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Palavra Brincada: infância, literatura e contação de histórias Palavra Brincada Infância, literatura e contação de histórias Palavra Brincada: infância, literatura e contação de histórias Poesia RIMA COM INFÂNCIA? Tatiane Kaspari Para o leitor-criança, o ritmo é o aspecto do poema que mais lhe chama a atenção, antes mesmo do domínio da linguagem, considerando-se que, já no berço, ele teve contato com a musicalidade das cantigas de ninar. Mais tarde, outras experiências com a poesia folclórica (parlendas, trava- línguas, cantigas de roda, adivinhas) reforçarão a intimidade com a camada sonora do poema e, por consequência, o prazer com a sonoridade dos poemas orais – criação coletiva – irá transferir-se para a literatura escrita – criação individual –, que dará continuidade à experiência lúdica inicial. (MELLO, 2006, p. 73) Palavra Brincada: infância, literatura e contação de histórias A poesia infantil possui laços estreitos com a oralidade e com o folclore. Muito antes de nascer, a criança já é exposta a ritmos, pulsações, sensações. Esse mundo sonoro é reforçado pela tradição folclórica, como as cantigas de ninar (nada como o “Boi da cara preta” para inspirar o sono, não é?) e as quadrinhas. Quem não recorda da batatinha? Batatinha quando nasce Espalha a rama pelo chão Menininha quando dorme Põe a mão no coração. Há um constante aproveitamento dessa tradição, como a musicalização de parlendas feita pelo grupo Palavra Cantada (você pode acessar o vídeo nesse link: https://www.youtube.com/watch?v=cqp4N_Hqxvs). Quando, porém, um(a) autor(a) decide escrever poemas originais para crianças, precisa lançar mão da adaptação em três níveis: ritmo, tema e imagens (MELLO, 2006). Para estabelecer uma comunicação com a criança, o(a) escritor(a) deve aproximar-se do ponto de vista infantil, tentando captar sua sensibilidade em relação aos detalhes dos fatos cotidianos. O poema que segue, de Cecília Meireles, é um exemplo de poema descritivo. Palavra Brincada: infância, literatura e contação de histórias À medida que você leu o poema, algumas imagens foram surgindo e se sobrepondo, não é? Provavelmente, o barco, o berço e os braços se confundiram em imagens de aconchego e serenidade. Essas sensações delicadas estão aliadas a uma sonoridade lúdica, em que De borco no barco. (De bruços no berço…) O braço é o barco O barco é o berço. Abarco e abraço o berço e o barco. Com desembaraço embarco e desembarco. De borco No berço… (De braços no barco…) Palavra Brincada: infância, literatura e contação de histórias as paronomásias1, os versos curtos e a linguagem simples acendem a memória das cantigas de ninar. Em nenhum momento do texto, a voz lírica fala em bebês ou crianças, mas o ritmo do poema embala as imagens, que possuem em comum a ideia de acolher, aconchegar, envolver com afeto (abraçar, embarcar, colocar no berço), daí a associação que fazemos com a infância. Segundo Ana Maria Lisboa de Mello (2006, p. 70), no gênero lírico, “[...] a descrição está a serviço de um sentimento que advém da cena contemplada e nela se projeta, de modo que o eu está na imagem contemplada e esta na paisagem íntima”. Dessa forma, as imagens evocadas pelo poema de Cecília Meireles partem de elementos da realidade da criança para despertar o universo onírico: para onde pode ir o barco onde está a criança senão para o mundo dos sonhos e da imaginação? Um segundo tipo de poema é o narrativo. Como exemplo, apresentamos, na página a seguir, o poema “Guaraná com canudinho”, escrito por Sérgio Capparelli e que pode ser encontrado no livro Boi da cara preta. 1 Paronomásia é uma figura de linguagem sonora que se estabelece entre palavras com sentidos diferentes, mas escrita e pronúncia parecidas: abarco – abraço/ barco – braço/ barco - berço Palavra Brincada: infância, literatura e contação de histórias Guaraná com canudinho Uma vaca entrou num bar e pediu um guaraná. O garçom, um gafanhoto, tinha cara de biscoito. Olhou de trás do balcão, pensando na confusão. Fala a vaca, decidida, pronta pra comprar briga: – E que esteja geladinho pra eu beber de canudinho! Na gravata borboleta, gafanhoto fez careta. Responde: vaca sem grana se quiser vai comer grama. – Ah, é?, muge a vaca matreira, quem dá leite a vida inteira? – Dou leite, queijo, coalhada, reclamo, ninguém me paga. Da gravata, a borboleta sai voando, satisfeita. Gafanhoto leva um susto, acreditando, muito a custo. E serve, bem rapidinho, guaraná com canudinho. Palavra Brincada: infância, literatura e contação de histórias Guaraná com canudinho Uma vaca entrou num bar e pediu um guaraná. O garçom, um gafanhoto, tinha cara de biscoito. Olhou de trás do balcão, pensando na confusão. Fala a vaca, decidida, pronta pra comprar briga: – E que esteja geladinho pra eu beber de canudinho! Na gravata borboleta, gafanhoto fez careta. Responde: vaca sem grana se quiser vai comer grama. – Ah, é?, muge a vaca matreira, quem dá leite a vida inteira? – Dou leite, queijo, coalhada, reclamo, ninguém me paga. Da gravata, a borboleta sai voando, satisfeita. Gafanhoto leva um susto, acreditando, muito a custo. E serve, bem rapidinho, guaraná com canudinho. Palavra Brincada: infância, literatura e contação de histórias Guaraná com canudinho Uma vaca entrou num bar e pediu um guaraná. O garçom, um gafanhoto, tinha cara de biscoito. Olhou de trás do balcão, pensando na confusão. Fala a vaca, decidida, pronta pra comprar briga: – E que esteja geladinho pra eu beber de canudinho! Na gravata borboleta, gafanhoto fez careta. Responde: vaca sem grana se quiser vai comer grama. – Ah, é?, muge a vaca matreira, quem dá leite a vida inteira? – Dou leite, queijo, coalhada, reclamo, ninguém me paga. Da gravata, a borboleta sai voando, satisfeita. Gafanhoto leva um susto, acreditando, muito a custo. E serve, bem rapidinho, guaraná com canudinho. Palavra Brincada: infância, literatura e contação de histórias Ao ler o texto, o que mais chamou sua atenção: o ritmo repleto de rimas e sonoridades ou as imagens cômicas dos animais? Difícil dizer, não é? O poema de Sérgio Capparelli é uma brincadeira que envolve todas as dimensões da palavra. Os versos curtos e regulares, o vocabulário coloquial, as rimas e figuras de som (grama/ grana) atiçam os ouvidos. Já os olhos e a mente são mobilizados pelas imagens de uma situação muito particular, em que animais interagem. A voz poética conduz o leitor na percepção da cena, com a inserção de detalhes que dão visibilidade à situação: a vaca quer um guaraná, que deve estar geladinho e que seja servido com canudinho; já o gafanhoto possui uma cara de biscoito. Esses jogos de imagens estabelecem uma brincadeira, cujo ápice está na figura da borboleta. Inicialmente, ela serve de adjetivo para a gravata, não possui vida, é objeto de palavra. Já no final do poema, ela sai voando, torna-se palavra viva, brincadeira da imaginação. O fato de o poema não seguir uma lógica natural e racional – característica chamada de nonsense – aproxima-o do imaginário infantil, instaurando efeitos de ludicidade. O humor é bastante frequente em textos para crianças, e pode auxiliar no estabelecimento de um elo afetivo com o leitor em formação porque reverte em prazer a leitura de produções literárias. Para terminar esse texto – que está longe de abarcar toda a riqueza da poesia para crianças –, convidamos você a brincar no site do poeta mineiro Sérgio Capparelli: <http://www.capparelli.com.br/>. A página oferece muitas opções de interatividade, como jogos de declamação, acesso a cyberpoesias, criação de poemas, experimentações sonoras etc. E aí, vamos brincar de poesia? Palavra Brincada: infância, literatura e contação de histórias RESUMINDO... REFERÊNCIAS MELLO, Ana Maria Lisboa de. Lírica e poesia infantil. In: Literatura e alfabetização: do plano do choro ao plano da ação. SARAIVA, Juracy Assmann (org.). Porto Alegre:Artmed, 2006, p. 69 – 74. Todas as imagens foram retiradas do site www.pixabay.com, que disponibiliza imagens de uso livre, sem direitos autorais.