Prévia do material em texto
1 A Prática de Ensino e a produção de saberes na escola por Ana Maria Monteiro No momento atual, a questão do saber vem se tornando central nos debates e pesquisas educacionais, sejam aqueles relacionados com a formação e profissionalização dos professores, seja nos estudos sobre o currículo e a didática, ou naqueles voltados para o entendimento das origens do fracasso escolar. Essa preocupação com o saber ressurge em nova perspectiva, que rompe radicalmente com as concepções vigentes, principalmente a partir de meados do século XX , e que eram pautadas no modelo da racionalidade técnica. De acordo com esse modelo o professor, por exemplo, era considerado um técnico cuja atividade profissional consistiria na aplicação rigorosa de técnicas cientificamente fundamentadas. Para serem eficazes, deveriam enfrentar os problemas da prática aplicando princípios gerais e conhecimentos científicos derivados de pesquisa desenvolvida por outros profissionais. No que diz respeito aos currículos, o modelo da racionalidade técnica também informou a elaboração de propostas sobre o que deveria ser ensinado às crianças e jovens. As disciplinas escolares eram apresentadas como conjunto de conteúdos de origem científica e que representavam um resumo do que havia sido de melhor produzido até então. Essa origem conferia a esses saberes um estatuto de verdade, universalidade e legitimidade inquestionáveis. No que se refere à didática, predominaram as preocupações com o "como ensinar", de forma cientificamente embasada, que buscava identificar procedimentos e recursos didáticos com eficiência máxima no controle da atenção e aprendizagem dos alunos. Quanto à questão do fracasso escolar, a lógica da racionalidade técnica levava os professores a responsabilizar os alunos e famílias pelo seu fracasso. Diante de tanta competência técnica, pautada em conhecimentos científicos, os problemas de aprendizagem seriam dos alunos, e suas soluções seriam buscadas com ajuda da psicologia, ciência que teria o instrumental teórico para compreender, explicar e resolver problemas de comportamento e/ou de aprendizagem. Os problemas enfrentados atualmente pelas sociedades contemporâneas, repletas de contradições, têm revelado a insuficiência desse modelo para dar conta da educação das novas gerações. Nesse contexto, a ação dos professores tem sido alvo de perplexidades e de questionamentos, fazendo com que sua formação seja objeto não apenas de reformulação, mas de um verdadeiro processo de reconceituação. No âmbito das reflexões que têm como pressuposto a escola como espaço de produção de saberes, esse artigo tem por objetivo discutir as possibilidades da produção de saberes na escola durante a formação inicial de professores. Nesse sentido, voltamos nossa atenção para as atividades desenvolvidas no contexto da Prática de Ensino. Concebida, em grande parte, para possibilitar a cópia e reprodução de modelos, dentro da lógica da racionalidade técnica, a Prática de Ensino tem passado por uma série de modificações de forma a responder aos desafios postos pelos questionamentos que essa proposta tem sofrido, buscando transformar-se numa experiência de formação profissional onde são produzidos saberes. Ao mesmo tempo, nessa reflexão, estaremos levando em conta que os saberes envolvidos no trabalho docente possuem uma especificidade, que os distinguem do saber científico, e onde os saberes oriundos da prática desempenham papel de grande relevância. Na primeira parte do artigo, analisamos a formação de professores pautada no chamado “modelo da racionalidade técnica ou instrumental”, procurando identificar alguns de seus limites e insuficiências. 2 Na segunda parte destacamos algumas contribuições de estudos e pesquisas recentes sobre a profissão docente e os saberes nela envolvidos, que nos auxiliam a melhor compreender sua especificidade, abrindo novas e promissoras perspectivas para a formação e qualificação dos professores. Na terceira parte apresentamos algumas considerações, pautadas também em nossa experiência profissional como professora de Prática de Ensino, e que acreditamos possam contribuir para esclarecer o processo de reconceituação atualmente em curso e que tem nos saberes envolvidos uma questão central. Uma formação pautada na racionalidade técnica De acordo com o modelo da racionalidade técnica, o saber é hierarquizado, se desdobrando em três níveis a partir de um processo lógico de derivação entre eles: de uma ciência básica ou disciplina, deriva uma ciência aplicada ou engenharia, da qual derivam conhecimentos procedimentais, e um conjunto de competências e atitudes que utilizam o conhecimento básico e aplicado que lhe está subjacente.(Schein,1980, citado por Gómez,1995,96,97) Tendo por base essa racionalidade, foi desenvolvido um modelo de formação de professores que tinha por objetivo principal dotar os futuros profissionais do instrumental técnico necessário para aplicar na prática, nos momentos oportunos. A formação era anterior ao início da atividade profissional, completando-se em si mesma, sendo oferecida pelas escolas normais - no caso dos professores primários, e pelas universidades, - no caso dos professores do curso secundário. Nessas escolas de formação eles seriam dotados dos saberes, técnicas e valores que deveriam transmitir aos seus alunos através de suas aulas, comportamentos e atitudes, exemplos a serem seguidos pelos alunos. Durante a formação a escola, espaço de realização da atividade profissional, era objeto de estudo, em aulas teóricas, como uma das principais – senão a principal - instituições responsáveis pela educação das novas gerações. Era, também, o lugar de desenvolvimento do estágio onde era realizada a Prática de Ensino. Como o próprio nome revela, o objetivo dessa atividade era aprender a ensinar através da observação da “prática de ensino” bem sucedida de professores competentes e pela realização de atividades docentes onde o professor em formação realizava a “ prática de ensino”, ou seja, deveria demonstrar saber aplicar, da melhor forma possível, as diretrizes aprendidas anteriormente, reproduzindo de alguma forma, os modelos de aulas de professores bem sucedidos observados até então. A “prática” era para ser observada e reproduzida da melhor maneira possível. Assim, como se pode concluir, a preocupação maior era com a sala de aula, o “manejo de classe”, a capacidade de transmitir conhecimentos, escolher e utilizar as técnicas e recursos pertinentes, avaliar segundo os parâmetros adequados. De acordo com a concepção ‘tecnicista” que fundamentava esse modelo, o professor era um técnico, facilitador, divulgador que, inclusive, era visto com suspeita pelos pesquisadores acadêmicos e professores universitários por causa da ambiguidade característica da atividade de ensinar a crianças e adolescentes: ao mesmo tempo que divulga e dissemina os conhecimentos, os põe em risco através das distorções e equívocos que podem surgir durante a realização do ensino. Não havia maiores preocupações com a escola numa dimensão global, enquanto um espaço com dinâmica cultural própria, de socialização e de vivências ritualísticas de iniciação. Geralmente, quando a escola como um todo era considerada, era do ponto de vista da administração e adequação `as diretrizes emanadas das instâncias superiores, organizadas num modelo hierarquizado e centralizado. 3 Nesse contexto, os Colégios de Aplicação, escolas modelo, foram concebidos como espaços onde a formação inicial poderia se realizar de forma plena: ali poderiam ser observadas as melhores aulas, pois contavam com os professores mais competentes, e preparadospara atuar nas experiências de formação propiciadas, onde eram aplicados os princípios da racionalidade técnica. Os saberes a serem ensinados, sob a forma de disciplinas escolares, eram vistos e apresentados como saberes científicos e, portanto, inquestionáveis, universais, ou seja, válidos para todos, cabendo aos alunos aprenderem e reproduzirem, nas provas, da melhor forma possível, o que lhes garantiria a aprovação nos exames e a certificação de formação básica para a cidadania. As questões que se apresentavam referiam-se, de modo geral, a problemas de organização curricular - do mais simples ao mais complexo, níveis crescentes de abstração, etc. Coerentemente, problemas decorrentes do entendimento do currículo como resultante de um processo de seleção cultural, envolvendo questões de poder, não se colocava, muito menos aqueles referentes às diferentes leituras e significados atribuídos por alunos e professores`aquilo que deve ser ensinado e aprendido. As discussões sobre interdisciplinaridade que têm buscado mudar as relações entre as disciplinas do currículo, articulando-as de forma a superar a fragmentação existente, na maioria das vezes se esvaziava, sem provocar mudanças significativas na prática escolar, moldada nos parâmetros já descritos. Esse esvaziamento pode ser atribuído, em parte, à cultura profissional dos professores formados com base numa concepção extremamente compartimentalizada da instituição escolar. Essas questões estão aqui meramente apresentadas, de forma simples. Envolvem problemáticas complexas cuja análise não cabe aqui aprofundar. Concordamos com Gómez quando afirma que "não é difícil reconhecer o progresso que a racionalidade técnica representa relativamente ao empirismo voluntarista e ao obscurantismo teórico das teses vulgarmente denominadas 'tradicionalistas' em que a formação de professores é entendida, fundamentalmente, como um processo de socialização e indução profissional na prática quotidiana da escola, não se recorrendo ao apoio conceitual e teórico da investigação científica, o que conduz facilmente a reprodução de vícios, preconceitos, mitos e obstáculos epistemológicos acumulados na prática empírica."(Gómez,1995, 99) Apesar da ressalva feita por Gómez, não podemos negar que, muitas vezes, em nosso país, o estágio na formação de professores ainda se resume a um processo de “indução profissional na prática quotidiana da escola”, com os professores em formação aprendendo por ensaio e erro, a partir de observações feitas sobre as práticas de ensino de variados tipos, sem tempo e espaço para reflexão e crítica, o que leva `a reprodução de “ vícios, preconceitos e obstáculos epistemológicos”. De um jeito ou de outro,no entanto, podemos perceber que uma concepção empirista dá suporte teórico a esse modelo de formação. De acordo com essa concepção, o conhecimento tem por fundamento a experiência. Para conhecer, o sujeito deve identificar e observar o “dado” , a partir do qual extrai idéias sistemáticas, segundo regras precisas. A observação, desde que realizada com método, é considerada o momento fundamental para que o conhecimento seja alcançado. 4 Ou seja, o professor em formação observa, de acordo com orientações previamente definidas, as “boas práticas de ensino” onde as “aulas dadas”, com suas técnicas e recursos, são objeto de atenção para posterior reprodução. A experiência, então, tem o sentido de oportunidade para a indução, apropriação pelo sujeito do que está dado. Não é concebida como uma construção, ou melhor dizendo, uma situação onde o sujeito possui estruturas teóricas prévias para orientar a observação de algo – no caso a aula, considerada não como algo que está dado e, sim, algo que pode ser entendido e interpretado de diferentes maneiras. Por essa concepção o sujeito, no caso o professor em formação, tem sua subjetividade, sua história e seus saberes reconhecidos como importantes mediadores no processo de construção, o que não acontece na concepção empirista onde a neutralidade é um parâmetro de cientificidade e qualidade. Os saberes na formação dos professores Esse modelo de formação pautado na racionalidade técnica tem sido alvo, como já afirmamos anteriormente, de muitas críticas e restrições: a escola, os professores e o ensino ficam reféns do tecnicismo, o que acaba por contribuir para reforçar o modelo educacional reprodutivista, tantas vezes denunciado; a dimensão política e cultural fica esvaziada, o que contribui também para a exacerbação da faceta conservadora da ação educacional, em detrimento da dimensão transformadora; os professores são considerados meros instrumentos de repasse de conhecimentos produzidos por outros, desprovidos de um saber próprio, ‘técnicos” dotados de saberes sobre como adequar uma aula, motivar os alunos, conseguir sua atenção e facilitar a aprendizagem,etc.Além disso, são vistos com “suspeita” pela comunidade científica uma vez que, em seu trabalho, podem distorcer e/ou (re)produzir erros ao simplificar os assuntos que precisam ser ensinados ; os Colégios de Aplicação representariam uma experiência de laboratório, onde o profissional em formação não se defronta com as condições de trabalho efetivas, vivenciando um “choque de realidade” ao iniciar suas atividades na vida profissional; os professores de Prática de Ensino ficam relegados a meros avaliadores da competência dos futuros profissionais em utilizar técnicas e recursos, e observadores do cumprimento de regras e normas previamente estabelecidas. Esse movimento crítico teve duas consequências importantes: primeiro provocou, em sua forma mais radical, uma rejeição a todo e qualquer tipo de tecnologia educacional e formação sistemática. A sensibilidade para lidar com alunos de diferentes estratos sociais e um engajamento político passaram a ser características mais valorizadas para a realização de uma educação transformadora. Por outro lado, os professores passaram a ser responsabilizados pelo fracasso dos seus alunos e da escola. Incompetentes, mal-formados, displicentes, alienados politicamente, ”idiotas cognitivos”, “livro-didático dependentes”, determinados pelas estruturas ou cultura dominantes, inconscientes, vários têm sido os adjetivos utilizados para desqualificar e responsabilizar os professores pelo fracasso da escola e da educação quando, na maioria das vezes, eles são tão vítimas quanto seus alunos. As duas posições representam radicalismos. Não podemos negar a contribuição que os recursos tecnológicos oferecem para a inovação e mudança na educação, não podendo mais ser dispensados. Discordamos, no entanto, de posições extremas que parecem expressar um fetichismo da tecnologia, apresentada como a panacéia para todos os males, eliminando, inclusive, a ação dos professores. Um processo educativo que dispense a mediação cognitiva e 5 relacional dos professores implica, em nosso entender, em riscos graves para a formação humanística das novas gerações. Quanto `as críticas feitas aos professores, acreditamos que são muito exageradas, embora tenham uma base de sustentação. Certamente os professores cometem erros e necessitam de atualização. Mas, isso acontece com eles do mesmo modo que acontece com profissionais de outras áreas. Não é mais possível, hoje em dia, se pensar em atividade profissional sem um processo de formação continuada que minimamente possa atualizá-los face ao ritmo de mudanças vivenciado pelas sociedades contemporâneas. Acreditamos, sim, que os professores enfrentam condições materiais de trabalho muito precárias, e têm que lidar com um cotidiano nas grandescidades, onde a violência deixa marcas cada vez mais preocupantes nas relações interpessoais. Há que sobreviver nessas condições de trabalho, o que consome grande parte das energias dos profissionais que, assim, não encontram alento para experiências inovadoras. Buscando romper com esse círculo vicioso, que dificulta maiores avanços, e procurando melhor compreender as complexas relações que se estabelecem no ato de ensinar/aprender, muitas pesquisas têm sido realizadas recentemente. Consideramos muito significativas aquelas que têm se voltado para o estudo dos saberes envolvidos no triângulo pedagógico (professores/alunos/saber) e que, segundo Nóvoa, têm ocupado o “ lugar do morto” , ou seja, fazem parte do jogo, mas sua voz não é considerada essencial para o desfecho da ação. (˜Nóvoa,1995b,8) Nesse sentido, destacamos as contribuições de autores que têm procurado investigar o saber escolar, considerando que ele não é mera simplificação do saber “acadêmico “ de referência, e sim que se constitui num conhecimento com configuração própria, resultado de um processo de transposição ou mediação didática. (Chervel, 1990; Chevallard,s.d.; Forquin,1992;Saviani, 1994; Santos,1994; Develay, 1995; Lopes,1999). Outra linha de pesquisa tem se voltado para o estudo dos saberes docentes que são aqueles que os professores dominam para exercer sua atividade profissional. Nóvoa(1995b,9) menciona o “triângulo do conhecimento” que relaciona o saber das disciplinas, o saber da pedagogia e o saber da experiência. Frequentemente, é o saber da experiência, ou seja, aquele constituído pelo professor, que ocupa o “lugar do morto” . "Os corpos docentes são chamados a definir sua prática em relação aos saberes que possuem e transmitem.... o professor é antes de tudo alguém que sabe alguma coisa e cuja função consiste em transmitir esse saber aos outros."( Tardif, Lessard e Lahaye:1991,215) Tardif, Lessard e Lahaye, preocupados com a profissionalização dos professores, discutem a questão dos saberes docentes no contexto das relações que unem as sociedades contemporâneas aos saberes que elas produzem e mobilizam com diversos fins. Nesse sentido, percebem e buscam esclarecer as características desse saber e investigar os motivos pelos quais ele é tão desvalorizado, o que é uma das formas de expressão da desqualificação da profissão docente. Esses autores incorporam a distinção entre os saberes das disciplinas científicas e os saberes curriculares, passando estes a se constituir no quarto corpo de saberes dominados pelos professores. 6 Assim, eles caracterizam o saber docente como heterogêneo e plural por ser constituído dos saberes das disciplinas, dos saberes curriculares, dos saberes da formação profissional e dos saberes da experiência. Afirmam que ele deve e precisa ser melhor investigado, principalmente no que diz respeito aos saberes da experiência " conjunto de saberes atualizados, adquiridos e requeridos na prática da profissão docente, ... conjunto de representações a partir das quais os professores interpretam, compreendem e orientam sua profissão e sua prática cotidiana em todas as suas dimensões."(op.cit.p.227,228) Os saberes da experiência são, para esses autores, o "núcleo vital do saber docente", a partir do qual os professores tentam transformar suas relações de exterioridade com os saberes, em relações de interioridade com sua própria prática. Liberar esses saberes e submetê-los ao reconhecimento por parte dos grupos produtores de saberes da comunidade científica, enquanto um saber original sobre o qual detêm o controle, é empreendimento que lhes parece condição básica para um novo profissionalismo para os professores da educação básica.(op. cit.p.232) Como podemos perceber, esses autores avançam significativamente na superação do modelo da racionalidade instrumental quando investigam ( e portanto valorizam ) os saberes docentes e, entre eles, o saber da experiência. A experiência é concebida aqui não como a oportunidade para perceber e se apropriar de modelos para serem copiados, e sim como um conjunto de vivências significativas através das quais o sujeito identifica, seleciona, destaca os conhecimentos necessários e válidos para a atividade profissional e exclui aqueles não validados pela sua própria ação. É uma outra concepção de experiência, considerada aqui como resultado de uma construção “teoricamente” fundamentada, podendo contribuir, ao mesmo tempo, para a reflexão e crítica dessa construção. Como afirma Tardif, a prática profissional não é um processo de aplicação de conhecimentos universitários; “é, na melhor das hipóteses, um processo de “filtração” que os dilui e os transforma em função das exigências do trabalho; ela é, na pior das hipóteses, um muro contra o qual vêm se jogar e morrer conhecimentos universitários considerados inúteis, sem relação com a realidade do trabalho docente diário, nem com os contextos concretos de exercício da função docente. ”(Tardif,1999:17) Ao processo de formação cabe atualizar e aprofundar os parâmetros da construção, reflexão e da crítica para que o professor avance no sentido da aquisição de maior autonomia profissional. Ou seja, que ele se torne capaz de justificar e explicar os objetivos de sua ação. Esses estudos avançam, também, em nosso entender, porque focalizam os professores não para identificar suas falhas e insuficiências, para criticá-los pelo que eles não são, e sim para conhecer o que eles são, o que fazem e sabem. Em texto recente, Tardif(1999) aprofunda a análise sobre a atividade docente, identificando outras características que revelam sua especificidade. Para ele os saberes docentes são temporais, plurais e heterogêneos, ecléticos e sincréticos, personalizados e situados. São temporais porque resultam de um processo longo de construção através do tempo, onde as aprendizagens realizadas durante sua longa vida escolar (cerca de 16 anos), e a dos primeiros anos de trabalho, possuem uma importância estratégica, muitas vezes desconsiderada. Os saberes são temporais, também, “porque se desenvolvem no âmbito de uma carreira, de um processo de vida profissional de longa duração, do qual fazem parte dimensões identitárias e de socialização profissional.” (op.cit,21) De acordo com Tardif, os saberes docentes são plurais e heterogêneos porque provêm de diversas fontes como já vimos anteriormente. São, também, ecléticos e sincréticos porque não formam um repertório unificado em torno de uma teoria: os professores utilizam muitas teorias, concepções e técnicas, de acordo com as necessidades de trabalho, 7 mesmo que estas pareçam contraditórias para os pesquisadores universitários. (op.cit.,22) A unidade dos saberes dos professores é dada pela ação, pelas necessidades e especificidades da prática. Tardif afirma ainda que os saberes docentes são personalizados e situados, ou seja, são apropriados, incorporados, subjetivados, saberes que são difíceis de serem dissociados das pessoas, de suas experiências e situações de trabalho. Isso se deve, em grande parte, pelo fato de que a atividade docente se realiza com e através das relações entre pessoas, onde o imponderável está sempre presente. Os professores precisam contar com as suas próprias capacidades e experiência para controlar o ambiente de trabalho.(op,cit., 24) Essas características, citadas por Tardif, representam, em nosso entender, uma contribuição muito importante para a melhor compreensão da atividade docente, principalmente porque expressam o resultado de pesquisas sobre a ação, no seu próprio contexto de realização, conseguindo, por isso, identificar aspectos que são própriosdesse fazer, em sua especificidade. Revelam, de forma radical, que a ação docente é um processo de construção e não de reprodução de modelos prontos, ao mesmo tempo em que indicam pistas preciosas para a reformulação dos processos de formação. Torna-se claro que para formar professores não basta simplesmente aplicar teorias oriundas dos conhecimentos universitários. Eles são necessários, mas precisam que a especificidade do campo educacional seja reconhecida e considerada para terem validade. A ideia de que a escola é um espaço de reprodução dos conhecimentos científicos é simplista e equivocada. Ciência se faz nas universidades e centros acadêmicos. As escolas são instituições onde a instrução, os conhecimentos servem a finalidades educativas, o que lhes confere um sentido especial. (Chervel, 1990) A Prática de Ensino e a produção de saberes na escola Após todas essas considerações, cabe perguntar se ainda faz sentido realizar a Prática de Ensino na formação inicial de professores. Muitos afirmam que ela deve ser abolida, pois não se justifica mais pôr os professores em formação para observar e reproduzir aulas modelo. Certamente que nesse sentido não cabe mais a sua realização. Muitos, inclusive, consideram que a formação inicial é dispensável, atribuindo maior valor à formação continuada e em serviço. Não é possível negar a necessidade e importância da formação continuada em nossa sociedade hoje. No entanto, isso não significa que a formação inicial deve ser dispensada. Defendemos que, organizada em novos moldes, esse momento de formação pode representar uma experiência fundamental na formação profissional dos professores, tendo na Prática de Ensino um momento estratégico. Incorporando as contribuições das novas pesquisas sobre a profissão docente, que destacam a importância de se valorizar os saberes dos professores e de auxiliá-los a construir um instrumental teórico/prático para agir com autonomia e visão crítica, consideramos que a Prática de Ensino, ressignificada, pode se tornar uma oportunidade única e muito rica para a constituição da profissionalidade, com a sensibilidade necessária para a educação das novas gerações. Para esclerecer nosso ponto de vista, apresentamos a seguir alguns aspectos que consideramos importantes dentro dessa nova concepção: 8 concordando com Tardif quanto ao fato de que os saberes docentes são temporais, gostaríamos de destacar uma dimensão que ele não aponta e que consideramos muito importante. Na formação inicial e, principalmente, durante as atividades da Prática de Ensino, o professor em formação vive um momento estratégico em sua vida profissional, vivenciando um verdadeiro ritual de passagem. Ele/ela é, ao mesmo tempo, aluno e professor, portanto tem a sensibilidade aguçada para perceber as repercussões da ação educativa com olhos de quem ainda se sente como aluno. É necessário que os professores de Prática de Ensino e os supervisores do estágio fiquem atentos para aproveitar essa oportunidade e possibilitar aos licenciandos viver com intensidade esse momento de descentração, para a realização de reflexões críticas sobre as ações desenvolvidas, na perspectiva do professor reflexivo, proposta por Shon. considerando o fato de que os saberes docentes são heterogêneos e plurais, a Prática de Ensino pode se constituir numa primeira oportunidade para o exercício da reflexão, onde os diferentes saberes são articulados, seja para a elaboração das atividades de ensino/aprendizagem,seja para a sua avaliação, ou para a crítica do que foi realizado, superando posturas frequentemente encontradas entre os professores que relutam e ficam inseguros no momento de discutir o seu trabalho e produzindo novos saberes; a Prática de Ensino pode se constituir num momento marcante da vida profissional, onde as primeiras experiências de ensino são realizadas com apoio de professores e colegas, que auxiliam a superação de barreiras e medos suscitados por uma atividade que tem no relacionamento humano, com todos os seus imponderáveis, o principal eixo de atuação. Evidentemente, é preciso que a Prática de Ensino se desenvolva em novos moldes. Não vamos mais propor a reprodução de modelos de aulas e, sim, a vivência de experiências significativas. Assim, inclusive os três momentos de desenvolvimento das atividades de Prática de Ensino podem ser mantidos, mas com novos objetivos e rompendo- se a linearidade de sucessão obrigatória em que eram realizados: a observação volta-se para o acompanhamento de turmas durante períodos de tempo longos, de forma que o licenciando possa perceber a ação dos professores e alunos no processo de ensino/aprendizagem e não apenas uma ou outra aula. A observação possibilita, também, que os licenciandos procurem compreender o contexto da escola onde estão atuando, identificando as propostas dos diferentes professores e disciplinas, as características da cultura da escola, as formas de organização das relações de poder ali vivenciadas, enfim seu projeto político-pedagógico. É nesses momentos que eles têm as primeiras oportunidades para compartilhar os saberes da experiência dos professores das turmas e dos professores de Prática de Ensino, em trocas muito ricas para todos; a co-participação, quando os licenciandos começam a compartilhar com os professores regentes as atividades com as turmas, torna-se um momento de experimentação gradativa com alunos que eles já conhecem, inserindo-se num processo do qual serão co-autores e não reprodutores. Eles passam desenvolver atividades que ajudaram a construir. A co-participação deve incluir, também, os conselhos de classe e reunões de planejamento, de forma que todos os tipos de experiências que acontecem numa escola venham a ser vivenciadas. Esse momento não deve ser confundido com a atribuição de tarefas simples, que é claro que podem ser executadas, mas que, de maneira nenhuma, podem ser o objetivo principal das atividades de estágio; a regência, que deve representar o assumir da responsabilidade efetiva pela execução das diversas atividades que compõem o trabalho docente: planejamento, realização e avaliação, com autonomia e responsabiliudade sobre os resultados obtidos, e com o apoio e suporte dos professores orientadores. Acreditamos que esse momento não deve ter por objetivo a realização de aulas “perfeitas”, até por que não existem. Deve se buscar realizar o melhor possível e, o que é muito importante, aproveitar para desenvolver as possibilidades criadas para a reflexão sobre a ação. Essas atividades devem ser acompanhadas de reuniões semanais rotineiras com os professores das turmas e com o professor de Prática de Ensino para avaliação, reflexão crítica e planejamento do que foi ou será realizado. 9 Completando esse trabalho, a elaboração de um relatório permite que o professor em formação articule os vários saberes para explicar a sua prática, ou seja, justificar as opções e decisões tomadas, avaliando também, os resultados alcançados. Esta elaboração expressa e possibilita a produção de saberes sobre a atividade docente, contribuindo para o desenvolvimento da sua capacidade enquanto profissional. A realização da Prática de Ensino dessa forma respeita, também, outras características dos saberes docentes, citadas por Tardif, como, por exemplo, quando ele afirma que os saberes docentes são situados e personalizados. A experiência de formação inicial ganha forma própria para cada um que vive o processo dessa forma, intensa, onde a subjetividade dos professores em formação - seus limites e possibilidades,é respeitada, o que torna a experiência muito significativa e ,muitas vezes, inesquecível. Concluindo,desejamos afirmar que essa proposta de formação, que possibilita grandes avanços como já afirmamos anteriormente, não deve significar uma radicalização no sentido de uma supervalorização da prática em detrimento da teoria. O grande mérito dessa proposta de formação consiste no fato de que ela viabiliza a articulação da teoria com a prática, respitando a subjetividade dos docentes mas sem recair no imobilismo ou conservadorismo. Esse é, em nosso entender, o grande risco que ameaça essa proposição. É preciso que esse trabalho seja realizado com uma postura crítica teoricamente fundamentada, sem o que corremos o risco de ficar reproduzindo “vícios, preconceitos e obstáculos epistemológicos”. Essa postura crítica deve nos manter alertas, também, para evitar que a competência profissional reduza nossa sensibilidade “política’ para lidar com crianças e adolescentes dos mais diversos estratos sociais. Não devemos nos esquecer que a escola é a instituição que educa através da instrução. Assim, devemos ficar atentos para não recair no “espontaneísmo populista” que ao propor que devemos “partir da realidade do aluno” acaba por nos levar a “ ficar na realidade do aluno”, impedindo o acesso aos saberes e instrumentais disponíveis na sociedade. Quanto aos Colégios de Aplicação, acreditamos que, redefinidos, oferecem um espaço para a formação inicial bastante importante. Ali encontramos bons professores, concursados, não obrigatoriamente os melhores de todos, mas aqueles que optaram por trabalhar numa escola voltada para a formação inicial de professores. Com uma jornada semanal de 40 horas, eles têm tempo remunerado para atender, orientar e avaliar os licenciandos, bem como para participar de pesquisas sobre o ensino das disferentes disciplinas escolares e materiais didáticos.Vinculados à universidade, podem manter-se sempre atualizados quanto `as questões educacionais. Com profissionais comprometidos com a formação de professores e com a escola bem estruturada, acreditamos que podemos realizar nos Colégios de Aplicação uma experiência de qualidade na formação profissional. Concluindo, acreditamos ter podido mostrar que a escola pode ser um espaço de produção de saberes na formação inicial de professores, mais especificamente durante as atividades da Prática de Ensino, desde que ressignificadas. Os Colégios de Aplicação oferecem condições muito propícias para o desenvolvimento do trabalho nesses moldes, embora não sejam o único espaço possível. As escolas, de uma maneira geral oferecem as mesmas possibilidades, mas têm no horário de trabalho dos professores regentes os maiores entraves. A orientação dos professores em formação acaba se tornando uma extensão da jornada de trabalho, sem remuneração, que gera má vontade com efeitos bastante negativos para a formação inicial ou os induz a solicitar que os estagiários os substituam de forma precária e sem orientação. As escolas de tempo integral, onde trabalham professores com jornada de 40 horas semanais, oferecem as melhores condições,em nosso entender, pois ali podem ser criados horários para atendimento aos licenciandos. Experiências com a formação em serviço para professores nos CIEPs, no estado do Rio de Janeiro, confirmam essa possibilidade. O fato de afirmarmos que é possível a produção de saberes na escola durante a formação inicial de professores não significa que eles são produzidos apenas na escola. Ali, como já afirmamos, eles são produzidos ao serem mobilizados 10 os saberes das disciplinas, os saberes curriculares, os saberes da pedagogia e os saberes da experiência, que constituem os saberes docentes. Sem essa mobilização, sem esses saberes anteriores, teremos apenas a reprodução de saberes na escola, tantas vezes denunciada, essência de um modelo no qual temos certeza de que não vale a pena investir. Bibliografia: Chervel,A.”História das disciplinas escolares: reflexões sobre um tema de pesquisa.’ IN: Teoria e Educação,PortoAlegre,nº2,p177-199,1990. Chevallard,Y. La Transposicion Didáctica: del saber sabio ao saber enseñado. Buenos Aires,Aique,s.d. Develay,M. Savoirs Scolaires et Didactiques des Disciplines: une encyclopédie pour aujourd’hui. Paris,ESF Editeur,1995. Enguita,M.F."A ambiguidade da docência: entre o profissionalismo e a proletarização" in Teoria & Educação.Dossiê:Interpretando o trabalho docente.Nº 4.Porto Alegre:Pannonica Editora,1991.(41-61) Forquin,J. “Saberes escolares, imperativos didáticos e dinâmicas sociais.” In:Teoria e Educação,PortoAlegre,nº5,p.28- 49,1992. Garcia, C.M.”A formação de professores: novas perspectivas baseadas na investigação sobre o pensamento do professor.” IN Nóvoa,A. Os professores e a sua formação. 2.ed. Lisboa, Publicações Dom Quixote/Instituto de Inovação Educacional, 1995. Gomez, A.P. O pensamento prático do professor: a formação do professor como profissional reflexivo.” IN: Nóvoa,A. Os professores e a sua formação. 2.ed. Lisboa, Publicações Dom Quixote/Instituto de Inovação Educacional,1995. Goodson, I.F. “Dar voz ao professor: as histórias de vida dos professores e o seu desenvolvimento profissional.” In Nóvoa, A. Vidas de professores.Porto,Porto Editora,1995. Lopes,A.R.C. Conhecimento escolar: ciência e cotidiano. Rio de Janeiro, Editora da Uerj,1999. ___________” Questões para um debate sobre o conhecimento escolar.” In: Ensino de História. Revista do Laboratório de Ensino de História da UFF. Niterói, vol.3,nº 3 ,p.29-37,1999. Ludke,M. “ Os professores e sua socialização profissional.” Relatório de pesquisa.Rio de Janeiro,PUC/RIO,1995. _________“Sobre a socialização profissional de professores.” In Cadernos de Pesquisa, São Paulo, nº 99,nov1996,(5- 15). Nóvoa,A. Os professores e a sua formação. 2.ed. Lisboa, Publicações Dom Quixote/Instituto de Inovação Educacional,1995a. _________. Profissão Professor.2.ed. Porto,Porto Editora,1995b . Perrenoud,P. Práticas pedagógicas, profissão docente e formação. Lisboa, Publicações Dom Quixote/Instituto de Inovação Educacional,1993. __________Enseigner: agir dans l’urgence, decider dans l’incertitude. Paris,ESF Editeur,1996. Santos,L. “O Processo de Produção do Conhecimento Escolar e a Didática.” IN:Conhecimento Educacional e a Formação do Professor. Campinas,Papirus,1994. Saviani,N. Saber Escolar, Currículo e Didática.São Paulo,Autores Associados,1994. Shon,D.A. “ Formar professores como profissionais reflexivos.” In Nóvoa,A. Os professores e a sua formação. 2.ed. Lisboa, Publicações Dom Quixote/Instituto de Inovação Educacional,1995. Tardif, Lessard e Lahaye - " Os professores face ao saber. Esboço de uma problemática do saber docente ". In Teoria e Educação, nº 4. Porto Alegre: Pannonica Editora, p.215-233,1991. Tardif, M. “Saberes profissionais dos professores e conhecimentos universitários. Elementos para uma epistemologia da prática profissional dos professores e suas consequências em relação à formação para o magistério. Rio de Janeiro, PUC/RIO,1999.(mimeo)