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Parte 1
MEDICINA
PSICOSSOMÁTICA E DERMATOLOGIA:
DA TEORIA À PRÁTICA
Sylviane Bertolus
vida emocional modifica o orgânico, e o orgânico modifica a vida emo-
cional. Para Sami-Ali, vida orgânica e vida afetiva são relacionais. Em
nossa concepção, antes de nosso nascimento já fazemos parte de uma rela-
ção. A partir dessa teoria, não se considera mais uma prática médica que
cinde vida orgânica e vida afetiva.
Amplia-se o papel do médico em todas as etapas do atendimento do
paciente: da busca da etiologia à aplicação do tratamento. O diagnóstico
não se restringe mais ao diagnóstico clínico da patologia orgânica, mas com-
porta a apreensão da situação afetiva na qual evolui o paciente. O trata-
mento tem o objetivo de restituir uma subjetividade ao paciente para me-
lhor aliviá-lo de seu sofrimento, não se limitando exclusivamente ao desa-
parecimento do sintoma que, no entanto, permanece uma prioridade em
nossa meta terapêutica.
O pedido do paciente é singular, é a pedra angular do edifício terapêuti-
co. É nele que começa a restituição de uma subjetividade. Esse pedido evolui
ao longo da relação terapêutica.
A teoria de Sami-Ali, que serve de suporte à minha prática, introduz dois
novos conceitos. A passagem ao somático produz-se quando o paciente en-
contra-se em uma “situação de impasse” e quando há “recalcamento da fun-
ção do imaginário”. Nem toda patologia é uma somatização. O imaginário é
definido como uma função oposta ao real e é determinado em uma série de
fenômenos, tais como o sonho e seus equivalentes diurnos (o jogo, o afeto, a
fantasia, etc.).
A
1
28 / SAMI-ALI & cols.
Introduzir o imaginário em medicina não é escandaloso. O discurso mé-
dico aparta-se da afetividade, da vivência do paciente e do imaginário. Fazen-
do seu interrogatório bem-codificado, o médico recolhe os dados necessários
ao diagnóstico. O paciente, porém, é privado de sua subjetividade. Em der-
matologia, única área que conheço bem, escutar o paciente não perturba o
andamento terapêutico. Não ter pressa, deixar um espaço para que o pacien-
te exprima como vive sua doença e reencontre seu imaginário (de acordo
com a teoria de Sami-Ali) requer, da parte do médico, um estado de espírito
e uma disponibilidade particulares. Desde o início, a relação médico-paciente
é intensa, o paciente idealiza o médico ou lhe dá todo poder para curá-lo.
Essa relação estereotipada, preestabelecida vai orientar-se de outra forma
com o médico psicossomatista.
Para os pacientes que sofrem de dermatoses, a vida afetiva em relação
com a patologia orgânica resume-se, freqüentemente, à noção depreciada de
estresse. Alguns deles estão convencidos de que o “estresse” e o nervosismo
(patente ou interiorizado) provocaram sua dermatose ou a mantêm. O con-
ceito de estresse perdeu seu sentido original. Ele quer dizer esgotamento,
contrariedade, tensão. O paciente passa a ser responsável por sua doença,
fracassado em relação aos que gozam de boa saúde (dos quais o médico faz
parte); ele está doente e se sente culpado.
Vou expor aqui três casos clínicos: um caso de psoríase, um de dermatite
atópica e um de lúpus cutâneo crônico. Os dois primeiros pacientes não co-
nhecem minha orientação psicossomática; estão agrupados em uma primeira
parte. A situação de partida do terceiro paciente é diferente, pois ele consulta
uma dermatologista psicossomatista.
O PACIENTE CONSULTA UM ESPECIALISTA:
O DERMATOLOGISTA
R. apresenta uma psoríase
A psoríase é uma dermatose inflamatória crônica cuja etiologia é multi-
fatorial (genética, imunológica e ambiental). Trata-se de uma reação auto-
imune que provoca uma sucessão inflamatória na pele e culmina com um
aumento brusco da multiplicação epidérmica. A duração de vida de uma cé-
lula epidérmica, de sua origem à sua morte, sob forma de descamação, é de
trinta dias; no nível de uma placa psoriásica, ela é de sete dias. Informo ao
paciente esses dados científicos vulgarizados para que tenha acesso a um
esquema de representação de sua doença, a qual evolui por crises durante
toda a vida ou por um período. Em um estudo, Seville (1977) mostra que
acontecimentos importantes que deram origem ao estresse ocorreram antes
MANUAL DE TERAPIAS PSICOSSOMÁTICAS / 29
da primeira crise em cerca de 46% dos pacientes, mas uma incidência mais
elevada também foi relatada, podendo alcançar 70 a 80% (Dubertret, 1995).
R. tem 42 anos e consulta no Hospital Saint-Louis por causa de uma
psoríase que apareceu há 15 anos. R. atribui a evolução de sua doença a
crises ligadas à ansiedade. A última crise afetou todo o seu corpo. Não há
antecedentes familiares de psoríase. Ele é casado, tem três filhos e trabalha
em uma grande empresa nacional. Eu o trato com Soriatane, que é um trata-
mento por via geral das formas extensas de psoríase e que normaliza o pro-
cesso de proliferação celular; sua ação é puramente sintomática. O controle
biológico é efetuado a cada dois meses. R. não aceita bem o tratamento devi-
do a uma importante sobrecarga ponderal e a uma alimentação desequilibra-
da. Peço-lhe que emagreça, fazendo uma dieta e praticando uma atividade
esportiva. Ele tem muita necessidade de falar de suas placas de psoríase e de
sua evolução. Seu discurso é longo, cansativo e incide sobre o literal. É uma
etapa necessária do atendimento. Em seguida, o regime vai mobilizar toda
sua energia e se tornará o tema de seu discurso. É um homem que sonha
“sonhos agradáveis”, disse-me ele, sem maiores detalhes.
Atendo-o a cada dois meses e não tenho pressa, escuto-o. A psoríase
melhora em oito meses.
Ele começa a correr regularmente e cada vez com mais intensidade. Fala-
me disso em cada consulta. Corre todos os dias ao voltar do trabalho e no fim
de semana com os filhos ou os amigos. Gosta muito de correr, e isso se torna
uma necessidade. Vê seu desempenho melhorar e quer ultrapassar os 20 qui-
lômetros. Já lhe aconteceu de chorar de raiva ao desabar de esgotamento
antes de ter atingido seu objetivo. Depois, ele decide fazer uma lipoaspiração
no peito, pois persiste uma ginecomastia – vestígio de sua obesidade – que
freia seu desempenho.
Esse atendimento no hospital determina duas épocas em sua vida. Antes,
seus dias se desenrolavam sem firmeza, sem objetivo. A chegada dos 40 anos
o corroía, ele se sentia pouco à vontade em sua vida airada “e isso saía através
das placas”, disse-me. Passava as noites diante da televisão, atirado no sofá.
Agora, à noite, esgotado por suas atividades esportivas, ele vai se deitar. Im-
pulsionou toda sua família em seu dinamismo e acompanha os filhos no es-
porte. Seus dias são programados de antemão, hora por hora: “Às vezes, é
cansativo, mas é muito mais satisfatório”, diz.
A suspensão do tratamento após dois anos não acarreta reincidência.
Ao longo das consultas, delimitamos as circunstâncias de desencadea-
mento de sua psoríase. Foi durante uma viagem ao Marrocos, aos 24 anos, na
qual acompanhava uma tia. Devido a um acidente de carro, os moradores de
um vilarejo se voltaram contra eles. Sua tia ficou com muito medo e ele acha
que ela lhe transmitiu esse medo. Foi também nessa época que encontrou sua
mulher e saiu da casa dos pais. Casou-se aos 25 anos. Eles saíam muito, e ele
30 / SAMI-ALI & cols.
prosseguiu, com dificuldade, seus estudos de administração em um instituto
universitário de tecnologia. Tem boas lembranças dessa época. Quando nas-
ceu seu primeiro filho – ele tinha então 30 anos –, sentiu um mal-estar, o
medo de ser responsável. Sua doença se agravou.
R. sente-se tranqüilizado com a reputação de nosso serviço e com um
atendimento regular. É também a primeira vez que o ouvem, e ele considera
que isso “é 50% da cura”.
Comentário
Estabeleceu-se entre nós uma relação de confiança baseada na compe-
tência médica e na escuta, em um ambiente altamente especializado. A trans-
ferência foi maciça e operou-se porque, em um hospital em que a tecnicidade
devia dominar, o tratamento foi incluído em uma relação que deixava livre
curso ao imaginário. Nesse sentido, ele não me falou de seutrabalho, mas do
que o apaixonava. Quando nos encontramos, ele estava iniciando uma mu-
dança pessoal e eu o acompanhei nesse movimento. Meu papel foi o de pro-
longar algo que despontava nele. Não observar isso poderia ter estancado
esse início de evolução que, no caso, teria agravado a patologia mesmo que,
clinicamente, ele estivesse bem-acompanhado. Por outro lado, por meio do
tratamento, ele tomou consciência de seu modo de vida, de uma certa forma
de depressão e de seus hábitos alimentares desequilibrados. Pôde falar disso
e desfazer-se, assim, de uma certa culpa ligada a esse desleixo. Para operar
essa mudança radical de vida, apoiou-se na relação transferencial que cons-
truiu comigo, inscrita em um quadro rigoroso. Não dirigi nossos encontros.
Não falamos de sua infância. Ele preferiu falar da atualidade e não tentou
aprofundar. As circunstâncias do aparecimento de sua doença permanecem
sem interpretação. Teria projetado sobre um acontecimento externo, o aci-
dente de carro no Marrocos, uma dificuldade interna: sair da casa de seus
pais e viver de modo independente? Eu não podia interrogar o paciente sobre
esse traumatismo determinante sem romper uma confiança e uma forma de
relação que ele tinha necessidade de construir comigo. Sei que há um trau-
matismo em relação à patologia. Não toco nisso porque ele não o faz. Em um
atendimento global, médico e relacional, é preciso permanecer em ressonân-
cia com o paciente, sem querer aplicar esquemas preestabelecidos. Não se
pode conceber a mesma estratégia terapêutica para todos. Meu trabalho não
consiste em acabar com o recalcamento. Como diz Zarifian (1999), “mono-
polizando o poder de curar, aquele que trata penaliza o paciente: não deixa
que este invente suas próprias soluções” ou, como afirmava Groddeck: “Não
é o médico que vence a doença, mas o paciente”. Exerci meu papel de médi-
ca, controlando clínica e biologicamente a evolução da doença, e o ampliei,
insistindo, principalmente, no ritmo regular de consulta. A temporalidade na
MANUAL DE TERAPIAS PSICOSSOMÁTICAS / 31
terapia parece-me determinante para elaborar uma relação infraverbal. A
regularidade das consultas é o comprometimento em uma relação, significa
introduzir a terapêutica através da temporalidade. Essa freqüência relaciona-
se à patologia orgânica. Não foi a aceleração das consultas, mas, ao contrário,
uma certa rigidez que permitiu a mudança. É um ritmo que engaja um pro-
cesso relacional e que permanece bem-espaçado para preservar a autonomia
de alguém que não deseja começar mais adiante uma psicoterapia. O parâ-
metro temporal está, pois, em relação com o parâmetro relacional e, em vez
de ficarem de fora da patologia orgânica, tornam-se parâmetros na patologia
orgânica. É uma maneira de estabelecer um ritmo para superar a problemáti-
ca de origem.
Fico perplexa diante da mudança completa da organização do tempo de
R. Do vazio, da passividade, de um tempo que precisa preencher, que se es-
coa sem limite (televisão), ele passou a uma programação hora por hora de
seu cronograma e a uma hiperatividade. Esses dois funcionamentos aparen-
temente opostos culminam no mesmo resultado: dominar o tempo, sem mo-
mento para o relaxamento, no decorrer do qual “os segundos não têm mais o
peso do relógio”. Trata-se de uma organização adaptativa da temporalidade
(segundo a teoria de Sami-Ali), como que para enfrentar um conflito não-
elaborável. Contudo, através dessa temporalidade adaptativa, ele readquiriu
ritmos equilibrados: alimentação, trabalho-lazer, sono-vigília. É o mesmo
movimento no plano corporal. Modificou positivamente sua imagem corpo-
ral. Tive, entretanto, a impressão de que ele queria dominar e controlar seu
corpo como uma máquina de correr quilômetros. O prazer real de correr
confundia-se, às vezes, com o prazer do desempenho.
Esse paciente passou da depressão à adaptação e viu sua psoríase desa-
parecer, e eu o auxiliei a superar uma barreira.
Com uma jovem de 25 anos que sofria da mesma patologia, dentro de
uma mesma abordagem e em um quadro idêntico, lembraremos seu presente
e seu passado. Sua psoríase aparece aos 17 anos, após um aborto que, segun-
do ela, transcorrera bem, em que fora acompanhada por sua mãe e por seu
namorado. Eu era a primeira pessoa estranha a quem ela falava isso. Na épo-
ca, não se abrira nem com suas amigas ou com seu pai. Houve um recalca-
mento dos afetos e a banalização de um traumatismo. A partir das perguntas
que eu lhe fazia, ela reviveu esse acontecimento de outro modo e pôde ex-
pressar fortes sentimentos de culpa por essa criança que jamais nasceu. A
relação terapêutica permitiu revelar uma situação que estava enquistada em
torno de um traumatismo. Restituímos uma continuidade entre seu desejo
atual de ter um filho e esse aborto. Ela se encontrava em um impasse pessoal,
um desejo não-realizado de ter um filho, que se refletia, no nível médico, por
um impasse terapêutico. Após o fracasso dos tratamentos habituais, estava
32 / SAMI-ALI & cols.
tomando um imunodepressor de efeito suspensivo cujo uso deve ser inter-
rompido após dois anos de utilização. Propunham-lhe um medicamento com
possíveis efeitos secundários irreversíveis, ainda que ela quisesse dar à luz.
Suspendemos o tratamento, a psoríase reapareceu menos extensa, tratamen-
tos locais bastavam para “branqueá-la” e ela não repercutia mais sobre seu
moral. Eu a ajudara a superar um obstáculo. Decidiu, com seu namorado
atual, ter um filho.
A questão de encaminhar a um psiquiatra ou a um psicólogo esses dois
pacientes não se apresentava, e isso se revelaria uma estratégia terapêutica
desacertada. O trabalho de uma equipe americana (Burztajn, Barsky, 1985)
expõe as razões que levam o paciente a recusar uma psicoterapia quando
aconselhada pelo médico: ou o paciente não compreende como suas emo-
ções podem estar ligadas à sua doença orgânica, ou pode sentir-se rejeitado
por seu médico, ou passa a ser, socialmente, um paciente psiquiátrico e não
consegue suportar essa referência, ou, ainda, essa orientação deprecia a esti-
ma que ele tem de si. Tais dados são bastante gerais e explicam a delicada
passagem do médico ao psicoterapeuta, que fortalece a separação entre vida
orgânica e vida emocional. O paciente segue a lógica do sistema: há um mé-
dico para cuidar de sua doença e é com ele que falará de seus sofrimentos
corporais, e há um psicólogo para falar de seus sentimentos, bloqueios e mal-
estares. O impasse se reproduzirá nas duas situações, com as duas pessoas
que o tratam, pois o objetivo é justamente estabelecer elos entre sua patolo-
gia orgânica e sua vida afetiva.
Uma criança com uma dermatite atópica
A disponibilidade é uma qualidade indispensável ao médico psicossoma-
tista. Como afirma Sylvain Mimoun (1999):
Com este tipo de consulta, pode-se considerar inúmeras atitudes, mas não se pode
ficar neutro. Diante desses pacientes, é importante estar presente, “oferecer”, mes-
mo que a demanda tenha dificuldade de se expressar pela palavra.
Apresentação da dermatite atópica
A dermatite atópica é uma dermatose inflamatória crônica que evolui
por crises. Manifesta-se por lesões de eczema, pruriginosas, que começam
nos primeiros anos de vida. O tratamento é local e sintomático: creme com
corticóides durante as crises. Eficaz, ele evita a extensão e a superinfecção
das crises, mas não impede sua repetição, o que acarreta, às vezes, desenco-
rajamento e inobservância do tratamento. Existem poucos efeitos colaterais
se as regras de prescrição forem respeitadas, ainda que os pacientes estejam
convencidos do contrário.
MANUAL DE TERAPIAS PSICOSSOMÁTICAS / 33
A dermatite atópica tem uma patogenia incerta, agrupando vários fato-
res ambientais e uma transmissão genética. Trata-se de uma doença cuja pre-
valência (número de novos casos) é crescente. A fisiopatogenia seria um dis-
túrbio da imunidade relacionado a um equilíbrio inadequado de sua regula-
ção. O equilíbrio entre as células que favorecem a reação imunológica e as
que inibem fica perturbado. Essa disfunçãoimunológica leva à produção exa-
gerada de anticorpos e de citocinas, que acarretam as lesões inflamatórias do
eczema. O desencadeamento da reação imunológica produz-se contra fato-
res do ambiente que não ameaçam a integridade do organismo.
Teoria psicossomática da “alergia”
Os médicos psicossomatistas mostraram que os pacientes alérgicos cons-
troem-se em uma relação indiferenciada, uma relação dual com a mãe que
exclui o terceiro termo. O problema de identidade é muito precoce, com um
fechamento em uma relação dual. O outro, o estrangeiro, o terceiro termo, é
de modo ativo reduzido ao mesmo, ao idêntico por meio de um processo
psicológico ativo, associando mecanismos relacionais de projeção, de identi-
ficação e de idealização. A crise alérgica produz-se quando fracassa essa re-
dução ao idêntico. Essa “personalidade alérgica”, como foi definida, não se
revela em todos os “alérgicos”.
Para compreender melhor, vou relatar o caso da consulta única de Char-
ly. Ele tem 2 anos e meio e sofre de um eczema que apareceu recentemente,
como sua irmã mais velha, cujo eczema foi muito grave. Ele se coça até san-
grar. Durante a consulta, que vai durar cerca de 45 minutos, Charly vai se
mexer todo o tempo: vai à sacada, depois, quando fecho a janela e converso
com sua mãe, ele brinca com a luz, pula, mexe em tudo. Sua mãe zanga-se
sem firmeza. Depois, ele pega um objeto de decoração da minha mesa e o
quebra, jogando-o no chão. É um globo de plástico, cheio de uma geléia azul,
que se espalha no chão. Sua mãe o recrimina pouco e eu me zango muito
timidamente enquanto limpo o carpete. A mãe explica-me, então, que para
ele todo objeto é uma bola. Ela me diz que faz tudo o que ele quer e que sabe
disso. Não pode deixá-lo nem por 5 minutos. Gostaria de ficar grávida de
novo para se afastar dele. Fico sabendo que a crise ocorreu há 15 dias e que
isso coincide com a visita à sua próxima escola e com o encontro com sua
futura professora. A mãe tinha tirado uma licença e, agora, deve voltar a
trabalhar em setembro, assim como Charly, que entrará na escola. Ela é se-
cretária-contadora. Previu-se que não seja a mãe que leve Charly à escola,
pois ela não se sente capaz de assumir essa separação cotidiana. Ela não volta
à consulta seguinte. Dois anos mais tarde, ela consulta para Charly, que tem
verrugas; traz seu terceiro filho, uma menina de um ano e meio. Charly con-
tinua com eczema, tratado pelo pediatra.
34 / SAMI-ALI & cols.
Posso explicar essa ruptura por meio de uma aproximação e confidências
muito rápidas e intensas. Contudo, essa foi sua maneira de ocupar o espaço e
o tempo. Ela me falou de suas dificuldades. Eu tinha de explicar o tratamento
à mãe e isso foi muito difícil, pois Charly não o suportava. Não consegui
estabelecer uma relação com um nem com outro. Finalmente, a mãe de Char-
ly funcionou comigo como com seu filho: em uma relação dual. No diálogo
comigo, a criança era excluída, não existia mais. A hiperatividade da criança
era sua tentativa para recuperar a mãe. Infelizmente, diante de todas suas
traquinagens, ela não conseguiu ralhar com ele energicamente, o que teria
mostrado que estava presente para ele, mesmo conversando comigo. Ela não
tem nenhuma autoridade e eu me deixei cair nessa armadilha, ao passo que
poderia ter dado o exemplo, isto é, mostrar que eu agia de modo diferente. O
fechamento dual no qual eu me encontrava é o impasse. Ela não me falou do
pai. Em um caso típico de patologia alérgica como este, o pai é excluído, ou
integrado como um equivalente materno da bolha mãe-filho. Não há figura
de autoridade, não há regras, e a hiperatividade é o apelo de um limite.
Constantemente observei nas crianças atópicas ou uma hiperatividade ou
uma hiperpassividade, que me impediam de entrar em contato com elas.
Corre-se o risco de observar mal essa hiperatividade se a interpretarmos como
uma reação de agressividade segundo um modelo edipiano, com os esque-
mas psicanalíticos na cabeça.
Amir, 18 meses, apresenta uma dermatite atópica
Descreverei o desenrolar das consultas deste caso e as comentarei em
seguida.
Amir, com 18 meses, de origem tunisiana, sofre de eczema desde o nas-
cimento. O pai traz o filho ao especialista, depois de ter consultado clínicos
gerais e pediatras sem sucesso. “Eles dão cremes e não passa nunca”, ele me
dirá. Amir fica comportado e dócil durante o exame; seu eczema é extenso.
Depois do exame, ele sorri, visivelmente aliviado e recupera seu dinamismo.
Minha primeira preocupação é nomear e explicar a doença. Sua evolução
crônica habitual, com crises que se repetem, e seu desaparecimento espontâ-
neo geralmente em torno dos 4 ou 5 anos. As lesões correspondem a uma
hiper-reatividade da pele a inúmeros fatores ambientais externos (frio, lã,
poeira, etc.) e internos (nascimento dos dentes, febre) e também às emoções.
Esclareço que ele pode participar de todas as atividades de uma criança de
sua idade, para não instaurar interditos que reforçariam o “superego corpo-
ral” (Sami-Ali, 1998).
O segundo eixo de minha consulta consiste em estabelecer uma relação
pessoal com a criança. Com Amir, será fácil. Enquanto eu dou as explicações
a seu pai, ele explora meu consultório, mas quando se interessa pelo galão de
MANUAL DE TERAPIAS PSICOSSOMÁTICAS / 35
azoto líquido, nós dois o proibimos de tocar nele. Ele se volta para nós, atra-
ído pelos objetos de minha mesa; quer um lápis. Seu pai me diz que ele não
sabe desenhar e que, habitualmente, fica com medo quando vai ao médico.
Depois, percebo que Amir pede uma folha para seu pai, e lhe dou uma. A
criança instala-se no carpete e começa a desenhar, após ter encontrado a
ponta certa do lápis. O pai, sorridente, fica emocionado e maravilhado, é a
primeira vez que ele o vê rabiscar no papel. Compartilho seus sentimentos.
Amir mostrou-nos que sabia desenhar. Para o pai, essa consulta parece ter
sido uma revelação. Eu guardo o desenho.
Comentário (1)
Amir é trazido por seu pai, o que é ainda mais surpreendente, levando-se
em conta sua origem, na qual o pai é posto de lado no que tange à educação
diária e aos cuidados. A avó paterna de Amir cuida dele durante o dia, e a
mãe, à noite; ambas vão-se ocupar do tratamento. Desde que começou a
caminhar, a criança acorda-se durante a noite. Os distúrbios do sono fazem
parte do quadro clínico da dermatite atópica. Insisto para que a criança volte
para sua cama, condição necessária para adquirir uma certa autonomia; cada
um mantém seu lugar, sua diferença. Dessa primeira consulta, destacam-se
alguns pontos essenciais, que preciso compreender para fazer o diagnóstico
da gravidade e da evolução possível. Com Amir e seu pai, não tenho a impres-
são de estar diante de personalidades alérgicas típicas, fixadas, como com
Charly. Uma relação a três estabeleceu-se. Talvez Amir funcione em alternân-
cia de uma relação a dois e, depois, a três. Uma evolução no campo relacional
parece possível e, portanto, uma evolução da doença se admitirmos que é
uma patologia relacional. Depois da consulta, fiquei emocionada e maravi-
lhada diante do entusiasmo desse pai por seu filho. Tenho a impressão de ter
funcionado como um duplo do pai, verbalizando a doença e oferecendo a
Amir um espaço à sua medida para expressar-se diante de nós. O desenho é
uma projeção de uma vida interna, fantasiada. É um equivalente do sonho.
Desde o primeiro encontro, não me ocupo somente do corpo real patológico,
mas também do mundo e mesmo do corpo imaginário de Amir. Habitual-
mente, o medo que Amir tem dos médicos une o pai e o filho diante daquele
que representa o terceiro termo, o estranho.
Eu os revejo, alguns meses mais tarde, no hospital Saint-Louis: estão na
emergência e é o acaso que nos reúne, pois só vou lá uma vez por semana.
Uma nova crise de eczema atinge a criança, que se coça dia e noite. Sem
nenhuma timidez, Amir se instala e se diverte com as almofadas de carimbo
de minha mesa enquanto eu me esforço para captar a atenção de seu pai.
Compreendo seu desatino diante das crises que voltam sem parar, e suaatitu-
de que o leva a vir consultar aqui (a mensagem que lhe transmito é: “não
36 / SAMI-ALI & cols.
estou incomodada”). Compadeço-me. Lembro a ele nossos conhecimentos
sobre a doença. A estima e a compreensão recíprocas instalam-se entre nós. A
criança aprecia essa consulta, durante a qual fica livre para brincar e acaba
por sujar-se toda com a tinta. Peço-lhes que voltem ao meu consultório com a
mãe.
Eu não deveria ter revisto Amir. A última crise foi novamente vivenciada
como um fracasso, nosso primeiro encontro não modificou as representações
do pai nem seu comportamento.
Quatro meses mais tarde, a tia de Amir (a irmã do pai) acompanha a
criança a meu consultório devido a uma nova crise. Escondo minha irritação,
pois compreendo que, nessa família tunisiana, a irmã mais velha ajuda na
educação dos menores. Na família, cada membro trata Amir à sua maneira. A
tia aplica creme Nívea. Eu o aprovo e adoto como creme emoliente a ser
usado diariamente. Amir não usa mais fraldas, mas continua se acordando
durante a noite.
Enfim, após um ano de acompanhamento, Amir é trazido pelos pais, de-
vido a uma crise generalizada, após uma gripe. Ele acorda todas as noites e é
levado de volta para sua cama. A mãe está grávida e espera uma menina.
Enquanto Amir desenha, falamos sobre ele. Sua mãe acha que o marido não
é suficientemente autoritário com a criança, que é ela que deve sê-lo. “É
possível”, responde o pai. Ela pensa que seu filho tem dificuldade para se
concentrar; respondo-lhe que, nessa idade, sua capacidade de concentração
é limitada. A mãe permanece diplomática ao formular suas recriminações
para não embaraçar o marido, que tem mais dificuldade de se expressar. Ela
sofre por ver seu filho coçar-se dessa maneira. O pai fica perto do filho e,
fazendo um modelo, pede-lhe que desenhe casas. Amir faz uns rabiscos e
oferece-me seu desenho.
Um mês mais tarde, os três retornam. É uma grande satisfação. Amir
apresentara uma crise depois de uma otite. Acordou-se brutalmente durante
a noite e trouxe seu creme para, ao que parece, acalmar a dor do ouvido,
conta-me a mãe, emocionada. Em geral, coça-se menos. A crise é limitada.
Não faz mais pipi na cama (não me lembrava mais de terem falado sobre
isso) nem se acorda mais à noite. O pai tornou-se mais autoritário. Amir fica
mais triste com as reprimendas de seu pai do que com as de sua mãe. Com a
menina, será o contrário, diz a mãe, ela permitirá que faça tudo e será o
marido que terá de punir. Atualmente, ela está em licença-maternidade e
cuida de Amir durante o dia; ele é bastante difícil com ela e brinca pouco
sozinho. Está com 2 anos e meio. Durante esse tempo, Amir explora pruden-
temente meu consultório, indo de seu pai à sua mãe. Em um dado momento,
quando está passando perto de seu pai, este lhe dá um tapa sem motivo, para
brincar. A criança fica furiosa e quer bater em seu pai, que o impede dizendo
“Amir malvado”. Vexado, refugia-se nas pernas da mãe.
MANUAL DE TERAPIAS PSICOSSOMÁTICAS / 37
Comentário (2)
Instalou-se uma dinâmica de reestruturação da criança em relação a mim.
A transferência foi operante, primeiramente, com o pai que, após uma pri-
meira rejeição, concedeu-me sua confiança. De fato, sou como que um pro-
longamento do pai, mantendo uma certa distância. Sou o duplo na diferença.
A mãe aproveitou-se, de saída, desse espaço de comunicação implantado len-
tamente para falar a seu marido, por meu intermédio, da autoridade. Sua
confiança é imediata. Esses encontros permitem que cada um reencontre seu
lugar e sua função, paterna e materna. Como essa mãe conseguiu existir en-
tre um pai tão próximo de seu filho e a mãe desse pai, que cuidava da criança
todo o dia? Será por isso que ela critica seu filho, que lhe escapou sem que ela
possa ou queira agir?
Muito à vontade, autônomo, Amir deslocava-se em meu consultório ale-
gremente. O tapa é uma chamada à ordem, o pai não suporta a autonomia
adquirida por Amir. Ele não tem o que dizer e age, então, para recuperá-la
por meio de um gesto ambíguo, um tapa que pretende ser amistoso e que não
é senão paradoxo e ambigüidade. A criança reage de modo especular e quer
bater em seu pai. Sua mãe, em quem ele se refugia resmungando, não faz
nenhuma reflexão sobre o incidente nem se posiciona como terceiro entre a
criança e seu pai. Cabe a mim dar o exemplo e “verbalizar”. Assumo agora a
família, são as projeções do pai e da mãe que deixam a criança assim. Con-
tam-me acontecimentos que não têm relação direta com o eczema. Amir será
circuncidado dentro de alguns dias.
Dando uma autonomia de ação a Amir, dou-lhe uma autonomia psíqui-
ca. Com o desenho, a criança é reconhecida em sua totalidade. Não interpre-
to o desenho. Ele constitui uma troca e tem um valor próprio para mim e para
a criança.
Uma nova crise nas regiões baluartes do corpo leva-os a consultarem
novamente. Agora são quatro, a irmãzinha com um mês dorme em seu moi-
sés. A mãe está de licença. Amir foi circuncidado. Ele está contente em vir, já
tem seus hábitos e pede folhas e lápis. Decepcionado pela repetição do ecze-
ma, o pai começou um tratamento que julga eficaz e que eu aprovo, ajustan-
do-o. A mãe me confia que tirou o bico de seu filho há três semanas, o que
coincidiu, pensa, com a crise de eczema e o fato de que ele não dorme mais à
tarde. Lamentou fazê-lo brutalmente na mesma época do nascimento de sua
filha. Proponho que lhe dê o bico à noite, mas ela não quer.
Comentário (3)
Não sugeri que ela lhe desse o bico à noite, apenas perguntei por que
tomara essa decisão, mas ela não soube me responder. Amir é obrigado a
crescer, não tem mais o direito de ser um bebê, seu lugar foi tomado! Não
38 / SAMI-ALI & cols.
propus tal interpretação nesse contexto terapêutico que não é um pedido de
psicoterapia, portanto, um desejo de compreender e de mudar. Eu não teria
correspondido à expectativa do paciente e a seu nível de compreensão. Em
contrapartida, não agi autoritariamente, como um superego corporal. Ela pôde
confiar-se a mim, o que permitiu uma desculpabilização de sua atitude e,
conseqüentemente, suavizou sua relação com o filho. Pela primeira vez, esta-
belece-se uma ligação entre vida afetiva e crise de eczema.
Em setembro de 1996, Amir tem 3 anos e entra para a escola. O pai e o
filho vêm consultar. Amir chora todos os dias para ir à escola e, à noite, tem
pesadelos. Tem também uma pequena crise de eczema, mas isso parece se-
cundário. O pai lava-o com o sabonete Lactacyd desde o verão e é muito
eficaz, segundo me diz. O pai veio para conversar comigo. Sua mulher sofre
ao ver seu filho chorar todas as manhãs, e ele próprio não quer acompanhá-
lo porque acha que seria pior ainda. (Isso me lembra a mãe de Charly). Tran-
qüilizo-o, explicando que se trata de um período de adaptação.
Comentário (4)
Era o que ele esperava de mim. Precisava me ouvir para suportar melhor
esse período que também o angustiava. Ele sofre tanto quanto a mãe, mas
não encontra as palavras e o distanciamento para compreender sua culpa e
sua angústia. Confia em mim, a terceira pessoa entre ele e seu filho, que não
tenta separá-los.
Desde o início da doença, o pai procura uma “coisa” mágica que possa
interrompê-la. Desta vez, é o Lactacyd. Medicinalmente, esse sabonete deve-
ria ser evitado no dia-a-dia, mas prefiro mantê-lo, pois ele tem um valor rela-
cional. Ele tem necessidade de agir e de encontrar, sozinho, o que lhe con-
vém. É mais um aspecto da relação dual que busca constituir com seu filho.
Sua confiança permanece frágil, e o risco de ruptura está sempre presente em
meu espírito quando atendo esses pacientes atópicos. Jean-Marie Gauthier
(1993) escreve acerca do caso de uma criança atópica: “Tudo se passa como
se as microrrupturas congelassem a terapia”. Trabalho na dinâmica relacio-
nal da projeção. Não funciono como superego, trabalho com o pai quando ele
vem sozinho com seu filho.
O eczema atenua-se e desaparece progressivamente. Os quatro voltarão
por ocasião de crises menos intensas. Uma dinâmica relacional terapêutica
tem prosseguimento.Os desenhos evoluem; quando ele desenhou círculos
completos, o pai observou e se maravilhou. Amir mostrou-me que era um
bom aluno, que conhecia as cores que aprendera na escola e que não chorava
mais de manhã. Uma mudança de casa estava prevista e uma terceira criança
era esperada. A última vez que o vi, ele desenhou um homenzinho para sua
mãe.
MANUAL DE TERAPIAS PSICOSSOMÁTICAS / 39
Conclusão do caso de Amir
Os dois últimos desenhos destinam-se à mãe. Amir precisa da afeição de
sua mãe e mostra-lhe isso por meio desse presente, traduzindo a aproxima-
ção observada entre a mãe e a criança ao longo das consultas. Essa família
evolui dentro de uma dupla pertença cultural. A mulher muçulmana tem
pouco poder fora de casa e, quando trabalha fora como a mãe de Amir, pode
perder sua posição privilegiada em casa. O fato de a criança ter sido confiada,
durante o dia, à avó paterna, que não conheço e que nunca é mencionada,
como uma pessoa protegida, contribuíra para reforçar certas tendências: o
afastamento da mãe e do filho e a identificação do pai com seu filho mais
velho. Tive a impressão de que ele se via em seu filho e, portanto, de que tudo
era permitido, tudo era maravilhoso.
A história de Amir mostra o longo percurso rumo à confiança e ao desen-
volvimento da relação médico-paciente. Não se trata de um caso espetacular.
Seu eczema era uma forma clínica moderada, sendo regularmente acompa-
nhado e nunca tendo se transformado em eczema exsudativo e superinfecta-
do. Pode-se estabelecer um paralelismo entre a gravidade do eczema e o grau
do impasse relacional no qual se encontra a criança, mesmo sabendo que o
eczema é uma doença plurifatorial?
A primeira etapa no atendimento da dermatite atópica é a desculpabili-
zação. Uma segunda etapa seria instaurar um ritmo regular de consulta, o
que se revela difícil. O paciente alérgico tem dificuldade em estabelecer a
distância certa: ou se aproxima ou se afasta demais. Tento reunir a família e
trabalhar com os pais e a criança ao mesmo tempo. Não há regra de conduta
para o terapeuta, como permanecer livre ou favorecer o imaginário enquanto
se trata a dermatose. Essas observações de uma certa medicina psicossomáti-
ca não se baseiam em uma interpretação apressada. Aos pais de uma menini-
nha com eczema, o dermatologista explicara que isso correspondia ao ciúme
da segunda filha porque havia uma concordância no tempo! Eles não com-
preenderam!
O PACIENTE CONSULTA
O MÉDICO PSICOSSOMATISTA
Meu trabalho diagnóstico será a busca da existência ou não de um im-
passe afetivo. Esse novo conceito criado por Sami-Ali corresponde a um con-
flito sem solução, a uma situação de fechamento sem saída. Compreender,
delimitar tal impasse é difícil, ainda mais porque a situação de fechamento
pode reproduzir-se com o terapeuta, como nesse terceiro caso. Não me res-
trinjo ao diagnóstico de um funcionamento mental, como o de alexitimia ou
40 / SAMI-ALI & cols.
de pensamento operatório. Deixo de lado as teorias defectológicas. Minha
atitude é a mesma. Favorecer a fala, sem acrescentar nada que possa modifi-
car o conteúdo, permitindo ao paciente que estabeleça relações entre passa-
do e presente, vida afetiva e patologia orgânica, com os sonhos como pano de
fundo.
Um caso de lúpus cutâneo crônico
Uma mulher com aproximadamente 40 anos, K., consulta-me por um
grave problema de pele que evolui há cinco anos. Ela se interessa por minha
abordagem, mencionada pela colega que a encaminhou para mim. Um ba-
lanço completo foi feito no hospital Saint-Louis e não chegou a um diagnósti-
co preciso, informa-me. Ela pensa sofrer de uma doença rara, sem classifica-
ção, para a qual os médicos não encontram tratamento. Rapidamente, rapi-
damente demais, após análise dos resultados paraclínicos e do exame clínico,
esclareço o procedimento diagnóstico de meus colegas. Trata-se de um lú-
pus-líquen, doença fronteiriça entre duas patologias auto-imunes, que asso-
cia lesões clínicas de lúpus cutâneo crônico a lesões histológicas de líquen.
Considerado como um lúpus cutâneo crônico, ele é tratado como tal. Não
existe um lúpus, mas síndromes lúpicas que vão da forma benigna, o lúpus
cutâneo crônico, que atinge só a pele – apresentado por minha paciente –, ao
lúpus erimatoso agudo, que atinge um ou vários órgãos e cujo prognóstico
vital pode estar em jogo. Em cerca de 10% dos casos, há passagem da forma
cutânea benigna à forma aguda disseminada. No plano etiopatogênico, trata-
se de um aumento da síntese de auto-anticorpos (anticorpos anti-ADN).
Diante da multiplicidade dos fatores em jogo, porém, é atualmente impossí-
vel determinar por que razão um sujeito, em um determinado momento,
desenvolve uma doença auto-imune.
Minha paciente apresenta lesões numerosas e inflamatórias nas zonas
descobertas do corpo. As mais antigas deixaram cicatrizes inestéticas. Essa é
uma das razões para começar rapidamente um tratamento eficaz. Ela apre-
senta uma forma extensa e evolutiva da forma cutânea benigna.
A partir da sutileza diagnóstica de sua doença, ela imaginou sofrer de
uma doença rara e incurável. Após duas consultas, sua primeira demanda foi
satisfeita, sua dermatose foi etiquetada, sem ambigüidade nem confusão, com
um tratamento bem-codificado. Em seguida, ela me confiou que não se trata-
va havia quatro anos e que não gostava dos remédios. Isso foi possível porque
sou médica psicossomatista e sei que de nada serve prescrever sem compreen-
der, pois, como médica, sei que o tratamento evita as crises da doença, e não
sua evolução para uma forma disseminada. Impor-lhe um tratamento foi o
que outros dermatologistas fizeram antes de mim, e isso provocou sua rejei-
ção à medicina como um todo. Essa mulher tem um comportamento de fuga
MANUAL DE TERAPIAS PSICOSSOMÁTICAS / 41
inexplicável para os médicos e para si mesma, justificando-o pela incompe-
tência diagnóstica e terapêutica dos médicos. Ao mesmo tempo, aos olhos
dos médicos, mostra-se uma paciente indisciplinada e difícil. Isso pode en-
gendrar, às vezes, ou um funcionamento perverso a dois médico/paciente, ou
um comportamento médico levando a uma escalada terapêutica.
Finalmente, estando explorada essa via, uma outra demanda surgiu ime-
diatamente após. K. sente-se angustiada e desperta às vezes às lágrimas, pede
que eu a ajude, está mal. Proponho-lhe que venha uma vez por semana para
uma consulta de 45 minutos. Há uma espécie de urgência que acarreta essa
precipitação. O clima de tensão impede-a de expressar e de sentir alívio ao
tomar conhecimento do diagnóstico de sua doença e de sua benignidade.
Não perdemos tempo em compreender por que ela imaginou que não existia
nenhuma solução para sua dermatose.
Em algumas sessões, vai contar-me sua história.
K. é uma mulher com cerca de 40 anos, alta, bem-cuidada, bela aparên-
cia, mãe de dois filhos. Trabalhou durante 20 anos na mesma empresa e,
após uma reestruturação, foi despedida. Nessa época, difícil de viver, apare-
ceram as primeiras lesões lúpicas. Durante os três anos de desemprego, ela
ficou em casa pela primeira vez em sua vida. Muito ativa, preside várias asso-
ciações. Depois, para sua grande satisfação, a empresa que a havia demitido,
contratou-a novamente.
Sua mãe foi abandonada ao nascer. O abandono é a problemática central
para K. Ela tem o mesmo nome de sua mãe: mesmo nome para uma mesma
identidade? Depressiva, sua mãe teve dificuldade para assumir uma função
materna. K. lembra-se de uma mulher autoritária e exigente, mas também de
ter dormido em seus braços. Sua mãe era muito dependente do marido, o
oposto dela, muito afetuoso e possessivo com K., para quem ela devia contar
tudo.
Minha paciente é filha única desse casal. Ela tinha um meio-irmão mais
velho, primeiro filho de sua mãe. Quando era adolescente, ele vinha passar
os fins de semana com eles e se entendiam bem. Aos 30 anos, casado e pai de
uma menina, ele se suicidou. K. acha que sua mãe abandonou-o um pouco
quando conheceu seu pai.
Ela foi duas vezes reprovada nos exames finais do secundário, e seus paisnão a encorajaram a prosseguir os estudos; teve, então, de impor sua determi-
nação para fazer uma formação em administração, no que teve amplo sucesso.
Aos 19 anos, sua mãe faz uma primeira tentativa de suicídio. Estando sozinha
com sua mãe agonizante, correu até os vizinhos para telefonar para o pronto-
socorro. Salvou sua mãe, mas outras tentativas de suicídio sucederam-se.
Ela permanece próxima de seus pais, que vêm freqüentemente à sua casa.
Ultimamente, após festas de Natal conflituosas, decidiu estabelecer uma maior
distância com eles.
42 / SAMI-ALI & cols.
O pai de seus filhos, com o qual vive em concubinato há 25 anos, traba-
lha muito. Viaja freqüentemente a trabalho por curtos períodos e recebe um
bom salário.
Grávida de seu primeiro filho, ela descobre a infidelidade de seu compa-
nheiro, cuja amante também está grávida. Determinada, ela recupera seu
companheiro. A outra mulher teve um aborto natural.
Tomo conhecimento de todos esses acontecimentos traumatizantes em
poucas sessões. Agora, ela quer que cuidem dela, pois foi para a creche desde
que tinha três semanas, diz em seguida. Paralelamente, conta-me que faz
tudo depressa, que tem necessidade de mudança, de movimento. “Não ima-
gino uma situação que me faça cogitar ou esquecer tudo, que eu fique serena.
Não escuto música como meu marido, à noite. Sempre tenho algo a fazer.”
Ela não se lembra de seus sonhos, exceto de um pesadelo que se repete
desde a infância: conduz um carrinho de bebê; na seqüência seguinte, ela o
segura nos braços para que não caia num barranco.
Comentário
A partir desse sonho, vou analisar a problemática da temporalidade nes-
sa paciente. Não é um sonho transferencial, pois precede a relação comigo.
Diz respeito à relação global que ela mantém com os outros, o temor em geral
que vive sempre. É um sonho-programa, como são freqüentemente os pri-
meiros sonhos relatados. O aspecto repetitivo do sonho mostra que há um
traumatismo que remonta à relação mãe-bebê. O fato de relatar esse sonho
reatualiza a situação que vai reatar-se comigo. K. controla o carrinho de bebê.
Se o largar, haverá um perigo de morte. Teme que ela e o carrinho caiam se
relaxar. Isso requer que controle invariavelmente a situação. É preciso estar
tensa. Há um perigo no relaxamento. O sonho mostra que o afeto desenvol-
ve-se em uma situação conflituosa e passa pela tensão muscular. Perder o
controle acarreta um risco de se matar ou de perder o outro, o risco do aban-
dono. Há uma angústia de perder a mãe. Nela, o impasse é a relação precoce
com uma mãe depressiva, que foi abandonada. A angústia de abandono rea-
tiva-se com a demissão. A perda de emprego desempenha um papel ativo de
repetição.
Ela é hiperativa e tensa e não tem consciência dessa hiperatividade e
dessa tensão, mantidas em permanência. A hiperatividade e a organização
do tempo tornam-se caracteriais em resposta a um conflito com a mãe. Orga-
niza o tempo para não ter tempo. Se agir depressa, não repetirá a situação
traumática. Está sempre contida, até mesmo com seu pai. Sua filha faz um
treinamento esportivo intensivo e participa de competições de alto nível. Ela
a acompanha em todos os jogos. Tal atividade esportiva na qual estão envol-
vidas mãe e filha mantém a tensão.
MANUAL DE TERAPIAS PSICOSSOMÁTICAS / 43
Na relação terapêutica, reconstruiu-se o impasse. Ela não vivencia o afe-
to com o terapeuta. Relata os acontecimentos sem senti-los. O sofrimento é
grande demais. Opta por esquecer através de uma hiperatividade, excluindo
momentos de repouso. Isso revela uma problemática de recalcamento do
afeto. Esse recalcamento está em correlação com uma imagem ideal: encon-
trar uma identidade em uma imagem ideal e continuar a controlar o tempo e
a situação.
Meu objetivo será levá-la, sem pressa, a tomar consciência de sua hipera-
tividade. Vou novamente centrar minha intervenção na patologia. Por que
não faz seu tratamento? As cicatrizes impedem-na de usar roupas decotadas.
Ela pensa que não cuida de si, de sua doença, para mostrar aos outros, assim,
que está sofrendo. De fato, não se queixa nunca. Descobre isso comigo e,
desta vez, ela o vivencia. Não cuida de si como sua mãe não cuidava dela
quando era pequena. Não tem confiança na medicina. Mostro-lhe sua neces-
sidade de controlar a situação, inclusive a relação médica.
A problemática do abandono transgeracional impede-a de prosseguir
comigo. De maneira contraditória, deseja que cuidem dela e foi por isso que
veio me ver, mas tem medo, pois se sente ameaçada de abandono. Após al-
guns meses, o atendimento torna-se irregular. Contudo, sente-se tranqüila e
contente por estar sendo tratada, mesmo que isso não seja fácil para ela.
Continua a me falar de si. Mais tarde, vai preferir começar um trabalho com
um analista, com o assentimento de seu marido, para aprofundar o trabalho
iniciado comigo. Eu fui o ponto de partida, dirá. Ela escolhe seu terapeuta e
pretende não parar no caminho.
CONCLUSÃO
A relação tradicional médico-paciente, mesmo em uma perspectiva pe-
dagógica, não permite reconhecer os elementos importantes para a condu-
ção terapêutica. Os casos clínicos mostraram, em pacientes que sofrem de
patologias diversas em dermatologia, uma prática médica baseada na rela-
ção, que não se reduz a uma escuta, mesmo que seja de compaixão. Algumas
grandes linhas diretoras guiaram este trabalho. A priori, não sei se a patolo-
gia orgânica é uma somatização. Não estou ali para explicar, não tento de-
monstrar algo. A questão é saber se a patologia orgânica pode ter um vínculo
com a história do paciente, o que não significa uma relação de causa e efeito.
Não há causalidade psíquica. O trabalho se faz através da relação terapêutica
que favorece a ressurgimento do imaginário do paciente (sonho e equivalen-
te de sonho). Se há um vínculo com a história do sujeito, a questão é: como
esse vínculo pôde ser operante?
44 / SAMI-ALI & cols.
A relação terapêutica evolui de modo particular e inesperado em resso-
nância com o paciente. Nos dois primeiros casos, mostro o que significa “libe-
rar o imaginário” em clínica dermatológica, para um paciente com psoríase e
para uma criança atópica. A diversidade dessa prática dá conta da diversida-
de das situações clínicas.
A abordagem psicossomática não consiste em pensar que os estresses
afetivos influenciam em geral o organismo.
O estresse é um conceito preciso, elaborado por H. Selye e que concer-
ne apenas ao biológico, a partir de uma situação experimental. Uma cobaia
é colocada em uma gaiola, diante de uma agressão, um estimulo sonoro
contínuo. Ela não pode fugir nem atacar. Se for mantida por tempo demais,
a reação defensiva extrema que organiza acaba por minar as defesas imu-
nológicas do organismo, o que acarreta o desenvolvimento de uma patolo-
gia orgânica. O animal é colocado em uma situação de impasse, sem solu-
ção; cria-se nele uma situação de desespero. Na verdade, o processo bioló-
gico interno não pode ser isolado do contexto, do meio, da história ou da
relação. O fato fundamental continua sendo o vínculo entre a situação rela-
cional e a realidade biológica. No homem, o estresse não existe objetiva-
mente. É a significação que o sujeito dá ao acontecimento que transforma a
situação em estresse. É o homem que dá um sentido e é ele que sofre, trata-
se de uma situação circular. O estresse não existe senão em uma situação
relacional, chamada de impasse por Sami-Ali, em que “o homem não pode
fugir nem atacar”. O estresse não é mensurável em uma escala padronizada
que não leva em conta certos acontecimentos considerados como não-trau-
matizantes. A morte de um gato, por exemplo, não tem cotação na escala
dos estresses. No terceiro caso, minha paciente espantava-se que sua de-
missão constituísse o contexto afetivo do aparecimento de seu lúpus cutâ-
neo. Ela vivera choques afetivos muito maiores sem desenvolver doenças
orgânicas, como o suicídio de seu meio-irmão, as tentativas de suicídio de
sua mãe ou a infidelidade de seu marido. Ela os havia enfrentado. Foi pre-cisamente nesse período de sua vida, durante o qual o trabalho fora um
ponto de ancoragem sem descontinuidade, que a demissão, vivenciada como
uma perda, reativou uma angústia de abandono ligada à reação precoce
com uma mãe deprimida. Ao final desse período de demissão, ela não pôde
“fugir nem atacar”.
Graças à escuta que lhes era proposta, os dois pacientes adultos expres-
saram-se facilmente; como dizia um deles, “é a primeira vez que me ouvem
e, para mim, isso é provavelmente 50% de minha cura”. Com freqüência,
devo incitar a fala, permanecer vigilante, presente, para não me deixar fe-
char no papel exclusivo daquele que prescreve. Neste relato, aparece bem o
lugar particular e privilegiado do médico psicossomatista.
MANUAL DE TERAPIAS PSICOSSOMÁTICAS / 45
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