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Tiago Cap 2 14-26, François Vouga

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Tiago escolhe como o primeiro exemplo Abraão e ele adota nesta perícope uma terminologia paulina. Ora, Abraão é precisamente o exemplo que o apóstolo Paulo invoca no debate (Rm 4; Gl 3 - 4) contra os judeus-cristãos que queriam reintroduzir práticas legalistas nas comunidades cristãs.
Tiago retoma o mesmo testemunho escriturístico para defender uma tese sensivelmente diferente de Gl ou de Rm. Para Paulo, Abraão é o modelo do fiel porque teve fé em Deus (Rm 4: 3), porque esperou com toda a esperança (Rm 4,18), e esta confiança nas promessas de DEUS lhe foi contada como justiça (Rm 4, 3. 9. 22). Sua conclusão é a seguinte: "Ora a quem faz um trabalho, o salário não é considerado como gratificação, mas como débito; a quem, ao invés, não trabalha, mas crê naquele que justifica o ímpio, é sua fé que é levada em conta de justiça " (Rm 4, 4-5). 
Daí ele deduz que isso não diz respeito apenas a Abraão, mas a nós também, “nós a quem a fé será contada, porque cremos n’ Aquele que ressuscitou dentre os mortos a Jesus, nosso Senhor” (Rm 4, 24). 
É justificado não aquele que cumpre as obras -subentendido: as obras da Lei -, mas aquele que tem confiança e se entrega a graça de Deus, Àquele que merece crédito (é impossível que Deus minta, Hb)!
Tiago situa-se em outra perspectiva. Como Paulo, ele cita Gn 15, 6: "Abraão teve fé em YHWH, e por isso YHWH considerou-o justo". Este versículo conclui o relato no qual Deus promete a Abraão o nascimento de seu filho Isaac. Exprime a confiança do fiel na promessa divina. 
Foi bem assim que Paulo compreendeu: a longa elaboração de Rm 4, 9-12. 13-22 mostra-o tão bem quanto o contexto da citação de Gl 3, 6.
Tiago, segundo a tradição judaica, interpreta-o explicitamente a partir de Gn 22, 9: "...quando alçou ao altar Isaac seu filho", v. 21. A combinação significa: é na marcha de Abraão rumo ao sacrifício de Isaac que se cumpriu a Escritura que diz "Abraão creu em Deus e isso foi contado como justiça" em Gn 15. Mas trata-se da fé posta à prova (Gn 22, 1), que a obediência à palavra de Deus (Gn 22, 1-2) obriga a arriscar tudo, inclusive a promessa e a esperança! 
Ora, é precisamente esta perseverança na provação (Tg 1, 2-4), esta fidelidade arriscada esta obediência árdua que Tiago chama "obras da fé" (ex érgon): Abraão foi justificado (v.21) não somente porque confiou na promessa, mas porque sua fé resistiu e suportou a dureza da prova! 
Neste sentido as obras de que fala Tiago nada mais são senão a resistência da fé. A questão já não é, na nossa epístola, a do retorno ou não às observâncias rituais dos judeu-cristianismo (Gl e Rm), mas a da fé que deve aguentar-se a longo do termo. Já não se trata de ter esperança, mas de permanecer na esperança e perseverar nela!
É disso que Abraão dá testemunho. E é nisso que, pai dos que creem, foi chamado "amigo de Deus": filos Théou. Este qualitativo pertence a uma longa tradição judia e depois cristã (cf. Dn grego 3, 35, etc) que parecem encontrar sua origem em textos como Gn 18, 17; 19; Is 41, 8; 51, 2; 2 Cr 20, 7, nestes últimos, Abraão é chamado amado de Deus. É a iniciativa tomada para com o patriarca: a amizade de Deus para com Abraão. Na sequência de variações sobre este tema no judaísmo, a fórmula da nossa epístola é bem mais ambivalente: filos Théou pode significar, aqui como em 1 Clem., a amizade de Abraão para com Deus (genitivo objetivo) tanto quanto a amizade de Deus para com Abraão (genitivo subjetivo). A expressão é interpretada, como a citação de Gn 15, 6 no mesmo v. 23, a partir da referência a Gn 22 do v. 21, de sorte que ela coroa a obediência e a perseverança dos justos; é apresentada como corolário da fidelidade provada do fiel.
Que conclui Tiago do exemplo de Abraão? 
Que é justo diante de Deus o fiel cuja fé suscitou obras e estas cumpriram a fé, v. 22. Syegein, v. 20, (que faz um jogo de palavras com argé: estéreo) significa "trabalhar com", "ajudar no trabalho", "dar assistência". Comum no grego clássico, só aparece duas vezes na Septuaginta e quatro vezes no NT. 
Em Mc 16,20 e em Rm 8, 28, onde Jesus e Deus são os sujeitos do verbo: o Senhor age com os discípulos enviados em missão ( Mc 16, 20) e Deus obra para o bem, em tudo, com aqueles que O amam (Rm 8, 28). Em 2 Cor 6, 1, trata-se da colaboração apostólica na ação de graças do Senhor e, em 1 Cor 16, 16, de compartilhar o serviço dos santos na comunidade. 
Na nossa epístola, é a fé que, segundo o exemplo de Abraão, "age com suas obras", "trabalha com seus atos". E por seus atos é cumprida a fé: teleioun (único emprego em Tiago de um verbo frequente em outras cartas) significa "acabar", "realizar", "executar", e depois "completar", "levar a bom termo", "cumprir". O que importa para Tiago é sublinhar a edificação mútua da fé e de seus atos: a fé se estrutura e chega à maturidade (sentido intransitivo de teleioun!) no risco assumido de seus engajamentos. É por isso, finalmente, v. 24, que aquilo que faz o homem justo não é apenas sua confissão religiosa (não pela fé somente, onde a ênfase é posta em monon, "somente"), mas que ele se mantenha em suas convicções enquanto resiste à prova, naquilo que vive e naquilo que faz ( ex érgon, "pelas obras": aqui obras é obediência da fé e não as obras da Lei; cf 1 Clem. 30, 2: sejamos justos em atos, não em palavras).

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