava a base; a água do oceano e dos rios flutuava à superfície. Um terceiro
elemento, mais leve do que os dois primeiros, envolvia o globo: era o ar ou a
atmosfera. Por cima do ar, um quarto elemento, o fogo ou éter, mais leve do que os
quatro, formava uma zona superior à atmosfera, e nele se acendiam os meteoros.
Por cima vinham ainda os círculos ou orbes celestes, as órbitas dos planetas – na
ordem já indicada. Para além desses sete círculos, estava colocada a esfera das
estrelas fixas, que formava o oitavo céu. O décimo era o Empíreo, habitação da
Divindade. Todo este edifício se supunha ser construído duma substância
transparente, comparável a gelo ou cristal de rocha. Alguns espíritos superiores
(Platão,[ 11 ] por exemplo) não admitiam a solidez dos céus; mas a maior parte dos
astrônomos declarava que era impossível conceber o maquinismo e o movimento
dos astros, se os céus não fossem formados duma substância dura, sólida e eterna.
Segundo conta Plutarco,[ 12 ] pensavam os físicos antigos que os aerólitos eram
pedaços destacados da abóbada celeste e que, subtraídos à força centrífuga, caíam
sobre a Terra em conseqüência do próprio peso.”
Pelo sistema exposto – considerando a Terra como centro do universo –, Tétis
explica a Vasco da Gama a estrutura do mundo (Canto X), apontando-lhe
primeiro o Empíreo (est. 79), o céu imóvel onde residem as almas dos bem-
aventurados. E do mesmo modo descreve o zodíaco com as suas doze constelações
figuradas por animais – que se imaginou serem as doze estâncias do Sol, cujo
caminho aparente sobre o céu estrelado é percorrido durante o chamado “ano
sideral” (isto é: 365 dias, 6 horas, 9 minutos e 9 segundos), voltando à posição
anterior, com referência às estrelas, no fim desse intervalo.
Deu-se o nome de zodíaco a uma faixa de 9 graus de largura, por cima e por baixo
desse caminho aparente, dividida em doze signos de 30 graus cada um. Estes signos
têm os mesmos nomes das constelações que ocupam essa faixa do céu, posto que
não muito exatamente.
Foi cerca de 14 séculos antes da nossa era que os gregos dividiram o céu em
constelações, cujos nomes latinos se contêm nos seguintes versos:
Sunt Aries, Taurus, Gemini, Cancer, Leo, Virgo,
Libraque, Scorpius, Arcitenens, Caper, Amphora, Pisces.
Estes nomes em português são: Áries, Touro, Gêmeos, Câncer, Leão, Virgem,
Libra, Escorpião, Sagitário, Capricórnio, Aquário e Peixes. O poeta não só
menciona as doze constelações do zodíaco, mas ainda outras muitas das mais
notáveis, enumerando os planetas pela ordem em que se julgavam dispostos no céu
estrelado – segundo o sistema de Ptolomeu, tendo-se referido também aos
chamados excêntricos e epiciclos[ 13 ] – inventados pelos astrônomos para explicar o
movimento das esferas. Estes excêntricos e epiciclos explica-os hoje [início do séc.
XX] a ciência deste modo:
“Os movimentos aparentes dos planetas que observamos são resultantes da
combinação da translação da Terra em volta do Sol com a translação dos planetas
em volta do mesmo astro.
“Tomemos Júpiter para exemplo: este planeta circula em volta do Sol a uma
distância cincovezes maior do que a distância da Terra ao Sol. A sua órbita envolve
portanto a nossa com um diâmetro cinco vezes maior, e leva doze anos esse mesmo
planeta a efetuar a sua translação.
“Durante os doze anos que Júpiter emprega em fazer a sua revolução em torno do
Sol, a Terra faz doze revoluções em torno do grande astro. Por conseqüência o
movimento de Júpiter – visto daqui – não é um simples círculo seguido lentamente
durante doze anos, mas uma combinação deste movimento com o da Terra. Dê-se
o leitor ao incômodo de traçar a seguinte figura: um ponto representando o Sol –
um pequeno círculo em volta a dois centímetros de distância representando a
órbita da Terra – e um segundo círculo – a dez centímetros – representando a
órbita de Júpiter; facilmente reconhecerá que, girando em volta do Sol, produzimos
um deslocamento aparente de Júpiter sobre a esfera estrelada em que ele se projeta.
Este deslocamento dá-se, à metade do ano, em um sentido, e, à metade do ano, em
outro. É como se a órbita de Júpiter fosse composta de doze anéis. Para dar conta
do movimento aparente de Júpiter, os astrônomos antigos não tinham podido
conservar por muito tempo o simples círculo: viam-se obrigados a fazer rodar sobre
ele – no decurso de doze anos – o centro dum outro pequeno círculo, em cuja
circunferência supunham o planeta encaixilhado. Deste modo, Júpiter não seguia
diretamente o seu grande círculo: percorria o círculo pequeno que fazia doze giros
no mesmo plano, rodando ao longo do círculo primitivo em um período de doze
anos.
“Saturno em 30 anos faz o seu giro à volta do Sol. Para explicar as marchas e
contramarchas aparentes vistas da Terra, tinha-se semelhantemente ajuntado à sua
órbita um segundo círculo, cujo centro seguia esta órbita e cuja circunferência,
levando encrostado o planeta, girava 30 vezes sobre si própria durante a revolução
inteira.
“Estes segundos círculos receberam o nome de epiciclos.
“O de Marte era menor que os precedentes; os de Vênus e Mercúrio eram muito
maiores.
“Eis uma primeira complicação do sistema circular primitivo. Mas não era só esta.
“Os planetas, visto que geralmente seguem elipses, estão em uns pontos do seu
percurso mais perto do Sol do que em outros pontos. E, visto que todos os planetas
– compreendendo a Terra – se movem em períodos diferentes à volta do Sol, o
resultado é cada planeta estar ora mais próximo, ora mais afastado da própria Terra.
Em certos pontos da sua órbita, Marte, por exemplo, chega a estar afastado de nós
mais quatro vezes do que noutros pontos.
“Para dar conta destas variações de distância, os astrônomos modificaram os
círculos primitivos. Como se pretendia conservar a figura circular, supôs-se que os
círculos percorridos por cada planeta tinham por centro não precisamente o
próprio globo terrestre, mas um ponto situado fora da Terra. Por este estratagema,
Marte, por exemplo, descrevendo uma circunferência à roda dum centro situado ao
lado da Terra, encontrava-se ora mais afastado, ora mais próximo dela. O centro
real de cada órbita celeste não coincidia com o centro da Terra, senão por meio do
subterfúgio do segundo centro móvel em torno do qual se efetuava essa órbita.
“Esta nova acomodação mecânica foi designada com o nome de ‘sistema dos
“Esta nova acomodação mecânica foi designada com o nome de ‘sistema dos
excêntricos’.
“Estes epiciclos e estes excêntricos foram sucessivamente inventados, modificados e
multiplicados conforme as necessidades do caso. À medida que as observações se
tornavam mais exatas, era necessário acrescentar novos círculos para representar
mais precisamente os movimentos celestes. Cada século acrescentava novo círculo e
nova engrenagem ao mecanismo do universo, de modo que, no tempo de
Copérnico – isto é, no começo do século XVI –, havia já deles número imenso,
inextricáveis, emaranhados uns nos outros.
“Os astrônomos e os sábios oficiais da época dificilmente permitiam que se
tocasse nesse edifício secular. Segundo Aristóteles e a sua escola, havia uma linha de
demarcação natural que da Terra separava o Céu. A Terra, cercada pelos seus
quatro elementos, era a sede das mudanças; o Céu, a partir do círculo da Lua, era
incorruptível e imutável. Os movimentos celestes, guiados por leis que lhes eram
próprias, não tinham relação alguma com as que governam a Terra. Traçada, deste
modo, uma linha de demarcação entre a mecânica celeste e a mecânica terrestre, a
filosofia colocava uma delas fora do campo das indagações experimentais e punha
obstáculos a qualquer progresso da outra, estabelecendo princípios fundados sobre
observações incompletas. Continuou por isso a astronomia, durante séculos, a ser
uma ciência pura de tradições, em que a teoria não entrava senão no intento de
conciliar as desigualdades dos movimentos celestes e uma pretendida lei de
revolução circular e uniforme, que se considerava compatível com a perfeição do
mecanismo celeste.
“Daí procedia o acervo (informe e contraditório) de movimentos hipotéticos do
Sol, da Lua e dos planetas em círculos, que eram sucessivamente centros doutros
círculos, até que finalmente – tornando-se mais exata a observação e
multiplicando-se constantemente os epiciclos – tornou-se palpável o absurdo de
sistema tão confuso.”
Expostas como ficam, sumariamente, as velhas teorias que serviram de base à
descrição do universo feita pelo poeta no Canto X, é conveniente que também aqui
se dê breve notícia das teorias modernas para as quais concorreu Copérnico,[ 14 ]
transformando o sistema de Ptolomeu, mudando a posição da Terra e
demonstrando que o centro do universo é o Sol.
“Copérnico ainda manteve a esfericidade das órbitas celestes, a confusa
engrenagem dos epiciclos e excêntricos e outras teorias que os sucessores do grande
astrônomo foram modificando – ao ponto de engrandecerem e idealizarem o
mundo pela maneira hoje conhecida. Quando se lêem os filósofos gregos – cujos
conhecimentos científicos se podem apreciar, ainda que por maneira muito restrita
–, causam notável impressão a sutileza que desenvolviam nas discussões, o êxito
prodigioso dos raciocínios abstratos, a admirável sagacidade nos assuntos
puramente intelectuais – todas estas qualidades formando contraste com a
negligência e os poucos cuidados que prestavam ao estudo da natureza externa. Em
certos casos, tiravam conclusões ilógicas de princípios de generalização fundados
sobre fatos pouco numerosos e mal observados. Alguns desses filósofos
prevaleciam-se com inconcebível leveza de princípios abstratos que não se referiam
à natureza e dos quais, todavia, deduziam, como supostos axiomas matemáticos,
todos os fenômenos e leis que os regem. Estavam, por exemplo, convencidos de que
o círculo devia ser a figura mais perfeita, e daí concluíam naturalmente que as
revoluções dos corpos celestes deviam fazer-se em círculos exatos e movimentos
uniformes; se a observação estabelecia o contrário, não levantavam dúvidas sobre o
princípio ou fundamento que haviam estabelecido. Longe disso: não cuidavam
senão de salvar a sua perfeição ideal; e, para o conseguir, não havia espécie de
combinações de movimentos circulares que eles não imaginassem.
“Nesta guerra de palavras, era desprezado o estudo da natureza, e considerava-se
indigna dum sábio a paciente e modesta investigação dos fatos. O radical erro da
filosofia grega foi imaginar que era aplicável à física o método que tão bons
resultados dera nas matemáticas e que, partindo de noções simples quase evidentes,
ou de axiomas, se podia resolver tudo. Por isso todos esses sábios que cultivavam a
física andavam sempre ocupados em raciocinar ou desarrazoar sobre pretendidos
princípios. Um considera o fogo como sendo a matéria essencial e a origem do
Universo; outro adota o ar; um terceiro encontra a solução e a explicação de todos
os fenômenos no “infinito”; um quarto vê-os no “ser” e “não ser”. Enfim, um
filósofo, que havia de estabelecer opinião durante dois mil anos, decidia que a
matéria, a forma e a privação deviam ser consideradas princípios de todas as causas.“Esta maneira de perder o tempo em argumentos metafísicos, sob o pretexto de
fazer ciência, durou nas escolas desde a Antiguidade até Copérnico, e retardou por
muito tempo a supremacia das ciências exatas. A astronomia de observação
progredia entre os árabes e na escola de Alexandria, mas o seu estudo tornava-se
estéril, e sem a teoria era quase impossível atingir o alvo da ciência, o qual consiste
em tornar conhecida a natureza. Reconhecemos contudo, para não sermos
acusados de ingratidão com a Antiguidade e a Idade Média, que, se não houvesse os
trabalhos antigos, não existiria a ciência moderna. Chega-se a grande, depois de se
ser pequeno. Graças às observações e explicações antigas é que se pôde verificar a
insuficiência das hipóteses e imaginar outras melhores.
“Foi nos séculos XV e XVI que se estabeleceu o método experimental, aparecendo
sábios independentes, que se podem chamar precursores de Copérnico: George
Peurbach (1423–1461), Jean Muller (1436–1476), Fracastori (1483–1553).
“Enquanto os astrônomos faziam os últimos esforços para explicar do melhor
modo possível os movimentos celestes – sem se afastarem da velha hipótese da
imobilidade da Terra –, o célebre Colombo descobria o Novo Mundo; e o globo
terrestre desvendava-se por todos os lados às vistas da ciência aventurosa; o espírito
humano, conhecendo, daí por diante, diretamente e por experiência, a esfericidade
do globo e o seu isolamento no espaço, adquiria o elemento mais essencial para
conceber o seu movimento.
“No ano imediato à morte do grande navegador, estava Copérnico tratando de
destruir as idéias antigas sobre astronomia; e em 1543 publicava em Nuremberg a
obra imortal, que mudou a face da astronomia, e cujo título era: Nicolai Copernici
Torinensis, de Revolutionibus orbium celestium, libri VI.
“O sistema das aparências, a opinião da imobilidade do globo terrestre e do
movimento do Céu, era ainda no século XVI – e ainda hoje é – a idéia simples e
vaga que reina no espírito do povo ignorante.
“Refletindo nas condições mecânicas do sistema das aparências, Copérnico
pensou que esse sistema, tão complicado e tão grosseiro, não podia ser divino nem
natural, porque tudo na natureza é extremamente simples; e, depois de 30 anos de
estudos, convenceu-se de que, atribuído à Terra duplo movimento – um, de
rotação sobre si própria em 24 horas, e outro, de translação à volta do sol em 365
dias e um quarto –, se explicavam todos os movimentos celestes, para os quais se
tinham inventado esses numerosos círculos de cristal.
“O sistema existente parecia estar de harmonia com a observação, mas era
aparente essa harmonia. Para que o universo fosse constituído de tal maneira,
seriam indispensáveis condições mecânicas que não existem: seria preciso, por
exemplo, que a Terra fosse mais pesada que o Sol; que ela fosse o astro mais
importante do sistema solar; que as estrelas não estivessem separadas de nós por tão
prodigiosas distâncias. Reconheceu-se, pois, que os planetas não circulam em volta
do globo terrestre, mas sim em companhia da própria Terra em volta do Sol
(relativamente imóvel) – seguindo, no seu movimento, elipses e não círculos.”
Eis alguns dos pontos fundamentais do método de Copérnico e das suas
demonstrações – em que todavia aparecem restos das antigas teorias:
“A Terra é esférica,[ 15 ] porque a esfera é de todas as figuras a mais perfeita, e a
que sob a mesma superfície circunscreve maior espaço em todos os sentidos.
“O Sol e a Lua são de forma esférica. É a forma que tomam naturalmente os
corpos, como se vê nas gotas de água. Todos os corpos celestes têm forma esférica.
Demonstra-se a esfericidade da Terra: um objeto visível ao longe na ponta do
mastro dum navio que, visto da praia, parece descer à medida que o navio se afasta:
prova-se também pelos eclipses da Lua, na qual se vê a sombra redonda da Terra.
“Qual é a posição da Terra no Universo? Quase todos os autores estão de acordo
em supor que a Terra é imóvel; parece-lhes até ridícula a opinião contrária.
Examine-se atentamente o caso. Qualquer deslocação observada procede, ou do
movimento do objeto observado, ou do observador, ou do movimento simultâneo
de ambos; porque, se os dois movimentos forem iguais, não haverá meio de os
perceber. Ora, é da parte de cima da Terra que observamos o Céu. Se a Terra se
move, parecer-nos-á que o Céu se move em sentido contrário, transportado de
Oriente para Ocidente em cerca de 24 horas. Deixai o Céu em repouso e dai
movimento à Terra, mas do Ocidente para Oriente: tereis as mesmas aparências
exatamente.
“Sendo imensa a esfera celeste, como se pode conceber que ela gire em 24 horas?
Não é mais natural atribuir este movimento à Terra, e só à Terra? Quando a Terra
gira, tudo que está no Céu nos parece girar; mas as nuvens e tudo que está no ar
participam do movimento dela.
“Se todos os astros girassem em volta da Terra, o que sucederia?
“O astro mais próximo de nós (a Lua) está a 96.000 léguas da Terra. Ser-lhe-ia,
portanto, necessário percorrer em 24 horas uma circunferência de 192.000 léguas
de diâmetro, isto é, 603.000 léguas de extensão; teria, por isso, de correr com uma
velocidade de 25.125 léguas por hora, ou 400 léguas por minuto, ou 7 léguas por
segundo… Mas isto é o de menos.
“O Sol – a 37 milhões de léguas de nós – teria de percorrer no mesmo intervalo
de 24 horas uma circunferência de 232 milhões de léguas em volta da Terra; ser-
lhe-ia preciso voar com uma velocidade de 9.680.000 léguas por hora e 161.300
léguas por minuto, ou 2.690 léguas por segundo!
“Os planetas Marte, Júpiter e Saturno, mais longe da Terra do que o Sol – que
participam igualmente do movimento diurno –, seriam levados no espaço com uma
rapidez ainda mais inconcebível. O último planeta conhecido dos antigos –
Saturno –, nove vezes e meia mais afastado de nós do que o Sol, seria obrigado, para
em 24 horas dar a volta em roda da Terra, a descrever uma circunferência de dois
bilhões de léguas de extensão e a queimar o espaço com uma rapidez de mais de 20
mil léguas por segundo.
“E as estrelas? A imaginação assusta-se com a rapidez que seria necessário supor a
esse movimento se elas dessem a volta da Terra em 24 horas. Saturno está distante
de nós 218.431 semidiâmetros do globo terrestre. Ora, as estrelas estão para lá do
orbe de Saturno. Sabe-se que a estrela mais próxima de nós está à distância de
275.000 vezes a distância da Terra ao Sol, isto é, dez trilhões de léguas. Essa estrela
– o alfa de Centauro – deveria percorrer, no intervalo de 24 horas, uma
circunferência de 63 trilhões de léguas em extensão, e a sua velocidade seria de
2.666 bilhões de léguas por hora, 44.400 milhões por minuto – em suma, 740
milhões de léguas por segundo.
“Havendo vários centros, não é crível que o centro do mundo seja o da Terra e da
gravidade terrestre. A gravidade não é mais do que a tendência natural dada pelo
Criador a todas as partes do mundo, e que as leva a reunirem-se e a formarem
globos. Esta força deu ao Sol, à Lua e aos outros planetas a forma esférica, o que não
obsta a que executem revoluções diversas. Se a Terra, portanto, tem movimento em
volta dum centro, esse movimento será semelhante àquele que percebemos nos
outros corpos – teremos um circuito anual. O movimento do Sol será substituído
pelo movimento da Terra. Tornado imóvel o Sol, realizar-se-ão do mesmo modo o
nascimento e o ocaso dos astros; as estações e as retrogradações serão resultado do
movimento da Terra; o Sol será o centro do mundo. É a ordem natural de tudo que
sucede, é o que ensina a harmonia do mundo – e que é forçoso admitir.
“A esfera superior a todas é a das estrelas fixas – esfera imóvel que abraça o
conjunto do Universo. Seguem-se entre os planetas errantes primeiramente
Saturno, que precisa de 30 anos para fazer a sua revolução; depois Júpiter, que faz o
caminho em doze anos; segue-se Marte, que precisa de dois anos. Na quarta linha
encontram-se a Terra e a Lua, que – no espaço de um ano – chegam ao seu ponto
de partida. O quinto lugar é ocupado por Vênus,que precisa de nove meses para o
seu caminho; Mercúrio ocupa o sexto lugar, e precisa apenas de 24 dias para
descrever a sua órbita. No meio de todos, reside o Sol. Qual é o homem que, em
templo tão majestoso, poderia escolher outro e melhor lugar para o brilhante astro
que ilumina todos os planetas e os seus satélites? Não é sem razão que o Sol se
chama a luz do mundo, a alma e o pensamento do universo. Colocando-o no
centro dos planetas, como sobre um trono real, entregamos-lhe o governo da
grande família dos corpos celestes.”
Em seguida se encontra a figura deste sistema, copiada de um fac-símile da mão de
Copérnico:
Breve notícia dos sábios astrônomos que sucederam a Copérnico, confirmando
constantemente o seu sistema e concorrendo para os progressos da astronomia
moderna, constitui completa explicação dos motivos que induziram Camões a
explicar a contextura do Universo segundo o sistema de Ptolomeu. Se doutro modo
procedesse, a censura inquisitorial não permitiria a publicação do poema, e levaria
talvez a severidade ao ponto de encarcerar o poeta.
A teoria de Copérnico – a do movimento da Terra em volta do Sol, sendo este
astro o centro do Universo – continuou a ser tida por absurda, ridícula e
inadmissível. Dois anos depois da morte do venerável renovador do mundo,
celebrava-se o Concílio ecumênico de Trento (1545), que estabeleceu como
fundamental artigo de fé a imobilidade da Terra no centro do mundo. Tycho
Brahe (1546–1601), notável astrônomo, tinha exaltada admiração pelo talento de
Copérnico, mas deixou-se arrastar naturalmente por escrúpulos religiosos, não
admitindo o novo sistema senão corrigido.
Kepler (alemão) e Galileu (italiano), professor de astronomia em Pisa, dois sábios
eminentes da sua época (fins do século XVI e princípios do século XVII),
defendendo a doutrina de Copérnico, foram dela os primeiros propagandistas.
Galileu, escrevendo a Kepler, dizia-lhe: “Copérnico era digno duma glória imortal,
e foi tido por insensato!” Kepler respondia-lhe que lhe comunicasse os seus escritos,
pois talvez pudesse publicá-los na Alemanha, visto a Itália pôr obstáculo às suas
publicações.
Galileu (1610), dirigindo para a Lua as lunetas astronômicas pouco antes
inventadas, descobriu que o vizinho astro era uma terra como a nossa, coberta de
montanhas e vales; dirigindo-as para o Sol, verificou a existência de manchas na sua
superfície e a rotação dele de Oeste para Leste. Esta rotação do astro do dia
apresentava um testemunho de alta presunção em favor de movimento de
translação dos planetas e da Terra em volta do Sol no mesmo sentido. Voltando a
luneta para Júpiter, o ilustre astrônomo descobriu que esse imenso planeta é
acompanhado de quatro luas ou satélites, que o seguem no seu curso do mesmo
modo que a Lua acompanha a Terra: este pequeno sistema representava em
miniatura o sistema planetário todo inteiro. Assim se acumulavam, como por
encanto, os testemunhos favoráveis a Copérnico. O mais palpável e mais
significativo de todos foi ver-se que se realizava no campo do óculo a profecia que
60 anos antes tinha feito Copérnico perante os seus detratores. Diziam-lhe estes:
— Se o Sol estivesse realmente no centro do sistema planetário, e se Mercúrio e
Vênus girassem em torno dele numa órbita interior à da Terra, esses dois planetas
deviam ter fases; Vênus, quando estivesse do lado de cá do Sol, devia estar em
crescente como se fosse a Lua; e, quando formasse ângulo reto com o Sol e a Terra,
devia apresentar-se com o aspecto de quarto crescente. Ora, isso é que nunca se viu.
— Essa é a realidade, respondeu Copérnico, e é o que os homens hão de ver um
dia, se acharem meio de aperfeiçoar a vista.
Por isso Galileu[ 16 ] exclamou, entusiasmado, quando com a lente descobriu as
fases de Vênus:
— Ó, Nicolau Copérnico! Que felicidade seria a tua, se tivesses podido gozar
estas novas observações, que tão plenamente confirmam as tuas idéias.
Até então, a nova doutrina não tinha sido objeto de perseguição direta. Mas
quando tomou corpo, e pareceu impor-se para substituir os princípios ensinados
desde séculos, ligaram-se os sábios oficiais de comum acordo – alguns de boa-fé,
outros por interesse ou ciúme – para impedir que triunfasse a novidade. Os
teólogos decidiram unanimemente que era contrária às Escrituras. A Congregação
do Index, estabelecida para manter a fé católica, foi incumbida pelo Papa de estudar
a questão sob o ponto de vista dogmático. Em 1616, publicou essa Congregação
um decreto declarando que a nova teoria do movimento da Terra era contrária às
Escrituras, e que seria considerado herege quem a sustentasse, proibindo que ela
fosse ensinada em qualquer país cristão, e interditando a obra de Copérnico até ser
corrigida.
Quatro anos depois, a mesma Congregação indicou as alterações que se deviam
fazer na obra de Copérnico: as mais importantes eram intercalar a palavra hipótese
em todos os lugares em que o autor expunha a teoria do movimento da Terra e
apagar a palavra astro em todos os lugares onde estivesse aplicada à Terra.
Todos sabem que Galileu foi condenado à prisão perpétua por não ter obedecido
às proibições da autoridade eclesiástica e que morreu em 1642, depois de ter
confirmado com provas indestrutíveis a teoria de Copérnico.
As sentenças eclesiásticas contra a crença do movimento da Terra, no século
XVII, foram revogadas pelo Papa Bento XI,[ 17 ] e hoje a Igreja Católica admite o
verdadeiro sistema do mundo.
Kepler (1571–1630) declarou-se, ao mesmo tempo que Galileu, em favor de
Copérnico, e na Alemanha publicou – com mais liberdade do que o seu êmulo em
Itália – trabalhos profundos que concorreram para radicar, em bases inabaláveis, a
teoria discutida do movimento da Terra e imobilidade relativa do Sol no centro das
órbitas planetárias. Dos trabalhos de Kepler, resultou saber-se que os astros, no seu
curso, não descrevem círculos mas elipses; e foi ele que estabeleceu, além de outras,
duas leis imortais, que completaram a obra de Copérnico: 1) que os planetas se
movem seguindo elipses, das quais o Sol ocupa um dos focos; 2) que os quadrados
dos tempos das revoluções planetárias são proporcionais aos cubos dos eixos
maiores das órbitas (os cubos das distâncias) – leis cuja aplicação se resolve por
meio de problemas de geometria.
Estas descobertas expurgaram do sistema de Copérnico os círculos excêntricos e os
Estas descobertas expurgaram do sistema de Copérnico os círculos excêntricos e os
epiciclos, que o embaraçavam ainda, e que tinham ficado como herança orgânica do
antigo sistema.
Copérnico foi o fundador, o pai espiritual da astronomia moderna; e esta foi
sendo aperfeiçoada por Tycho Brahe (1546–1601), Francis Bacon (1561–1626),
Newton (1642–1727), Kepler (1571–1630), Galileu (1564–1642), Herschel
(1732–1822), Halley (1656–1742), e muitos outros de todas as nações.
“A obra capital de Newton foi demonstrar que a causa da suspensão da Terra e de
todos os astros, no espaço, é uma força determinada – calculável –, cuja intensidade
diminui na razão inversa do quadrado da distância; e que em virtude da qual os
corpos celestes se atraem reciprocamente; e que se movem e se sustentam no
equilíbrio duma rede invisível. A atração universal, a gravitação – demonstrou-o
esse sábio – rege os mais ínfimos movimentos que se operam tanto à superfície do
solo, como nas mais longínquas regiões acessíveis ao telescópio, sustentando os
nossos passos e as nossas habitações, regendo a gota de chuva, o grão de pó
levantado pelo vento, dirigindo a Lua em volta da Terra, esta em volta do Sol, e
organizando os movimentos das estrelas.”
Em notas ao Canto X, acrescentam-se mais algumas breves noções de astronomia
popular, para auxiliar a interpretação das estrofes 77 a 90, onde se descreve o
sistema cosmográfico consagrado no tempo do poeta.
V. GEOGRAFIA
Familiarizado com todos os geógrafos antigos, conhecedor dos trabalhos feitos na
Idade Média e das obras importantes dos sábios geógrafos do seu tempo,
aproveitando todas as notícias que pôde colher durante as suas longasviagens,
Camões achava-se em condições excelentes para, em seu imortal poema, dar o
maior desenvolvimento, compatível com a índole da obra, à descrição da Terra:
descrição de nenhum modo fria e monótona, e porventura imperfeita, como a dum
tratado;[ 18 ] mas descrição geográfica amena, cheia de vida e sempre duma notável
exatidão.
Por todo o poema, estão dispersas as notícias geográficas, mas é nos cantos III e X
que elas aparecem em maior abundância, e repletas de reminiscências históricas e
alusões mitológicas, mostrando-nos todas as regiões do globo conhecidas no tempo
do poeta, umas vezes com os nomes dessa época, e outras vezes com os nomes
clássicos usados pelos geógrafos antigos – Ptolomeu, Plínio e outros.
VI. FLORA DOS LUSÍADAS
“Os Lusíadas são como que a síntese da cultura acumulada em Portugal durante
um século. Nessa epopéia, Luís de Camões inclui não só os feitos heróicos dos seus
antepassados, mas as noções científicas que se haviam obtido em cem anos de
descobrimentos. E com razão, porque faziam parte da glória da pátria.
“A ciência do seu tempo, o poeta possuía-a toda. Não quero dizer que a
conhecesse nos pequenos traços, que resolvesse um problema geométrico com a
perícia de Pedro Nunes, ou classificasse uma droga com o seguro critério de Garcia
da Orta. Mas noções gerais, extensas e exatas, possuía-as, e incluiu-as todas no seu
livro. Indicou-as apenas, discretamente, com sobriedade, sem luxo de pesadas
descrições, ou alarde de erudição, porque era primeiro que tudo poeta, e teve o mais
seguro e mais fino sentimento literário que jamais houve. Note-se, por exemplo,
como ele caracterizou a vegetação, como na procedência das especiarias orientais os
seus traços são leves, fugitivos, mas tão rigorosamente exatos, que a moderna
geografia botânica nada tem a repreender-lhe.”
Estes períodos formam uma das brilhantíssimas páginas dum livro do sábio
acadêmico e professor Conde de Ficalho,[ 19 ] e do qual foram sumariamente
extraídas as notas, que, sobre o assunto, adiante se encontrarem, esperando nós, por
esta declaração, ser relevados de repetir constantes citações quando apontamos os
nomes botânicos, dos quais o livro citado tem índice alfabético, que facilita a
consulta para estudo mais minucioso.
VII. ESTILO
Estilo, em literatura, é a maneira especial de o escritor ou orador exprimir os
pensamentos, escrevendo-os ou falando. Diz-se estilo simples quando a expressão é
correta, clara, sem ornatos; médio, quando é apurada, elegante; sublime, quando
animada e ornamentada por palavras e frases próprias para embelezarem
pensamentos nobres.
Na linguagem vulgar, comum, correntia – mas correta – há uma construção
natural, em que as palavras são colocadas em ordem simples, à proporção que as
idéias se elaboram no espírito, empregando-se os vocábulos comuns necessários à
elaboração delas, sem superabundância, nem omissão e em perfeita concordância:
essa é a construção conforme as regras de gramática. Mas, em estilo sublime ou
médio – principalmente na poesia –, a vivacidade da imaginação, as faculdades
afetivas, o desejo de ser mais conciso, ou mais claro, ou mais harmonioso, ou mais
elegante, ou mais enérgico, permitem, ao orador ou ao escritor, a transgressão
dessas regras; e em tal caso a construção toma o nome de figurada, por se
empregarem figuras, as quais podem ser ou de palavras ou de pensamentos.
As figuras de palavras são:
I. Alterações fonéticas e morfológicas da forma usual dos vocábulos,
modificando-os materialmente, suprimindo, acrescentando, ou transformando
sons; empregando-se mais freqüentemente na escrita ou recitação de versos, e sendo
autorizadas pela necessidade da rima ou da metrificação, pelo exemplo de
linguagem popular, ou antiquada, ou apuro literário originado pela leitura de
clássicos;
II. Alterações de sintaxe, ou desvio da regular construção gramatical, por omissão,
aumento ou transposição de vocábulos;
III. Simples ornatos, em que as palavras se repetem, ou propositadamente, ou se
empregam a par; sons semelhantes de palavras com sentidos diversos;
IV. “Tropos”, em que, sem desvio das regras de gramática, empregam-se vocábulos
com sentido diverso do sentido habitual. As figuras de pensamentos referem-se à
forma da expressão das idéias, por meio de imagens, ficções, comparações,
interrogações, hipóteses, interrupções, personificações, exagerações, exclamações,
etc.
A. Figuras de palavras
I. Alterações fonéticas e morfológicas
a) Suprimindo sons:
1. No princípio de palavra – aférese: inda (= ainda), ora (= agora).
2. No meio de palavra – síncope: des’parcer (= desaparecer).
3. No fim de palavra – apócope: cárcer (= cárcere), ivos (= ide-vos).
b) Acrescentando sons:
l. No princípio de palavra – prótese: atambor (= tambor).
2. No meio de palavra – epêntese: Mavorte (= Marte), descender (= descer),
antiguo (= antigo).
3. No fim de palavra – paragoge: arquitéctor (= arquiteto), mártire (=
3. No fim de palavra – paragoge: arquitéctor (= arquiteto), mártire (=
mártir).
c) Transformando o som:
l. Duma letra com a substituta dela – antítese: sento (= sinto), antão (=
então), frauta (= flauta), apetitos (= apetites), terríbil (= terrível).
2. Duma letra com o som imediato – assimilação: vede los alemães, VII, 4 (=
vedes os), onde o verbo é indicativo e não imperativo, sendo los a forma do
artigo precedido de consoante (que se elimina).
d) Contraindo sons:
1. De duas vogais átonas em uma acentuada – crase: àquele (= a aquele).
2. De duas sílabas em uma só – sinérese: glória (= glóri-a).
e) Absorvendo sons:
l. Da última vogal duma palavra, quando a seguinte comece também por vogal
– sinalefa.
2. O som do m na palavra “com” – ectlipse: c’os filhos (= com os filhos).
f) Mudando os sons:
1. Dentro da mesma palavra com mudança de letras – metátese: contrairo (=
contrário), Rogeiro (= Rogério), capitaina (= capitania). (As formas com
ditongo são as mais antigas).
2. Dentro da mesma palavra sem mudança de letras, convertendo em tônica
uma sílaba átona – sístole: Samária (por Samaria); ou vice-versa, convertendo
em átona uma silaba tónica – diástole: idolátra (por idólatra).
g) Separando sons:
1. Dividindo o ditongo em duas sílabas – diérese.
2. Dividindo uma palavra interpondo-lhe outras – tmese.
II. Alterações sintáxicas
1. Elipse: Omissão duma ou mais palavras na frase, sem que esta deixe de ser
clara: “louvar os vossos” (súditos), I, 113.
2. Zeugma: Supressão de palavra que se subentende por estar expressa em
proposição anterior: “e (vede) aquele”, I, 25.
3. Enálage: Substituição dum modo verbal por outro que não é admitido pela
construção ordinária: “bramando duro” (duramente), I, 887; “pedia que lhe dê
(desse)”, I, 636; “quando subindo ireis (quando subirdes)”; “olhos da real
benignidade” (de rei benigno)”, I, 95.
4. Silepse: Concordância das palavras segundo o sentido e não segundo as
regras gramaticais: “alcançaram” (o sujeito deste verbo, ostensivamente, é
“gente”, mas pelo sentido é “guerreiros lusitanos”), I, 262; “cuja gente eram”,
1017.
5. Pleonasmo: Emprego de palavras desnecessárias, mas que dão mais energia à
expressão: “ondas encurvadas”, I, 923.
6. Hipérbato: Transposição ou inversão da ordem natural das palavras: “as
armas, que…, espalharei” (espalharei as armas que…), I, 12 e 28; “igual canto aos
feitos”, I, 55.
7. Anástrofe: Inversão da ordem natural de duas palavras correlativas: “no gesto
se converteu de um mouro”, I, 776.
8. Sínquese: Hipérbato exagerado, tornando a frase obscura: “com quem Amor
brincava e não se via”, II, 364.
9. Parêntese: Frase inserida ou intercalada num período, e formando sentido
separado: “alto poder…”, I, 214.
III. Principais figuras de ornato
a) Repetição da mesma palavra ou de palavra de som semelhante – no começo,
ou no meio, ou no fim de cada frase; tomam os nomes de anáfora, diácope,
epanáfora, epânodos, epístrofe, etc.
b) de repetição da mesma idéia por palavras diferentes, mas sinônimas; tomam o
nome de sinonímia.
IV. Tropos
São as figuras em que se empregam palavras com sentido diversodo sentido
habitual – figuras que têm os seguintes nomes:
a) Metáfora: (substituição por semelhança); há duas espécies:
1. Cataclese: substituição por falta de vocábulo de significação literal própria:
as costas da mão; o peito do pé; “a furiosa artilharia”, I, 892.
2. Alegoria: substituição de palavras, que representam uma idéia, por palavra
que representa idéia semelhante: o mar “irado” (tempestuoso), I, 187; “Tejo
chora”, I, 146; “gado de Proteu” (focas), I, 198; “águas cortadas” (navegadas), I,
188; “argonautas” (navegadores), I, 186; “comprar-vos para genro” (dotar-vos),
I, 168; “ninho paterno” (pátria), I, 104; “O sol vê” (alumia), I, 82.
b) Ironia: em que a frase exprime idéia contrária ao uso habitual dessa palavra.
Há cinco espécies de ironia:
1. Sarcasmo, ironia acerba, insultante.
2. Asteísmo, expressão graciosa, levemente irônica: IX, 35, 597.
3. Antífrase, palavra com sentido inteiramente oposto ao verdadeiro.
4. Eufemismo, em que, para se atenuarem idéias tristes, odiosas,
desagradáveis, ou ofensivas do pudor, empregam-se palavras que não
correspondem a essas idéias: II, 37.
5. Parêmia, expressão de censura por meio da citação dum provérbio.
c) Sinédoque: Em que se emprega o todo pela parte, o singular pelo plural, a
matéria pelo artefato, o gênero pela espécie, o abstrato pelo concreto, ou vice-
versa: “o visível e o invisível” (a matéria e o espírito), I, 652; “o templo da
eternidade” (a morada do Deus Supremo), I, 178; “o Mouro” (o imperador de
Marrocos), I, 161; “acende” (entusiasma), I, 54; “ismaelita” (os mouros), I, 86;
“hemisfério” (a Terra), I, 8, 65.
d) Metonímia: Em que se emprega uma palavra em vez doutra que tem
conexão. Há duas espécies:
1. Antonomásia: Em que se emprega um epíteto patronímico em vez do
nome do indivíduo; ou, em vez do nome do indivíduo, a sua qualidade
característica; ou o nome da pátria dele: “a mãe hebréia” (Amina, a mãe de
Maomé), I, 538; “os que bebem água de Parnaso” (os poetas), 1, 234.
2. Metalepse, em que se emprega o antecedente em vez do conseqüente; ou o
inventor pelo invento; ou o escritor pelas suas obras; ou o possuidor pela coisa
possuída; ou o continente pelo conteúdo; ou o sinal pela coisa significada; e
vice-versa: “Ocidente” (Europa), 1, 73; “armas” (exércitos), I, 11.
B. Principais figuras de pensamentos
1. Imagem: Confronto duma idéia com algum objeto material; “ramo duma
árvore” (descendente de uma família), I, 72; (o confronto da luta entre o
homem e o touro, vencendo o primeiro, com a luta entre portugueses e
mouros), I, 88.
2. Perífrase: Frase que em muitas palavras diz o que se poderia dizer em uma só:
“licor que enche de alegria” (o vinho), I, 496; “o claro descendente de Abraão”
(Maomé), I, 536.
3. Interrogação: pergunta feita, não para se obter resposta, mas para afirmar e
intimar o que se diz. Veja III, 130.
4. Subjeção: pergunta a que logo se lhe junta a resposta. Veja I, 75 e 76.
5. Exclamação: frase para exprimir surpresa, admiração, dor, alegria, etc. Veja 1,
71.
6. Apóstrofe: interrupção do que se está dizendo ou contando, dirigindo-se o
orador ou o poeta a coisas ou pessoas reais ou fictícias. Veja invocação às
Tágides, I, 4 e 5.
7. Prosopopéia: expressão em que se atribuem movimento, voz, sentidos, a
coisas inanimadas, e em que se finge que falam pessoas ausentes ou já mortas.
Veja-se, entre outras, a grande prosopopéia do gigante Adamastor. V, 37 e sgs.
8. Hipérbole: exageração a respeito de qualquer verdade, e que se emprega para
produzir maior impressão. Veja-se I, 5 e 10.
9. Reticência: omissão propositada do que deveria ou poderia dizer-se: “que
pois eu fui…”, II, 412.
10. Litotes: expressão que diz pouco para dar a entender muito. “Somos os
portugueses do Ocidente”, I, 507.
11. Epifonema: exclamação sentenciosa com que termina uma narrativa, uma
discussão, um trecho poético. Veja a última estância do Canto I.
As modificações materiais dos vocábulos por meio de aditamento, supressão ou
troca de letras (elisão, síncope, etc.) têm o nome genérico de metaplasmos, e
procedem do uso popular, ou de evolução da língua ou de reminiscências eruditas.
Os poetas empregam freqüentemente esses metaplasmos de propósito por
conveniência da rima ou da metrificação. A mesma razão os induz a transgredirem
as regras de sintaxe, empregando frases em que a construção gramatical muda
abruptamente, e que se denominam anacolúticas. Estas e os metaplasmos são
geralmente chamados licenças poéticas, que se justificam na tese de Boileau: un beau
désordre est un effet d’ art (a desordem, tendo beleza, é de efeito artístico).
Acerca do estilo dos Lusíadas, tenta-nos o deixar aqui traduzido um trecho do seu
erudito comentador, Manuel de Faria e Sousa, aludindo à perfeição com que o
poeta se transforma nas personagens que introduz no poema, falando conforme a
qualidade de cada uma delas e conforme o assunto.
“Veja-se a superioridade com que supõe as ações e palavras de Júpiter no Concílio
(Canto I), pois, decerto, se essa divindade existisse e houvesse de falar em língua
humana, não se expressaria de modo diverso, como se disse de Platão, e veja-se a
cólera com que descreve Marte (I a II), a ternura e melindre com que pinta Vênus,
queixosa perante Júpiter, pedindo favor para os navegantes; e o ardor, bravura e
coragem nas ações militares de tantos heróis (III, IV e VIII); e depois a beleza e a
inocência de D. Inês de Castro exposta à tirania dos cavaleiros que a fizeram matar,
e a crueldade do rei que consentiu à morte dela (III); e as despedidas na praia de
Belém (VI), sendo estes dois episódios escritos por tal forma que só desumanos
deixarão de enternecer-se, e mesmo de chorar ao lê-los, de tristeza e dó. Quem diria
que o espírito que descreveu o colérico D. Nuno Álvares e a batalha que dirigiu
(IV) e o combate dos Doze de Inglaterra (VI), e ao mesmo tempo a fúria daquela
tempestade (VI), se podia transformar nas ternuras que encerra todo o Canto IX, e
principalmente do amoroso Leonardo, dizendo à sua ninfa os mais altos e suaves
pensamentos que nenhum escritor pusera na boca de pessoa amante?
“Ninguém o diria, se não visse. Enfim é raro! E logo, tornando a transformar-se,
para descrever casos de guerra, pinta, nas primeiras estâncias do canto X, as
façanhas dos heróis portugueses, na Índia, de maneira que as armas e o estrondo
estão soando aos ouvidos; e logo, numa parte parece ver-se o mar a ferver, noutra
parte nuvens de pó e de fumo, noutra voam fúrias, e noutra corre o sangue. Deixo
outras imagens, pois fora necessário escrever demasiado para todas descrever. E
certo é que Luís de Camões foi o Proteu dos poetas, ou antes o Júpiter,
transformando-se em quantas figuras quis e com tanta propriedade que, ao passar
dumas para outras, não se lhe encontram vestígios da que havia tomado antes.”
Visto que citamos Manuel de Faria, lembremo-nos de que, por ter escrito o seu
comentário em língua castelhana, tem sido erradamente considerado como escritor
estrangeiro; era português, educado em Portugal. Nasceu a 18 de março de 1590,
no lugar do Souto (comarca de Guimarães e arcebispado de Braga); foi seu pai
Amador Peres, escudeiro da Casa Real Portuguesa, e sua mãe, D. Luísa de Faria,
filha de Estácio de Faria, fidalgo da mesma Casa Real; compôs diversas obras em
português e castelhano, manuseava os escritores latinos, italianos e espanhóis,
escrevendo e falando facilmente em todas essas línguas. Tinha 50 anos de idade
quando publicou o primeiro tomo dos comentários dos Lusíadas (1639) – um ano
antes da Restauração –, vivendo, portanto, desde a meninice quando Portugal
estava sob o domínio dos Filipes. Explica-se por esta circunstância o fato de ser o
comentário escrito em língua castelhana.
Terminando aqui estes apontamentos, repetimos o que dissemos na edição de
1892: “se os defeitos deste trabalho são insanáveis, perdoe-se ao obscuro obreiro –
pela boa intenção – a ousadia do cometimento.”
FRANCISCO DE SALES LENCASTRE 
Janeiro de 1914
[ 1 ] Bibliotheca Romanica – 10, 25, 45, 51, 52. J. H. Ed. Heitz, Estrasburgo.

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