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SEMIÓTICA APLICADA AO DESIGN AULA 1 Prof.ª Suzie Ferreira do Nascimento 2 CONVERSA INICIAL Em nossos estudos, serão reunidos alguns tópicos de semiótica, que a prática demonstrou serem úteis no dia a dia do designer. Com a infinidade de tarefas que temos de desempenhar, é preciso ser muito criterioso no uso do tempo, por isso, o objetivo é fazer com que cada tópico contribua para a qualificação do seu trabalho. Claro, toda seleção requer incluir alguns assuntos e abdicar de outros. Então, fique atento: este não é um conteúdo que ambiciona ser profundo na complexa ciência da semiótica, mas sim utilizar alguns dos seus preceitos na prática do design. Agora, se você se apaixonar pelo tema (como se espera que aconteça), então precisará procurar outros livros, alguns deles citados inclusive neste conteúdo, combinado? Então vamos lá. CONTEXTUALIZANDO No século XVII, John Locke (1632-1704), um importante filósofo britânico, utilizou a palavra semeiotiké para se referir aos seus estudos sobre semiótica. E por que ele teria escolhido essa palavra? Trata-se de uma palavra grega que pode ser muito útil à aproximação entre semiótica e design. Ela designa a atitude de interpretar determinado sinal, e sua origem está na medicina. No passado, se um paciente ia ao médico com manchas amarelas no corpo, o doutor precisava interpretar aquele sinal, ou seja, precisava deduzir o que estava errado no corpo do paciente a partir de uma indicação puramente visual. Pense que você deverá se utilizar da semiótica para fazer o trajeto inverso, ou seja, ela pode te ajudar a encontrar o sinal, a tal mancha amarela, que deve significar alguma coisa demandada do projeto que o seu cliente (ou seja, quem te contrata para desenvolver o projeto) leva expressa interiormente. O objetivo do designer, seja qual for a sua especialidade, à luz da semiótica, é justamente oferecer o produto que encontre ressonância nas necessidades emocionais do cliente usuário/público. Em outras palavras, cabe ao designer significar aquela necessidade. 3 Saiba mais Além de Locke, Aristóteles e São Tomás de Aquino são outros dois nomes importantes para o desenvolvimento da ciência da semiótica. Saiba mais lendo as páginas 21 e 22 do livro Semiótica e produção de sentido: comunicação, cultura e arte, de Max Costa e André Dias, da Editora Intersaberes. TEMA 1 – A INTERDISCIPLINARIDADE DA SEMIÓTICA – POR QUE SEMIÓTICA É FUNDAMENTAL AO DESIGN? Os conhecimentos produzidos pela semiótica, ou seja, pelo estudo das maneiras com as quais é possível significar alguma coisa, são de grande utilidade para inúmeros outros campos. Quem estuda o desenvolvimento da linguagem humana se interessa por mecanismos de comunicação e recorrerá à semiótica para compreender como uma coisa indefinida e abstrata é substituída por outra, representada ou concreta. Assim, certamente você já encontrou, ou encontrará, estudos, pesquisas e situações no seu cotidiano em que é possível sentir o aroma da Semiótica. Se liga A ciência da semiótica se ocupa do estudo das maneiras com as quais é possível significar alguma coisa. Mencionarei alguns possíveis exemplos: o estudo das cores geralmente reserva boa parcela da sua teoria para o significado. Alguns deles são baseados em convenção1, como o vermelho da paixão, outros em reações fisiológicas, como o amarelo do perigo, outros ainda em semelhança, como o verde da natureza, e assim por diante. Quase sempre a cor está no lugar de, ou significa, outra coisa. Um clássico da análise semiótica das cores é o livro Homem, comunicação e cor, publicado no ano 2000, por Irene T. Tiski-Franckoviak. Nesse livro de influência freudiana, a autora se aprofunda nos aspectos subjetivos da nossa reação às 1 Convenção é um acordo, explícito ou implícito, sobre quais sinais significam quais coisas. 4 cores, e isso tem tudo a ver com as escolhas que o designer deve fazer, se quiser produzir artefatos e representações significativas. Figura 1 – Designer selecionando cores Crédito: Beautrium/Shutterstock. Qualquer disciplina que se ocupe de representações gráficas deverá, também, tangenciar os estudos da semiótica. Uma linha, para quem a vê, dificilmente será só uma linha. Ela está ali significando algo, desde uma estrada à trajetória de uma seta, ou mesmo o contorno definido para alguma coisa que não o tem naturalmente. Além disso, uma linha reta causa impressões diferentes das causadas por uma linha curva e, com isso, significa alguma coisa diferente. E mesmo linhas de um mesmo tipo podem significar coisas diferentes. Veja, por exemplo, as Figuras 2 e 3. Nos dois casos, a representação é composta por linhas curvas em preto. No entanto, na Figura 2, as linhas estão no lugar de ondas, enquanto na Figura 3, no lugar de uma rede. https://www.shutterstock.com/g/Beautrium 5 Figura 2 – Linhas curvas, formando ondas, em preto e branco Crédito: Mastak80/Shutterstock. Figura 3 – Grade em linhas pretas sobre superfície curva branca Crédito: savva_25/Shutterstock. https://www.shutterstock.com/g/Mastak80 https://www.shutterstock.com/g/savva_25 6 Com as formas não é diferente: quem quer que olhe para um círculo, saberá que ele é capaz de rolar, enquanto um quadrado, e um triângulo assentado em sua base, não se movem, exceto se forem arrastados. Mas onde fica a significação nesse caso? Justamente no fato de um círculo significar a capacidade de rolar, ou entrar em movimento, mesmo estando parado, e em uma representação plana. Quem utiliza o círculo para significar alguma coisa em movimento não precisa mover, realmente, nada, basta representar o círculo. Figura 4 – Formas geométricas Crédito: Wolf_139/Shutterstock. Veja este outro exemplo, agora vindo da moda: suponha que um produtor tenha o desafio de apresentar um vestido fluido em uma foto, que é uma imagem parada representada bidimensionalmente, ou seja, ele precisa significar a fluidez, que é um atributo que geralmente as pessoas percebem com o tato e em movimento. https://www.shutterstock.com/g/wolf1983 7 Figura 5 – Vestido em movimento Crédito: Inara Prusakova/Shutterstock. Se você observar bem, concluirá que a imagem representada na Figura 5 não permite saber se todo aquele movimento aconteceu, de fato, no estúdio, ou se é um efeito gráfico. O que conta é que o olho do observador entende, sem necessitar do auxílio do tato, que o tecido é leve. Ou seja, quem produziu a foto encontrou uma maneira eficiente de significar a fluidez. Quem trabalha com interiores faz significação o tempo todo. Mas fique atento: para entender a significação, você precisa sempre perguntar o que aquelas cores e materiais estão substituindo. A foto da Figura 6, por exemplo, tem cores diversas, metal, madeira e uma cadeira de plástico. O que essas coisas substituem? O metal e o plástico não existem sem tecnologia, por isso é possível dizer que eles estão significando a tecnologia e a modernidade. As cores vibrantes e justapostas são comuns em brinquedos, ou seja, elas estão significando atributos comuns na infância, como despreocupação e expectativa de futuro. Já os pufes coloridos, que parecem ser manufaturados, estão significando o valor de coisas feitas à mão, eventualmente a lembrança de uma avó. Claro que nada disso é obrigatório. Você verá ao longo deste conteúdo https://www.shutterstock.com/g/inarik 8 que tudo é um jogo e que o designer precisa da Semiótica para ter maiores chances de ganhar, ou seja, acertar na significação. Figura 6 – Ambiente moderno, com sofá cinza e almofadas coloridas Crédito: Ground Picture/Shutterstock. A arquitetura é repleta de sinais que substituem inquietações humanas. Um observador atencioso poderá compreender a alma humana observandoas espaçosas casas do interior, os barracos nas beiradas dos morros, os prédios das metrópoles. Um ensaio muito sensível a respeito da Arquitetura das cidades de Berlim e Viena no fim do século XIX foi escrito por Georg Simmel em 1903, e leva o título, em português, de As Grandes Cidades e a Vida do Espírito (Nascimento, 2016). Mas talvez não seja equivocado dizer que a arte que mais investe em semiótica é o cinema. A chamada sétima arte é feita, basicamente, de coisas que significam outras coisas. Em um filme, o cineasta deve oferecer, pelo olho, informações como cheiros, sensações de frio e calor, emoções de amor e ódio e isso exige ser muito bom na arte da substituição. Se você se interessa pelo tema, sugiro filmes de Steven Shainberg e de Wes Anderson. Assistindo algumas vezes A Pele, que Shainberg produziu em 2006, o espectador é forçado a admitir que quase todas as imagens são ricas em significado. https://www.shutterstock.com/g/Ground+Picture 9 Figura 7 – Cena do filme A pele, de Steven Shainberg Crédito: Rotten Tomatoes Classic Trailers. Conhecendo a trama, compreende-se, pela Figura 7, que o vestido abotoado até o pescoço está no lugar da opressão que a personagem está sentindo, que a pele sobre os ombros está no lugar do peso que ela carrega (sobretudo considerando a relação com a mãe modista), que os dois liquidificadores estão ali para dizer que, para aquele grupo social, o lugar dela é na cozinha, e não junto aos convidados. Tudo isso dito em uma única cena, pela correta significação. Portanto, com o recurso à semiótica, o cineasta está multiplicando a capacidade comunicacional do filme. Em uma Arte cara como o cinema, isso é muito importante. O cinema também retira proveitos comunicacionais da Arquitetura. Portas, janelas, transparências, dimensões e materiais, se utilizados com critério, emitem discursos e narrativas complexas, que fascinam o espectador. Um excelente exemplo, neste caso, é o filme iraniano A Separação, de Asghar Farhadi (Nascimento, 2017), e I am love, que Luca Guadagnino produziu em 2011. Até aqui você conheceu algumas aplicabilidades da semiótica em várias áreas. Na sequência, apresentaremos um resumo geral de nossos estudos. TEMA 2 – VISÃO GERAL 2.1 Visão geral dos estudos sobre semiótica aplicada ao design Neste tópico, apresento a você uma prévia do que será tratado em nossos estudos. Assim, você já fica sabendo quais conhecimentos adquirirá estudando este conteúdo e de que maneira ele será útil para a sua vida profissional. 10 Iniciando nossas discussões, o propósito é fazer com que você reconheça que a semiótica é muito importante para a vida e para a sua atividade profissional. Você aprenderá que se trata de uma ciência que estuda uma característica humana vital à nossa sobrevivência, que é a significação, ou seja, a Arte de trocar uma coisa por outra. Se liga Significar é trocar uma coisa por outra. Depois, procuraremos convencê-lo de que é muito importante investir em um bom repertório de significações, ou seja, gostaria que entendesse que precisa ter uma reserva qualificada de experiências se quiser ter sucesso na utilização dos signos. Sem isso, não terá segurança ao decidir o que deve ser trocado pelo o quê. Esse repertório é necessário porque trabalhar com signos é também trabalha com as sensações, emoções e desejos, seus e do cliente. Isso quer dizer que o cliente se relacionará com seu produto de maneira muito pessoal e, por isso, você precisa compreender, ainda que de modo breve, o que é a subjetividade humana. Apresentaremos, ainda, o primeiro ferramental objetivo para que você saiba como utilizar a semiótica a seu favor. Será feita a introdução ao sistema triádico (de três partes) no qual o seu produto deverá ser inserido como signo. Você aprenderá que o seu produto deve significar, ou seja, estar no lugar das emoções, sentimentos e desejos da pessoa que vai adquiri-lo. O segundo ferramental importante será apresentado em nossos estudos, quando abordarmos três categorias que servem para qualificar as maneiras com as quais o seu cliente poderá encontrar suas próprias emoções significadas no seu produto. Essas categorias priorizam as relações estimuladas por semelhança (ícone), por alusão (índice) e convenções (símbolo). Você também terá a oportunidade de conhecer ainda uma terceira ferramenta de grande utilidade para nós, designers. Neste caso, são outras três categorias que ajudam a organizar seu produto em três dimensões. Com essa separação, você conhecerá melhor as suas produções e seus projetos ficarão mais organizados. 11 Finalizando nossos estudos, vamos recapitular os principais conceitos aprendidos, de maneira aplicada a projetos de design, em que apresento e analiso vários exemplos práticos. Figura 1 – Mapa mental de nossos estudos SIGNIFICAÇÃO, UMA PECULIARIDADE HUMANA Você compreenderá por que a Semiótica é tão importante. Entenderá que se trata de uma Ciência que estuda uma característica humana vital à nossa sobrevivência, que é a significação, a arte de trocar uma coisa por outra. REPERTÓRIO, SUBJETIVIDADE você reconhecerá a importância de ter um bom repertório de signos e deverá entender que esses signos são produzidos por subjetividades bastante complexas. INTRODUÇÃO À TRÍADE DA SIGNIFICAÇÃO Depois de compreender a ideia geral, SERÁ a hora de reconhecer que os produtos dos designers devem ter significação, ou seja, eles devem substituir sensações, emoções e desejos, para seu cliente em potencial. RELAÇÕES ICÔNICAS, INDICIAIS E SIMBÓLICAS você conhecerá uma ferramenta importante para conseguir produzir um design significativo: as relações icônicas, indicias e simbólicas. ORGANIZANDO O PRODUTO EM DIMENSÕES Você conhecerá outro ferramental útil, que são as dimensões sintática, semântica e pragmática. Com elas você estuda a produção de outros profissionais e organiza a sua própria, porque conseguirá dividir o seu produto em três dimensões. A INTERDISCIPLINARIDADE DA SEMIÓTICA. Serão apresentados vários exemplos da aplicabilidade da semiótica em diversos segmentos do Design. Até aqui apresentei um panorama geral de nossos estudos. A seguir, apresento alguns conceitos introdutórios. O objetivo é que você se familiarize com um contexto mais amplo no que se refere à significação, se preparando para o que vem nas etapas seguintes. Vamos lá? 12 2.2 Visão geral dos tópicos estudados 2.2.1 Significar é trocar uma coisa por outra Um dos princípios que você não deve esquecer, nem perder de vista ao estudar este conteúdo, é que o que importa para os sistemas de signos são as substituições. Trata-se de compreender como nós, humanos, substituímos algumas coisas por outras, e com que finalidade. Sob o ponto de vista prático, essa compreensão interessa porque você, como designer, precisará encontrar substitutos eficazes na sua área. Conforme exemplifiquei no tópico anterior, quase todas as atividades do design trabalham com substituições, pois não é possível colocar sentimentos e sensações de modo concreto em uma imagem, ou mesmo em um ambiente. Se o que você faz será percebido somente pela visão, então todas as informações têm de ser substituídas por imagem. Suponha que você fará uma foto de comida e nessa imagem não pode haver pessoas, ou ambientação, o que impede razoavelmente o uso da memória. Que recursos você utilizaria para convencer o observador de que ela é saborosa? Como, por meio de uma informação visual, poderá fazer com que esse observador sinta “água na boca”? Figura 8 – Foto de comida com ênfase no enquadramento Crédito: Timolina/Shutterstock. https://www.shutterstock.com/g/timolina 900152 Realce 13 Figura 9 – Foto de comida com ênfase nas cores e no brilho Crédito: Kritchai7752/Shutterstock. Figura 10 – Fotode comida com ênfase na elegância Crédito: Pietruszka /Shutterstock. https://www.shutterstock.com/g/Kritchai7752 https://www.shutterstock.com/g/Pietruszka 14 Analise comigo os exemplos nas Figuras 8, 9 e 10. A foto da Figura 8 explora mais a questão do enquadramento, colocando os elementos em diagonal e aproximando o recheio da câmera, e a tábua de madeira ajuda a dar realidade à medida que a foto favorece sua textura. Na Figura 9, a ênfase está no brilho e nas cores, que são evidenciados pelo contraste com o branco do prato e a palha fosca do suporte. Finalmente, na Figura 10, o produtor parece querer transmitir a ideia de sofisticação pela cor e pelo fino fio de molho que cai. Perceba que todos esses recursos estão nas fotos em substituição ao paladar saboroso. E o mais incrível é que funciona, ou seja, nós, humanos, conseguimos assimilar esse sistema de trocas, mais do que isso, fazemos uso dele constantemente. 2.2.2 Sistemas organizados de substituição Mas será que só humanos significam? Provavelmente não. Onde há comunicação entre animais da mesma espécie, é porque existe algum tipo de significação. Veja o exemplo das baleias: elas emitem sons e vibrações que significam alguma coisa para outras baleias; embora não seja possível dizer exatamente como isso acontece, o fato é que determinados sons para as baleias significam perigo. E entre os humanos, será que toda a significação depende de um acordo prévio, ou fazemos isso naturalmente, como as baleias? Você pode responder a essa pergunta imaginando que precisa pegar um ônibus em um lugar, cujo idioma não conhece. Como irá fazer com que seu interlocutor entenda o que precisa? Como fará para ser compreendido? Fará gestos? Apontará? Imitará algum som? Dramatizará? Enquanto você se esforça por encontrar o recurso mais adequado para colocar no lugar do ônibus, provavelmente seu interlocutor estará buscando nas suas experiências, algo que possa equivaler àquilo que ele vê você fazendo. Eventualmente, ele encontrará, na sua própria mente, a figura do ônibus correspondente aos signos que você estava produzindo. Conforme Nietzsche explica, o olho do observador “conclui” o estado emocional que produz os gestos (Nietzsche, 2005, p. 43). Se o nosso olho é capaz de “concluir” alguma coisa, isso demonstra que nossa capacidade de significação não está limitada ao que já está convencionado. 15 Mas, com esse simples e exótico exemplo, você já pode ter uma ideia de como seria difícil a nossa vida se a todo o momento tivéssemos de ficar experimentando significações. Por isso, é vital recorrer às convenções. É preciso que diferentes tribos saibam o que significa um sinal de fumaça, que muitas pessoas saibam o significado das letras SOS, que todos os que dirigem saibam os significados das placas de trânsito, e assim por diante. Figura 11 – Ícones utilizados em tecnologias digitais Crédito: Deemerwha studio/Shutterstock. Em termos mais atuais, pense na quantidade de sinais que aparecem no seu celular e na maneira quase instintiva com a qual você os compreende. No exemplo da Figura 11, se a pessoa não souber o significado de todos aqueles ícones, terá de ler um manual, o que hoje é quase impraticável. Exemplos como esse mostram a importância das convenções que regem os sistemas mais comuns de significação. Mas você concluirá que o designer precisa ir além daquilo que já está convencionado. Neste sentido, ele desempenha papel de artista. 2.2.3 Arte: onde tudo começa É preciso estabelecer, desde já e com clareza, o que é arte no contexto dos estudos da comunicação. https://www.shutterstock.com/g/Khanchit+khirisutchaluai 16 O filósofo Friedrich Nietzsche (1844–1900), profundo conhecedor do tema, certa vez anotou em um fragmento a seguinte frase: prazer comunicado é Arte (Nietzsche, 2005, p. 43). Essa definição nos ajuda bastante, porque determina que arte é uma atividade que comunica uma sensação (Nascimento, 2014). É importante compreender esse princípio porque existem outros conceitos de arte e nem todos são condicionados à comunicação. Um artista contemporâneo pode muito bem expressar a si mesmo em alguma arte e não ser compreendido. Para a atividade do design, no entanto, a comunicabilidade é fundamental. Nietzsche, principalmente nos primeiros anos da sua produção filosófica, entendeu que o artista era um criador de signos. E com criador, nesse caso, ele queria dizer alguém que apresenta ao mundo a representação de algo até então não representado. Pode parecer estranha a ideia de que nós, em pleno século XXI, ainda necessitemos de novos signos. Você provavelmente acha que tudo já está significado, mas isso não é verdade. Um ser humano que nunca passou pela experiência de perder uma pessoa querida desconhece a sensação, e não tem, ainda, para ela um signo, algo para pôr em seu lugar. É verdade que há inúmeras músicas, imagens, poemas falando de morte, mas não é seguro que algum desses recursos consiga significar aquela dor individual. Voltando ao exemplo das tecnologias atuais, imagine quantas novas angústias o ser humano contemporâneo está experimentando sem que nenhum artista tenha criado ainda um signo para elas. O fato de as pessoas começarem atividades adultas muito cedo, por exemplo, gera um problema de significação. Um adolescente de 12 anos não tem a mesma sensação, no que diz respeito à paixão, que um adulto de 30. Os signos que ele terá de utilizar, muito provavelmente, serão tão inadequados quanto os signos infantis são para um adulto. Retornando à prática do design, o desafio no mundo competitivo de hoje é encontrar esses nichos, sensações e sentimentos para os quais ainda não haja significação ou, pelo menos, encontrar novas maneiras de significar o que já foi significado. A maioria de nós manipula signos existentes, repete imagens, palavras e sons de rápida assimilação. O estudo da Semiótica pode ajudá-lo a fazer diferente. 17 Até aqui foram apresentados os conceitos mais fundamentais para nossos estudos. Nos próximos tópicos, escreverei mais pausadamente sobre cada um deles. TEMA 3 – SIGNIFICAR É SUBSTITUIR UMA COISA POR OUTRA No tópico anterior, apresentei as principais ideias que serão desenvolvidas. Você já sabe, então, que aqui nos aprofundaremos no entendimento de que aplicar Semiótica tem a ver com saber como substituir coisas. Existem vários motivos pelos quais um designer precisa saber substituir. O mais comum é a impossibilidade técnica. Você não pode trazer para o seu produto o mar, o céu, uma árvore, um pet etc. Nada disso pode estar concretamente no seu produto, por isso precisa ser substituído por outra coisa. Vamos comparar as Figuras 12 e 13. Figura 12 – Mulher carregando sacola de tecido Crédito: Roman Zaiets Shutterstock. https://www.shutterstock.com/pt/g/romaset 18 Figura 13 – Ilustração de bolsa com apetrechos de praia Crédito: Stokkete/Shutterstock. O que você vê na sacola da Figura 12 é uma sacola que pretende substituir, ou estar no lugar de, uma atitude mais ecológica, posto que parece ser feita de algodão, em um modelo muito simples, ou seja, algo que a pessoa mesma pode fazer em casa se desejar. Com isso, o observador é levado a pensar que aquela sacola é ecologicamente amigável, e a sacola ecologicamente amigável estará no lugar do desejo que essa suposta pessoa tem, de não agredir a natureza. A sacola da Figura 13 apresenta outro tipo de substituição. A alça feita em corda e as listras horizontais azuis são elementos comuns em barcos, ou seja, eles estão ali em substituição ao barco, que não pode estar na sacola. Quem produziu a sacola da Figura 13 trouxe elementos concretos, ainda que frações, ou seja, pequenas partes de um barco de verdade. A pessoa que compra a sacola estará, na verdade, comprando umartefato que está no lugar do seu desejo de tirar férias em um barco, ou coisa semelhante. A imagem, no entanto, demonstra que o fotógrafo achou que esses pequenos detalhes não eram suficientes e acrescentou uma série de outros objetos mais óbvios, como a estrela-do-mar, apetrechos de férias, e ainda a praia ao fundo. Fotos como essa são produzidas para consumo rápido e pretendem não deixar margens à dúvida. O observador deve compreender de modo imediato do que se trata, deve ser convencido, a todo o custo, de que as férias que ele deseja estão representadas por aquela sacola. Alguns programas televisivos são produzidos https://www.shutterstock.com/g/cyano 19 nesta mesma chave. Você os identifica pela extenuante repetição das falas e pelo exagero emocional que, geralmente, vem acompanhado do exagero de cores e sons. Compare esse excesso de informações com a Figura 14. Figura 14 – Tigela de pipoca com controle-remoto Crédito: PitukTV/Shutterstock. O que os dois controles da imagem da figura 14 substituem? Obviamente uma televisão ou aparelho similar. Indo além, a imagem toda substitui o momento de relax, que é o desejo do observador. E isso com economia de informação. Você provavelmente concordará, com base no comparativo entre as Figuras 13 e 14, que excesso não é garantia de melhor comunicação. Agora vamos ao terceiro exemplo de sacolas. Observe com atenção as Figuras 15 e 16. https://www.shutterstock.com/g/PitukTV 20 Figura 15 – Mochila amarela Crédito: maximmmmum/Shutterstock. Figura 16 – Ônibus escolar Crédito: Prostock-studio/Shutterstock. O objetivo do designer, neste caso, foi apresentar ao cliente uma mochila que pudesse substituir o ônibus que leva as crianças para a escola. O que importa no exemplo são as maneiras com as quais o nosso companheiro de https://www.shutterstock.com/g/maximmmmum https://www.shutterstock.com/g/prostock_studio 21 profissão trouxe elementos do ônibus, atendo-se unicamente à forma e às cores. Isso faz com que parte do trabalho fique à cargo do observador, pois é ele quem tem que fazer todas as demais associações. Um produto como esse requer um repertório específico, ou seja, não será atrativo para todo mundo. Seu grande apelo está na substituição do ônibus, que nem todos conhecem, e mesmo quem conhece pode não completar o trabalho de significação mentalmente, como o artefato exige. Dica Um exemplo educativo de substituição complexa pode é a coleção de moda criada pelo estilista brasileiro Oskar Metsavaht, para a Osklen, em 2015/2016. O estilista conviveu um tempo com o povo Ashaninka, na Amazônia peruana. Metsavaht fez um trabalho sério de análise das cores, formas e de valores daquele grupo social, e levou-os para sua coleção. O que esse trabalho tem de especial é a não obviedade. Na ocasião, discutia-se muito a questão da apropriação cultural, que é o que geralmente acontece quando designers negligenciam a semiótica, partindo para uma substituição óbvia. Sobre o trabalho de Metsavaht, sugiro que você procure imagens da SPFW (São Paulo Fashion Week) 2016, na internet. Certamente concluirá que não há nada de óbvio no trabalho do estilista brasileiro. Em vez de substituir a arte do povo Ashaninka pela sua representação imagética, direta e simples, ele foi em busca da compreensão dos seus elementos, transformando-os em outras informações, estas, sim, presentes na sua coleção. Novamente, boa parte do trabalho intelectual de compreensão fica para o observador. Reserve essa informação para os conteúdos futuros. Haverá um momento em que apresentarei alguma coisa sobre a análise estética de Kant e como esse filósofo argumentou que a beleza tem a ver com a sensação de prazer intelectual, ou seja, o prazer que o observador sente ao decifrar um enigma. Esse prazer é negado nas substituições excessivamente óbvias. Se liga Decifrar um enigma pode ser tão prazeroso quanto observar uma coisa bela. 22 Os primeiros exemplos que apresentei enfatizam a substituição de alguma coisa concreta por imagens fictícias ou indícios, ou seja, a sua representação. Mas, veja, isso é o comum, o que o seu concorrente também faz. Um passo adiante é trabalhar para colocar em seu produto a sensação que o cliente tem quando está no mar, quando contribui para salvar o planeta, quando retorna à escola, e assim por diante. O que é realmente desafiador é encontrar a representação concreta para sentimentos abstratos. Talvez possamos até assumir que Metsavaht, na sua coleção, ambicionou que seus clientes sentissem, ainda que por um momento, o que é pertencer ao povo Ashaninka. Isso porque, embora o observador saiba que está diante de algo representado, a sensação que ele tem é real. Você já deve ter experimentado isso no cinema ou assistindo uma série que gosta. Mesmo sabendo que aquilo é uma fantasia, as suas sensações e emoções são reais, e essa é a conexão que importa. É isso que faz com que aquela série ou cena fique gravada na sua memória, e você se sinta tentado a assisti-la novamente, várias vezes. Como pode perceber, criar uma conexão emocional entre um artefato e o cliente é um grande desafio. Mas fique tranquilo, se seguir com atenção os conteúdos, ao final dos estudos, estará mais preparado para alcançar esse objetivo, que não é fácil, pois requer conhecer minimamente como funciona a subjetividade humana. Vamos começar devagar, conhecendo os sistemas de substituição mais diretos e simples. TEMA 4 – SISTEMAS DE SUBSTITUIÇÃO CONVENCIONAIS, SIGNOS ARBITRÁRIOS E NÃO ARBITRÁRIOS Há pouco, mencionei que a vida humana sem convenções de comunicação seria um caos. O modo como essas convenções acontecem remonta a tempos longínquos, inacessíveis. Você já se perguntou, por exemplo, como é que a língua portuguesa chegou aos portugueses? Talvez saiba que o português é uma das línguas latinas, ou seja, deriva do latim. Mas de onde teria vindo, afinal, o latim falado e escrito? Nos próximos parágrafos, você conhecerá um pouco sobre como certas convenções e sinais de comunicação tomam forma. 23 4.1 Sistemas convencionais de substituição Alguns achados arqueológicos sugerem que, por volta de 30 mil anos antes de Cristo, já havia algum sistema rudimentar de sinais utilizados para contar. Registros de língua organizada, com sinais convencionais, podem ter surgido por volta de 9 mil anos antes de Cristo. Para você ter um parâmetro, os cristãos costumam situar o Rei Salomão por volta do ano 1000, ou seja, haveria pelo menos 8 mil anos de escrita organizada antes de Salomão (Crystal, 2012, p. 105). Saiba mais Você pode conhecer alguma coisa sobre as origens da escrita lendo todo o capítulo 16 de CRYSTAL, D. Pequeno tratado sobre a linguagem humana. 1. ed. [S.l.]: Saraiva, 2012. Há segmentos específicos da Semiótica que se dedicam ao estudo dos sinais adotados na escrita. Talvez um dos estudiosos mais citados, nesse sentido, seja o de Ferdinand Saussure, cujo trabalho Santaella assim descreve: Nesse sentido, a linguística saussureana não é meramente uma teoria para a descrição de línguas particulares, tais como a francesa, inglesa ou ameríndia, mas uma teoria que tem por objeto os mecanismos linguísticos gerais, quer dizer, o conjunto das regras e dos princípios de funcionamento que são comuns a todas as línguas. (Santaella, 1983, p. 16) Como Santaella mesmo adverte, Saussure representa uma corrente, notadamente a europeia, enquanto Charles Peirce representa a corrente americana. Mas os estudos de semiótica, representados em Saussure ou Peirce, são relativamente recentes, por isso a Semiótica pode ser classificada como uma ciência nova. Já o ato mesmo de significar, de substituir coisas por sinais, é tão antigo quanto o ser humano. Isso quer dizer que não é a Semiótica que estabelece as convenções,ela apenas estuda como essas convenções se organizam. Você verá, ao longo de nossos estudos, que uma maneira de introduzir significado no seu trabalho é justamente utilizando as convenções ou as leis que todo mundo já reconhece. Estamos cercados por elas, quer ver? Todos os 24 números são convenções, as placas de trânsito, sinais de acessibilidade, sinais tecnológicos utilizados na linguagem virtual. O artefato que você comprou por internet não chegaria à sua casa se não houvesse uma convenção garantindo alguma lógica à disposição das casas nas ruas. Para isso, é preciso números, sequência para maior ou para menor, números convencionados à direita e à esquerda. A maioria dos sinais convencionados é visual, mas existem convenções para sinais sonoros. Já imaginou o que seria um jogo de futebol se o juiz ficasse apitando aleatoriamente sem respeitar as convenções? Evidentemente, nós somos alfabetizados para compreender os números, e os atletas estudam para conhecer a convenção dos sinais do juiz. Mas há convenções que não precisam ser estudadas. Quem não sabe que o chiado de uma chaleira substitui o aviso verbal de que a água ferveu? Quanto menos arbitrário for o sinal utilizado na convenção, menos restrito, menos exclusivo e, portanto, mais universal. Dica Dizer que alguma coisa é universal significa assumir que ela vale para todos, em todo o tempo. Reserve essas informações sobre convenções para quando apresentarmos a categoria simbólica de relações, pois nessa categoria só entram as relações sustentadas por convenções. 4.2 Signos arbitrários e não arbitrários Aproveitando o exemplo anterior do juiz, você deve saber que uma maneira de se referir a ele é chamando-o de árbitro. Então, arbitrário e árbitro são palavras que compartilham a mesma raiz, e árbitro é aquele que diz como as coisas devem ser. Com isso, de maneira simples, considere que um signo arbitrário é aquele que é assim, porque é assim. Um metro tem cem centímetros, porque um grupo de pessoas concordou que seria assim. A direita não é esquerda, porque um grupo de pessoas decidiu que essa era a melhor maneira de distinguir sentidos. A luz que dá passagem aos carros e pedestre é verde, porque assim foi convencionado. Afinal, o que há de diferente na cor verde, para que todos 25 entendam que podem avançar? Pense, por exemplo, no número 2. O que há de duplo no número 2? Ou por que não chamar o som ah de ípsilon? Talvez você se lembre que, na sua alfabetização, os livros procuravam fazer associações, entre letras e coisas. Por exemplo, desenhava-se a letra g na silhueta de um gato, ou se substituía a letra o, na palavra Sol, pela representação do Sol. Esses são artifícios sustentados pela semiótica, que buscam diminuir a arbitrariedade daqueles signos para a criança. Com isso, quero dizer que existem convenções assentadas em signos arbitrários. Trata-se daqueles sinais cuja relação com aquilo que eles substituem não parece ter a menor lógica. A verdade é que, na maioria das vezes, eles têm. Algumas línguas representam suas letras com traços que aludem a coisas, como casa, cabana, tumba etc., mas, em geral, essa conexão se perde no tempo, e os sinais e as convenções nas quais eles são encontrados parecem, para nós, como arbitrários. Por exemplo, somente muito recentemente descobri que a saudação do vulcano Spock, de Star Trek, não era um sinal arbitrário. Foi quando soube que o ator Leonard Nimoy (1931-2015) a trouxe dos ritos sacerdotais e da letra hebraica ש ("Shin"). E pior, como eu era criança, sempre achei que o sinal V tinha alguma coisa a ver com vida, considerando que a saudação vulcana, em português, era “vida longa e próspera”. Perceba que os sinais costumam sofrer esse tipo de flexibilização, passando de arbitrários para não arbitrários à medida que os estudamos. Figura 17 – Saudação vulcana: o astronauta da Nasa Terry W. Virts fazendo a saudação vulcana direto da Estação Espacial Internacional, em 27 de fevereiro de 2015 Crédito: Terry W. Virts-NASA /CC/PD. https://en.wikipedia.org/wiki/Terry_W._Virts https://en.wikipedia.org/wiki/NASA 26 Até aqui você viu o que são sinais ou signos arbitrários e de que maneira eles são utilizados em algumas convenções. Vamos ver agora o que são signos não arbitrários. Trata-se, justamente, daqueles que têm seu fundamento na relação com aquilo que substituem. Quanto mais antigo, maior a chance de a relação entre o signo e aquilo que ele substitui não ser arbitrária. Embora provavelmente haja signos dessa espécie mais antigos, o exemplo mais didático e sobre o qual se tem mais detalhes, vem da Torá hebraica (livro sagrado para os judeus, como a Bíblia é para os cristãos), precisamente das narrativas do livro de Gênesis. Certa vez, ouvi alguém fazer a seguinte distinção e acho que ela nos serve: os antigos, quando queriam dizer o que uma coisa é, apontavam para essa coisa; os gregos a descreviam. Desta forma, o que ocorre na narrativa do Gênesis é exatamente isso: apontar para uma coisa, cujos atributos correspondem àquilo para o qual não se tem, ou não se pode ter, uma imagem. Quando Moisés, o patriarca, quis ensinar ao povo quem era Deus, ele escolheu a pedra. E por quê? Porque a pedra tem atributos que correspondem aos atributos da divindade hebraica. Para enfatizar ainda mais a diferença, Moisés colocou, lado a lado, o Tabernáculo e o Altar. Com isso, o Tabernáculo substituía os atributos humanos da transitoriedade, do movimento, do desenvolvimento horizontal, enquanto a pedra do altar substituía os atributos de Deus, quais sejam, a eternidade, a não movimentação, a direção vertical. Outro exemplo bem didático, vindo também dos antigos, são as pirâmides. Para além de tudo aquilo que já se disse e sabe sobre as pirâmides construídas pelo povo egípcio, há um aspecto pouco trabalhado, que é justamente seu teor de substituição, seu caráter sígneo. O monumento em forma piramidal substitui a ambição humana de ficar fora do tempo, de ser eterno, e para isso utiliza todos os sentidos humanos que estão envolvidos no deslocamento. Quer saber como? Como suas faces são iguais e ela é muito grande, uma pessoa pode, em condições normais, andar quilômetros olhando para aquela forma sem que nada mude, nem forma nem tamanho. Isso dará ao observador a impressão de que ele está se deslocando sem sofrer a influência do tempo, e isso é eternidade. Fantástico, não? Perceba que o altar hebraico e a pirâmide são coisas concretas que estão substituindo a relação com o tempo, que é algo abstrato, e isso é exatamente o 27 que o designer deverá aprender a fazer. Para isso, precisa conhecer os atributos dos materiais e seu poder de substituição. Falei anteriormente do cinema e aqui a sétima Arte volta a ser um bom exemplo. A água é um elemento da natureza que tem certos atributos: ela molha, penetra, aparece em nossos olhos quando estamos tristes ou sentimos dor. Emergir da água significa, entre outras coisas, renascer. Da mesma maneira como Moisés colocou a pedra no lugar do Deus para o qual não há imagem, os cineastas colocam a água em situações estratégicas, em substituição a vários sentimentos abstratos. Observe a Figura 18, que mostra mais uma cena do filme A pele (2016), de Steve Shainberg. Figura 18 – Cena de A pele, 2016. Crédito: Rotten Tomatoes Classic Trailers. A personagem vivida por Nicole Kidman está de avental e luvas de plástico. O avental é transparente, e as luvas, amarelas. Tudo isso são atributos materiais que o cineasta utiliza para fazer um discurso: a personagem está se protegendo da água, ela não quer se deixar levar pelo sentimento, neste caso, daquilo que vem pela tubulação, que são os pelos do morador do andar superior. O amarelo alerta o espectador, que ainda não sabe nada disso, de que há algo perigosonaquele contato, e a transparência do avental denuncia que a personagem, muito embora se defenda com roupas escuras e fechadas, tem o seu peito vulnerável. Veja que o cineasta faz questão de enfatizar o efeito da transparência do avental com a cortina de bolas que aparece ao fundo. Se você reparou bem, a água nem precisa estar presente para que seus atributos sejam reconhecidos. 28 A cena leva à compreensão de que água e emoção são a mesma coisa. Resumindo, o item mais arbitrário, na cena, é a cor amarela que substitui o perigo. O plástico transparente, a água, a tubulação, a roupa fechada, estão ali em função dos seus atributos e não são, portanto, arbitrários. Se liga Trabalhar com signos não arbitrários é sustentá-los por compartilhamento de atributos. Os exemplos cotidianos são vários. Um par de alianças de casamento compartilha com o ouro os atributos da durabilidade e da preciosidade, e com o círculo sua continuidade. Um xampu, sem cor, compartilha com a água a transparência da sua pureza. Artefatos de couro ou pele compartilham de todo o valor simbólico que a vida daquele animal teve. Lutar contra os atributos dos materiais, em termos de significação, é desperdício de energia. Se uma empresa desenvolve um tecido tão agradável ou mais que o algodão, mas que tem a aparência de plástico, terá que gastar muito em publicidade para superar a relação que o observador constrói de modo quase instintivo entre aquilo que ele vê como plástico, e os atributos pouco confortáveis do material plástico. É como dizer que a pedra não é pedra, e que a água não é água. Por outro lado, é preciso ter cuidado em utilizar falsos atributos. O brilho dourado, que é um atributo dos metais preciosos, muitas vezes, é encontrado em torneiras de banheiro, botões e bijuterias. Com isso, o designer leva para artefatos simples, algo daquele valor que o ouro comporta. A indústria tem se esmerado em produzir falsos mármores, falsos pisos amadeirados, falsas pedras, falsos brilhos, muitos com boa qualidade e acessíveis, mas o mercado do luxo tende a resistir. O designer precisa ser criterioso no seu uso, mas é preciso admitir que há um segmento em pleno desenvolvimento, que são os laminados decorativos que imitam qualquer outro material mais natural ou de maior valor. Dados e Fatos Os laminados decorativos têm causado uma revolução considerável no design de interiores. Diferentemente do que acontecia com os antigos laminados 29 e as antigas “fórmicas”, os materiais atuais resistem à abrasão, resistem à humidade, não ficam amarelos e podem ser colocados com colas mais comuns. Isso para não falar nos novos acabamentos, que agora são feitos a laser, reproduzindo com muita fidelidade a aparência de pedras e madeiras. Fonte: Elaborado com base em Rudegon, 2022. Copyright © 2023, Gazeta do Povo2. Você aprenderá, nas próximas etapas de estudo, que alguns atributos materiais são justamente o que permite ao seu produto criar uma conexão emocional com o cliente. Se uma noiva, por exemplo, deseja que seu casamento seja puro, o material da aliança deve ter esse atributo, ou seja, o ouro deve ter como uma de suas características a pureza. É assim, por meio do seu atributo, que ele substitui o desejo da cliente. Embora a questão do material seja muito forte, a não arbitrariedade dos signos nem sempre é uma questão de material. Frequentemente um signo não arbitrário se sustenta pela semelhança. Essa é uma qualidade muito importante para a comunicação à medida que aumenta significativamente sua eficácia. Observe na Figura 19 a quantidade de representações que substituem coisas em função da semelhança. Em certa medida, todos esses sinais são convencionais, mas não há nada de arbitrário em um sinal que mostra pessoas caminhando, andando de bicicleta e assim por diante. Agora, para compreender o que significa um sinal luminoso com três cores, o observador precisa estar familiarizado com as convenções do trânsito, porque o significado das cores pode, sim, ser arbitrário. 2 Disponível em: de: <https://www.gazetadopovo.com.br/conteudo-publicitario/rudegon/saiba- por-que-o-laminado-decorativo-revoluciona-o-mercado-de-revestimentos/>. Acesso em: 12 abr. 2024. 30 Figura 19 – Sinais de trânsito Crédito: Tonktiti/Shutterstock. Até aqui você aprendeu o que é convenção e o que são signos arbitrários e não arbitrários. Você precisará desse conhecimento para nossas discussões. O próximo e último tópico tem como objetivo um aprofundamento na compreensão de para que serve esse sistema de signos, considerando o ser humano em geral. TEMA 5 – COMO COMUNICAR O QUE AINDA NÃO FOI SIGNIFICADO? Você já sabe que o objetivo deste conteúdo é ensinar a utilizar certos conceitos da semiótica, e não cabe aqui avançar muito para além do que é essencialmente prático. Ainda assim, é preciso considerar que a boa prática se assenta em uma certa sofisticação, e essa sofisticação depende de certos conhecimentos extraordinários. Normalmente, um estudante de Design não pensa na significação como algo necessário, para além dos aspectos pragmáticos, ou seja, não vai além do que está diretamente ligado ao uso. A maioria de nós associa necessidade a utilidade, mas o mundo não funciona assim. Deixe-me colocar de outra maneira: se você e seu concorrente oferecem em uma vitrine produtos que, sob o ponto https://www.shutterstock.com/g/Tonktiti 31 de vista do uso e preço, são iguais, o que faria com que o cliente escolhesse o seu? As respostas podem variar, mas uma coisa é certa: se o cliente escolheu o seu, é porque você colocou no seu produto alguma coisa que ele quer, e vai além do uso que seu concorrente também atende. Supondo que o produto seja uma cadeira, algo na sua cadeira supre uma necessidade que supera o simples ato de se sentar. Descobrir que necessidade é essa é que é a chave do sucesso. Sob o ponto de vista da semiótica, e particularmente da semiótica de Peirce, que será o fio condutor de nossas discussões, perguntar ao cliente o que ele quer não ajuda muito, porque não é raro que ele não saiba. Como assim o cliente não sabe o que quer? Isso mesmo. O cliente pode não saber o que quer, ou não saber sequer que quer alguma coisa. Considere que em mercados competitivos é preciso adentrar esses terrenos de incertezas. Meu desafio, neste tópico, é convencê-lo de que isso é importante. Nietzsche, novamente, pode ser útil. Em um dos seus escritos, ele apresenta uma figura de linguagem muito bonita. O filósofo descreve a necessidade humana de significar como um desejo profundo de colocar as próprias emoções fora do peito, materializando, ou seja, tornando concretas, as impressões dos sentidos. Quase como se fosse possível materializar o seu coração e oferecê-lo à pessoa que ama (Nascimento, 2014, p. 114). Vamos pensar por uns momentos no artista. Lembre-se que artista, para o nosso contexto, é um inventor de signos. Isso quer dizer que cabe a ele inventar uma maneira para que as pessoas possam tornar concretas as impressões dos seus sentidos. Para esse artista, os seres humanos são como bebês. Eles sentem dores, insegurança, felicidade, saudade, mas não têm, ainda, palavras para dizer o que sentem, e é provável que não saibam exatamente o que sentem. A função do artista é criar as palavras que o bebê poderá colocar no lugar dos seus sentimentos e sensações. Para isso, ele tem de ter sido bebê um dia, ou estar muito familiarizado com eles. Você poderá argumentar que seus clientes não são bebês, mas, lembre-se, todos nós somos bebês para alguma coisa. Anteriormente, mencionei as novas angústias, inventadas pelos meios eletrônicos e mídias sociais. Esses são apenas os exemplos mais evidentes de que a atividade do inventor de signos é atual. Se você tem, ou vier a ter, algum contato comassuntos de psicologia, saberá que encontrar a representação para 32 um desejo, sensação ou sentimento é um fator determinante para a diminuição da angústia, pois não há nada pior para o ser humano do que sentir alguma coisa e não saber defini-la, representá-la. Nós, humanos, queremos entender a nós mesmos por meio das coisas que nos cercam (Nascimento, 2014, p. 113). E é aí que você deve entrar em ação se quiser fazer a diferença. Cito aqui exemplos que podem ajudar. Em 2013, uma marca de luxo produziu um filme institucional no qual apresentava modelos famosas, em roupas de dormir luxuosas, na rua, abordando carros, como se fossem prostitutas. O experimento foi arriscado e causou polêmica. Em termos semióticos, o objetivo era claro: provocar o espectador, oferecer-lhe a oportunidade de viver em alguns segundos uma emoção fora do padrão. Em outra ocasião, uma revista de moda colocou na sua capa uma criança, vestida em roupas de adulto, com poses sensuais. O objetivo, e o efeito, foram similares. Lembre-se que o que está acontecendo, nesses exemplos, é uma substituição: uma cena acessível no lugar de uma experiência real pouco provável. Por meio de publicidades como essas, o observador tem a rara oportunidade de dialogar e compreender um pouco mais do seu próprio eu (Nascimento, 2014, p. 113). Para que o produto venda, o cliente deverá reconhecer nele mesmo um desejo que ele não tem consciência, ou jamais admitiria que tem. Ousadias como essas são prerrogativas de quem pode arriscar. Se os clientes não alimentam tais fantasias, ou se estiverem determinados a negá-las, o produto não venderá. Claro que a maioria de nós não está em condições de arriscar tanto, mas o princípio é válido. Como artista criador de signo, o designer precisa encontrar paixões, desejos, angústias, fantasias ainda não representadas, do contrário terá dificuldade em se diferenciar da concorrência. Se liga Caberá a você, e somente a você, encontrar as emoções e sentimentos que ainda precisam ser representados ou, pelo menos, encontrar novas maneiras de fazê-lo. 33 TROCANDO IDEIAS Os signos têm a incrível capacidade de apresentar discursos, às vezes bastante complexos, sem o uso de palavras. Citei vários exemplos vindos do cinema, agora sugiro que analise comigo a Figura 20. Figura 20 – Sinais convencionais de masculino, feminino, igual e diferente Crédito: Dmitry Demidovich/Shutterstock. Os três dados têm apenas sinais gráficos. A disposição, no entanto, faz um forte discurso sobre a igualdade, ou desigualdade, entre homens e mulheres. Para entender o discurso, o observador tem que conhecer os signos, tem que saber o que substitui o homem, a mulher, o igual e o diferente; do contrário, não compreenderá. Depois de ler o texto desta etapa, você já está em condições de analisar e identificar se algum dos sinais é arbitrário. Do meu ponto de vista, o mais arbitrário é o da mulher. Você concorda? Compartilhe seus comentários com seus colegas no fórum. NA PRÁTICA Procure na internet propagandas de produtos de luxo e tente identificar quais os desejos aquelas fotos estão substituindo. Uma dica é buscar por reportagens ou depoimentos que denunciam práticas pouco ortodoxas (estranhas ao que é normalmente aceito) de substituição, e depois tente encontrar a foto que deu origem à denúncia. Fotos de moda, por exemplo, têm https://www.shutterstock.com/g/Dzmitry+Dzemidovich 34 uma maneira própria de se comunicar com o observador por meio de poses, direção do olhar da modelo, partes ocultadas e mostradas do corpo. Procure também marcas famosas de qualquer objeto em peças publicitárias sem modelo. Sapatos, bolsas, perfumes etc. Analise o que o produtor utilizou para comunicar qualidades daquele produto, investigue os atributos! Tenha em mente que quem mais arrisca, e com quem se pode aprender mais, são as marcas de luxo. FINALIZANDO Você fez seus primeiros contatos com a temática de nossos estudos, que têm como objetivo ensinar como utilizar princípios de semiótica para alavancar sua prática profissional. Agora você já sabe que o importante, aqui, são as substituições. Sabe também que existem substituições convencionadas, algumas baseadas em signos arbitrários, ou seja, sem uma relação óbvia com o que substituem, e outras em signos não arbitrários, cuja relação é baseada, normalmente, em compartilhamento de atributos. Quero reforçar, nesta finalização, que o ponto-chave é saber o que é que precisa ser substituído. Como artista inventor de signos, você precisa encontrar a sua fonte, os desejos conhecidos ou não, conscientes ou não, admitidos ou não, do seu potencial cliente. Sugiro aqui alguns filmes que são muito ricos em matéria de significação: • Wes Anderson: o Os excêntricos Tenembaums (2001). o Moonrise Kingdom (2012). • Steven Shainberg: o A Pele (2006) – você pode buscar por artigos disponíveis na internet (Dobras/Temática). o Secretária (2002) (classificação indicativa: 18 anos). • Outros diretores: o Minha vida em cor-de-rosa (1997). o A separação (2011) – você pode buscar por artigos disponíveis na internet (Semioses). o Roda gigante (2017). 35 REFERÊNCIAS CRYSTAL, D. Pequeno tratado sobre a linguagem humana. 1. ed. Editora Saraiva, 2012. KANT, I. Crítica da Faculdade do Juízo. Tradução de Valério Rodhen e António Marques. 3. ed. Rio de Janeiro: Forence Universitária. 2012. NASCIMENTO, S. F. Moda e linguagem: Nietzsche e Arbus, uma aproximação. Revista Dobras, 2014. Disponível em: <https://dobras.emnuvens.com.br/dobras/article/view/39/39>. Acesso em: 10 abr. 2024. _____. O Estilo Modernista à luz da “necessidade” e da “inocência”. Trágica; Edição temática Filosofia do Design, v. 9, n. 3, 2016. Disponível em: <https://doi.org/10.59488/tragica.v9i3.26874>. Acesso em: 10 abr. 2024. _____. El discurso de la arquitectura en A Separation, de Asghar Farhadi. Semeiosis: semiótica e transdisciplinaridade em revista. 2º Sem., 2017. Disponível em: <http://www.semeiosis.com. br/?p=2461>. Acesso em: 10 abr. 2024. NIETZSCHE, F. A Visão Dionisíaca do Mundo. Tradução de Marcos SP Fernandes e Maria Cristina dos Santos de Souza. São Paulo: Martins Fontes, 2005. SANTAELLA, L. O que é semiótica. Coleção Primeiros Passos. [S.l.]: Editora Brasiliense: 1983. Conversa inicial Contextualizando Trocando ideias Na prática FINALIZANDO REFERÊNCIAS