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Produção de Saberes na Escola e Formação de Professores

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A Prática de Ensino e a produção de saberes na escola 
por Ana Maria Monteiro 
 
No momento atual, a questão do saber vem se tornando central nos debates e pesquisas educacionais, sejam aqueles 
relacionados com a formação e profissionalização dos professores, seja nos estudos sobre o currículo e a didática, ou 
naqueles voltados para o entendimento das origens do fracasso escolar. 
 
Essa preocupação com o saber ressurge em nova perspectiva, que rompe radicalmente com as concepções vigentes, 
principalmente a partir de meados do século XX , e que eram pautadas no modelo da racionalidade técnica. De acordo 
com esse modelo o professor, por exemplo, era considerado um técnico cuja atividade profissional consistiria na 
aplicação rigorosa de técnicas cientificamente fundamentadas. Para serem eficazes, deveriam enfrentar os problemas 
da prática aplicando princípios gerais e conhecimentos científicos derivados de pesquisa desenvolvida por outros 
profissionais. 
 
No que diz respeito aos currículos, o modelo da racionalidade técnica também informou a elaboração de propostas 
sobre o que deveria ser ensinado às crianças e jovens. As disciplinas escolares eram apresentadas como conjunto de 
conteúdos de origem científica e que representavam um resumo do que havia sido de melhor produzido até então. 
Essa origem conferia a esses saberes um estatuto de verdade, universalidade e legitimidade inquestionáveis. 
No que se refere à didática, predominaram as preocupações com o "como ensinar", de forma cientificamente 
embasada, que buscava identificar procedimentos e recursos didáticos com eficiência máxima no controle da atenção 
e aprendizagem dos alunos. 
Quanto à questão do fracasso escolar, a lógica da racionalidade técnica levava os professores a responsabilizar os 
alunos e famílias pelo seu fracasso. Diante de tanta competência técnica, pautada em conhecimentos científicos, os 
problemas de aprendizagem seriam dos alunos, e suas soluções seriam buscadas com ajuda da psicologia, ciência que 
teria o instrumental teórico para compreender, explicar e resolver problemas de comportamento e/ou de 
aprendizagem. 
Os problemas enfrentados atualmente pelas sociedades contemporâneas, repletas de contradições, têm revelado a 
insuficiência desse modelo para dar conta da educação das novas gerações. Nesse contexto, a ação dos professores 
tem sido alvo de perplexidades e de questionamentos, fazendo com que sua formação seja objeto não apenas de 
reformulação, mas de um verdadeiro processo de reconceituação. 
No âmbito das reflexões que têm como pressuposto a escola como espaço de produção de saberes, esse artigo tem 
por objetivo discutir as possibilidades da produção de saberes na escola durante a formação inicial de professores. 
Nesse sentido, voltamos nossa atenção para as atividades desenvolvidas no contexto da Prática de Ensino. Concebida, 
em grande parte, para possibilitar a cópia e reprodução de modelos, dentro da lógica da racionalidade técnica, a 
Prática de Ensino tem passado por uma série de modificações de forma a responder aos desafios postos pelos 
questionamentos que essa proposta tem sofrido, buscando transformar-se numa experiência de formação profissional 
onde são produzidos saberes. Ao mesmo tempo, nessa reflexão, estaremos levando em conta que os saberes 
envolvidos no trabalho docente possuem uma especificidade, que os distinguem do saber científico, e onde os saberes 
oriundos da prática desempenham papel de grande relevância. 
 
Na primeira parte do artigo, analisamos a formação de professores pautada no chamado “modelo da racionalidade 
técnica ou instrumental”, procurando identificar alguns de seus limites e insuficiências. 
 
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Na segunda parte destacamos algumas contribuições de estudos e pesquisas recentes sobre a profissão docente e os 
saberes nela envolvidos, que nos auxiliam a melhor compreender sua especificidade, abrindo novas e promissoras 
perspectivas para a formação e qualificação dos professores. 
Na terceira parte apresentamos algumas considerações, pautadas também em nossa experiência profissional como 
professora de Prática de Ensino, e que acreditamos possam contribuir para esclarecer o processo de reconceituação 
atualmente em curso e que tem nos saberes envolvidos uma questão central. 
 
Uma formação pautada na racionalidade técnica 
De acordo com o modelo da racionalidade técnica, o saber é hierarquizado, se desdobrando em três níveis a partir de 
um processo lógico de derivação entre eles: de uma ciência básica ou disciplina, deriva uma ciência aplicada ou 
engenharia, da qual derivam conhecimentos procedimentais, e um conjunto de competências e atitudes que utilizam 
o conhecimento básico e aplicado que lhe está subjacente.(Schein,1980, citado por Gómez,1995,96,97) 
Tendo por base essa racionalidade, foi desenvolvido um modelo de formação de professores que tinha por objetivo 
principal dotar os futuros profissionais do instrumental técnico necessário para aplicar na prática, nos momentos 
oportunos. A formação era anterior ao início da atividade profissional, completando-se em si mesma, sendo oferecida 
pelas escolas normais - no caso dos professores primários, e pelas universidades, - no caso dos professores do curso 
secundário. Nessas escolas de formação eles seriam dotados dos saberes, técnicas e valores que deveriam transmitir 
aos seus alunos através de suas aulas, comportamentos e atitudes, exemplos a serem seguidos pelos alunos. 
 
Durante a formação a escola, espaço de realização da atividade profissional, era objeto de estudo, em aulas teóricas, 
como uma das principais – senão a principal - instituições responsáveis pela educação das novas gerações. Era, 
também, o lugar de desenvolvimento do estágio onde era realizada a Prática de Ensino. Como o próprio nome revela, 
o objetivo dessa atividade era aprender a ensinar através da observação da “prática de ensino” bem sucedida de 
professores competentes e pela realização de atividades docentes onde o professor em formação realizava a “ prática 
de ensino”, ou seja, deveria demonstrar saber aplicar, da melhor forma possível, as diretrizes aprendidas 
anteriormente, reproduzindo de alguma forma, os modelos de aulas de professores bem sucedidos observados até 
então. A “prática” era para ser observada e reproduzida da melhor maneira possível. 
 
Assim, como se pode concluir, a preocupação maior era com a sala de aula, o “manejo de classe”, a capacidade de 
transmitir conhecimentos, escolher e utilizar as técnicas e recursos pertinentes, avaliar segundo os parâmetros 
adequados. 
 
De acordo com a concepção ‘tecnicista” que fundamentava esse modelo, o professor era um técnico, facilitador, 
divulgador que, inclusive, era visto com suspeita pelos pesquisadores acadêmicos e professores universitários por 
causa da ambiguidade característica da atividade de ensinar a crianças e adolescentes: ao mesmo tempo que divulga 
e dissemina os conhecimentos, os põe em risco através das distorções e equívocos que podem surgir durante a 
realização do ensino. 
 
Não havia maiores preocupações com a escola numa dimensão global, enquanto um espaço com dinâmica cultural 
própria, de socialização e de vivências ritualísticas de iniciação. Geralmente, quando a escola como um todo era 
considerada, era do ponto de vista da administração e adequação `as diretrizes emanadas das instâncias superiores, 
organizadas num modelo hierarquizado e centralizado. 
 
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Nesse contexto, os Colégios de Aplicação, escolas modelo, foram concebidos como espaços onde a formação inicial 
poderia se realizar de forma plena: ali poderiam ser observadas as melhores aulas, pois contavam com os professores 
mais competentes, e preparadospara atuar nas experiências de formação propiciadas, onde eram aplicados os 
princípios da racionalidade técnica. 
 
Os saberes a serem ensinados, sob a forma de disciplinas escolares, eram vistos e apresentados como saberes 
científicos e, portanto, inquestionáveis, universais, ou seja, válidos para todos, cabendo aos alunos aprenderem e 
reproduzirem, nas provas, da melhor forma possível, o que lhes garantiria a aprovação nos exames e a certificação de 
formação básica para a cidadania. 
 
As questões que se apresentavam referiam-se, de modo geral, a problemas de organização curricular - do mais simples 
ao mais complexo, níveis crescentes de abstração, etc. Coerentemente, problemas decorrentes do entendimento do 
currículo como resultante de um processo de seleção cultural, envolvendo questões de poder, não se colocava, muito 
menos aqueles referentes às diferentes leituras e significados atribuídos por alunos e professores`aquilo que deve 
ser ensinado e aprendido. 
 
As discussões sobre interdisciplinaridade que têm buscado mudar as relações entre as disciplinas do currículo, 
articulando-as de forma a superar a fragmentação existente, na maioria das vezes se esvaziava, sem provocar 
mudanças significativas na prática escolar, moldada nos parâmetros já descritos. Esse esvaziamento pode ser 
atribuído, em parte, à cultura profissional dos professores formados com base numa concepção extremamente 
compartimentalizada da instituição escolar. 
 
Essas questões estão aqui meramente apresentadas, de forma simples. Envolvem problemáticas complexas cuja 
análise não cabe aqui aprofundar. Concordamos com Gómez quando afirma que "não é difícil reconhecer o progresso 
que a racionalidade técnica representa relativamente ao empirismo voluntarista e ao obscurantismo teórico das teses 
vulgarmente denominadas 'tradicionalistas' em que a formação de professores é entendida, fundamentalmente, 
como um processo de socialização e indução profissional na prática quotidiana da escola, não se recorrendo ao apoio 
conceitual e teórico da investigação científica, o que conduz facilmente a reprodução de vícios, preconceitos, mitos e 
obstáculos epistemológicos acumulados na prática empírica."(Gómez,1995, 99) 
 
Apesar da ressalva feita por Gómez, não podemos negar que, muitas vezes, em nosso país, o estágio na formação 
de professores ainda se resume a um processo de “indução profissional na prática quotidiana da escola”, com os 
professores em formação aprendendo por ensaio e erro, a partir de observações feitas sobre as práticas de ensino de 
variados tipos, sem tempo e espaço para reflexão e crítica, o que leva `a reprodução de “ vícios, preconceitos e 
obstáculos epistemológicos”. 
 
De um jeito ou de outro,no entanto, podemos perceber que uma concepção empirista dá suporte teórico a esse 
modelo de formação. De acordo com essa concepção, o conhecimento tem por fundamento a experiência. Para 
conhecer, o sujeito deve identificar e observar o “dado” , a partir do qual extrai idéias sistemáticas, segundo regras 
precisas. A observação, desde que realizada com método, é considerada o momento fundamental para que o 
conhecimento seja alcançado. 
 
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Ou seja, o professor em formação observa, de acordo com orientações previamente definidas, as “boas práticas de 
ensino” onde as “aulas dadas”, com suas técnicas e recursos, são objeto de atenção para posterior reprodução. A 
experiência, então, tem o sentido de oportunidade para a indução, apropriação pelo sujeito do que está dado. Não 
é concebida como uma construção, ou melhor dizendo, uma situação onde o sujeito possui estruturas teóricas prévias 
para orientar a observação de algo – no caso a aula, considerada não como algo que está dado e, sim, algo que pode 
ser entendido e interpretado de diferentes maneiras. Por essa concepção o sujeito, no caso o professor em formação, 
tem sua subjetividade, sua história e seus saberes reconhecidos como importantes mediadores no processo de 
construção, o que não acontece na concepção empirista onde a neutralidade é um parâmetro de cientificidade e 
qualidade. 
 
Os saberes na formação dos professores 
Esse modelo de formação pautado na racionalidade técnica tem sido alvo, como já afirmamos anteriormente, de 
muitas críticas e restrições: 
 
a escola, os professores e o ensino ficam reféns do tecnicismo, o que acaba por contribuir para reforçar o modelo 
educacional reprodutivista, tantas vezes denunciado; 
a dimensão política e cultural fica esvaziada, o que contribui também para a exacerbação da faceta conservadora da 
ação educacional, em detrimento da dimensão transformadora; 
os professores são considerados meros instrumentos de repasse de conhecimentos produzidos por outros, 
desprovidos de um saber próprio, ‘técnicos” dotados de saberes sobre como adequar uma aula, motivar os alunos, 
conseguir sua atenção e facilitar a aprendizagem,etc.Além disso, são vistos com “suspeita” pela comunidade científica 
uma vez que, em seu trabalho, podem distorcer e/ou (re)produzir erros ao simplificar os assuntos que precisam ser 
ensinados ; 
os Colégios de Aplicação representariam uma experiência de laboratório, onde o profissional em formação não se 
defronta com as condições de trabalho efetivas, vivenciando um “choque de realidade” ao iniciar suas atividades na 
vida profissional; 
os professores de Prática de Ensino ficam relegados a meros avaliadores da competência dos futuros profissionais 
em utilizar técnicas e recursos, e observadores do cumprimento de regras e normas previamente estabelecidas. 
Esse movimento crítico teve duas consequências importantes: primeiro provocou, em sua forma mais radical, uma 
rejeição a todo e qualquer tipo de tecnologia educacional e formação sistemática. A sensibilidade para lidar com alunos 
de diferentes estratos sociais e um engajamento político passaram a ser características mais valorizadas para a 
realização de uma educação transformadora. 
 
Por outro lado, os professores passaram a ser responsabilizados pelo fracasso dos seus alunos e da escola. 
Incompetentes, mal-formados, displicentes, alienados politicamente, ”idiotas cognitivos”, “livro-didático 
dependentes”, determinados pelas estruturas ou cultura dominantes, inconscientes, vários têm sido os adjetivos 
utilizados para desqualificar e responsabilizar os professores pelo fracasso da escola e da educação quando, na maioria 
das vezes, eles são tão vítimas quanto seus alunos. 
 
As duas posições representam radicalismos. Não podemos negar a contribuição que os recursos tecnológicos 
oferecem para a inovação e mudança na educação, não podendo mais ser dispensados. Discordamos, no entanto, de 
posições extremas que parecem expressar um fetichismo da tecnologia, apresentada como a panacéia para todos os 
males, eliminando, inclusive, a ação dos professores. Um processo educativo que dispense a mediação cognitiva e 
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relacional dos professores implica, em nosso entender, em riscos graves para a formação humanística das novas 
gerações. 
 
Quanto `as críticas feitas aos professores, acreditamos que são muito exageradas, embora tenham uma base de 
sustentação. Certamente os professores cometem erros e necessitam de atualização. Mas, isso acontece com eles do 
mesmo modo que acontece com profissionais de outras áreas. Não é mais possível, hoje em dia, se pensar em 
atividade profissional sem um processo de formação continuada que minimamente possa atualizá-los face ao ritmo 
de mudanças vivenciado pelas sociedades contemporâneas. 
 
Acreditamos, sim, que os professores enfrentam condições materiais de trabalho muito precárias, e têm que lidar 
com um cotidiano nas grandescidades, onde a violência deixa marcas cada vez mais preocupantes nas relações 
interpessoais. Há que sobreviver nessas condições de trabalho, o que consome grande parte das energias dos 
profissionais que, assim, não encontram alento para experiências inovadoras. 
 
Buscando romper com esse círculo vicioso, que dificulta maiores avanços, e procurando melhor compreender as 
complexas relações que se estabelecem no ato de ensinar/aprender, muitas pesquisas têm sido realizadas 
recentemente. Consideramos muito significativas aquelas que têm se voltado para o estudo dos saberes envolvidos 
no triângulo pedagógico (professores/alunos/saber) e que, segundo Nóvoa, têm ocupado o “ lugar do morto” , ou seja, 
fazem parte do jogo, mas sua voz não é considerada essencial para o desfecho da ação. (˜Nóvoa,1995b,8) 
 
Nesse sentido, destacamos as contribuições de autores que têm procurado investigar o saber escolar, considerando 
que ele não é mera simplificação do saber “acadêmico “ de referência, e sim que se constitui num conhecimento com 
configuração própria, resultado de um processo de transposição ou mediação didática. (Chervel, 1990; Chevallard,s.d.; 
Forquin,1992;Saviani, 1994; Santos,1994; Develay, 1995; Lopes,1999). 
 
Outra linha de pesquisa tem se voltado para o estudo dos saberes docentes que são aqueles que os professores 
dominam para exercer sua atividade profissional. Nóvoa(1995b,9) menciona o “triângulo do conhecimento” que 
relaciona o saber das disciplinas, o saber da pedagogia e o saber da experiência. Frequentemente, é o saber da 
experiência, ou seja, aquele constituído pelo professor, que ocupa o “lugar do morto” . 
 
"Os corpos docentes são chamados a definir sua prática em relação aos saberes que possuem e transmitem.... o 
professor é antes de tudo alguém que sabe alguma coisa e cuja função consiste em transmitir esse saber aos outros."( 
Tardif, Lessard e Lahaye:1991,215) 
 
Tardif, Lessard e Lahaye, preocupados com a profissionalização dos professores, discutem a questão dos saberes 
docentes no contexto das relações que unem as sociedades contemporâneas aos saberes que elas produzem e 
mobilizam com diversos fins. Nesse sentido, percebem e buscam esclarecer as características desse saber e investigar 
os motivos pelos quais ele é tão desvalorizado, o que é uma das formas de expressão da desqualificação da profissão 
docente. 
 
Esses autores incorporam a distinção entre os saberes das disciplinas científicas e os saberes curriculares, passando 
estes a se constituir no quarto corpo de saberes dominados pelos professores. 
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Assim, eles caracterizam o saber docente como heterogêneo e plural por ser constituído dos saberes das disciplinas, 
dos saberes curriculares, dos saberes da formação profissional e dos saberes da experiência. Afirmam que ele deve e 
precisa ser melhor investigado, principalmente no que diz respeito aos saberes da experiência " conjunto de saberes 
atualizados, adquiridos e requeridos na prática da profissão docente, ... conjunto de representações a partir das quais 
os professores interpretam, compreendem e orientam sua profissão e sua prática cotidiana em todas as suas 
dimensões."(op.cit.p.227,228) 
 
Os saberes da experiência são, para esses autores, o "núcleo vital do saber docente", a partir do qual os professores 
tentam transformar suas relações de exterioridade com os saberes, em relações de interioridade com sua própria 
prática. Liberar esses saberes e submetê-los ao reconhecimento por parte dos grupos produtores de saberes da 
comunidade científica, enquanto um saber original sobre o qual detêm o controle, é empreendimento que lhes 
parece condição básica para um novo profissionalismo para os professores da educação básica.(op. cit.p.232) 
 
Como podemos perceber, esses autores avançam significativamente na superação do modelo da racionalidade 
instrumental quando investigam ( e portanto valorizam ) os saberes docentes e, entre eles, o saber da experiência. 
 
A experiência é concebida aqui não como a oportunidade para perceber e se apropriar de modelos para serem 
copiados, e sim como um conjunto de vivências significativas através das quais o sujeito identifica, seleciona, destaca 
os conhecimentos necessários e válidos para a atividade profissional e exclui aqueles não validados pela sua própria 
ação. É uma outra concepção de experiência, considerada aqui como resultado de uma construção “teoricamente” 
fundamentada, podendo contribuir, ao mesmo tempo, para a reflexão e crítica dessa construção. Como afirma Tardif, 
a prática profissional não é um processo de aplicação de conhecimentos universitários; “é, na melhor das hipóteses, 
um processo de “filtração” que os dilui e os transforma em função das exigências do trabalho; ela é, na pior das 
hipóteses, um muro contra o qual vêm se jogar e morrer conhecimentos universitários considerados inúteis, sem 
relação com a realidade do trabalho docente diário, nem com os contextos concretos de exercício da função docente. 
”(Tardif,1999:17) 
 
Ao processo de formação cabe atualizar e aprofundar os parâmetros da construção, reflexão e da crítica para que o 
professor avance no sentido da aquisição de maior autonomia profissional. Ou seja, que ele se torne capaz de justificar 
e explicar os objetivos de sua ação. 
Esses estudos avançam, também, em nosso entender, porque focalizam os professores não para identificar suas falhas 
e insuficiências, para criticá-los pelo que eles não são, e sim para conhecer o que eles são, o que fazem e sabem. 
Em texto recente, Tardif(1999) aprofunda a análise sobre a atividade docente, identificando outras características que 
revelam sua especificidade. Para ele os saberes docentes são temporais, plurais e heterogêneos, ecléticos e 
sincréticos, personalizados e situados. 
São temporais porque resultam de um processo longo de construção através do tempo, onde as aprendizagens 
realizadas durante sua longa vida escolar (cerca de 16 anos), e a dos primeiros anos de trabalho, possuem uma 
importância estratégica, muitas vezes desconsiderada. Os saberes são temporais, também, “porque se desenvolvem 
no âmbito de uma carreira, de um processo de vida profissional de longa duração, do qual fazem parte dimensões 
identitárias e de socialização profissional.” (op.cit,21) 
De acordo com Tardif, os saberes docentes são plurais e heterogêneos porque provêm de diversas fontes como já 
vimos anteriormente. São, também, ecléticos e sincréticos porque não formam um repertório unificado em torno de 
uma teoria: os professores utilizam muitas teorias, concepções e técnicas, de acordo com as necessidades de trabalho, 
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mesmo que estas pareçam contraditórias para os pesquisadores universitários. (op.cit.,22) A unidade dos saberes 
dos professores é dada pela ação, pelas necessidades e especificidades da prática. 
 
Tardif afirma ainda que os saberes docentes são personalizados e situados, ou seja, são apropriados, incorporados, 
subjetivados, saberes que são difíceis de serem dissociados das pessoas, de suas experiências e situações de trabalho. 
Isso se deve, em grande parte, pelo fato de que a atividade docente se realiza com e através das relações entre 
pessoas, onde o imponderável está sempre presente. Os professores precisam contar com as suas próprias 
capacidades e experiência para controlar o ambiente de trabalho.(op,cit., 24) 
 
Essas características, citadas por Tardif, representam, em nosso entender, uma contribuição muito importante para a 
melhor compreensão da atividade docente, principalmente porque expressam o resultado de pesquisas sobre a ação, 
no seu próprio contexto de realização, conseguindo, por isso, identificar aspectos que são própriosdesse fazer, em 
sua especificidade. Revelam, de forma radical, que a ação docente é um processo de construção e não de reprodução 
de modelos prontos, ao mesmo tempo em que indicam pistas preciosas para a reformulação dos processos de 
formação. 
 
Torna-se claro que para formar professores não basta simplesmente aplicar teorias oriundas dos conhecimentos 
universitários. Eles são necessários, mas precisam que a especificidade do campo educacional seja reconhecida e 
considerada para terem validade. A ideia de que a escola é um espaço de reprodução dos conhecimentos científicos 
é simplista e equivocada. Ciência se faz nas universidades e centros acadêmicos. As escolas são instituições onde a 
instrução, os conhecimentos servem a finalidades educativas, o que lhes confere um sentido especial. (Chervel, 1990) 
 
A Prática de Ensino e a produção de saberes na escola 
Após todas essas considerações, cabe perguntar se ainda faz sentido realizar a Prática de Ensino na formação inicial 
de professores. Muitos afirmam que ela deve ser abolida, pois não se justifica mais pôr os professores em formação 
para observar e reproduzir aulas modelo. Certamente que nesse sentido não cabe mais a sua realização. Muitos, 
inclusive, consideram que a formação inicial é dispensável, atribuindo maior valor à formação continuada e em serviço. 
 
Não é possível negar a necessidade e importância da formação continuada em nossa sociedade hoje. No entanto, isso 
não significa que a formação inicial deve ser dispensada. Defendemos que, organizada em novos moldes, esse 
momento de formação pode representar uma experiência fundamental na formação profissional dos professores, 
tendo na Prática de Ensino um momento estratégico. 
 
Incorporando as contribuições das novas pesquisas sobre a profissão docente, que destacam a importância de se 
valorizar os saberes dos professores e de auxiliá-los a construir um instrumental teórico/prático para agir com 
autonomia e visão crítica, consideramos que a Prática de Ensino, ressignificada, pode se tornar uma oportunidade 
única e muito rica para a constituição da profissionalidade, com a sensibilidade necessária para a educação das novas 
gerações. 
 
Para esclerecer nosso ponto de vista, apresentamos a seguir alguns aspectos que consideramos importantes dentro 
dessa nova concepção: 
 
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concordando com Tardif quanto ao fato de que os saberes docentes são temporais, gostaríamos de destacar uma 
dimensão que ele não aponta e que consideramos muito importante. Na formação inicial e, principalmente, durante 
as atividades da Prática de Ensino, o professor em formação vive um momento estratégico em sua vida profissional, 
vivenciando um verdadeiro ritual de passagem. Ele/ela é, ao mesmo tempo, aluno e professor, portanto tem a 
sensibilidade aguçada para perceber as repercussões da ação educativa com olhos de quem ainda se sente como 
aluno. É necessário que os professores de Prática de Ensino e os supervisores do estágio fiquem atentos para 
aproveitar essa oportunidade e possibilitar aos licenciandos viver com intensidade esse momento de descentração, 
para a realização de reflexões críticas sobre as ações desenvolvidas, na perspectiva do professor reflexivo, proposta 
por Shon. 
considerando o fato de que os saberes docentes são heterogêneos e plurais, a Prática de Ensino pode se constituir 
numa primeira oportunidade para o exercício da reflexão, onde os diferentes saberes são articulados, seja para a 
elaboração das atividades de ensino/aprendizagem,seja para a sua avaliação, ou para a crítica do que foi realizado, 
superando posturas frequentemente encontradas entre os professores que relutam e ficam inseguros no momento 
de discutir o seu trabalho e produzindo novos saberes; 
a Prática de Ensino pode se constituir num momento marcante da vida profissional, onde as primeiras experiências 
de ensino são realizadas com apoio de professores e colegas, que auxiliam a superação de barreiras e medos 
suscitados por uma atividade que tem no relacionamento humano, com todos os seus imponderáveis, o principal eixo 
de atuação. 
Evidentemente, é preciso que a Prática de Ensino se desenvolva em novos moldes. Não vamos mais propor a 
reprodução de modelos de aulas e, sim, a vivência de experiências significativas. Assim, inclusive os três momentos 
de desenvolvimento das atividades de Prática de Ensino podem ser mantidos, mas com novos objetivos e rompendo-
se a linearidade de sucessão obrigatória em que eram realizados: 
 
a observação volta-se para o acompanhamento de turmas durante períodos de tempo longos, de forma que o 
licenciando possa perceber a ação dos professores e alunos no processo de ensino/aprendizagem e não apenas uma 
ou outra aula. A observação possibilita, também, que os licenciandos procurem compreender o contexto da escola 
onde estão atuando, identificando as propostas dos diferentes professores e disciplinas, as características da cultura 
da escola, as formas de organização das relações de poder ali vivenciadas, enfim seu projeto político-pedagógico. É 
nesses momentos que eles têm as primeiras oportunidades para compartilhar os saberes da experiência dos 
professores das turmas e dos professores de Prática de Ensino, em trocas muito ricas para todos; 
a co-participação, quando os licenciandos começam a compartilhar com os professores regentes as atividades com as 
turmas, torna-se um momento de experimentação gradativa com alunos que eles já conhecem, inserindo-se num 
processo do qual serão co-autores e não reprodutores. Eles passam desenvolver atividades que ajudaram a construir. 
A co-participação deve incluir, também, os conselhos de classe e reunões de planejamento, de forma que todos os 
tipos de experiências que acontecem numa escola venham a ser vivenciadas. 
Esse momento não deve ser confundido com a atribuição de tarefas simples, que é claro que podem ser executadas, 
mas que, de maneira nenhuma, podem ser o objetivo principal das atividades de estágio; 
 
a regência, que deve representar o assumir da responsabilidade efetiva pela execução das diversas atividades que 
compõem o trabalho docente: planejamento, realização e avaliação, com autonomia e responsabiliudade sobre os 
resultados obtidos, e com o apoio e suporte dos professores orientadores. Acreditamos que esse momento não deve 
ter por objetivo a realização de aulas “perfeitas”, até por que não existem. Deve se buscar realizar o melhor possível 
e, o que é muito importante, aproveitar para desenvolver as possibilidades criadas para a reflexão sobre a ação. 
Essas atividades devem ser acompanhadas de reuniões semanais rotineiras com os professores das turmas e com o 
professor de Prática de Ensino para avaliação, reflexão crítica e planejamento do que foi ou será realizado. 
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Completando esse trabalho, a elaboração de um relatório permite que o professor em formação articule os vários 
saberes para explicar a sua prática, ou seja, justificar as opções e decisões tomadas, avaliando também, os resultados 
alcançados. Esta elaboração expressa e possibilita a produção de saberes sobre a atividade docente, contribuindo para 
o desenvolvimento da sua capacidade enquanto profissional. 
A realização da Prática de Ensino dessa forma respeita, também, outras características dos saberes docentes, citadas 
por Tardif, como, por exemplo, quando ele afirma que os saberes docentes são situados e personalizados. A 
experiência de formação inicial ganha forma própria para cada um que vive o processo dessa forma, intensa, onde a 
subjetividade dos professores em formação - seus limites e possibilidades,é respeitada, o que torna a experiência 
muito significativa e ,muitas vezes, inesquecível. 
Concluindo,desejamos afirmar que essa proposta de formação, que possibilita grandes avanços como já afirmamos 
anteriormente, não deve significar uma radicalização no sentido de uma supervalorização da prática em detrimento 
da teoria. O grande mérito dessa proposta de formação consiste no fato de que ela viabiliza a articulação da teoria 
com a prática, respitando a subjetividade dos docentes mas sem recair no imobilismo ou conservadorismo. Esse é, em 
nosso entender, o grande risco que ameaça essa proposição. É preciso que esse trabalho seja realizado com uma 
postura crítica teoricamente fundamentada, sem o que corremos o risco de ficar reproduzindo “vícios, preconceitos 
e obstáculos epistemológicos”. Essa postura crítica deve nos manter alertas, também, para evitar que a competência 
profissional reduza nossa sensibilidade “política’ para lidar com crianças e adolescentes dos mais diversos estratos 
sociais. 
Não devemos nos esquecer que a escola é a instituição que educa através da instrução. Assim, devemos ficar atentos 
para não recair no “espontaneísmo populista” que ao propor que devemos “partir da realidade do aluno” acaba por 
nos levar a “ ficar na realidade do aluno”, impedindo o acesso aos saberes e instrumentais disponíveis na sociedade. 
Quanto aos Colégios de Aplicação, acreditamos que, redefinidos, oferecem um espaço para a formação inicial bastante 
importante. Ali encontramos bons professores, concursados, não obrigatoriamente os melhores de todos, mas 
aqueles que optaram por trabalhar numa escola voltada para a formação inicial de professores. Com uma jornada 
semanal de 40 horas, eles têm tempo remunerado para atender, orientar e avaliar os licenciandos, bem como para 
participar de pesquisas sobre o ensino das disferentes disciplinas escolares e materiais didáticos.Vinculados à 
universidade, podem manter-se sempre atualizados quanto `as questões educacionais. 
Com profissionais comprometidos com a formação de professores e com a escola bem estruturada, acreditamos que 
podemos realizar nos Colégios de Aplicação uma experiência de qualidade na formação profissional. 
Concluindo, acreditamos ter podido mostrar que a escola pode ser um espaço de produção de saberes na formação 
inicial de professores, mais especificamente durante as atividades da Prática de Ensino, desde que ressignificadas. Os 
Colégios de Aplicação oferecem condições muito propícias para o desenvolvimento do trabalho nesses moldes, 
embora não sejam o único espaço possível. As escolas, de uma maneira geral oferecem as mesmas possibilidades, mas 
têm no horário de trabalho dos professores regentes os maiores entraves. A orientação dos professores em formação 
acaba se tornando uma extensão da jornada de trabalho, sem remuneração, que gera má vontade com efeitos 
bastante negativos para a formação inicial ou os induz a solicitar que os estagiários os substituam de forma precária e 
sem orientação. 
 
As escolas de tempo integral, onde trabalham professores com jornada de 40 horas semanais, oferecem as melhores 
condições,em nosso entender, pois ali podem ser criados horários para atendimento aos licenciandos. 
Experiências com a formação em serviço para professores nos CIEPs, no estado do Rio de Janeiro, confirmam essa 
possibilidade. 
O fato de afirmarmos que é possível a produção de saberes na escola durante a formação inicial de professores não 
significa que eles são produzidos apenas na escola. Ali, como já afirmamos, eles são produzidos ao serem mobilizados 
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os saberes das disciplinas, os saberes curriculares, os saberes da pedagogia e os saberes da experiência, que 
constituem os saberes docentes. Sem essa mobilização, sem esses saberes anteriores, teremos apenas a reprodução 
de saberes na escola, tantas vezes denunciada, essência de um modelo no qual temos certeza de que não vale a pena 
investir. 
 
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