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Notas de aula Sociedade em Habermas

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SOCIEDADE: MUNDO DA VIDA E SISTEMA 
 (Notas de Aula) 
 
GAE 265 GESTÃO SOCIAL 
 
José Roberto Pereira 
Maio/2019. 
 
Texto Fundamentado em HABERMAS, J. Fundamentação linguística da sociologia. Lisboa, 
Edições 70, 2010. 350p. 
 
1. Esclarecimentos sobre o conceito de Sociedade em Habermas no âmbito das relações entre 
Mundo da Vida e Sistema 
 
 
 
 
O conceito de Sociedade em Habermas envolve as relações complexas entre mundo da vida e sistema. 
Tais relações são permeadas por interações e tensões que caracterizam a especificidade de cada 
sociedade em um dado horizonte de tempo, tendo como base a ação comunicativa. Tanto o mundo da 
vida quanto o sistema influenciam um ao outro em um movimento de reciprocidade dinâmico. 
O Mundo da Vida para Habermas (2010) é formado por três componentes, quais sejam: Cultura; 
Sociedade; Personalidade. Cultura diz respeito ao estoque de conhecimento que as pessoas utilizam para 
expressar suas interpretações acerca de um dado tema-problema no âmbito de um processo 
comunicativo em que se busca um entendimento. Sociedade diz respeito às ordens legítimas que 
asseguram a solidariedade como os grupos sociais e organizações nas quais se inserem as pessoas. 
Personalidade diz respeito à formação da identidade das pessoas e compreende suas competências de 
agir e falar na busca de um entendimento. 
Cada participante da ação comunicativa no âmbito das interações e tensões entre mundo da vida e 
sistema possui um “horizonte móvel” em que se basei suas interpretações, pois Habermas (2012) 
entende o mundo-da-vida de forma articulada e dinâmica. Portanto, o mundo-da-vida, enquanto estoque 
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de saberes e experiências é utilizado “como recurso interpretativo, como repositório linguisticamente 
organizado de suposições de fundo que se reproduz sob a forma de tradição cultural” (HABERMAS, 
2010, p. 156), como pode ser observado nos quadros 1 e 2. 
Componentes 
estruturais 
Processos de 
 Reprodução 
Cultura Sociedade Personalidade 
Reprodução cultural 
Esquemas de 
interpretação passíveis 
de consenso (“saber 
válido”) 
Legitimações 
Padrões de 
comportamento eficazes 
na formação, metas da 
educação 
Integração social Obrigações Relações interpessoais 
reguladas legitimamente Pertenças sociais 
Socialização Interpretações Motivações para ações 
conformes a normas 
Capacidades de interação 
(“identidade pessoal”) 
Quadro 1: Contribuições dos processos de reprodução para a manutenção dos componentes do mundo da vida. 
Fonte: Habermas (2012, p. 259). 
 
O mundo-da-vida constitui o pano de fundo da ação comunicativa, pois é nele que se realiza a 
reprodução cultural, a integração social e a socialização. Para Habermas (2012), todo o processo de 
entendimento ocorre mediante o pano de fundo de uma pré-interpretação originada no âmbito cultural e 
que, por meio da ação comunicativa, forma a intersubjetividade, recorrendo-se a três tipos de saberes 
existentes no mundo-da-vida: o saber de pano de fundo (próprio do mundo-da-vida), o saber contextual 
(referente a temas problematizados, de primeiro plano) e o saber relativo a um horizonte da situação. 
 
Componentes 
estruturais 
Processos de 
 reprodução 
Cultura Sociedade Personalidade 
Reprodução cultural 
Tradição, crítica, 
aquisição de saber 
cultural 
Renovação do saber 
eficaz em termos de 
legitimação 
Reprodução do saber de 
formação 
Integração social 
Imunização de um 
núcleo de orientações 
valorativas 
Coordenação de ações 
por meio de pretensões 
de validade reconhecidas 
intersubjetivamente 
Reprodução de padrões 
de pertença social 
Socialização Aculturação Internalização de valores Formação da identidade 
Quadro 2: Funções de reprodução do agir orientado pelo entendimento. 
Fonte: Habermas (2012, p. 261). 
 
Nesse sentido, o mundo-da-vida “pode ser representado como um acervo linguisticamente 
organizado de planos de fundo, que se reproduzem na forma de tradição cultural” (HABERMAS, 2015, 
p. 15). Assim, para Habermas (2010) a ação social não se limita à categoria trabalho, pois constitui um 
entre vários outros tipos de interação. Considera que a teoria sociológica da ação não se apega ao modelo 
do sujeito solitário, capaz de conhecimento e ação, mas busca se fundamentar na abordagem da 
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intersubjetividade. Nesse sentido, justifica sua investida na explicação dos conceitos de ação estratégica 
e ação comunicativa, assim como sistema e mundo da vida. Para isso, analisa, por um lado, os 
“mecanismos de coordenação de ações” e, por outro, no esclarecimento da pragmática formal. 
Para Habermas (2010) a busca por um acordo ou consenso não pode ser imposto, não pode resultar de 
coação, senão, perde a sua eficácia de coordenação de ações, pois perde o caráter de convicções comuns. 
Caso contrário, verifica-se a emergência do modelo teleológico de ação e ampliado para o modelo 
estratégico se incluir a expectativa de decisões adicionais de pelo menos mais um ator (racionalidade 
utilitarista). Neste caso, o código do dinheiro esquematiza possíveis tomadas de posição com base no 
jogo de interesses por parte dos atores, sem terem que se fiar na predisposição para a cooperação, e o 
critério para calcular e alcançar o êxito é a rentabilidade. É uma ação estratégica mediada pelo mercado, 
onde a linguagem é utilizada como recurso material que busca provocar um efeito perlocucionário. 
Para Habermas (2010) tanto o interacionismo simbólico quanto a etnometodologia fenologicamente 
enriquecida falham na sua tarefa de desenvolver um conceito de ação social porque não adotam a 
linguagem como função de coordenação de ação. 
Habermas (2010, p. 149) considera que só se conseguirá conceptualizar adequadamente a reprodução 
simbólica do mundo da vida quanto 
(a) identificarmos as referências ao mundo em que se enquadram os 
sujeitos que agem de forma comunicativa, (b) reformularmos o conceito 
da situação da perspectiva da acção orientada para o entendimento para 
distinguirmos as realizações que formam o contexto dos que são 
constitutivos do mundo da vida e, finalmente, (c) abandonarmos a 
perspectiva do actor para vermos aquilo com que a acção comunicativa 
contribui, por seu lado, para a conservação e a geração do mundo da 
vida [grifos meus]. 
Ao tratar sobre os conceitos de mundo e mundo da vida, Habermas (2010, p. 153-154) analisa que se o 
entendimento de ação for a resolução de situações (ou problemas no caso do DRPE), então o conceito 
de ação comunicativa destaca dois aspectos relevantes, quais sejam: “o aspecto teleológico da execução 
de um plano de acção e o aspecto comunicativo da interpretação da situação e da obtenção de um 
acordo”. A situação representa ou expressa um excerto de um dado mundo da vida relacionado a um 
tema. Por sua vez o tema está relacionado aos interesses e objetivos de ação de um dos participantes. 
Considerando o conceito de situação acima referido, Habermas (2010, p. 154) considera que os 
conceitos de “Mundo e Mundo da Vida podem ser distinguidos sob os dois pontos de vista da 
tematização de objetos e da limitação de margens de manobra interpretativos”. Na esteira de seus 
argumentos, Habermas (2010, p. 155) recomenda que se distinga o contexto da situação em relação ao 
contexto do mundo da vida. O contexto da situação diz respeito ao tema e o contexto do mundo da vida 
diz respeito ao “[...] contexto possível de uma tematização sem restrições para os enunciados com que 
os participantes de uma comunicação tornam um tema algo enquanto algo num mundo”. Além da 
cultura, Habermas (2010) considera também a sociedade e a personalidade como recursos, não apenas 
como restrições. Por isso, considera que o mundo da vida constitui o pano de fundo da ação 
comunicativa. 
Mesmo do ponto de vista funcional, Habermas (2010, p. 158) avalia que a ação comunicativa “serve 
para a transmissão e renovação do saber cultural; sob o aspecto da coordenação de acções visa a 
integração social e o estabelecimento de solidariedade;sob o aspecto da socialização, por fim, a acção 
comunicativa ajuda a estruturar identidades pessoais”. Portanto, pode-se afirmar que as tradições 
culturais se reproduzem pela ação comunicativa orientada pela busca do entendimento. 
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Habermas (2010) parte dos exemplos para explicar os significados de agir e falar: andar e dar ordens. 
No entanto, ambos exemplos podem ser considerados como ações, mas em um ato de fala 
compreendemos a intenção do sujeito e na ação de andar não podemos saber, a não ser que a pessoa 
fale. Para Habermas (2010, p. 173) “os actos de fala interpretam-se a si próprios, têm uma estrutura 
autorreferente”. 
Habermas (2010, p. 176) fala de “agir social ou de interação” mediados pela linguagem, para explicar 
os tipos de ação comunicativa e ação estratégica, que se distinguem, inicialmente, por meio do 
mecanismo de coordenação de ações e pela utilização da linguagem como medium para transmitir 
informações ou como fonte de integração social. Alerta para o fato de que, na relação entre locutores e 
ouvintes, um consenso não pode ser imposto a partir do exterior, e nem outorgado de um lado a outro. 
O pressuposto de Habermas (2010) é de que quem aceita uma ordem sente-se obrigado a cumpri-la, 
quem aceita uma afirmação acredita nela e orientará por ela o seu comportamento. Destacam-se aqui os 
atos ilocucionários (busca do entendimento pelo diálogo) e perlocucionários (fundamentado no 
convencimento). 
Habermas (2010, p. 180) considera que se “uma acção latentemente estratégica fracassa, mal o 
destinatário descubra que o seu adversário apenas fingiu interromper a sua orientação para êxito”. Pode-
se, a partir dessas considerações, pensar em um processo de aprendizagem com base na ação 
comunicativa e nas considerações de Paulo Freire sobre o processo de conscientização. 
 
2. Um modelo de circulação do poder político 
Por outro lado, o sistema é constituído por um conjunto de instituições formais com poder administrativo 
de decisões: espera privada, esfera pública, complexo parlamentar, organizações em geral. Ancorado na 
teoria dos sistemas do Estado, de Wilke, Habermas (2003a) desenvolve sua crítica com vistas a delinear 
um modelo sociológico adequado ao conceito de política deliberativa. Na visão de Wilke os sistemas 
políticos das sociedades ocidentais formam o que chama de Estado supervisor. 
Além disso, Habermas (2003a, p.84) considera que seus estudos demonstram a complexidade da 
sociedade moderna e que sua integração não pode ignorar o poder comunicativo do público de cidadãos: 
“Por esta razão, a política e o direito não podem ser entendidos como sistemas autopieticamente 
fechados”. Nesse sentido, considera, também, que o Estado de direito deve ser permeável ao mundo da 
vida, pois “(...) o sistema de ação política está envolvido em contextos do mundo da vida.”. 
Na perspectiva de compreender como o poder regulado pelo Estado de direito circula na sociedade, 
Habermas (2003a) apoia-se no trabalho de B. Peters, que trata dos processos de comunicação e de 
decisão do sistema político constitucional, os quais operam do centro para a periferia. O núcleo ou o 
centro do sistema político, formado pela administração (incluindo o governo), o judiciário e a formação 
democrática da opinião e da vontade (incluindo as corporações parlamentares) é formado, segundo 
Habermas (2003ª, p. 87), “(...) de modo poliárquico, que se perfila perante uma periferia ramificada, 
através de competências formais de decisão e de prerrogativas reais”. A descrição desse núcleo e seu 
entorno pode ser observada na Figura 1. 
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Figura 1. Complexos institucionais de decisões políticas baseado em Peters 
Habermas (2003a) considera que da forma como a esfera pública foi tratada por ele até então, como 
estrutura comunicacional enraizada no mundo da vida através da sociedade civil, ela se configura, na 
verdade, como 
um sistema de alarme dotado de sensores não especializados, porém, sensíveis 
no âmbito de toda a sociedade. Na perspectiva de uma teoria da democracia, a 
esfera pública tem que reforçar a pressão exercida pelos problemas, ou seja, 
ela não pode limitar-se a percebê-las e a identificá-las, devendo, além disso, 
dramatizá-las de modo convincente e eficaz, a ponto de serem assumidos e 
elaborados pelo complexo parlamentar (Habermas, 2003a, p.91). 
Assim, esfera pública é definida por Habermas (2003a, p. 92) como “Uma rede adequada para a 
comunicação de conteúdos, tomados de posição e opiniões; nela os fluxos comunicacionais são filtrados 
e sintetizados, a ponto de se considerarem em opiniões públicas enfeixadas em termos específicos.”. 
Portanto, a esfera pública se reproduz por meio do agir comunicativo e está “(...) em sintonia com a 
compreensibilidade geral da prática comunicativa cotidiana”. Além disso, Habermas (2003a, p. 92) 
considera que “a esfera pública constitui principalmente uma estrutura comunicacional do agir 
orientado pelo entendimento, a qual tem a ver com o espaço social gerado no agir comunicativo, não 
com as funções nem com os conteúdos da comunicação cotidiana”. A partir dessas considerações pode-
se caracterizar a “Esfera Pública”: 
a) É um fenômeno social; 
b) Não pode ser entendida como uma instituição ou organização; 
c) Não constitui um sistema; 
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d) É possível delinear seus limites internos, mas externamente, se caracteriza pelos horizontes 
abertos, permeáveis e deslocáveis; 
e) Se reproduz por meio do AGIR COMUNICATIVO; 
f) Está em sintonia com a compreensibilidade geral da prática comunicativa cotidiana; 
g) Deixa ao cargo do sistema político a elaboração especializada; 
h) Constitui uma estrutura comunicacional do agir orientado pelo entendimento; 
i) A generalização da esfera pública é possível por meio da mídia e da internet; 
j) A opinião pública que forma a esfera pública não constitui um agregado de opiniões individuais 
pesquisadas uma a uma ou manifestadas provadamente (não pode ser confundida como Pesquisa 
de Opinião); 
k) Na esfera pública luta-se por influência política; 
l) “As opiniões públicas podem ser manipuladas, porém não compradas publicamente, nem 
detidas à força” (p. 97). 
Por outro lado, é importante lembrar que a esfera pública que formou a sociedade burguesa difere 
totalmente da esfera pública que forma a sociedade civil contemporânea. O núcleo da sociedade civil 
contemporânea é formada “por associações e organizações livres, não estatais e não econômicas, os 
quais ancoram as estruturas de comunicação da esfera pública nos componentes sociais do mundo da 
vida” (HABERMAS, 2003a, p. 99). 
 Segundo Habermas (2003a, p. 99) 
O núcleo da sociedade civil forma uma espécie de associação que 
institucionaliza os discursos capazes de solucionar problemas, 
transformando-os em questão de interesse geral no quadro de esferas 
públicas. 
Nesse sentido, a sociedade civil exerce influência política sobre a formação institucionalizada da opinião 
e da vontade. Cohen e Arato (1992) citam um “catálogo de características identificadoras da sociedade 
civil”, a qual, se apoiando em direitos fundamentais, não se identifica com o Estado, nem com a 
economia e nem com outros sistemas de funções sociais, que podem ser sintetizadas assim (Habermas, 
2003a, p. 100-101): 
a) Pluralidade 
b) Publicidade 
c) Privacidade 
d) Legalidade 
 
Habermas (2003a, p. 116) faz uma importante consideração a esse respeito: “O poder comunicativo, 
introduzido para fins de planejamento da sociedade, não gera formas de vida emancipadas”. Inspirado 
no conceito de esfera pública apresentado por Habermas (2003a), pode-se inferir que o papel da Gestão 
Social seria sistematizar o saber alternativo; estruturar avaliações técnicas especializadas para o bem 
comum, fortalecer a esfera pública fornecendo ou municiando de informação de qualidade. Com isso, a 
gestão social torna-se capaz de converter os fluxos comunicacionais das esferas públicas em ações e 
decisões políticas a partir de sua organização na sociedadecivil. É, portanto, uma ação gerencial 
dialógica voltada para o bem comum e para o interesse público não estatal. 
Por outro lado, Habermas (2003a, p. 107) identifica barreiras e estruturas de poder que surgem no 
interior da esfera pública e analisa que em sociedades complexas “a esfera pública forma uma estrutura 
intermediária que faz a mediação entre o sistema político, de um lado, e os outros privados do mundo 
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da vida e os sistemas de ação especializadas em termos de função, de outro lado”. Essa estrutura 
intermediária e suas funções são próprias do que chamamos, no Brasil, de gestão social. 
Dessa estrutura, segundo Habermas (2003a), de acordo com a densidade de comunicação, da 
complexidade organizacional e do seu alcance, formam-se três tipos de esfera pública: 
a) Esfera pública episódica – bares, cafés, encontros na rua; 
b) Esfera pública da presença organizada – encontros de pais, público que frequenta teatro, 
concertos de rock, reunião de partidos ou congressos de igrejas; 
c) Esfera pública abstrata – produzida pela mídia (leitores, ouvintes e espectadores singulares 
e espalhados globalmente). 
Uma das barreiras que impede ou dificulta o avanço ou a politização da esfera pública é o denominado 
“quatro poder”. 
A personalização das questões objetivas, a mistura entre informação 
e entretenimento, a elaboração episódica e a fragmentação de 
contextos formam uma síndrome que promove a despolitização da 
comunicação pública (HABERMAS, 2003a, p. 110). 
Segundo Habermas (2003a) a superação das barreiras está fundamentada na capacidade de colocar 
determinados temas novos e politicamente relevantes na ordem do dia e de determinar a orientação dos 
fluxos de comunicação. Para conseguir colocar um tema público periférico na agenda do núcleo político 
pode ser necessário, segundo Habermas (2003a), protestos de massas e de longas campanhas. A 
desobediência civil é outro meio de superação de barreiras própria de uma sociedade madura e 
igualitária. 
Para Habermas (2003a, p. 120-121) o sistema político fracassa em sua função primordial de integração 
social quando suas decisões se distanciam do direito legítimo, ou seja, “quando o sistema administrativo 
se torna independente em relação ao poder produzido comunicativamente”.