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1 SEMIÓTICA APLICADA AO DESIGN AULA 5 Prof.ª Suzie Ferreira do Nascimento 2 CONVERSA INICIAL Em momento anterior de nossos estudos, ressaltamos que seres humanos têm a extraordinária habilidade de encontrar elementos concretos que substituem abstrações. Somos capazes de substituir o perigo por placas, o amor por um presente, e até nosso mau humor por uma expressão facial pouco amistosa. Agora já sabemos também que a Semiótica é a ciência que estuda e tenta compreender esse precioso mecanismo de substituição. Aprender princípios básicos de Semiótica pode ser muito útil à nossa vida profissional, pois eles nos capacitarão a fazer as coisas de maneira diferente do concorrente. Quanto mais criativos formos em matéria de substituições, maiores serão as chances de sermos notados. Essa não é uma sabedoria moderna, nem mesmo algum conhecimento produzido pela Semiótica para fins exclusivos de utilização no Design. Moisés, personagem importante da tradição hebraica, foi pródigo em matéria de substituições no projeto do Altar e do Tabernáculo em tempos imemoriais. Aristóteles, grande pensador grego, já sabia que a capacidade de encontrar as semelhanças era o que tornava o poeta fértil em metáforas, ou seja, em maneiras inovadoras de expressão. As relações que estudamos anteriormente são maneiras de encontrar semelhanças. Já estamos em condições de identificar as relações icônicas, indiciais e simbólicas que possibilitarão ao nosso produto substituir concretamente os desejos dos nossos clientes. Mas há aspectos do nosso produto que não são suficientemente estudados por meio dessas relações, por isso precisamos de mais ferramentas. Nesta etapa de estudos, aprenderemos como descrever o nosso produto, qualquer que seja ele, por meio de suas dimensões. CONTEXTUALIZANDO O princípio que rege as dimensões de alguma coisa é bastante simples. Quando procuramos um notebook, um celular, uma geladeira ou mesmo uma casa, sempre precisaremos saber sua largura, altura e profundidade, pois com essas medidas poderemos imaginar o produto no espaço. Assim, as medidas são uma categoria por meio da qual se pode informar sobre determinada coisa; entretanto, há outras. Assim como uma caixa pode ser descrita em termos de largura, altura e profundidade, um computador pode ser descrito em termos de 3 hardware e software, o ser humano pode ser descrito em termos de corpo, alma e espírito, e um projeto de Arquitetura pode ser descrito em termos de hidráulica, elétrica e estrutura. No contexto de nossas discussões, devemos pensar em dimensões como categorias que possibilitam a descrição do nosso produto do modo mais detalhado possível. O desafio é descobrir os detalhes que costumam ficar ocultos em uma descrição mais abrangente. O exercício é muito importante para que tenhamos segurança quanto ao que estamos fazendo. As dimensões são particularmente úteis para organizar um projeto ou portfólio, porque com elas organizamos as informações descritivas. Quando o aluno se esforça para organizar um trabalho em dimensões tripartites (ou seja, em três partes), sempre descobre aspectos do seu projeto nos quais não havia pensado, ou zonas de pouca clareza que precisam ser melhoradas. Portanto, tenhamos em mente que este conteúdo tem o objetivo de fornecer uma ferramenta a mais de trabalho, um instrumento para que a nossa produção acadêmica e profissional tenha mais qualidade. Nosso objetivo, como já apontado, é mostrar que a ciência da Semiótica tem aplicabilidade na sua vida profissional prática. TEMA 1 – O QUE SÃO E PARA QUE SERVEM AS DIMENSÕES E AS FUNÇÕES DE UM PRODUTO Precisamos nos convencer de que não há uma única maneira de tratar as dimensões de um produto. A Semiótica que deriva dos estudos da linguagem tem um sistema; quando é aplicada ao Design, assume outro, assim como a informática terá o seu, a medicina o seu, a arquitetura o seu, e assim por diante. Dica A palavra dimensões, além de designar altura, largura e profundidade, é utilizada para distinguir categorias de uma mesma coisa, geralmente com a finalidade de organizar informações. Para não aumentar a dificuldade, será necessário passar rapidamente por algumas delas antes de tratarmos especificamente da prática em Design. As pessoas criam sistemas descritivos de acordo com as características do que querem descrever. As dimensões da Semiótica foram concebidas com 4 base nos interesses da linguística, e entraram no Design por meio da Comunicação Visual. Por isso, ficará mais fácil diferenciar as dimensões apresentadas neste estudo se soubermos como elas foram concebidas inicialmente na linguística. Se liga Linguística é a ciência que estuda o uso concreto da língua pelos seus falantes, e a Comunicação se ocupa da transmissão das mensagens entre o emissor e o receptor. Ambas se utilizam de signos. 1.1 Dimensões da Semiótica Um nome importante nesse novo cenário é o filósofo estadunidense Charles William Morris (1901-1979), autor do Fundation of a Theory of Signs (“Fundamento para uma Teoria dos Signos”). De acordo com a clássica definição de Morris: • a dimensão sintática estuda e descreve as relações entre os signos; • a dimensão semântica estuda a relação entre tais signos e seus objetos; • a dimensão pragmática estuda o modo como os usuários interpretam e empregam os signos (Marcondes, 2005). Não é de hoje que os estudiosos tentam encontrar pontos de tangência entre os sistemas adequados à linguística e à comunicação e os interesses do Design. O semiólogo francês Roland Barthes (1915-1980) publicou, em 1967, o livro Sistema de moda, no qual ambicionou parear as imagens de moda reproduzidas nas revistas especializadas com o sistema linguístico. Essa obra explora o fato de a língua e a moda impressa terem em comum sistemas de signos gerados e mantidos pela cultura. Barthes reconheceu na indumentária vestida e descrita uma linguagem, e buscou entender o que as roupas diziam, ou o que as pessoas diziam por meio delas. Alison Lurie, que escreveu A linguagem das roupas, em 1981, levou essa relação ao extremo ao tentar criar uma espécie de alfabeto capaz de decifrar o que as roupas comunicam, propondo associações entre cores fortes e virilidade, entre a ausência de gravata nos padres e a castração, entre a quantidade de peças que alguém utiliza para vestir-se e um vocabulário mais ou menos rico 5 (Nascimento, 2014). Esses foram empreendimentos arriscados, mas tiveram seu valor. Com base em nossos estudos, podemos compreender que não é possível aplicar às relações sígneas construídas pelas roupas as mesmas restrições que se aplicam à língua, que é basicamente convenção arbitrária. Todos nós temos de respeitar as convenções da língua em alguma medida, do contrário, ninguém nos entenderá. Se ninguém entender a nossa roupa, as consequências não serão tão graves. Se apontamos para a pedra e dizemos “é água”, nosso interlocutor nos olhará com desconfiança. Entretanto, na cultura ocidental atual, se nossas roupas dizem “eu sou importante” quando na verdade não somos, as pessoas tenderão a não levar isso em muita consideração. Podemos, como indivíduos, desrespeitar convenções de vestimenta, mas não devemos fazer o mesmo com as convenções da língua. No entanto, prestemos atenção: para os sentidos do observador, existe, sim, um discurso sendo emitido pelas cores, formas e texturas da indumentária, e o cérebro toma essas informações como verdadeiras, porque os sentidos não mentem sobre aquilo que capturam. Pensemos naquele artista estadunidense famoso que costuma se vestir como mendigo. Todos os que o conhecem sabem que aquilo é excentricidade deliberada. Contudo, se esse mesmo ator, vestido como mendigo, for passar férias em um país no qual não éconhecido e onde a mendicância é crime, poderá ir para a cadeia, porque os sentidos daquelas pessoas afirmarão que ele é, de fato, um mendigo. Ou ainda, pensemos naquele dia em que saímos de casa com a primeira roupa que encontramos no armário porque ficamos estudando Semiótica Aplicada até de madrugada. Os sentidos do nosso observador não terão interesse nos nossos motivos; o que eles sentirão é uma maior dificuldade em organizar o que captam, causando ao observador uma desagradável sensação de confusão. Iniciativas como a de Barthes e Lurie nos possibilitaram reconhecer que, considerando a grande flexibilidade atual de atuação do Design, a classificação de Morris é a que mais se adequa, porque trata as dimensões com base no signo, extrapolando os limites da convenção. Em momento anterior de nossos estudos, fornecemos informações suficientes para que possamos analisar o caráter sígneo de uma gama razoável de situações profissionais. No entanto, é preciso ampliar a análise porque o profissional do Design tem preocupações que antecedem a existência do seu produto no mundo e, além 6 disso, seu produto ou serviço precisa estar ancorado no uso racional. Nem tudo em um produto ou serviço pode ser deixado sob responsabilidade da “interpretação” de cada um. A bola Wilson, em algum momento, foi pensada em termos de forma e material, e de uso como ferramenta desportiva, e esses aspectos não são diretamente abordados pela análise do signo. Foi preciso pensá-la em termos técnicos, encontrar meios de produzi-la, pensar na sua usabilidade, e assim por diante. As ferramentas que conhecemos da Semiótica não são tão aplicáveis nesses casos. Alguns estudiosos já trilharam esse caminho em busca do ferramental teórico mais adequado para analisar os produtos do Design, a exemplo de Niemeyer (2007, p. 49) e seu livro Elementos de semiótica aplicados ao Design. A autora, que é doutora em Comunicação e tem uma longa história na ESDI (escola de Design mais antiga do Brasil), recorreu ao filósofo germânico Max Bense para ajustar a classificação da Linguística à prática do Design, assumindo que o produto (nesse caso, ela tem em vista produtos industriais) poderia ser dividido em quatro diferentes dimensões: • dimensão material (hílico); • dimensão técnica ou construtiva (semelhante à sintática de Morris); • dimensão da forma (semelhante à semântica de Morris); • dimensão do uso (semelhante à pragmática de Morris); É importante perceber que há uma mudança significativa no entendimento do que são as dimensões propostas por Niemeyer, considerando a classificação de Morris, embora os nomes continuem os mesmos. Niemeyer introduz vários aspectos que são do interesse produtivo do Design Industrial. Esse ajuste, no entanto, traz consequências. Nós já aprendemos que há várias relações (dimensão semântica na qualificação de Morris) que podem se efetivar entre o signo e o objeto, independentemente da sua forma (qualificação de Niemeyer). O mesmo poderia ser dito em relação à correspondência entre uso e interpretação. No filme O náufrago, a interpretação (dimensão pragmática na classificação de Morris) que o náufrago dá à bola Wilson estabelece um uso (classificação de Niemeyer) completamente distinto daquele levado em consideração no projeto da bola. É importante registrar que Niemeyer tem plena percepção da dificuldade que é essa aproximação. A autora sabe bem que a prática do designer, 7 particularmente o que atua na indústria de artefatos, prioriza certos aspectos, e a Semiótica, outros: Um produto, como o telefone, pode não ser definido só por aspectos técnicos ou mesmo ergonômicos, nem por suas funções práticas ou ambientais, mas por uma evocação que ele provoque, como um personagem de história em quadrinhos ou uma garrafa de refrigerante. Parece claro, assim, que a dimensão pragmática, com o apoio das dimensões material e sintática, não será suficiente para a descrição e explicação de um produto (Niemeyer, 2007, p. 52, grifo nosso) Essa evocação tem de ser trabalhada na dimensão semântica em um sentido amplo, não pode ficar restrita aos efeitos causados na visão como prefere a Comunicação Visual, tampouco se limita à forma. Até aqui mostramos as dificuldades que os teóricos estão enfrentando na aproximação entre a Semiótica, que se volta para a linguagem e comunicação, e um sistema descritivo que pretende ser aplicável ao Design. Soma-se a isso o modo como o Design penetrou em outras áreas, para além da produção industrial de artefatos, e podemos concluir que há muito trabalho a ser feito. Estrategicamente, retomaremos nos próximos tópicos as funções do Design, elencadas por Löbach, um autor dedicado ao Design Industrial, complementando-as com aquilo que os autores da linguística chamaram de dimensões. Ao final, dedicaremos um tópico mais extenso à dimensão sintática (estrutura), por ser importante para a nossa atividade profissional. 1.2 Löbach e funções do Design As funções dos produtos de Design são tema de vários livros, mas um dos mais populares no Brasil é Design Industrial, escrito por Bernd Löbach, em 1976, publicado em português no ano 2000. Segundo o autor, um produto pode ser descrito por meio das suas funções prática, estética e simbólica. Um bom produto de Design deveria atender às três funções com a mesma excelência: deveria ser correto sob o ponto de vista prático, causar uma agradável experiência estética, bem como possibilitar ao usuário fazer conexões emocionais por meio dele. Dica Quando Löbach publicou Design Industrial, só existiam duas especialidades em Design: Design de produto (físico e industrial – larga escala de produção) e Comunicação Visual ou Design gráfico. Todavia, ele apresenta 8 funções que são aplicáveis aos produtos digitais, aos não seriados – produção única –, como ambientes, roupas sob medida e customização. Como todo o sistema classificatório, o de Löbach também tem seus limites. É preciso boa vontade para não ver o quão sobrepostas estão as funções estética e simbólica. É um sistema que funciona bem se forem feitas as perguntas certas, e por isso mesmo pode nos ajudar em várias situações de projeto. A classificação em dimensões da Semiótica, a seu turno, é mais abrangente, mas dificulta a aplicabilidade imediata. Já devemos ter concluído que a análise semiótica, ainda que aplicada, exige uma boa dose de pensamento abstrato. Se liga A qualificação de Löbach é bastante utilizada nos estudos para o Design, no entanto, a sua terminologia não coincide com a utilizada pela Semiótica de Peirce. Saiba mais Para saber mais sobre as funções adotadas por Löbach, leia o capítulo “Funções dos produtos industriais”, no livro Design Industrial (2001). Dica Apontamos que as medidas de uma coisa são uma categoria que busca dar informações que possibilitem localizá-la no espaço. Entretanto, descrever uma coisa por meio de categorias triplas não é exclusividade da geometria. A Filosofia, por exemplo, busca descobrir o que uma coisa é com base em três perguntas fundamentais: o que, como e por quê. Arnheim (2000) adaptou essas perguntas filosóficas ao estudo da imagem e estabeleceu que a sua função poderia ser descrita nas categorias: epistêmica (o que é), estética (como é) e simbólica (por quê é). Com essa tríaden ele pode descrever a imagem como informação sobre o mundo (o que), como algo capaz de dar satisfação (como) e, finalmente, como símbolo (por quê). Assim, não há nada de extraordinário na tentativa de qualificar um produto ou serviço de acordo com a sua funcionalidade. Conforme adiantado há pouco, nos próximos tópicos vamos resumir as funções de Löbach, complementando-as com as dimensões da semiótica sempre que isso for do interesse de uma melhor prática. 9 TEMA 2 – FUNÇÃO PRÁTICA De acordo com a definição de Löbach, a funçãoprática de um produto reúne seus aspectos que atendem diretamente a necessidades humanas fisiológicas, tais como facilidade, conforto, segurança etc. Entram aqui aspectos voltados à ergonomia, funcionalidade, bem como todas as questões que podem ameaçar a segurança. Carros, equipamentos eletrônicos, brinquedos, roupas, todos esses produtos podem causar lesões ao usuário, e uma maneira de evitar que isso aconteça é, no projeto, prestar muita atenção à sua função prática. Conforme já sabemos, à época, Löbach tinha em vista apenas algumas áreas de aplicação do Design. Atualmente, a gama é muito maior, e é preciso encontrar a função prática em todas elas. Para localizar a função prática na nossa atividade, devemos nos concentrar no conceito: o quê, no nosso trabalho, envolve o uso pelo cliente. Uma fonte tipográfica inadequada, a falta ou mau funcionamento de um link, a opção incorreta de cores justapostas, enfim, as possibilidades são muitas e variam conforme a especialidade. O aluno ou profissional que se dedica a isolar esse aspecto do seu projeto e estudá-lo separadamente, terá muito a ganhar. É uma ilusão pressupor que tudo está resolvido quando a parte estética é convincente. Após a pandemia, por exemplo, muitas pessoas passaram a trabalhar em casa, e isso está demandando uma nova abordagem no mobiliário. Aquela cadeira bonita que costumava entrar em harmonia com a decoração do quarto e da sala, agora precisa atender às exigências ergonômicas de uma rotina pesada de trabalho. A pandemia fez com que a sua função prática ganhasse relevância diante da sua função estética. 10 Figura 1 – Foto genérica de ambiente Home Office Crédito: SeventyFour/Shutterstock. Na maioria dos casos, não encontraremos grandes dificuldades em identificar a função prática de uma coisa. O mais difícil é se disciplinar a separar essa função das demais. No Design de Moda, essa dificuldade é notória. O aluno resiste a dar verdadeira atenção às facilidades requeridas pelo vestir, porque está empolgado com a função estética. A rigor, o designer deveria fazer sempre uma experiência com seu produto ou serviço sem nenhum apelo estético, ou seja, sem despertar qualquer interesse nos sentidos que não seja aquele que se volta exclusivamente para o conforto e segurança. Separar as funções do nosso produto ajuda a adquirir esse hábito. Ainda assim, saber identificar a função prática não esgota o problema. Esse será um procedimento relativamente simples sempre que a função prática coincidir com bons princípios para a utilidade: uma calça serve para proteger, um celular para comunicação, uma casa para morar etc. Nesses casos, a “correta” função prática coincide com os benefícios do uso da ergonomia e da segurança. Agora, vamos analisar a coroa da Figura 2. O que seria “correto” em termos práticos, considerando a função desse artefato? Uma coroa correta é aquela que identifica o rei e sua majestade, ou seja, seu uso se justifica apenas pelo simbolismo que carrega. A sua verdadeira função não se submete aos critérios de correção de Löbach para a função prática. No contexto que esse autor analisa os produtos industrializados, o artefato deve estar correto sob o ponto de vista da usabilidade, ou seja, conforto e segurança. Entretanto, seria um grave erro, no caso da coroa, colocar tais https://www.shutterstock.com/g/SeventyFour 11 características acima da significação. Afinal, um rei deve ser capaz de suportar o desconforto e carregar o peso da sua realeza. Sob o ponto de vista da classificação de Löbach, a maioria das coroas e tronos seriam deficitários na função prática, porque sacrificam o conforto e a segurança em favor da função simbólica. Pelo mesmo motivo, autores ortodoxos teriam dificuldade em classificar sapatos de salto muito alto como bons produtos de Design. Eles podem ser considerados corretos sob o ponto de vista da utilidade, pois são úteis para dar às mulheres determinadas sensações, mas, sob o ponto de vista do sentido que Löbach prescreve à função prática (usabilidade, ergonomia etc.), a maioria não seria aprovada. Figura 2 – Coroa Crédito: tomertu/Shutterstock. Outro exemplo dúbio pode ser visto em alguns carros, motos e similares. Embora, sob o ponto de vista da função prática seus projetistas, devessem priorizar o conforto, alguns modelos têm como característica uma certa dificuldade que o piloto deseja enfrentar. Seus consumidores desejam “usá-los” com certa dificuldade. Dica A Ferrari F40 é considerada um dos carros mais icônicos da história automotiva. Criado para o 40.º aniversário da marca Ferrari, o F40 foi o design automóvel final do fundador Enzo Ferrari. Seu desejo de criar o melhor carro para motorista foi recebido com fortes elogios e críticas quando foi lançado ao público, em 1987. Em uma época em que a tecnologia automotiva estava https://www.shutterstock.com/g/tartwork 12 avançando em direção à assistência de direção digital e analógica, que tornavam os carros potentes mais gerenciáveis para um conjunto mais amplo de pilotos, Enzo Ferrari se afastou desse conceito e desenvolveu um carro que exigia um piloto competente. O carro resultante se tornou um dos mais procurados pelos colecionadores de Ferrari (Hicks, 1994). Design criticism: Ferrari F40, por Mark Angelo Cela. Disponível em: <https://www.markcelagraphics.com/design- criticism-ferrari-f40>. Acesso em: 23 abr. 2024. Se liga Na classificação de Löbach, a prioridade na função prática são questões de conforto e segurança de modo mais objetivo, quase sempre levadas em consideração no projeto, antes do lançamento do produto ou serviço no mercado, ou seja, relativizando os usos mais diretamente demandados por questões de significação. O exemplo da Ferrari mostra que separar a função prática da simbólica pode ajudar a desenvolver ambas as funções com mais qualidade, sem que uma prejudique a outra, ou seja, há questões de significado que não são vistas no estudo da função prática, e vice-versa. Na Figura 3, exemplificamos satisfatoriamente os benefícios de identificar a função prática no seu produto. Figura 3 – Copo sem detalhes visuais Crédito: PrimeMockup/Shutterstock. https://www.shutterstock.com/g/IannielloAlfonso 13 O copo limpo, sem as informações que serão impressas, possibilita que o designer preste atenção ao manuseio, à junção do copo com a tampa, aos materiais, e assim por diante. O mesmo serve para roupas, como na Figura 4. Toda a peça de roupa precisa ser analisada cuidadosamente em sua funcionalidade e ergonomia e, nesse momento, é preciso retirar todas as demais influências sobre os sentidos. Figura 4 – Camisetas brancas Crédito: airdone/Shutterstock. Com a identificação do que pertence exclusivamente ao uso, os sentidos do projetista ficarão mais atentos às costuras, ao caimento, ao colarinho, à textura do tecido, ou seja, à sua função prática. A depender da nossa área de atuação, será mais fácil ou difícil separar todos os elementos da função prática. Um arquiteto poderá separar, em maquete ou em tamanho real, a parte estrutural dos divisores de espaço e dos elementos decorativos. Um designer de interiores deveria experimentar o espaço, o ambiente vazio, sem qualquer influência visual, para reconhecer os fluxos, as sensações térmicas, a entrada de luz. Quem projeta bancos de carro deve poder descrever sua função prática em detalhes. Saiba mais Vejamos como Löbach descreve o assento de um automóvel na página 58 do livro Design Industrial (2001). https://www.shutterstock.com/g/airdone 14 Há mercados nos quais a função prática é dominante, a exemplo do que ocorre com os aparelhos de TV e celulares. Com raras exceções, uma TV considerada cara não difere da outra, mais em conta, no que concerne à função estética. Celulares de última geração são visivelmentesemelhantes aos da versão anterior, embora possam ser muito diferentes no funcionamento. Em mercados como esses, o que conta é a inovação tecnológica que está dirigida essencialmente ao uso. Agora, assumir que em determinado segmento a função prática é dominante não significa assumir que nele a parte ergonômica ou a funcionalidade devem ser resolvidas com base em um único critério. Em uma série asiática, por exemplo, na qual uma personagem extraordinariamente rica manuseava um aparelho celular, o que realmente me impactou não foram os detalhes em ouro e a forma diferenciada, mas sim o fato de ser um aparelho pequeno, estreito, cuja utilidade, presumivelmente, estava limitada a fazer e receber ligações: o inusitado luxo de poder ter um aparelho celular que não dá acesso à internet, que não recebe nem envia mensagens, o luxo de não ser encontrado, exceto por pessoas muito selecionadas. Esse exemplo, assim como o do carro esportivo, comprova que a correção na função prática, em alguns casos, não é determinada pelo que há de mais tecnológico ou mais ergonômico. Há, em certos momentos, motivos fortes o suficiente para estabelecer que certos confortos e facilidades sejam deliberadamente negados. Dica Como designer, precisamos conhecer bem as diversas dimensões e funções que atravessam o nosso produto para poder estabelecer uma clara hierarquia entre elas, e saber, assim, justificar com convicção suas escolhas projetuais. Até aqui, discorremos sobre como Löbach entendia a função prática. Agora vejamos como a classificação proposta por Bense e Niemeyer pode complementá-la. Na classificação de Niemeyer, a dimensão pragmática pretende incorporar as funções práticas e ampliar esse entendimento para o que ocorre com o produto depois da sua inserção no mercado, incluindo assim os significados que a ele aderem por meio do seu interpretante. Seria relativamente 15 fácil apontar como função prática o “durante o projeto” e diretamente construtivo e, como dimensão pragmática, o “depois do projeto” e a significação. Contudo, infelizmente, prático e pragmático no terreno das teorizações que envolvem o Design se sobrepõem. A própria Niemeyer é do entendimento de que a dimensão pragmática absorve outros aspectos pós-produção, como descarte, e há uma distância considerável entre descarte e significação. A ideia básica é separar como parte da dimensão pragmática tudo, ou quase tudo, do seu produto que dependerá da ação de terceiros, depois de pronto. Particularmente, podemos considerar problemático incluir questões interpretativas (acontecem depois) nos mesmos critérios necessários para estabelecer a função prática. Entretanto, é bastante útil incluir no projeto questões que dizem respeito ao meio ambiente, esforços repetitivos, usos indevidos. Sempre haverá aspectos pertinentes ao nosso produto que não aparecem claramente na nossa concepção e produção, mas que terão relevância na interação com o usuário e a sociedade em geral. Nisso, a dimensão pragmática amplia consideravelmente a função prática. Aconselhamos que, ao invés de nos angustiarmos com teorias, escolhamos as dimensões ou funções que melhor apresentam o nosso produto ou serviço como um todo, estabelecendo os critérios, deixando-os muito claros para nós e para quem for interagir com o nosso projeto. Se tivermos de errar, que seja pelo excesso de zelo. Figura 5 – Ilustração de pessoa com dúvida Crédito: Roman Samborskyi/Shutterstock. https://www.shutterstock.com/g/Roman+Samborskyi 16 Por exemplo, se o que acontece depois com nosso produto ou serviço precisa ser cuidadosamente analisado, devemos incluir os dois fatores, mas não misturá-los: tratar separadamente as questões que envolvem descarte, lesões por repetição, usos indevidos etc. e as que envolvem ações interpretativas, ainda que ambos os fatores possam ser classificados como parte da dimensão pragmática. Figura 6 – Mouse Crédito: Dimedrol68/Shutterstock. Se estamos projetando um mouse, no que concerne à interpretação há diversos elementos sob os quais deverá estar seguro, e que dizem respeito ao usuário. Na Figura 6, a cor e forma foram escolhidas em função da interpretação que o artefato receberá posteriormente do seu interpretante. Em contrapartida, o uso repetitivo, o descarte, a fragilidade das conexões, são problemas que também aparecerão depois, no uso. A dimensão pragmática tem a vantagem de nos lembrar que tudo o que fazemos em termos de Design tem uma vida posterior, mas precisamos separar seus aspectos e estudá-los independentemente para podermos encontrar a melhor solução para o conjunto. Podem ser incluídos ainda na função prática alguma coisa das dimensões material e da sintaxe. Isso ocorre porque, conforme a metodologia proposta por Löbach, quando retiramos do produto tudo o que concerne ao estético e ao simbólico, o que sobra, em geral, é material e estrutura, sem os quais as coisas não têm sua função prática. https://www.shutterstock.com/g/dimedrol68 17 TEMA 3 – FUNÇÃO ESTÉTICA Há pelo menos dois conceitos teóricos vinculados à palavra “estética”, e precisamos aprender a diferenciá-los. Vamos encontrar autores e segmentos de estudo que tratam a Estética como sendo o estudo da aparência, ou seja, de todos os fenômenos. Nesse sentido, somos “fenômenos” estéticos porque as pessoas no vêm e sabem que existimos. Há, porém, um outro entendimento que vincula Estética aos estudos do belo, tentando definir o que é o belo, e por quê. Embora certamente sejamos fenômenos estéticos, para a Estética que se ocupa do belo, talvez sejamos de pouco interesse. Löbach (2001, p. 59-60) considera como pertencente à função estética aquilo do produto que os sentidos humanos percebem e que se desdobra em questões psicológicas, o que indica que ele está mais voltado para o primeiro sentido, no qual tudo que é percebido, principalmente pelo sentido da visão, é um fenômeno estético. Essa definição, no entanto, é muito ampla, e dificulta sua localização nos produtos e serviços. Todavia, entendendo a motivação do livro do Löbach, ficará mais fácil identificarmos a função estética. O que o autor está propondo é que, para estudar em detalhes um projeto, produto ou serviço, precisamos separá-lo em partes. Se na função prática concentramos tudo o que é indispensável ao funcionamento, deve haver uma função que receba aquilo que não está discriminado na função prática. Com isso, automaticamente, identificamos elementos que pertencem à função estética, porque ela incorpora tudo o que concretamente precisa estar no nosso produto para que ele seja percebido, mas que não é fundamental ao seu funcionamento. É quase como dizer que tudo o que é concreto e foi retirado do produto na identificação da função prática seja agrupado novamente na função estética. Löbach se insere em uma tradição. Ele, assim como alguns dos seus antecessores notáveis, investiram bastante no discurso de que “a forma segue a função”. Assim pensada, a função estética – à qual pertence a forma – foi vista, por alguns, como algo acessório, que deveria sempre estar submetido às exigências da funcionalidade. 18 Experiência valiosa Louis Sullivan, o “Pai dos Arranha-céus” de Chicago, inovou ao utilizar estilos ornamentais para enfatizar a verticalidade de suas obras. Foi esse princípio que o levou a proclamar a sentença “a forma segue a função”, embora ele próprio conceda os créditos da frase a Vitrúvio. Confira o texto de Rory Stott para conhecer mais. Disponível em: <https://www.archdaily.com.br/br/626678/em-foco-louis- sullivan>. Acesso em: 23 abr. 2024. É comum hoje em dia as pessoas resistirem fortemente a qualquer metodologia que separe forma e função, aparência e conteúdo, e assim por diante, justamente porque estas são dicotomias tipicamente industriais, modernas e, decerta maneira, mecânicas. Entretanto, como designers, precisamos superar essa resistência. Sobretudo porque, para efeitos de projeto, saber identificar as diferentes categorias, dimensões ou funções de alguma coisa foi, e continua sendo, uma ferramenta muito útil. Como abordamos logo no início, saber identificar as diversas categorias que estão presentes naquilo que produzimos vai nos ajudar a conhecer todos os detalhes da nossa própria produção, e as funções de Löbach, nesse sentido, são uma ferramenta de fácil assimilação. Contudo, é preciso atenção para não ser induzido a erros. Observemos as chaleiras das Figuras 7 e 8. Na função prática, elas seriam muito semelhantes, porque ambas são úteis para ferver água e isso é determinado pelos seus componentes básicos. Agora, o que fica para a função estética é bem distinto. É importante notarmos que a forma do bico, do pegador e a cor são itens com apelo estético, e não funcional. Figura 7 – Chaleira vermelha Crédito: monticello/Shutterstock. https://www.shutterstock.com/g/monticello 19 Figura 8 – Chaleira dourada Crédito: Kanurism/Shutterstock. Para nós, designers, não é um detalhe menor o fato de a compra de muitos produtos ser decidida em função daqueles itens que são analisados pela função estética. Há mercados tão concorridos que todos os agentes já alcançaram a excelência na função prática, e precisam se distinguir na estética. No exemplo das chaleiras, é relativamente fácil concluir que as diferenças entre os dois artefatos estão na função estética. No entanto, quanto mais praticamos, mais percebemos as sutilezas. Vamos analisar agora a garrafa e a taça apresentadas na Figura 9 a seguir. O que, nesses dois objetos, pertenceria realmente à função estética? Sem pensar muito, poderíamos concluir que a forma da garrafa e da taça são elementos tipicamente estéticos, afinal, há uma variedade considerável de formas de garrafa para vinho e para taças que possibilita diferenciá-las no mercado. Porém, se formos um especialista da área, saberemos que a forma da garrafa para vinho e a forma da taça têm características que são determinadas pela sua função prática. O vinho precisa ser armazenado em determinada posição, fechado à rolha, o bico da garrafa deve ser mais estreito. No caso da taça, a haste deve ser de tal forma que o contado mais demorado com a mão não aqueça o líquido, a boca da taça deve ser mais estreita par manter os aromas, e assim por diante. Ou seja, dentro da categoria “forma” encontraremos elementos da função prática e da função estética. Em outros termos, quando estamos analisando a função prática, não podemos simplesmente ignorar a forma. O que precisamos aprender a diferenciar, dentro da categoria “forma”, é aquilo que é da função prática daquilo que é da função estética. Isso vale tanto para os exemplos das chaleiras e do mouse quanto para a garrafa. https://www.shutterstock.com/g/kanur+ismail 20 Figura 9 – Garrafa e taça Crédito: Stokkete/Shutterstock. Dica Quando o nosso interesse está voltado para a função estética, devemos nos esforçar para não incluir as questões que são mais bem estudadas na função prática, ainda que, para isso, precisemos tratar a forma em duas funções. Além da íntima relação que existe entre a forma e a funcionalidade, há também certa dificuldade em separar o que fica melhor exposto como função estética daquilo que vai para a função simbólica, porque em geral as duas funções se manifestam na forma. Em momentos anteriores, mencionamos que as séries asiáticas não costumam trabalhar as cores pelo seu significado, e sim pelo seu apelo estético. Esse é um bom exemplo de como é necessário distinguir o que é da função estética e o que é da função simbólica. Diferentemente do que ocorre nas produções ocidentais, nas asiáticas, o amarelo, o azul, o vermelho são, geralmente, escolhidos em função do efeito visual que causam como cor, e não porque signifiquem alguma coisa. O amarelo estará ali para aumentar a luz e causar efeito nas outras cores, mas dificilmente para alertar sobre algum perigo. Na Figura 10 a seguir, não é porque o observador não consegue decifrar o significado das opções feitas para as cores que elas não precisam ser analisadas, afinal, causam impressões no observador https://www.shutterstock.com/g/cyano 21 e, em certa medida, afetam a forma da construção; é para isso serve a função estética. Figura 10 – Parede colorida Crédito: Bule Sky Studio/Shutterstock. Por meio da Figura 11, complementamos o raciocínio. Poderíamos, se quiséssemos, extrair alguns signos do frasco, sobretudo considerando os conteúdos que já estudamos. Entretanto, a análise da função estética demanda que reparemos no contraste entre o vidro e a madeira, entre a linha reta e a curva, na posição inclinada, na transparência do vidro. Todas essas informações são estéticas, afetam o observador, e podem ser analisadas separadas de sua função simbólica. Figura 11 – Frasco de perfume Crédito: Constantinos Loumakis/Shutterstock. https://www.shutterstock.com/g/platongkoh https://www.shutterstock.com/g/constantinos https://www.shutterstock.com/g/constantinos 22 Isso significa que boa parte da análise que aprendemos a fazer em nossos estudos está ancorada em conhecimentos que são estudados em pesquisas e abordagens que se dedicam à Estética. É preciso que saibamos o que é uma linha, o que é direção, o que é ritmo, o que é equilíbrio. Sem tais conceitos, ficaremos “presos” à análise dos signos. Sim, ser capaz de identificar o que algo significa e, principalmente, ser capaz de incutir significado no seu produto, é fundamental. Entretanto, precisamos ser igualmente capazes de analisar e compreender a nossa produção sem essa influência. Isso é necessário porque a análise da significância tem como características a fluidez e a liberdade interpretativa, e isso abre para o aluno uma rota de escape perigosa, porque tudo remete a alguma coisa e, com isso, se dá tudo por explicado. Na vida prática, não é assim. Quando separamos a função estética da simbólica, essa dificuldade emerge, e precisamos enfrentá-la. Profissionalmente, devemos estar capacitados a descrever e nominar os detalhes daquilo que produzimos. Precisamos saber como o nosso produto remete ao conforto, ao luxo, ao street, ao moderno, enfim, a todas essas palavras que costumamos utilizar para facilitar o processo. Geralmente, quando utilizamos a palavra “moderno” para descrever alguma coisa, tomamos como certo que o interlocutor, ou cliente, resolverá tudo por sua própria conta. Não raro, utilizamos as palavras para “compensar” certas deficiências do nosso produto. Como designers, devemos aprender a evitar esse recurso. É preciso que desenvolvamos o hábito de manter ao nosso lado diuturnamente um cliente fictício que sempre pergunta “mas por que assim, e não de outro jeito?”, e que evitemos de recorrer à função simbólica como resposta. Devemos justificar a cor, a forma, a textura, tudo sem recorrer ao simbolismo. Assim, vamos concluir que a dificuldade aumenta bastante, mas os benefícios são igualmente grandes. Vamos exercitar isso com a mochila da Figura 12. Em momento anterior, ela foi explorada pelo potencial sígneo. Agora, vamos descrevê-la conforme a sua função estética. 23 Figura 12 – Mochila Crédito: maximmmmum/Shutterstock. O que mais se destaca é a cor amarela, que tem a capacidade de iluminar, chamar a atenção para si. Seu contorno é definido por linhas pretas cuja característica mais marcante é a parte reta, bem definida verticalmente; somado a isso, as curvas são suaves. As linhas de contorno ajudam a combater o efeito da profundidade, que também é negada pela opacidade do material. Todas essas características fazem com que o olho do observador perceba uma forma geométrica plana, estruturada,definida, que chama a atenção pela cor. Uma forma que não deixa dúvidas, nem instiga o olho a procurar por outras informações. A pressa em encontrar o simbólico, muitas vezes, impede o aluno de praticar esse tipo de descrição. TEMA 4 – FUNÇÃO SIMBÓLICA Se compreendemos os limites da função estética, já devemos ter concluído que, para descrever o nosso produto, precisamos de uma categoria para colocar e analisar as relações sígneas que estudamos em momentos anteriores. Já sabemos que há aspectos do produto que, para serem analisados, precisam levar em conta a ação interpretativa do cliente ou do observador. Na separação em funções de Löbach, o lugar mais adequado para isso é a função simbólica, em que ficam as “associações de ideias” (Löbach, 2001, p. 65). Mas fiquemos atento: na função simbólica, Löbach (2001, p. 64) coloca questões “espirituais, psíquicas e sociais” e emocionais. Se estudamos anteriormente com atenção, vamos lembrar que, na Semiótica de Peirce, https://www.shutterstock.com/g/maximmmmum 24 símbolo está relacionado especificamente a relações baseadas em convenções. Löbach se refere a símbolo em um sentido bem mais amplo. Dica A função simbólica de Löbach não se limita às relações simbólicas que podem ser extraídas de Peirce. Ela pretende englobar o signo como um todo, e não somente aquilo que nele se estabelece por convenções. Para não tornar esse conteúdo repetitivo, vamos considerar que nossos conhecimentos sobre a Semiótica de Peirce são suficientes para analisar aquilo que em nosso produto estaria na função simbólica de Löbach. Saiba mais Para saber como Löbach trabalha a função simbólica, recomendamos o tópico 4.3 do livro Design Industrial (2001). A linguagem que ele utiliza é diferente, e conhecê-la aumentará o nosso acervo de palavras e ideias. No que concerne à prática, é plausível tratar o estético e o simbólico (no sentido amplo) em uma única dimensão semântica, como sugerido no esquema da Figura 13. Contudo, ressaltamos que Niemeyer (2007) não entende assim. Ela separa um item específico para as características sígneas e o denomina referências. Saiba mais Para saber como as relações sígneas aparecem nas referências de Niemeyer, recomendamos a leitura do tópico 8 do seu livro Elementos de semiótica aplicados ao design (2007). Lendo o texto de Niemeyer, vamos notar que o contexto no qual ela coloca as relações sígneas é, em algum sentido, “externo”, pensado depois do produto acabado, e não na nossa concepção, conforme aprendemos em momento anterior. Além disso, as características que são reservadas à dimensão semântica no texto de Niemeyer (o que uma cadeira expressa, como propicia o ato de se sentar, o que representa no seu ambiente etc.), aproximam-se da dimensão pragmática, porque ambas englobariam consequências do produto ou serviço no mundo, e com isso se entrecruzam com a função prática do Löbach. De fato, as dimensões semântica e pragmática ampliam o horizonte da 25 “função”, mas essa aproximação levanta uma série de outros campos dúbios que costumam confundir o aluno. Com base no que a prática tem nos ensinado, é preciso fazer um esforço para separar o simbólico do estético (no sentido que esses conceitos adquirem na proposta de Lobäch), treinar nosso olho para identificar o efeito do material e das formas nos sentidos, sem o recurso ao simbólico, como sugerido no exemplo do frasco de perfume e da parede colorida. Agora, quando estivermos analisando a função simbólica, nunca nos esqueçamos do que aprendemos anteriormente: formas, material e cores são os recursos por meio dos quais se estabelecem as relações sígneas entre o objeto desejo do cliente e o interpretante (seu cliente). Deixemos de lado o já desgastado recurso ao “remete à”. Sejamos específicos. Se assumimos para nós e para o cliente afirmações como “a cadeira é bela”, “a cama é confortável, “a coleção é consistente,” o ambiente é moderno, “o jogo é divertido”, além de estarmos em condições de definir, não somente com palavras, mas com nosso trabalho, o que são cadeira, cama, coleção, ambiente, jogo, precisamos também estarmos seguros de que introduziu no nosso produto ou serviço a beleza, o conforto, a consistência, a modernidade e a diversão, e isso, em produtos que têm materialidade, acontece por meio de formas, cores, texturas etc. É importante lembrarmos que o diálogo que importa se estabelece entre o nosso produto ou serviço e os sentidos do usuário. Palavras, nesse momento, valem pouco. O frasco de perfume não “remete” a nada. Ele “significará” alguma coisa para alguém por meio de sua forma, material e cor, assim como a parede colorida, ou seja, o simbólico não prescinde do estético, mas o profissional do Design deve saber separá-los. Em momentos anteriores de nossos estudos, nossa intenção foi convencê-los de que, com as ferramentas da Semiótica de Peirce, teremos mais chances de persuadir nosso cliente ao fazê-lo entender o nosso produto ou serviço com a significância que, como designers, esperamos. Em outras palavras, um produto ou serviço bem resolvido na sua significação dará ao designer maiores condições de influenciar a vida posterior, o “estar no mundo” do nosso produto ou serviço. Porém, para isso, precisamos do respaldo da Estética, da colorimetria, do estudo dos materiais, e assim por diante. Considerando o disposto até aqui, podemos assumir que, para este estudo, vale o disposto na Figura 13. 26 Figura 13 – Sugestão para aproximação dos conceitos Fonte: Nascimento, 2024. É importante perceber que, com as setas coloridas, intencionamos relacionar todas as denominações que Bense e Niemeyer utilizaram no contexto das dimensões à classificação de funções de Löbach, inclusive a sintaxe, que mantivemos como um elemento separado em Löbach, visto que merece destaque. A relação é aproximada, porque os conceitos não coincidem, os limites das categorias são flexíveis e, principalmente, todas elas se sobrepõem em um mesmo produto. Essa dificuldade é pertinente à aproximação teórica que se fez entre a Linguística e a Comunicação Visual, derivando disso teorias que hoje são aplicadas em uma ampla gama de atuações do Design. Nosso objetivo, nesse conteúdo, é ajudar a encontrar as ferramentas que mais contribuem para o nosso trabalho, para melhorar a qualidade daquilo que fazemos. Nessa direção, separamos um tópico específico para a dimensão sintática, por parecer a menos estudada. TEMA 5 – DIMENSÃO SINTÁTICA Entendemos que um acréscimo importante pode ser dado às funções do Löbach pela observação da sintaxe. A maneira mais rápida de entender para que serve a dimensão sintática na nossa atividade é entender a função da sintaxe na Linguística. Mencionamos há pouco o trabalho de Barthes e Lurie, e o que esses estudiosos fizeram foi parear signos linguísticos (palavras) aos signos da indumentária (roupas). Pretendemos demonstrar que os mesmos erros que acontecem no uso das palavras podem acontecer nos produtos de Design. Observemos este exemplo: “Maria fora lá brinca”. Do ponto de vista da sintaxe, essa é uma combinação incorreta porque os signos linguísticos não estão corretamente relacionados, visto que a correta relação seria “Maria brinca 27 lá fora” (Marcondes, 2005). Então, existe uma maneira correta de dispor as palavras dentro de uma frase para que esta, ao final, faça sentido, e isso é sintaxe. Estudar essas combinações é fazer uma análise sintática. Na Linguística, a sintaxe correta é buscada por meio do estudo das estruturas de uma língua. Devemos estar lembrando dos estudos sobre análise sintática com nosso professor de português. Lá aprendemos as regras que determinam a correta construção da frase. Aprendemos que as palavras não podem ser combinadas de qualquer jeito sem prejuízo da mensagem. Profissionalmente,teremos muito a ganhar se pensarmos o nosso produto ou serviço com base no mesmo princípio. No que concerne à dimensão sintática, é preciso que as partes que constituem aquilo que fazemos sejam harmonicamente conectadas, que a relação entre elas seja contínua. Tudo o que é desnecessário deve ser retirado, pois atrai a atenção dos sentidos para o que não é importante, e o que é importante deve vir primeiro, seguido do que é complemento. A sintaxe de um produto pode ser procurada em vários níveis. Na sua estrutura construtiva, passando pelos fluxos de movimentação do usuário, até a continuidade necessária para as coleções. Cada vertente do Design terá o seu interesse em termos de dimensão sintática. Citaremos aqui exemplos vindos da moda, mas podemos aplicá-los a outros interesses. Na Figura 14, apesar de não ser um exemplo de solução ótima, nela é possível identificar alguma coerência. As várias texturas se harmonizam porque há apenas duas cores em tela: o vermelho e o branco, ainda que o vermelho puro não apareça. Nesse caso, é esse par de cores que serve de estrutura. Figura 14 – Texturas em modelos Crédito: Xeniia X/Shutterstock. https://www.shutterstock.com/g/Asauriet 28 Agora, tentemos encontrar alguma coerência visual no conjunto da Figura 15 a seguir. Figura 15 – Mulheres Crédito: Creative Lab/Shutterstock. A dificuldade com a Figura 15 prova que há maneiras corretas e incorretas de arranjar os elementos daquilo que produzimos. O olho humano terá dificuldade em encontrar um caminho para compreender a imagem, porque não há uma estrutura facilmente perceptível que perpasse as três modelos. As peças são diferentes, não há relação entre as cores, as texturas não parecem ter sentido, e cada modelo tem um estilo. É como se várias palavras tivessem sido grafadas em dados e esses dados jogados ao acaso. A analogia com frases ajuda, mas não nos esqueçamos de que a nossa língua tem uma estrutura linear, uma coisa atrás da outra. Muitas atividades do Design têm estruturas volumétricas, como pode ser visto no exemplo da Figura 16. Figura 16 – Ilustração de estrutura volumétrica Crédito: nasirkhan/Shutterstock. https://www.shutterstock.com/g/AG+Creative+Lab https://www.shutterstock.com/g/nasirkhan 29 É preciso que invistamos algum tempo analisando nosso produto para descobrir qual é a estrutura, nele, que realmente importa e determinará todo o restante. O conceito de sintaxe, no entanto, permanece: as partes precisam ter conexão, sentido e clareza, do contrário, o observador ou usuário não terá com ele uma experiência agradável. TROCANDO IDEIAS Considerando a sua atividade como designer, identifique possíveis estruturas (dimensão sintática) e aspectos mais marcantes que você possa qualificar como função prática, estética e simbólica. Justifique suas escolhas e peça a opinião dos colegas no fórum. Procure contato com alunos da sua área e aproveite essa ferramenta de diálogo para confirmar suas ideias. NA PRÁTICA Sugerimos o seguinte exercício prático: vá ao seu guarda-roupa, separe diversas peças e tente organizá-las de maneira coerente, com uma sintaxe correta. Observe o exemplo da Figura 17. Com facilidade, você identificará: 1. presente em todas as peças – babado e tecido de algodão; 2. presente em algumas peças – listras e bolas; 3. tipo de peça – saia e blusa. Figura 17 – Arara com roupas Crédito: Creative Lab/Shutterstock. https://www.shutterstock.com/g/AG+Creative+Lab https://www.shutterstock.com/g/AG+Creative+Lab https://www.shutterstock.com/g/AG+Creative+Lab 30 Agora, imagine que cada uma dessas peças é uma palavra dentro de uma frase. Para a frase ser agradável e a mensagem clara, você precisa saber quem é o sujeito, qual o predicado, onde vai a vírgula, o ponto final etc. Na arara, isso significa dizer que temos que decidir qual a primeira peça, onde estarão os intervalos visuais, se as peças com listras estarão agrupadas ou intercaladas com as de bolas, e assim por diante, até encontrar a situação “ótima”, que nós, geralmente, dizemos que é a mais “bonita”, ou pelo menos a que mais agrada. Você só tem a certeza de que aquele arranjo é o que exprime beleza quando está convicto de que qualquer movimento a mais estraga. FINALIZANDO Aprendemos que a análise detalhada de uma coisa, qualquer que seja ela, será mais bem elaborada se as suas partes forem separadas por categoria. Aprendemos, ainda, que já existem diversas categorias conhecidas, sendo funções e dimensões as mais citadas nos estudos do Design. Nosso intuito foi fazer entender que a decisão sobre qual grupo de categorias melhor descreverá o produto ou serviço cabe ao projetista ou designer, pois cada situação demandará detalhar mais e melhor uma determinada parte do conjunto. Há aspectos da joalheria que são estranhos aos games, e há aspectos importantes para games que não afetam a joalheria, e assim infinitamente. Quanto mais acertarmos nas categorias, mais conheceremos o nosso produto a fundo, e maiores serão as nossas chances de acerto. 31 REFERÊNCIAS ARNHEIM, R. Arte e percepção visual: uma psicologia da visão criadora. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2000. LÖBACH, B. Design Industrial. São Paulo: Blucher, 2001. MARCONDES, D. Em defesa de uma concepção pragmática de linguagem. Gragoatá, Niterói, ano II, v. 18, p. 11-29, 1. sem. 2005. NASCIMENTO, S. F. Moda e linguagem: Nietzsche e Arbus, uma aproximação. Revista Dobras, 2014. Disponível em: <https://dobras.emnuvens.com.br/dobras/ article/view/39/39>. Acesso em: 23 abr. 2024. NIEMEYER, L. Elementos de semiótica aplicados ao design. 2. ed. Rio de Janeiro: 2AB, 2007.