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responsabilidade limitada, diante da ausência de uma regra proibitiva, a presença deles era admitida, desde que preenchidos certos requisitos que afastavam qualquer possibilidade de vinculação pessoal do incapaz por atos da sociedade, eliminando maiores riscos de dilapidação do seu patrimônio. Nesses casos, tratavase de um ato de mera administração permitido aos representantes dos incapazes (art. 386 do Código Civil de 1916). Ademais, evitavase que, no momento de um acerto com a sociedade, terceiros fossem prejudicados pela presença de incapazes, que não podem praticar atos que danifiquem seu patrimônio.13 No regime do Código Civil de 2002, não há expressamente a proibição dos sócios incapazes, mas o artigo 1.691 estabelece que os pais não podem contrair, em nome de seus filhos, obrigações que ultrapassem os limites da simples administração, salvo por necessidade ou evidente interesse da prole, mediante prévia autorização do juiz. Diante de tal regra, acreditamos ser mantida a orientação doutrinária e jurisprudencial, consagrada no regime anterior, restringindose a possibilidade do incapaz assumir a condição de sócio de sociedade empresária aos casos em que não haja risco de sua responsabilização direta, porquanto a assunção da condição de sócio deve ser sempre considerada um ato de administração extraordinária.14 Em suma, o incapaz não pode ser sócio em uma sociedade na qual assuma responsabilidade ilimitada pelo cumprimento das obrigações sociais. Há que se ressaltar que esta questão não se confunde com a assunção direta pelo incapaz do exercício da empresa, que é disciplinada nos artigos 972 a 980 do Código Civil de 2002. Ricardo Negrão entende que seria possível o ingresso de menores em qualquer sociedade, na medida em que o próprio Código Civil permite que os incapazes continuem o exercício de empresa já anteriormente exercida.15 Ousamos discordar desse entendimento, porquanto o artigo 974, que permite a continuação da atividade anteriormente exercida por incapazes, é uma norma excepcional que visa a preservar a continuidade da atividade exercida, o que não se aplica no caso de ingresso em uma sociedade, uma vez que a atividade continuará sendo exercida mesmo sem o ingresso do menor. Nossa opinião não é alterada com a introdução do artigo 974, § 3o do CC. A possibilidade de sócio incapaz desde que ele seja representado ou assistido, não tenha poder de administração e todo o capital social esteja integralizado só tem algum sentido na sociedade limitada, pois nas demais sociedades a integralização de todo o capital social não afeta a responsabilidade individual do sócio. Tal dispositivo deve ser Curso de Direito Empresarial - Vol. 1 271 Marlon Tomazette 3.1.2 interpretado com cuidado, apesar da sua colocação nas disposições mais gerais do livro do Direito de Empresa. Ele deve ser compatibilizado com a proteção ao patrimônio dos incapazes, de modo que ele não seja estendido para sociedades de responsabilidade ilimitada. Além da capacidade, a vontade deve ser livremente manifestada, pois a existência de vícios de vontade (erro, dolo, coação) pode conduzir à invalidade do ato, nos termos da legislação civil. A incapacidade de uma das partes, bem como a presença de vícios de vontade, não acarreta necessariamente a dissolução da sociedade, mas, via de regra, apenas conduz à invalidade do ato de adesão viciado, permanecendo íntegra a sociedade. “Nulidade e anulabilidade atuam sobre a relação particular, não se comunicam ao negócio inteiro e, por conseguinte, aos outros sócios sobre os quais o vício não atuou.”16 Objeto lícito Outro elemento a ser destacado é o objeto lícito, não entendido aqui objeto do ato constitutivo, que é a contribuição dos sócios, mas o objeto da sociedade em si.17 Este, por sua vez, é o conjunto de atos que a sociedade se propõe a praticar. Nas palavras de Antonio Brunetti, “aquele conjunto de operações que esta se propõe a realizar para exercer em comum uma determinada atividade econômica”.18 Tal objeto deve ser explicitado no ato constitutivo da sociedade de forma clara e determinada, devendo tratarse de um atividade econômica idônea, vale dizer, objeto possível, lícito e determinado,19 sob pena de ser obstado o arquivamento do ato constitutivo (art. 35, I, da Lei 8.934/94). A atividade econômica a ser desenvolvida pela sociedade pode ter as mais variadas feições, desde que as operações sejam possíveis física e juridicamente, isto é, compatíveis com as leis da natureza e com o ordenamento jurídico.20 Além disso, deve tratarse de objeto lícito em sentido mais amplo, ou seja, deve estar em conformidade com a lei, a moral e os bons costumes.21 Por fim, é oportuno ressaltar que a mera determinabilidade do objeto não se coaduna com as sociedades, exigindose a presença de objeto determinado e precisamente delimitado (art. 35, III, da Lei 8.934/94). Tal individuação concreta do objeto social serve para definir a natureza da sociedade, se empresária ou simples, serve ainda para analisar se sobreveio ou não causa de encerramento da sociedade pela inexequibilidade do objeto ou seu exaurimento, ou ainda para Curso de Direito Empresarial - Vol. 1 272 Marlon Tomazette 3.1.3 3.2 3.2.1 definir os limites dos poderes dos administradores.22 Forma O último elemento geral da sociedade é a forma, forma esta que era prescrita, a princípio, em lei, como escrita, mas não imposta de forma inafastável. Com efeito, no regime anterior, o Código Comercial, no seu artigo 300, afirmava que é da essência da sociedade comercial a forma escrita, seja este escrito público ou particular. Entretanto, na sequência, o artigo 304 do mesmo Código afirmava que a existência da sociedade poderia provarse por qualquer meio, inclusive por meio de presunção. No regime do Código Civil de 2002, estabelecese a obrigação de registro para o empresário (arts. 967968), o que denotaria a obrigatoriedade da forma escrita. Todavia, o mesmo Código prevê, em relação à sociedade em comum, a possibilidade dos terceiros provarem sua existência por qualquer meio (art. 987 do Código Civil de 2002). O confronto dos referidos dispositivos nos apresenta uma situação de aparente incompatibilidade, mas tão somente aparente, na medida em que deve ser feita uma interpretação que mantenha a unidade do diploma legal. Solucionando as dúvidas porventura existentes, o Prof. Rubens Requião afirma que a forma escrita é exigida apenas para a sociedade gozar de certas vantagens na órbita tributária e mercantil.23 À guisa de conclusão, podemos afirmar que a forma das sociedades comerciais é livre, sendo imposta a forma escrita tão somente para o gozo de certas vantagens. Portanto, a constituição de uma sociedade pode decorrer de um acordo expresso ou tácito, verbal ou escrito, desde que presentes os elementos específicos da configuração de uma sociedade.24 Elementos específicos Além dos elementos gerais, atinentes aos atos jurídicos em geral, nas sociedades devem estar presentes elementos específicos, que darão o tom societário ao ato jurídico. Tais elementos são a contribuição para o capital social, a participação nos lucros e nas perdas e a affectio societatis. Alguns autores25 indicam ainda como elemento essencial das sociedades a pluralidade de partes. Contribuição para o capital social As sociedades existem para o exercício de uma atividade econômica e, por Curso de Direito Empresarial - Vol. 1 273 Marlon Tomazette isso, necessitam de um patrimônio inicial, que será compostopelas contribuições dos sócios. Tal fundo inicial é o chamado capital social, para o qual todos os sócios devem contribuir (art. 1.004 do Código Civil de 2002). A existência de tal fundo é pressuposto necessário de qualquer tipo de sociedade,26 na medida em que representa o patrimônio inicial da sociedade, indispensável para o exercício da atividade comum e para dar aos terceiros, potenciais contratantes ou credores da sociedade, a necessária confiança.27 Deve ser ressaltado, desde já, que o capital social, que é constituído tão somente pela soma das contribuições dos sócios vinculadas ao objeto social, não se confunde com o patrimônio da sociedade, que representa o conjunto de relações jurídicas economicamente apreciáveis da sociedade, o qual está sujeito a oscilações a todo instante, compreendendo não apenas o capital social, mas tudo que a sociedade possui ou adquire na sua existência.28 Esses dois conceitos coincidem apenas no momento da constituição da sociedade.29 Em suma, a contribuição desempenha três papéis: formar o fundo patrimonial inicial, definir a participação de cada sócio e constituir o capital social.30 Essa contribuição, cuja medida será dada pelo ato constitutivo, poderá ser feita em dinheiro, bens ou trabalho,31 no momento da constituição da sociedade, ou após a sua existência. “Ninguém pretende que as contribuições sejam equivalentes. O que interessa é que as contribuições dos sócios sejam aptas a criar aquela base econômica, sem a qual a sociedade não pode funcionar, porque não é possível o exercício da atividade econômica.”32 Normalmente a contribuição é feita em dinheiro, mas nada impede sua efetivação em outras espécies de bens que saiam do patrimônio do sócio e ingressem no fundo social.33 Tais bens devem ser patrimoniais, isto é, suscetíveis de avaliação em dinheiro, podendo ser materiais ou imateriais, desde que aptos a produzir uma utilidade. No caso de contribuição em outros bens que não o dinheiro, o sócio responde pela evicção e pela solvência do devedor no caso de transferência de crédito (art. 1.005 do Código Civil de 2002), vale dizer, para as coisas transferidas a título de propriedade a garantia do sócio é a mesma do vendedor. A transferência dos bens se faz normalmente a título de domínio, aplicandose as regras da compra e venda. Todavia, essa regra não é absoluta, de modo que a contribuição pode ser feita a título de uso, transferindose apenas uma das faculdades da propriedade, aplicandose as regras do arrendamento,34 inclusive no que diz respeito à garantia e aos riscos da coisa.35 Corroborando tal entendimento, o artigo 9o da Lei 6.404/76 afirma que, se não se indicar o título da Curso de Direito Empresarial - Vol. 1 274 Marlon Tomazette 3.2.2 transferência, presumese a transferência a título de domínio, demonstrando a possibilidade da transferência a outro título. Qualquer que seja o título da transferência, o sócio deixa de ter alguns ou todos os direitos sobre os bens transferidos, passando a ter direitos sobre uma cotaparte do capital social. Este direito recebido possui a natureza de um direito pessoal e patrimonial.36 Também pode ser feita a contribuição em trabalho, vale dizer, a contribuição pode consistir nos conhecimentos técnicos especiais que o sócio põe a serviço da sociedade.37 Neste caso, o sócio não poderá se empregar em atividade alheia à sociedade, salvo disposição em contrário, sob pena de perder o direito à participação nos lucros (art. 1.006 do Código Civil de 2002). Com a contribuição se forma a sociedade e surge para os que contribuíram um direito pessoal ao status de sócio e suas decorrências. Tratase de direito pessoal, na medida em que se refere basicamente à condição de sócio e não a uma prestação patrimonial de qualquer parte. “Não há, portanto contrato de sociedade, se os sócios não contribuem, nem se adquiriu a qualidade de sócio, sem a contribuição.”38 Tal direito, além do status de sócios, abrange direitos eminentemente pessoais, como a fiscalização da gestão dos negócios sociais e a participação na mesma gestão. A par deste direito pessoal, surge também um direito patrimonial, um direito eventual de crédito contra a sociedade consistente na participação nos lucros e na participação no acervo social em caso de liquidação. Tratase de direito eventual, na medida em que condicionado à existência de lucros, ou à extinção da sociedade, com a subsistência de patrimônio após o pagamento dos credores. Participação nos lucros e nas perdas Nas sociedades, exercese uma atividade econômica, que gera resultados. Nada mais lógico do que dividir esses resultados entre os sócios, entre todos eles. Não é essencial que todo o resultado seja dividido entre os sócios, mas é essencial que todos os sócios participem dos resultados. No Código Civil de 2002, considerase nula apenas a cláusula que exclua algum sócio da participação nos lucros ou nas perdas. Vejamos o texto do artigo 1.008 do Código Civil de 2002: “Art. 1.008. É nula a estipulação contratual que exclua qualquer sócio de participar dos lucros e das perdas.” Curso de Direito Empresarial - Vol. 1 275 Marlon Tomazette Tratase de dispositivo relativo às sociedades simples, mas que se aplica subsidiariamente aos demais tipos societários. Neste particular, seguese a orientação do direito italiano, que mantém a salvo o contrato de sociedade, gerando a nulidade apenas para a cláusula leonina.39 Destinandose à produção do lucro, nada mais lógico que a divisão desse lucro entre todos os membros. Tal divisão não precisa ser igualitária, pode e normalmente é feita de forma desigual, mas deve abranger todos os sócios, vale dizer, não pode ser feita apenas em benefício de alguns. “Pôr como requisito essencial a divisão dos lucros, significa afirmar que o resultado da atividade social deve ser em benefício de todos os sócios e não de alguns somente. À comunhão de meio e da atividade deve corresponder a comunhão dos resultados: não é permitida a exclusão de um sócio dos lucros.”40 Tal participação não deve ser necessariamente igualitária, competindo ao ato constitutivo determinar a forma de tal divisão, e, em caso de silêncio, tal distribuição será feita de forma proporcional à participação no capital social (art. 1.007 do Código Civil de 2002). No caso de contribuição para o capital em serviços, o sócio deve participar dos lucros pela média do valor das quotas. Em contrapartida à participação nos lucros, todos os sócios devem participar também nas perdas, expressão essa a ser entendida com atenção. A participação nas perdas não significa que o sócio seja obrigado diante de um prejuízo a desembolsar novas quantias, mas significa tão somente que pelo menos a sua contribuição para o fundo social deve entrar para cobrir as perdas, vale dizer, todos os sócios devem assumir os riscos inerentes à atividade comercial, podendo perder ao menos sua contribuição. A participação nas perdas pode ser limitada.41 “Se o fim da sociedade é a conjugação de bens e de esforços para a obtenção de um fim comum que, em termos pecuniários, é sempre um lucro a partilhar, esse fim deve ser perseguido mediante a participação de todos nos riscos inerentes a qualquer atividade econômica ou comercial.”42 Fábio Ulhoa Coelho,43 apesar de se utilizar de uma organização diferente da matéria, não trata da participação nas perdas como requisito específico de validade da sociedade. Na mesma linha, Giuseppe Ferri nega expressamente que tal elemento seja essencial às sociedades.44Gladston Mamede, por sua vez, nega tal elemento no que tange aos sócios que contribuem em serviços.45 Ousamos discordar dos referidos mestres, para reafirmar a participação nas perdas como elemento essencial e específico das sociedades, como contrapartida necessária à participação nos lucros. Não se trata de uma não limitação da responsabilidade, mas apenas da possibilidade de perda da sua contribuição, Curso de Direito Empresarial - Vol. 1 276 Marlon Tomazette 3.2.3 presente inclusive quando a contribuição for em indústria. Neste caso, o risco assumido é a perda da remuneração do trabalho prestado em benefício da sociedade.46 A vedação do pacto leonino (art. 1.008 do Código Civil brasileiro de 2002 e no mesmo sentido o art. 2.265 do Código Civil italiano) deve abranger tanto a participação nos lucros quanto a participação nas perdas, uma vez que as duas são correlativas.47 A participação nas perdas é a outra face da participação nos lucros. “É contraditório que um sócio seja excluído da participação nos ganhos, e corra o risco de perder sua contribuição sem uma utilidade correspondente, ou que seja completamente excluído das perdas, de modo que possa conseguir lucros sem arriscar nada.”48 Affectio societatis O traço mais específico de uma sociedade é a chamada affectio societatis, a vontade de cooperação ativa dos sócios, a vontade de atingir um fim comum. Não se trata do simples consenso comum aos contratos em geral, mas de uma manifestação expressa de vontade no sentido do ingresso na sociedade e na consecução de um fim comum.49 Exigese um plus em relação à simples vontade de conclusão do contrato. Para a existência de uma sociedade, não é suficiente a contribuição de duas ou mais pessoas para a realização de um determinado resultado econômico, é necessário que o resultado seja perseguido conjuntamente.50 Estamos diante de um contrato de colaboração ou de um ato institucional, no qual as partes têm um interesse comum. O ganhos de uma parte não podem se dar em detrimento da outra, devem se dar em conjunto.51 “Affectio societatis significa confiança mútua e vontade de cooperação conjunta, a fim de obter determinados benefícios”;52 em outras palavras, é o “propósito comum aos contratantes de se unirem para alcançar um resultado almejado”,53 a “Intenção de contribuir para o proveito comum”,54 “uma vontade de colaboração ativa para a realização do objeto social”.55 Sem tal vontade, não podemos falar em sociedade. E mais, sem que tal vontade seja exteriorizada de forma expressa no sentido do ingresso na sociedade, e sem que haja a vontade de atingir uma finalidade comum, não podemos vislumbrar uma sociedade. Na expressão de Carvalho de Mendonça, “os sócios devem manifestar a vontade de cooperar ativamente para o resultado que procuram obter, reunindo capitais e colocandose na mesma Curso de Direito Empresarial - Vol. 1 277 Marlon Tomazette 3.2.4 situação de igualdade”.56 Tratase de requisito eminentemente subjetivo, mas que deve ser vislumbrado diante das manifestações exteriores da vontade dos sócios. Esta deve ser manifestada de forma expressa, no sentido do ingresso na sociedade, e deve ser dirigida a um fim comum, que é o exercício próspero da atividade social, vale dizer, não se limita ao momento de criação da sociedade, mas deve estar presente por toda a vida da sociedade. A propósito, é oportuno transcrever a lição de Moacir Adiers: “A affectio societatis se desenvolve também através de deveres comuns e recíprocos, impostos à observância dos sócios no plano dinâmico do efetivo desenvolvimento da atividade da sociedade, na realização do seu objeto e para a permanência do espírito societário e da própria sociedade”.57 Caso haja a quebra da affectio societatis, dada a sua importância, não há outra solução, a não ser a dissolução da sociedade, ou, ao menos, a exclusão do sócio que não possui mais essa vontade comum,58 sob pena de se inviabilizar o prosseguimento normal da sociedade. A pluralidade de partes Do próprio conceito de sociedade podese extrair a necessidade de pelo menos duas partes, uma vez que é contraditório ser sócio de si mesmo. Assim, prevalece como regra geral a obrigatoriedade da existência de pelo menos dois sócios para a configuração de uma sociedade, em oposição ao empresário individual que exerce a atividade sozinho. Entretanto, tal regra é excepcionada pelo atual direito brasileiro, que admite a figura da sociedade subsidiária integral (art. 251 da Lei 6.404/76), uma sociedade tendo por única sócia uma sociedade brasileira. Além disso, admitese temporariamente a unipessoalidade nas sociedades anônimas (art. 206 da Lei 6.404/76), e nas demais sociedades (art. 1.033, IV, do Código Civil de 2002), a fim de preservar a atividade que vinha sendo desenvolvida, evitando a extinção da empresa e, consequentemente, protegendo os vários interesses envolvidos (trabalhadores, comunidade, fisco...). Na busca de uma limitação de responsabilidade para o comerciante individual, a qual já é inerente à maioria das sociedades, há uma tendência no direito estrangeiro no sentido da admissão da sociedade unipessoal como situação Curso de Direito Empresarial - Vol. 1 278 Marlon Tomazette 4 4.1 comum, e não como exceção, como, por exemplo, no direito alemão,59 tendência esta que tem ganhado força no cenário pátrio.60 No direito brasileiro, já existe, em termos gerais, a EIRELI para permitir o exercício individual das atividades por meio de uma pessoa jurídica. Contudo, a nosso ver, a EIRELI não representa uma sociedade. Além disso, com as alterações introduzidas pela Lei no 13.247/2016 na Lei no 8.906/94, passou a ser admitida a sociedade unipessoal de advocacia, uma pessoa jurídica constituída a partir do registro dos seus atos constitutivos no Conselho Seccional da OAB. Esta sociedade unipessoal de advocacia pode ser constituída originariamente ou em razão da transformação de uma sociedade simples de advogados em que houve a concentração das quotas nas mãos de um único sócio. Tratase de pessoa jurídica que seguirá as regras das sociedades simples normalmente, mas sua denominação será obrigatoriamente formada pelo nome do advogado titular, completo ou parcial, com a expressão “Sociedade Individual de Advocacia”. Ato constitutivo: natureza jurídica A sociedade se forma pela manifestação de vontade de duas ou mais pessoas (art. 981 do Código Civil de 2002). Tal manifestação é o ato constitutivo das sociedades, imprescindível para sua formação. Caio Mário da Silva Pereira nos define o ato constitutivo como o “instrumento continente da declaração da vontade criadora e a bem dizer é a causa geradora primária do ente jurídico”.61 Normalmente, é um ato reduzido a escrito, assinado por todos os sócios, que define a configuração da sociedade: sede, capital social, nome, gerência, responsabilidades, tipo societário etc. A natureza jurídica de tal manifestação suscita as maiores controvérsias na doutrina. Teorias anticontratualistas Nas sociedades, conforme já visto, é essencial a existência de uma finalidade comum, vale dizer, as vontades dos membros da sociedade devem estar dirigidas no mesmo sentido, normalmente o desenvolvimento da atividade e a produção de lucros. Tal unidade de escopo dificultou o enquadramento do ato constitutivo da sociedade na categoria dos contratos bilaterais ou de permuta,62 pois, nestes, as vontades são contrapostas, não se dirigem ao mesmo fim. A partir disso, tendo em vista a dificuldade de adequação do ato constitutivoCurso de Direito Empresarial - Vol. 1 279 Marlon Tomazette das sociedades às realidades típicas do contrato bilateral, vários autores, fugindo da natureza contratual, buscaram definir a natureza jurídica do ato constitutivo como um ato unilateral, desenvolvendo as teorias do ato coletivo e do ato complexo. Para a teoria do ato coletivo, o ato constitutivo das sociedades seria um ato unilateral formado pela união de várias vontades, dirigidas no mesmo sentido, as quais ficariam visíveis individualmente. Todas as vontades parciais, que formariam o ato constitutivo, manteriam sua individualidade e se manteriam paralelas, vale dizer, nunca se cruzariam, ao contrário do que ocorreria no contrato. Vale ressaltar que tal posicionamento sustenta que, em tal ato, seria possível vislumbrar cada uma das vontades parciais formadoras da vontade total. A teoria do ato complexo não é muito diferente, porquanto afirma que o ato constitutivo seria um ato unilateral formado pela união de vontades dirigidas à mesma finalidade, vontades estas que se fundem, perdendo sua individualidade. “No ato complexo as partes apresentamse animadas por idêntico interesse; encontramse, por assim dizer, do mesmo lado; justamente por isso, o ato complexo está sujeito a uma disciplina diversa daquela dos contratos.”63 As vontades parciais se mantêm paralelas, mas perdem sua individualidade, formando um ato unilateral único, vale dizer, não se pode vislumbrar cada uma das vontades parciais, o que se veria seria uma manifestação única de vontade. Tais teorias são passíveis das mesmas críticas. No ato constitutivo das sociedades, as vontades dos sócios não são sempre paralelas, elas se entrecruzam, discutemse a participação, o valor dos bens quanto à cota do capital social, a distribuição dos lucros, o rateio dos prejuízos, a responsabilidade de cada um, os deveres. “Quando as partes contratam, cada uma quer obter o máximo de lucros com o mínimo de contribuição e, portanto, subsiste uma relação de conflito, se reencontra também um escopo comum, porque é claro que todos têm interesse em evitar perdas e maximizar os lucros.”64 Há uma finalidade comum, mas o antagonismo está presente na formação e no correr de toda a vida da sociedade. “O conflito de interesse – evidente na constituição e subsistente durante a vida da sociedade – permite falar de contrato e excluir o ato complexo.”65 Ademais, se as vontades nunca se entrecruzassem, como se explicaria a formação de relações jurídicas entre os sócios?66 Sem um cruzamento destas vontades, qual seria a origem dos deveres de um sócio para com os outros? Curso de Direito Empresarial - Vol. 1 280 Marlon Tomazette