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NOME DA DISCIPLINA FUNDAMENTOS DA PRESERVAÇÃO PATRIMONIAL 2 SUMÁRIO NOSSA HISTÓRIA ...................................................................................................... 3 INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 4 TRADIÇÃO, CULTURA MATERIAL E CULTURA CONSTRUTIVA ............................ 9 A HISTORICIDADE DAS TERMINOLOGIAS ............................................................ 10 BEM PATRIMONIAL: DA MATERIALIDADE E IMATERIALIDADE - UM PONTO DE INTERSEÇÃO ........................................................................................................... 11 MATERIALIDADE ..................................................................................................... 11 A IMATERIALIDADE ................................................................................................. 19 ACOLHIMENTO E REJEIÇÃO DAS PRIMEIRAS INSCRIÇÕES DOS BENS IMATERIAIS .............................................................................................................. 20 CONSERVAÇÃO PREVENTIVA, CIÊNCIA E METODOLOGIA ............................... 23 O FIM DO SIGNIFICADO DOS CONCEITOS ABSOLUTOS .................................... 28 ARQUITETURA COMO MONUMENTO PORTADOR DE MONUMENTALIDADE ... 29 PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO, CULTURAS CONSTRUTIVAS TRADICIONAIS E SOCIEDADES GLOBALIZADAS ............................................................................... 36 A TRANDISCIPLINARIDADE DA HISTÓRIA E A HISTÓRIA DA CONSTRUÇÃO ... 39 A CONSTRUÇÃO E PATRIMÔNIO CONSTRUÍDO: A TRADIÇÃO .......................... 42 ALGUMAS CONCLUSÕES ....................................................................................... 43 REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 45 3 NOSSA HISTÓRIA A nossa história inicia com a realização do sonho de um grupo de empresários, em atender à crescente demanda de alunos para cursos de Graduação e Pós-Graduação. Com isso foi criado a nossa instituição, como entidade oferecendo serviços educacionais em nível superior. A instituição tem por objetivo formar diplomados nas diferentes áreas de conhecimento, aptos para a inserção em setores profissionais e para a participação no desenvolvimento da sociedade brasileira, e colaborar na sua formação contínua. Além de promover a divulgação de conhecimentos culturais, científicos e técnicos que constituem patrimônio da humanidade e comunicar o saber através do ensino, de publicação ou outras normas de comunicação. A nossa missão é oferecer qualidade em conhecimento e cultura de forma confiável e eficiente para que o aluno tenha oportunidade de construir uma base profissional e ética. Dessa forma, conquistando o espaço de uma das instituições modelo no país na oferta de cursos, primando sempre pela inovação tecnológica, excelência no atendimento e valor do serviço oferecido. 4 INTRODUÇÃO Num primeiro momento é necessário relembrar que o órgão responsável pela preservação do patrimônio cultural brasileira é o palavra preservação possui amplo significado, dentro das diversas áreas do conhecimento, e normalmente está relacionada ao cuidado e ao amparo do patrimônio. No campo da restauração, a palavra preservação compreende desde a intenção de salvaguardar o monumento arquitetônico, passa pelos estudos e análises específicos do campo disciplinar, até encontrar-se com as ações práticas da intervenção em monumentos históricos. Ou seja, a preservação carrega os significados próprios da teoria do restauro e caminha para as ações práticas, desde as manutenções simples e ordinárias, até as intervenções de escala abrangente. Entretanto é verificável que as ações práticas que vêm sendo executadas em bens patrimoniais, no Brasil e no exterior, nem sempre estão munidas de toda a bagagem intrínseca ao termo. A falta de diálogo entre as ações práticas e a teoria do restauro leva o patrimônio arquitetônico a uma situação de risco: de um lado, faltam ações de manutenção preventiva. De outro, as intervenções realizadas, por vezes, estão desprovidas de estrutura teórica própria do campo disciplinar do restauro. A palavra patrimônio remete refletir questões advindas e relacionadas sobre herança, e esta, pode ser coletiva ou individual, herdado dos nossos familiares e/ou deixado para as próximas gerações. E a arquitetura que integra a paisagem é um modelo de patrimônio, considerado interessante, vivo e coletivo, independentemente se é em âmbito individual. O patrimônio arquitetônico contribui, de forma significativa, no diálogo com o contexto urbano e no planejamento e desenvolvimento do mesmo, pois interage diretamente com a paisagem e seu entorno, conferindo informações e possibilidades de imaginação de quem o observa. Nessa perspectiva, Vilanova (2013), afirma que preservar é defender, proteger e resguardar; é exercer o direito à cidadania, à memória e à identidade. É pertinente considerar que o patrimônio arquitetônico constitui-se no coletivo, por grupos diversos e de grande interesse para a sociedade, haja visto, que a salvaguarda da arquitetura é importante quando associada à coletividade e à preservação da memória urbana. A memória é uma aliada para a construção da identidade do corpo 5 social e colabora para o entendimento da trajetória humana, ajudando a compreender as ações de planejamento e desenvolvimento urbano das cidades. Dessa forma, preservar é imprescindível para o entendimento do que nossos antepassados pensavam e como viam o mundo, pois o patrimônio, vista como arte e é o reflexo dos nossos pensamentos, sentimentos e demais subjetividades. Vimos em Oliveira e Callai (2018) que as políticas de preservação do patrimônio transformam-se em peças fundamentais e estratégicas, muitas vezes, identificadas como verdadeiros instrumentos de ordenamento da cidade. E que proteger o patrimônio é manter vivas as marcas da história, assegurando a possibilidade de que as gerações futuras tomem conhecimento das manifestações produzidas socialmente ao longo do tempo, seja no campo das artes, nos modos de viver, nas crenças, lugares ou mesmo na paisagem da própria cidade, com seus atributos naturais, tangíveis e intangíveis. É de responsabilidade do Estado, através da legislação do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), órgão responsável por evitar o descaso com as edificações patrimoniais. O governo, como um todo, tem também a função de criar leis e fazer com que elas sejam seguidas, sendo dever elaborar normas para que a preservação seja mais respeitada, além de, divulgar a importância da mesma, uma vez que, só se tem vontade de proteger aquilo que se conhece e, dessa forma, os cidadãos passam a entender o motivo quando conhecem e quando conscientizados do papel que bem edificado bem tem na construção da identidade urbana. Neste contexto, Vilanova (2013), afirma que preservar é manter a integridade dos valores pelo/do próprio povo. Assim, Oliveira e Lopes (2018) observam, de maneira constitutiva, que patrimônio edificado pode ser pensado enquanto suporte do imaginário e da memória social de uma localidade, ou seja, os edifícios e áreas urbanas possuidoras de valor patrimonial. Também podem ser tomados como um ponto de apoio da construção da memória, de valor e poder como um estímulo externo queajuda a reativar e reavivar os traços arquitetônicos na formação sócio territorial. Nesse viés, a memória coletiva moldada formada e articulada através do tempo não é mais do que um passeio através da história, revisitada e materializada no presente pela arquitetura, reforçando a ligação de identidade e pertencimento do ser humano em certo tempo e espaço. O patrimônio arquitetônico traz, como um bem patrimonial material, desperta e proporciona um sentimento de identidade e de pertencimento para quem o olha. 6 Reconhecendo as manifestações culturais de um povo através da história contada no passar dos tempos, assim , desta forma, o patrimônio é símbolo que expressa grande valor para a coletividade podendo ser visto, sentido e vivido. A compreensão de que a preservação possui um papel fundamental para as futuras gerações faz referência para entender um pouco da história base, aquela construída através da vidas dos antepassados numa determinada sociedade. O patrimônio arquitetônico preserva a história da cidade em que está situado, pois tudo que é mantido intacto possui a finalidade de contribuir em algo do presente e para o futuro. E Oliveira e Callai (2018) verbera brilhantemente que o espaço urbano contemporâneo, destituído de várias edificações e conjuntos arquitetônicos, transformam-se em espaços heterogêneos que muitas vezes não valoriza os edifícios com relevância arquitetônica remanescentes. As demolições relacionam-se principalmente com a perda da memória da evolução urbana e com o empobrecimento da ambiência que poderia ser mais diversa e rica. Estes fatores corroboram para seu futuro desaparecimento e indicam a necessidade imediata da preservação do que há, de ações de educação patrimonial e da conscientização da população quanto ao significado e importância dos prédios existentes como fator de identidade e pertencimento do cidadão com o seu local de origem. Observa-se que a conservação do patrimônio contribui com questões relacionadas à sustentabilidade ambiental, uma vez que, acaba utilizando recursos financeiros e técnicos com valores inferiores no lugar de construir algo novo, a exemplo, da restauração que contribui para que o imóvel antigo com marcas do tempo seja preservado. Para manter o patrimônio arquitetônico vivo existem instrumentos e instituições legais (a nível federal, estadual e local) que defendem a proteção e a não demolição de edificações que possuem valor para a sociedade de forma coletiva. Amaral e Messias (2016) entendem que o valor patrimonial de um bem só pode ser compreendido se não houver uma ruptura da sua memória espacial e temporal, ou seja a restauração não pode modificar seu estilo inicial e nem as suas peculiaridades. A arquitetura pensada como bem patrimonial passou a ser considerada como um mediador entre passado e presente, uma âncora capaz de dar uma sensação de continuidade em relação ao passado. Pensar arquitetura como patrimônio, de pronto, conceitua-se como o legado, o vestígio tangível herdado e transmito às futuras gerações. O patrimônio arquitetônico criado pelo Homem tem sua existência física em certo espaço e tempo, onde por diversos motivos, muitos desses bens destroem-se e/ou desaparecem. 7 Entretanto, outros sobrevivem acumulando e evidenciando expressões como monumentalidade, valor e poder. Dessa maneira, a preservação arquitetônica representa para a sociedade atual uma verdadeira necessidade, pois a arquitetura resgata parte do que é o passado permitindo assim possibilidades de se compreender o presente e de ações para o futuro. Fundamentalmente o elemento que define patrimônio é a relação da capacidade de representar simbolicamente uma identidade. Compreendendo os símbolos como um veículo nato de comunicação cultural, a sociedade mantém através destes, um estreito vínculo com o passado, haja visto, que é através desta identidade, passado/presente, que nos diferenciamos coletivamente como iguais, que nos identificamos com os restantes e que nos discernimos dos demais. Silva (2000, p. 220) salienta que através do patrimônio o indivíduo sequestra um pedaço de passado, sob a forma de totens pessoais, em relação aos quais percebe uma vinculação direta com a preservação; seja como um artifício idealizado com finalidades de identificação no espaço e no tempo ou como elemento de referência. Conhecer a história da cidade e seu processo constitutivo, conforme salienta Souza (2008) é saber que cada indivíduo faz parte deste processo como ser ativo, é o caminho para a criação de uma identidade, primeiramente para com o seu local, depois regional e finalmente atingir a identidade nacional, onde a preservação do patrimônio arquitetônico envolve uma série de atores sociais e políticos. Nesse sentido, Silva (2000) sinaliza ainda que é através da própria dinâmica da existência, que a arquitetura do passado alimenta, pela sua permanência no tempo, a criatividade de novas gerações e assim fluindo a cultura e a preservação da arquitetura existente, pois a arquitetura e a cidade, se transformam em uma extensão do que uma coletividade quer. A arquitetura e a cidade, na visão de Oliveira, Diniz e Wildner (2017) assumem um papel que acaba por contribuir na formação da identidade de um local, na formação de grupos, de categorias sociais e no resgate da memória, desencadeando assim uma ligação entre o cidadão e suas raízes. Canani (2005) afirma que a arquitetura vista como patrimônio está relacionada a um bem que pertence ao paterno, tão valioso que justifica sua herança e preservação, por nela estar incutida a memória e a identidade de quem o deixa e de quem o herda. Oliveira, Diniz e Wildner (2017) mais vez corroboram que a arquitetura patrimonial pertence à comunidade que a produziu e que a compõem, onde a consciência em preservar, sem dúvida, contribuirá para que os demais possam 8 usufruir desta herança e, que por meio destes testemunhos do passado, possam compreender o processo de desenvolvimento da identidade desse espaço. Como reforça Silva (2000) o patrimônio arquitetônico não é só o legado que é herdado, mas o legado que, através de uma seleção consciente, um grupo significativo da população deseja legar ao futuro. Ou seja, existe uma escolha cultural subjacente à vontade de legar o patrimônio cultural a gerações futuras. E existe também uma noção de posse por parte de um determinado grupo relativamente ao legado que é coletivamente herdado. Choay (2001), diz que a preservação do patrimônio cultural abrange diversos aspectos daquilo que é considerado monumento histórico, onde no caso dos bens arquitetônicos essa discussão relaciona-se intimamente com uma de suas características intrínsecas, o uso, pois a arquitetura é a única, entre as artes maiores, cujo uso faz parte de sua essência e mantém uma relação complexa com suas finalidades estética e simbólica. Ballar (1997) fecha observando que a noção de patrimônio surge quando um indivíduo ou um grupo de indivíduos identificam como um objeto ou um conjunto de objetos. Oliveira, Diniz e Wildner (2017) afirmam que o patrimônio arquitetônico possui a capacidade de estimular a memória das pessoas historicamente vinculadas a ele, e por isso, é alvo de estratégias que visam a sua promoção e preservação, onde a preocupação em protegê-lo começou no início do século XX, sendo criadas a partir daí várias comissões e conferências para estabelecer critérios para proteger e conservar o patrimônio. Os autores observam que é através da materialidade, que o indivíduo consegue se realizar e afirmar sua identidade cultural, podendo também, reconstruir o seu passado histórico. Já Silva (2000) salienta que a história e os seus objetos ganham um valor e um interesse sem precedentes face ao fantasmada ruptura e da desordem provocado pela ausência de valores simbólicos e de identificação, a sociedade reclama, numa explosão de nostalgia, a recuperação do passado. Então, nesse viés, do contexto nostálgico, a preservação e a salvaguarda da arquitetura surge como uma forma de recuperação especialmente eficaz. Ainda a autora (2000) reforça que o patrimônio se converte, nos últimos anos, num verdadeiro culto popular e também, numa etiqueta extraordinariamente extensiva a uma enorme quantidade de elementos e objetos, do individual ao coletivo, do material ao intangível, de um passado mais remoto a um passado mais recente 9 TRADIÇÃO, CULTURA MATERIAL E CULTURA CONSTRUTIVA A palavra tradição tem a sua origem na latina tradere que significa transmitir e a tradição artística refere-se ao patrimônio artístico de uma determinada cultura. Por extensão, tradição construtiva tratar-se do patrimônio de conhecimento de uma determinada cultura construtiva, se considerarmos a definição de cultura construtiva proposta por Howard Davis. A cultura material como materialização de uma cultura e evidência de uma sociedade, no que se refere às realizações arquitetônicas como objetos materiais, resultaria de uma cultura construtiva que, também ela, se trataria de uma criação cultural. Como repercussão da aplicação da ideia de tradição a outros âmbitos como valores, crenças e costumes religiosos ou simplesmente rituais de interação social, a interpretação do conceito no âmbito arquitetônico e construtivo sofreu alterações ao longo de todo o século XX. Uma memória que contrasta com a memória-pura, que pretende representar o passado e que aceita os fatos históricos como irrepetíveis (BERGSON, 1896). No campo da sociologia Edward Shils referiu-se à tradição como um padrão orientador, uma forma de conhecimento transmitida entre gerações, passível de algumas mutações (SHILS, 1981, 12). Hobsbawm (1983) introduziu a ideia de ‘tradição inventada’ para todas as formas de práticas imutáveis tacitamente inculcadas nas sociedades em processos de repetição e referidas ao passado. Outros investigadores preocuparam-se em defender a natureza unicamente simbólica da tradição pela impossibilidade de se tratar de algo contínuo e imutável (HANDLER & LINNEKIN, 1984). A partir destes últimos estudos construiu-se a visão incompleta e redutora usada ainda por muitos âmbitos teóricos e práticos, que associa a ideia de tradição a uma manipulação artificial das sociedades, não considerando o seu sentido mais essencial que consiste no conhecimento acumulado entre gerações (Figura 1). 10 Figura 1: A moldagem e secagem artesanal de tijolos e ladrilhos de barro antes de serem cozidos em forno de lenha. Vetriolo (Viterbo), Itália. Fonte: João Mascarenhas Mateus 2006. A HISTORICIDADE DAS TERMINOLOGIAS O conceito de tradição está intimamente ligado ao conceito de História e Henry Glassie na sua obra Material Culture (1999) recorda o modo em que a História, como disciplina, desde cedo foi desmembrada em especializações: história econômica, religiosa, política, da arquitetura. Em 1934, Karl Popper afirmava que o caráter de uma teoria científica tenderia à sua refutabilidade (POPPER, 2007, 29-30). O conceito de proteção do patrimônio construído transformou-se igualmente com o tempo. Ao falar em restauração/preservação não há como não dizer que no século XIX debateram-se as posições ruskinianas de ‘less intervention is more’ e as intenções de restauro de estilo de Eugène Viollet-le-Duc. Do restauro filológico de Camillo Boito e Gustavo Giovannoni passou-se ao restauro crítico de Roberto Pane e Renato Bonelli. Mais recentemente, das instâncias estéticas e históricas de Cesare Brandi nasceram o restauro histórico-crítico de Giovanni Carbonara e as intenções tradicionalistas de Paolo Marconi, entre outros. 11 Desde a Ilustração que se criou uma particular ambição em compartimentar todos os âmbitos do conhecimento e por isso se procede a ajustes periódicos que seguem esquemas idênticos de delimitação disciplinar, numa competição por conseguir verdades absolutas. Felizmente, desde tempos recentes, estamos também a assistir a reinvidicações da transitoriedade de muitas definições, a uma historicidade incontornável das interpretações. Uma prova clara desta historicidade pode encontrar-se no próprio conceito de tradição. BEM PATRIMONIAL: DA MATERIALIDADE E IMATERIALIDADE - UM PONTO DE INTERSEÇÃO MATERIALIDADE O que tínhamos até a metade do século XX, a definição corrente de patrimônio era, na grande maioria das vezes, de um objeto/ construção de valor histórico e/ ou artístico excepcional. Eram contemplados castelos, igrejas, esculturas, ruínas, entre outros. A sua identificação era realizada por especialistas, que a partir de critérios ditos técnicos e objetivos, indicavam o que merecia proteção do Estado. Os valores do patrimônio eram apresentados como intrínsecos, bastando o exame ou o olhar do especialista para o seu reconhecimento. Os conflitos eram reduzidos, afinal a decisão estava restrita a um pequeno grupo de seletos, que possuíam uma visão similar sobre quais eram os principais movimentos artísticos e a importância de se proteger os vestígios materiais das sociedades antigas estudadas pela arqueologia. Após classificados como patrimônios, não restavam alternativas além de preservá-los para a posterioridade e oferecê-los à população como a verdadeira história, a comprovação de um passado glorioso e único. Raramente ocorriam discussões sobre a influência das condições do presente na escolha das construções a serem promovidas como SAIBA MAIS: O termo monumento histórico deve ser esclarecido [...] por monumento histórico, não se deve entender obra grandiosa de valor artístico e histórico excepcional (como foi frequente no século XIX), mas, sim, como propõem variados autores da atualidade, qualquer artefato que adquiriu significação cultural com o tempo, - algo mais relacionado ao seu sentido etimológico e às propostas de Riegl". Kühl (2010, p. 301) 12 patrimoniais, assim como não eram considerados os diferentes pontos de vista que a população poderia ter sobre a mesma obra. Se o passado era uma constatação, uma realidade, ainda que às vezes encoberta, era suficiente reconhecer a sua existência, descrevê-lo e apontar suas obras mais relevantes. Ao mesmo tempo em que as percepções da população não tinham o poder de mudar esse passado, também não possuíam legitimidade para determinar o que era artístico ou historicamente singular. À sociedade estava reservada a instrução de valorizar o patrimônio revelado pelo conhecimento de intelectuais e técnicos, ou seja, a um simples receptor passivo. Assim, salienta-se que a atenção estava voltada para a materialidade do patrimônio: como descrevê-lo, preservá-lo, restaurá-lo, impedir sua destruição, expô- lo e transportá-lo, este último, quando possível e necessário. Questionamentos sobre a razão de somente algumas obras terem sobrevivido ao longo do tempo, de algumas culturas terem recebido mais atenção do que outras, das listas patrimoniais terem privilegiado determinados movimentos artísticos, continentes e épocas, entre outros aspectos que denotam escolhas, parcialidade e relações de poder eram deixados em segundo plano ou deliberadamente evitados. Esta abordagem levou à preservação da cultura e história europeia, de construções e objetos que representam o que é belo e artístico no Ocidente, enquanto manifestações culturais de povos minoritários, não ocidentais e de países subdesenvolvidos eram vistas como inferiores e atrasadas ou, nas melhores condições, pitorescas e exóticas. Mesmo quando se concluía que determinadas manifestações mereciam salvaguarda,os instrumentos disponíveis se mostravam insuficientes, já que baseados em um referencial europeu que priorizava edificações, ignorando outras práticas de celebração e perenização de uma cultura. A concepção moderna de patrimônio começou a se estabelecer durante a Revolução Francesa, com a preocupação de proteger os monumentos históricos. Em meio à destruição dos vestígios do Antigo Regime, emergiu a reflexão sobre o que fazer com o que possuía expressivo valor econômico e o destino do grande número de bens confiscados. Um dos primeiros atos da Constituinte, em 2 de outubro de 1789, foi colocar os bens do clero “à disposição da nação”, seguido pelos bens dos emigrados e da Coroa. Nesta primeira concepção, essas riquezas pertenceriam ao povo, eram a sua herança e, portanto, deveriam ser usufruídas por todos (CHOAY, 2006, p. 98). A Constituinte ainda criou uma comissão para inventariar e, 13 posteriormente, proteger os monumentos. Para a divisão dos trabalhos, as obras foram separadas em dez categorias, nas quais a expressão material era o principal critério de organização: a divisão I foi reservada aos livros impressos, a IV às medalhas antigas e modernas, a V às pedras gravadas e inscrições e assim por diante. Já no período pós-Revolução, a Comissão dos Monumentos Históricos, de 1837, dividiu as obras em três grupos, novamente pautando-se pelo tipo de construção, ou seja, sua materialidade: remanescentes da Antiguidade, edifícios religiosos da Idade Média e castelos (CHOAY, 2006, p. 12 e 98-100). Esta ênfase no caráter físico dos monumentos, embora não seja ingênua e sirva para transmitir uma ideia de neutralidade em sua classificação, possuía uma motivação prática, funcional. Para combater o vandalismo revolucionário, era indispensável, além de listar os monumentos históricos, enviá-los para galpões e, especialmente quando não era possível deslocá-los para um local fechado e seguro, atribui-los um uso. Desse modo, a divisão entre bens móveis e imóveis facilitava e direcionava a aplicação de medidas protetivas ou substitutivas. Catedrais, igrejas, conventos e abadias, por exemplo, foram transformados em mercados, prisões, casernas e depósitos de munição, sal e salitre (CHOAY, 2006, p. 105). A noção de utilidade também estava presente no emprego dos monumentos na educação formal e informal. Nesta perspectiva, a arquitetura e as esculturas espalhadas pela cidade e os objetos dispostos nos museus, bibliotecas e escolas serviriam tanto para instruir as novas gerações quanto para esclarecer as massas. Contudo, além de uma simples exposição, este projeto tinha como propósito reescrever a história nacional, criando uma nova imagem do passado que colaboraria para legitimar o regime do presente (POULOT, 2009, p. 85-86). Nesse sentido, uma questão se coloca: se o Antigo Regime era rejeitado, se os revolucionários não só permitiram como emitiram decretos determinando a destruição de “todos os sinais da monarquia e do feudalismo” (CHOAY, 2006, p. 108) e se boa parte da população desejava se livrar dos resquícios do período anterior, como promover as coleções confiscadas dos reis e Igreja como monumentos nacionais e fontes do conhecimento? A resposta está na distinção entre o passado e o presente. Ao retirar toda a significação primeira das obras, reduzindo-as a objetos descontextualizados, desvinculadas do cotidiano, adotando inclusive medidas drásticas como o apagamento de inscrições e símbolos, a transferência para outros 14 lugares, tornava-se possível reapresentar os monumentos como marcas de um passado distante, sem uma influência direta na atualidade. O papel mnemônico, típico dos monumentos, era substituído pelo valor histórico e artístico das construções. Assim, antes de servir como rememoração de vivências compartilhadas, eles poderiam mostrar a beleza artística já produzida pelo homem e contar a história oficial do país, com um distanciamento que contribuiria mais para o aprendizado e a formação educacional institucionalizada do que para o despertar de emoções e traumas recentes. A classificação dos monumentos, a escolha de locais/instituições de guarda e exibição e as maneiras como eles eram organizados e expostos podem ser interpretados como estratégias de ressignificação da cultura material para fins do presente, habilmente apresentadas como atividades neutras para a preservação das riquezas do passado. Ainda que os monumentos antigos tenham recebido outros valores além do mnemônico antes do século XVIII, foi a Revolução Francesa que sedimentou a preferência pelos valores históricos e artísticos no tratamento da cultura material, abrindo caminho para a formulação da ideia de um patrimônio nacional (e, em um futuro bem mais longínquo, de patrimônio mundial). A passagem da memória para a história desvincula o patrimônio das experiências sociais e afetivas de uma comunidade para recriá-lo como um vestígio de um passado que pode informar, esclarecer, divulgar outras culturas, ser estudado ou decifrado. O patrimônio torna-se o outro, o não vivido ou então o todo abstrato, ao mesmo tempo vago e homogêneo, ao contrário do monumento, centrado no eu e no grupo. Esta transformação não seria possível sem uma intervenção na materialidade das obras. Os revolucionários não assumiam a utilização dos bens confiscados na afirmação do regime. Em seus discursos, eles argumentavam que estavam apenas restaurando o valor original das obras, divulgando a sua real beleza, protegendo a arte, que não pertencia a nenhum governo ou sistema político. O desvirtuamento do sentido autêntico teria sido provocado pela monarquia, Igreja e nobreza em prol dos seus interesses imediatos e manutenção dos seus poderes. A Revolução teria apenas recuperado o projeto dos grandes artistas e pensadores da França para, em seguida, compartilhar suas obras com toda a população, a verdadeira detentora das riquezas e conquistas nacionais (POULOT, 2009, p. 116). As políticas patrimoniais, formalizadas ou não, a partir do final do século XVIII, recorreriam ao argumento da objetividade e neutralidade para justificar as suas medidas. Neste ponto, era mais 15 eficiente enfatizar as ações realizadas nas obras enquanto objetos do que discutir as mensagens que elas transmitiam. As mensagens não eram para ser problematizadas. O século XX, através de cartas e convenções publicadas pelas duas principais instituições internacionais que se ocupam, ao lado de outras atividades, da preservação do patrimônio, a UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) e o ICOMOS (Conselho Internacional de Monumentos e Sítios), deu continuidade a esta visão dominante desde o século XVIII. A Carta de Veneza, de 1964, que serviu de parâmetro para a criação de políticas nacionais de patrimônio, abordava somente monumentos históricos, definidos como “criação arquitetônica isolada, bem como o sítio urbano ou rural que dá testemunho de uma civilização particular, de uma evolução significativa ou de um acontecimento histórico”. Sua finalidade se limitava à conservação e restauração dos monumentos, o que garantiria, por consequência, a preservação dos seus valores históricos e artísticos. Esses valores, pinçados entre tantos outros possíveis, não eram abordados que de forma indireta. A restauração, por exemplo, levaria à sua conservação e revelação. Era a materialidade que garantiria a perenidade dos significados dos monumentos, como se eles também fossem físicos e não subordinados a um julgamento. Nesse sentido, a suposta falta de divergências sobre os valores do monumento era um sinal de sucesso das políticas adotadas, uma comprovação de que os técnicos acertaram em sua análise, cabendo à sociedade comtemplar e cultuar sua herança. A adoção do conceito de patrimônio, ampliando as opções de bens a serem incluídos, como na Convençãosobre a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural de 1972, não levou ao abandono desta abordagem voltada para a salvaguarda de edificações e objetos museológicos. Em seu preâmbulo, a Convenção se justificava pela ameaça de destruição dos patrimônios, sua degradação ou desaparecimento pelos perigos trazidos pela evolução da vida econômica e social, enfim, pela possibilidade de que as obras, enquanto construções materiais, pudessem ser danificadas ou destruídas. A definição de patrimônio cultural se resumia a uma lista de monumentos (obras arquitetônicas, escultura, pinturas, etc.), conjuntos (grupo de construções) e lugares notáveis realizados pelo homem ou pela natureza que tivessem um valor excepcional do ponto de vista da história, da arte, da ciência, da etnologia ou da antropologia. Nenhum desses valores era discutido ou conceituado, como se eles fossem autoexplicativos. Por fim, ao invés de ouvir a população para 16 decidir quais eram os patrimônios e como eles deveriam ser preservados, caberia ao Estado, segundo a convenção, “adotar uma política geral que vise dar ao patrimônio cultural e natural uma função na vida da coletividade” (UNESCO, 1972). Para Smith (2008), a noção de patrimônio como uma “coisa” que deve ser protegida pela sua antiguidade, grandeza, representação nacional e valores artísticos, históricos e científicos observados por técnicos de instituições patrimoniais constituídas por governos ou organismos internacionais fundava o que ela nomeou de discurso patrimonial autorizado. Este discurso legitimaria um conjunto de ações que se propõe controlado, imparcial, universal e definitivo. Todas as informações estariam na obra e a obrigação do Estado seria preservá-la, restaurá-la e divulgá-la, como quando utilizada no ensino. O patrimônio existiria enquanto a sua materialidade fosse garantida Um dos meios para silenciar as vozes dissonantes era o recurso à autoridade: aqueles que detinham o poder e condições de dizer o que era patrimônio eram a UNESCO, o ICOMOS, o IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), no caso do Brasil, os arquitetos e os historiadores especialistas no assunto, reconhecidos pelos seus pares. A partir dos questionamentos, que se fortaleceram na década de 1970, sobre a não inclusão de manifestações e bens de alguns países e culturas nas listas patrimoniais ou então das dificuldades de enquadrá-los nos critérios estabelecidos mesmo quando considerados relevantes por grupos sociais, novas discussões conseguiram mostrar as limitações e tendenciosidade do discurso e técnicas empregados até aquele momento. Primeiro, o patrimônio como “coisa” transformaria produtos selecionados de uma cultura em alegorias de valores a serem enaltecidos por toda a nação, geralmente com o propósito de naturalizar uma visão de cultura das classes dominantes. Segundo, embora atendesse a uma determinada escrita da história e a uma formação de memórias artificiais que não são neutras nem inofensivas, a justificativa de sua preservação era relacionada à manutenção dos vínculos com o passado, sem desdobramentos nos dias atuais. Opondo-se a esse mascaramento das relações de força que conduz ao reconhecimento de somente um número restrito de bens como “patrimoniáveis”, Smith (2008) adotou a concepção de patrimônio como um processo, que não possui uma feição acabada, que não pode ser simplesmente encaixotado, restaurado, vendido, negociado, em suma, materializado. O patrimônio estaria no fazer, no compartilhar, no experimentar, nos conflitos e nas divergências que permitem que alguns bens se 17 destaquem como gatilhos mnemônicos e provoquem sentimentos de pertencimento e de identidade. Desse modo, o patrimônio sempre seria circunstancial, delimitado espacialmente e temporalmente, imerso em contestações que colaborariam para a seu desenvolvimento e vivacidade. Seu estado estaria em constante revisão no presente por aqueles que o promovem, não de maneira institucionalizada ou mesmo consciente, mas como resultado dos próprios embates que garantem a sua existência. Em resposta às críticas crescentes e como resultado de conferências promovidas pela própria instituição, a UNESCO publicou, em 2003, a Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial. Neste documento, a preocupação com o risco de deterioração era menos enfatizada que a necessidade de ser inclusivo, de considerar indígenas, grupos minoritários ou mesmo um único indivíduo detentor de conhecimentos específicos e tradicionais. Os bens a serem preservados não eram mais divididos por tipo de material ou forma física, mas pela sua expressão cultural, como rituais, celebrações, técnicas e práticas. A salvaguarda, ao invés de buscar impedir mudanças, praticamente congelando os bens para a posteridade, previa, primeiro, registrá-los e inventariá-los, para, em seguida, permitir e garantir que eles se atualizassem, se modificassem ou mesmo desaparecessem, caso perdessem sua função para a comunidade. A condição de patrimônio passou a ser transitória e sua atribuição dependente dos posicionamentos de seus promotores. Ainda assim, a materialidade não deixou de possuir seu papel para a Convenção, pois as manifestações dependeriam de suportes e de uma espacialidade para serem realizadas, sendo, portanto, parte da constituição do bem. De acordo com o documento, UNESCO (2003), patrimônio imaterial poderia ser entendido como as práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas, junto com os instrumentos, objetos, artefatos e lugares que lhes são associados, que as comunidades, os grupos e, em alguns casos os indivíduos reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural. Smith (2008) discorre em seus documentos que ao enfatizar o intangível, a Unesco, não estaria ignorando o caráter tangível do patrimônio, mas somente desnaturalizando a percepção de que ele é evidente, inato, porém ao propor ser é um processo, reforçam, que mais do que simplesmente apontar a existência de um patrimônio imaterial, que todo patrimônio é sempre intangível. Sendo assim, de fato, nesta perspectiva, ele é um discurso, uma construção. Não que antes não fosse, mas o seu objetivo foi mostrar que os bens elevados à categoria de patrimônios atendiam 18 a uma visão de história, privilegiavam uma cultura específica e que, agora, de forma diferente, este processo não apenas poderia ser exposto como o direito das comunidades definirem seus próprios patrimônios, de acordo com suas experiências e princípios, passou a ser defendido. Identifica-se uma recusa dos valores universais e inflexíveis como vinham sendo forjados desde a Revolução Francesa. Embora ainda não concretizada, sugere- se uma definição de patrimônio de baixo para cima, cabendo às instituições nacionais e internacionais apenas chancelar as escolhas das sociedades e colaborar para que suas decisões sejam respeitadas. Como consequência, as escalas local e regional ganharam destaque, já que o nacional e o mundial tenderiam a ocultar dissonâncias a favor de uma falsa ideia de consenso. Ainda que o monumento antigo fosse dividido em obra comemorativa da arquitetura/ escultura e monumento funerário destinado à recordação de uma pessoa (LE GOFF, 2003), a noção contemporânea de patrimônio está mais próxima de sua etimologia do que dos sentidos adotados e reforçados a partir do século XVIII; de obra de excepcional beleza artística, grandiosa, antiga e histórica. Segundo o autor, o monumento antigo era intencional, pensado e construído para rememorar algo, exaltar a identidade de um grupo. Desta forma, eram seus criadores que definiam o que seria um monumento, sem a necessidade de um julgamento externo. Já o monumento histórico ou patrimônio adquiriria o seu status a partir de uma atribuição posterior, concedida por profissionais autorizados, comoo historiador e o arquiteto. Por meio deste raciocínio, Poulot indica que a opção pelo culto, preservação ou promoção do monumento/ patrimônio passou dos seus idealizadores para os seus observadores/ receptores. Com a corrente atual, que não é a única, mas que tem se tornado uma das principais ou mesmo a dominante, o patrimônio não tem necessariamente um início, como um prédio ou escultura com data de execução, nem depende de uma avaliação técnica para ser visto e celebrado como patrimônio. Como o monumento antigo, são os seus realizadores, aqueles que desencadeiam o processo, que têm a última palavra sobre o que os identificam e fortalecem suas memórias e identidades, sem que, necessariamente, seja uma ação planejada, intencional. Mais do que uma nova categoria, o de patrimônio intangível, o que presenciamos é uma reformulação da própria noção de patrimônio. 19 Se o patrimônio é um sentido atribuído, um adjetivo, tudo se torna potencialmente patrimônio. Hoje, acompanhamos discussões sobre o patrimônio cultural, etnológico, material, imaterial, genético, ambiental, local, regional, nacional e até mesmo mundial. Enquanto o século XX viveu a explosão das memórias artificiais que buscavam (re)criar uma tradição e ressuscitar/forjar um sentimento de continuidade entre passado, presente e futuro, os novos olhares sobre o conceito de patrimônio prometem a inclusão de até mesmo os mais restritos, simples e populares manifestações, obras e lugares. A IMATERIALIDADE Consideramos que as discussões recentes sobre o patrimônio têm contribuído para que o seu conceito seja mais abrangente e maleável, adequando-se a diferentes contextos e culturas, além de permitir que comunidades sem grande poder político e econômico obtenham reconhecimento e proteção para as suas práticas culturais. As críticas à suposta objetividade e cientificidade do discurso patrimonial autorizado, que se valia da materialidade dos bens para invocar-se neutro, foram importantes por denunciar a exclusão de tudo que não se enquadrava nos parâmetros ocidentais de beleza e historicidade. Sendo assim, defender o patrimônio como um processo, destacando os sentidos elaborados pelo homem/sociedade para nomear e tornar inteligível seu entorno, tem colaborado para ampliar a diversidade de bens valorizados e garantido a coexistência de mais de um ponto de vista sobre a sua relevância. Vale ressaltar que, este enfoque não ignora o papel dos objetos na constituição de patrimônios, porém, corre-se o risco de compreendê-los como secundários, inertes, simples suportes ou condutores do intangível. Nesta concepção, o material não interferiria nem estabeleceria limites aos sentidos do patrimônio, cabendo ao homem, sem qualquer restrição ou coerção, decidir sua função no processo. Sem abdicar das conquistas atuais, defendemos que a materialidade é determinante na produção do sentido e que, antes mesmo de sua interpretação, ela já afeta seu observador ou usuário. 20 ACOLHIMENTO E REJEIÇÃO DAS PRIMEIRAS INSCRIÇÕES DOS BENS IMATERIAIS O Registro como instrumento legal de proteção de bens de natureza imaterial foi elaborado, segundo Márcia Sant’Anna (2006), visando dois princípios. O primeiro relaciona-se à natureza processual e múltipla das manifestações desse tipo de bem, uma vez que, dotados de forma específica de “transmissão, atualização, transformação e apropriação peculiar de recursos do meio ambiente” (SANT'ANNA, 2006, p. 19), não poderiam ser submetidas ao tombo, e toda a forma de proteção que ele enseja. Esse princípio, portanto, não propõe que haja uma contrariedade entre patrimônio material e imaterial e que a ligação entre ambos como elementos constitutivos de um todo seja ignorada. O objetivo seria destacar e valorizar os processos de criação e manutenção, as técnicas de concepção bem como de transmissão dos conhecimentos, ao invés dos produtos que representam a expressão material desses bens. O segundo princípio, diz respeito à substituição da noção de autenticidade pela noção de continuidade histórica. Para Sant’Anna (2006) a ideia de autenticidade está em direta oposição com a proteção do patrimônio cultural imaterial, e justamente por isso, foi que a compreensão de continuidade histórica viria no sentido de garantir um acompanhamento periódico da manifestação cultural “para avaliação de sua permanência e registro das transformações e interferências em suas trajetórias”. (2006, p. 19) A ideia de acompanhamento, portanto, não enseja museificação ou verificação de autenticidade, mas surgiu como forma de se compreender os aspectos de mudança e transformação dos bens culturais, bem como, colocar o Estado como agente que colaborasse com as condições de produção e reprodução desses patrimônios culturais. Observa-se que segundo Sant'anna (2006) esses dois princípios constituem o entendimento de que o patrimônio imaterial não requer proteção e conservação, mas identificação, reconhecimento, registro etnográfico, acompanhamento periódico, divulgação e apoio. Enfim, mais documentação e acompanhamento que intervenção. Dessa forma, pode-se compreender qual o papel do processo de inventariação, através da metodologia do Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC) e do instituto do Registro. 21 O inventário é uma das fases do processo de Registro, entretanto não é utilizado apenas para esse fim. O INRC é um instrumento metodológico que visa o levantamento, atualização e organização de dados sobre determinada realidade cultural territorialmente delimitada. Procurou-se por meio de sua aplicação unificar as informações produzidas ou disponibilizadas sobre um bem em questão. São as informações colhidas no inventário que possibilitam a identificação das referências culturais, ou seja, os aspectos específicos do grupo pesquisado e os elementos que singularizam a suas identidades. O INRC foi formulado para tratar dos bens culturais inseridos em uma delimitação territorial, como, por exemplo, em um núcleo histórico tombado. Porém isso não impede que a unidade referencial se delimite em torno de temas como uma manifestação religiosa e suas diversas variantes regionais, como por exemplo INRC das Referências Culturais da Festividade de São Sebastião, ou um tipo de manifestação com abrangência nacional, como a capoeira. O Registro, por sua vez, é o reconhecimento público do Estado sobre determinado bem cultural, conferindo-lhe a distinção de patrimônio cultural brasileiro. Registro significa a identificação e produção de conhecimento sobre o bem cultural, como também o compromisso do Estado e da sociedade em viabilizar formas de apoio para garantir sua continuidade. O processo de Registro origina-se por meio de pedido formal, encaminhado à presidência do IPHAN, que pode partir do Ministro da Cultura, de instituições vinculadas ao MinC, Secretarias Estaduais, Municipais e do Distrito Federal, bem como de sociedades e associações civis. A solicitação deve conter identificação do proponente, denominação e descrição concisa do bem em questão, breve documentação, que de acordo com o tipo de bem pode conter fotografias, reportagens, vídeos, bibliografia, e o mais importante, uma declaração formal de representante da comunidade detentora daquele bem cultural, ou então de seus membros, demostrando anuência e interesse no Registro. Após o encaminhamento do pedido é realizada instrução técnica do processo, ou seja, produção de conhecimento, que pode se utilizar do INRC como instrumento, ou mesmo da pesquisa etnográfica. O prazo de execução desta fase é de dezoito meses. O trabalho da instrução resulta em um dossiê que, de forma mais aprofundada que o pedido de Registro, apresenta outras referências bibliográficas e documentais, material audiovisual produzido, e o mais importante; o conteúdo 22 produzido pelapesquisa que, dentre outras coisas, traz sugestões de ações de salvaguarda para o bem cultural em questão. A metodologia do INRC, especificamente, indica que o processo de pesquisa envolva pesquisadores detentores dos bens culturais em análise. Essa medida tem por objetivo não colocar os detentores desses bens culturais como meros informantes no processo de pesquisa, mas como investigadores, agentes analíticos e produtores dos conteúdos a serem elaborados, logo, visando não apenas os processos e objetos dos bens culturais em questão, mas também seus sujeitos. Com a finalização do processo de instrução, o pedido passou, a partir de 2005, a ser encaminhado para a Câmara do Patrimônio Imaterial, que é responsável por avaliar se o pedido será direcionado para análise do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural, se será necessário solicitar adensamento de informações, ou então, decide pela sua rejeição. Em mãos do Conselho Consultivo, o pedido e seu dossiê são encaminhados a um dos conselheiros, que fica responsável por estudá-lo e emitir parecer que, em um segundo momento, será avaliado e debatido pelos demais conselheiros. Diante dessas considerações, retomo que foi escolhida a análise das atas do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural, devido ao fato de as mesmas reunirem, além dos pareceres emitidos pelos conselheiros responsáveis sobre os bens culturais imateriais em questão, os debates e argumentos elaborados pelos conselheiros, que revelam a trama discursiva elaborada a partir da ideia de patrimônio cultural imaterial. A metodologia do INRC foi o resultado do amadurecimento de estudos realizados a partir dos anos 1990, com o intuito de se desenvolverem novas técnicas de inventariação de bens culturais. As primeiras iniciativas de se conceber essa nova metodologia remetem ao ano de 1995, realizadas nos núcleos urbanos tombados do Serro e de Diamantina-MG e de Vila Boa de Goiás. A partir de 1999, foi feita uma parceria entre o Departamento de Identificação e Documentação do IPHAN e a empresa de consultoria Andrade e Arantes Projetos Culturais, coordenada pelo antropólogo e posteriormente presidente do IPHAN, Antônio Augusto Arantes, para que se aprimorasse a metodologia do INRC e, a experiência piloto desta parceria foi aplicada junto ao Museu Aberto do Descobrimento (MADE) em Porto Seguro/BA. (GARCIA, 2004). 23 A metodologia do INRC elaborada pela equipe de Arantes, propôs aliar a documentação dos aspectos materiais e imateriais dos patrimônios culturais, aproximando o trabalho dos diversos profissionais envolvidos na temática do patrimônio, especialmente arquitetos e antropólogos. O objetivo era desenvolver uma metodologia capaz de identificar bens culturais diversificados, sendo capaz de apreender os diversos sentidos e significados atribuídos a esses bens pelos grupos sociais a ele ligados, bem como encontrar maneiras que se adequassem à sua preservação. Por conseguinte, foi o produto final da equipe de Arantes, que constituiu a versão atual do INRC e que orientou os processos de instrução dos pedidos de Registro de bens culturais imateriais. Apesar das já mencionadas experiências de aplicação do INRC, a primeira experiência de execução de inventários ligados à temática do patrimônio imaterial foi a realizada junto à comunidade de Paneleiras de Goiabeiras, no Espírito Santo – bem cultural que também obteve o primeiro Registro no livro de Saberes, tal como veremos a seguir. Decidiu-se organizar essa subseção pela ordem cronológica do Registro dos bens culturais que são abrangidos pelo período eleito para essa pesquisa. Por fim, apresento os debates sobre as rejeições de proposta de Registro: Enciclopédia Virtual Itaú, Talian , dialeto vêneto rio-grandense, um caso controle que, ao contrário dos apresentados, foi rejeitado tanto pela área técnica do IPHAN, quanto pelo Conselho Consultivo. CONSERVAÇÃO PREVENTIVA, CIÊNCIA E METODOLOGIA As ações de conservação preventiva vêm dominando o campo do patrimônio cultural não faz muito tempo. A tônica contemporânea em relação a ações empreendidas por profissionais que lidam com a preservação de bens imóveis e móveis não pode mais prescindir do entendimento proposto pela ciência da conservação preventiva. Para Guichen (1995, p. 2) a conservação preventiva significa assegurar a sobrevida das coleções patrimoniais e ainda segundo o ICOM CC (2008), a ação da conservação preventiva é ampla e ocorre de forma indireta em relação ao conjunto total de bens culturais. Entretanto, analisando, pode-se questionar se a Conservação Preventiva seria uma ciência ou uma metodologia, uma vez que como ciência, segue os estudos já 24 desenvolvidos há séculos pelos conservadores do patrimônio cultural, cuja origem, segundo descreve Carla Coelho (2017), remonta aos trabalhos introduzidos por John Ruskin (1819- 1900) e William Morris (1834-1896) na Inglaterra, que buscavam a autenticidade dos edifícios e a manutenção regular como melhor forma de preservá- los. Já como metodologia, alguns autores veem um paralelo entre ela e a medicina preventiva (Coelho, 2017). Observa-se que não é de hoje que estudiosos do campo da arquitetura e do urbanismo, no qual pode-se incluir os que detêm suas investigações e atuações em prol do patrimônio cultural, reconhecem uma suposta aproximação entre medicina e urbanismo e entre medicina e arquitetura. Por exemplo o arquiteto Le Corbusier (1887- 1965), no livro Urbanismo, lançado em 1925, apresenta um capítulo intitulado “Medicina ou Cirurgia”, em que associa essas práticas a algumas ações urbanas empreendidas nas cidades francesas, de maior ou menor intervenção, por reconhecer, na ocasião, que estavam doentes e que algo precisava ser feito. De maneira mais simples, a medicina, como bem sabe-se, está associada à prevenção da doença, e a cirurgia, à intervenção clínica. Da mesma forma, segundo o arquiteto francês, toda atitude que indicasse planejamento e prevenção das cidades estaria relacionada à medicina. E toda ação que se resumisse a rasgos e retalhos no tecido urbano da cidade era associada à cirurgia. Diante disso, o mesmo paralelo apontado por alguns restauradores à medicina preventiva e à conservação preventiva. O que se quer com a medicina é evitar a morte do paciente, mas pode-se fazer isso curativa ou preventivamente. Do mesmo modo, podemos salvar uma edificação agindo cirurgicamente, o que pode desencadear outras patologias, ou podemos agir preventivamente, buscando sua manutenção de forma contínua e sistemática. O que vê é que a prática da conservação preventiva requer atitudes e planejamento que contribuam para essas ações regulares. Nesse sentido, pode-se pensar a Conservação Preventiva como uma metodologia. Beatriz Colomina (1997; 2003), apresenta uma aproximação entre medicina e arquitetura cuja cumplicidade é reconstruída a cada nova teoria em saúde. Ou, se pensarmos bem, a cada nova teoria em arquitetura e urbanismo. Da mesma forma Colomina apud Costa (2019), a relação entre a arquitetura e as ciências médicas é muito mais íntima do que se pode imaginar, e teria tido início ainda durante o Renascimento. A partir da vontade dos médicos de cortar o corpo para poder compreender melhor seu interior, tal metodologia de análise teria influenciado os 25 arquitetos para poderem visualizar os edifícios por dentro (Colomina apud Costa, 2019). Assim desde esta contextualização, a associação com a medicina vem ensinando aos arquitetos e urbanistas formas de agir sobre os objetos arquitetônicos e sobre a cidade, seja para planejar e projetar de raiz, seja para elaborar projetos de prevenção e remodelação. Seguindo um método de atuação prioritariamente indireto, a Conservação Preventiva pode constar de um conjunto de estratégias estabelecidas de forma interdisciplinar, objetivando evitara deterioração e a perda de valor dos bens culturais. Associada a essa prática, a mesma política adota outras formas de ação, como o Gerenciamento de Riscos, a Conservação Integrada, a Preservação Sustentável, a Pesquisa e o Desenvolvimento, e a Educação Patrimonial. CULTURA, IDENTIDADE E DIVERSIDADE: A IDENTIDADE DE UM POVO COMO PATRIMÔNIO NACIONAL Como referenciado anteriormente, atualmente a noção de patrimônio não se limita a monumentos e coleções de objetos, mas abarca sob o signo do cultural e não somente histórico e artístico, as tradições ou expressões vivas herdadas de nossos antepassados e transmitidas a nossos descendentes, como tradições orais, artes do espetáculo, usos sociais, rituais, atos festivos, conhecimentos e práticas relativas à natureza e ao universo, saberes e técnicas vinculados ao artesanato tradicional, bem como sítios naturais terrestres e subaquáticos. Essa compreensão abrangente de patrimônio construída durante o século XX teve a UNESCO como importante espaço e agente. Desde sua fundação, em 1946, a instituição se dedicou a promover uma ampla discussão sobre os meios e as ações de preservação do patrimônio em todas as nações. Vinculada à Organização das Nações Unidas (ONU), se edificou no contexto do pós-guerra e descolonização, quando, os países europeus, arruinados economicamente devido às grandes perdas nos conflitos das duas grandes guerras, buscavam lidar com sua reestruturação, ao passo que, as antigas colônias iniciavam um processo de luta por autonomia e independência. Com o objetivo de contribuir para assegurar a paz e o bem estar da humanidade por meio da cooperação entre as nações do mundo através das esferas da educação, 26 ciência e cultura, a UNESCO, neste primeiro momento, deu especial atenção ao fomento da cooperação internacional no campo das artes e ao estudo da maneira de reconhecer as diversas identidades culturais do mundo (LANARI BO, 2003). O trauma do pós-guerra impulsionou a busca por soluções para o racismo, o evolucionismo e a hierarquização das culturas numa lógica linear baseada em critérios de progresso e civilização, todas essas fundamentações que embasaram o genocídio humano durante a Segunda Guerra Mundial. Vale aqui discutir o conceito antropológico de cultura, visto que foi um enunciado importante durante o século XX, seja para superar visões de mundo racistas e eugênicas, para as lutas de reconhecimento de identidades, bem como para a discussão sobre diversidade e multiculturalismo, enunciados com os quais o discurso da preservação e proteção do patrimônio relacionou-se no período. Essa tradição antropológica se estabeleceu ante duas perspectivas. O Uma renovação dessa visão surgiu com o desenvolvimento da antropologia cultural norte- americana durante o início do século XX, tendo Franz Boas como figura emblemática dessa escola. Boas buscou institucionalizar a antropologia na academia e foi responsável pela formação de notáveis pensadores como Louis Kröeber, Edward Sapir, Margaret Mead, Ruth Benedict, Melville Herskovits. Dentre os principais postulados da visão antropológica que se estabeleceu estava o rechaço às teorias evolucionistas precedentes e a separação da esfera biológica na explicação dos fenômenos sociais. Ou seja, no que diz respeito às sociedades humanas, raça, quer seja numa visão monogenista ou poligenista, não figurava como elemento explicativo para a diversidade de fenômenos culturais e linguísticos. A proposta foi entender a cultura (ou culturas) cientificamente, e, portanto, como fenômeno universal, porém, com variações particulares, que não estão inseridas numa lógica de história unilinear, isto é, existem várias culturas com características idiossincráticas e desenvolvimentos próprios. (KUPER, 2002) (ORTIZ, 2015) Compreende-se, através de trechos da UNESCO (1954), que os bens, móveis ou imóveis, que apresentem uma grande importância para o património cultural dos povos, tais como os monumentos de arquitetura, de arte ou de história, religiosos ou laicos, ou sítios arqueológicos, os conjuntos de construções que apresentem um interesse histórico ou artístico, as obras de arte, os manuscritos, livros e outros objetos de interesse artístico, histórico ou arqueológico, assim como as coleções científicas e 27 as importantes coleções de livros, de arquivos ou de reprodução dos bens acima definidos. Os edifícios cujo objetivo principal e efetivo seja, de conservar ou de expor os bens culturais móveis definidos na alínea a) como são os museus, as grandes bibliotecas, os depósitos de arquivos e ainda os refúgios destinados a abrigar os bens culturais móveis definidos na alínea b) em caso de conflito armado; Os centros que compreendam um número considerável de bens culturais que são definidos nas alíneas a) e b), os chamados "centros monumentais”. Através destes postulados a noção antropológica de cultura e a perspectiva relativista são parcialmente incorporadas e assim os símbolos materiais da cultura são/devem ser preservados, no entanto, a lógica do primitivo/civilizado foi substituída pelo binômio subdesenvolvido/desenvolvido. Cada sociedade deveria ser valorizada por seus signos próprios e deveria preservar os elementos que indicam sua contribuição para o desenvolvimento do progresso universal. Além disso, retomou-se a questão nacional associada a esse amplo conceito de cultura, reflexo da conjuntura sócio histórica do período, que em face aos movimentos de independência das antigas colônias e da reestruturação dos países europeus no pós-guerra, vincularam cultura a identidade. Desta forma, os processos de definição e nomeação de patrimônios, sobretudo com apoio da ação da UNESCO, refletiram conjunturas nacionais e foram retroalimentados sobre o que foi disposto por essa organização, colaborando para a construção das nações como comunidades imaginadas. Quando Benedict Anderson (1991) propôs que as nações são construções imagéticas de indivíduos que se identificam e se entendem ligados por um elo relacionado a uma série de características culturais (idioma, tradições, dentre outros), apesar de nunca terem se encontrado e provavelmente de nunca terem a oportunidade de fazê-lo, pode-se então que a preservação do patrimônio cultural como um discurso e uma ação que colabora para a edificação dessa comunidade dita imaginada. Compreende-se a partir de então, a noção de patrimônio como bem cultural surgindo como importante elemento para a construção de identidades nacionais no pós-Segunda Guerra. As criações arquitetônicas, estátuas, mosaicos, cerâmica, pinturas, seriam muito mais do que simples ornamentos, eram elementos de um arcabouço cultural que colaboraram na construção do elo entre os indivíduos neste sistema de comunidades imaginadas. A função da UNESCO, por conseguinte, ao 28 estabelecer normas de proteção destes patrimônios, seria a de proteger e a ajudar com a construção destas comunidades imaginadas. Além do mais, os discursos envoltos na proteção desses objetos se fundaram na ideia de que estes eram testemunhos da história e cultura de uma nação, perpetuando assim tais identidades. O que pode-se perceber que a UNESCO procurou traduzir a ansiedade dos países em processo de descolonização em fundamentar os atributos de suas nacionalidades, bem como a dos países europeus que saíram em situação estruturalmente desvantajosa no pós-guerra, segundo (LANARI BO, 2003). Não obstante a discussão sobre as diferenças culturais e superação da noção de raça ter sido levada à UNESCO, a concepção de cultura aplicada na época pela instituição ainda se vinculava à ideia de que, mesmo admitindo a existência de diferentes traços culturais, eram os traços não ocidentais que impediriam o desenvolvimento das sociedades, portanto, para atingir o patamar de cultura universal as demais sociedades deveriamse adequar aos parâmetros ocidentais. Conforme registra Michel Netto (2012), multiculturalismo – a compreensão de que as sociedades modernas são plurais visto que diversas culturas convivem em conjunto. O FIM DO SIGNIFICADO DOS CONCEITOS ABSOLUTOS Considerou-se uma época pós-modernista porque, fazendo confiança na ideologia do progresso, a cultura global mais recente sentiu-se capaz de criticar o modernismo. Para Dell Upton (1993), os adjetivos tradicional e moderno foram inventados pela modernidade. A tradição não existia e foi inventada para complementar a modernidade e para combater o medo do que era produzido e deixava de ser autêntico, falso. Desde há umas décadas que as filosofias pós estruturalistas colocaram importantes dúvidas à visão racionalista do progresso e das formas de conhecimento, e estas novas visões implicaram o questionar de muitos conceitos. Em 1960, Daniel Bell escreveu The End of Ideology. Segundo ele o sistema democrático teria suplantado os outros sistemas porque é o sistema ideal e como tal todos os outros passariam a ser classificados em relação a esse modelo. Na verdade, o que terá acabado foi a crença em que progressivamente se caminharia para o sistema político 29 e para a ideologia ideal. O que acabou foi um certo conceito de ideologia. Em 1992 Francis Fukuyama apresentou The End of History and the Last Man. Pensava-se que a História era um processo evolutivo baseado unicamente na razão que levaria o homem à paz e à prosperidade. Como a Guerra Fria tinha terminado teria deixado de haver espaço para a História. O que na realidade terá deixado de fazer sentido é o conceito de História baseado numa perspectiva racional de progresso. Seguiram-se outras obras destinadas a outros “fins” como a de Kenichi Ohmae, The End of the Nation State (1995) e o The End of Utopia de Russel Jacoby em 1999. Nesta sequência, Nezar Alsayaad2 escreveu The End of Tradition?, em 2004. Uma obra dedicada ao âmbito do estudo das formas de construção de habitats e de ambientes tradicionais e portanto mais próxima da problemática da tradição e das culturas construtivas. Segundo este autor, não foi a tradição que acabou mas o conceito racional e modernista em que a tradição é reverenciada como autêntica. Na era da “desterritorialização de identidades e lugares devida ao fenômeno da globalização”, a tradição deixou de ser considerada como algo que deve ser associado a um lugar ou a uma comunidade determinada. Assumindo o fim do seu significado absoluto, a tradição deverá ser considerada como um repositório de ideias com valor, que têm que ser conhecidas e preservadas (ALSAYAAD, 2004, 12). ARQUITETURA COMO MONUMENTO PORTADOR DE MONUMENTALIDADE Mumford (1982), Benevolo (1983) e Rodrigues (2001) observam que a monumentalidade nas cidades raramente é tratada de forma teórico-conceitual. Mesmo sendo um fenômeno universal, presente tanto nas cidades reais quanto nas cidades idealizadas e dos planos não realizados, a monumentalidade em si, como opção por um modelo urbano e como elemento denotador de significados políticos, econômicos e sociais, raras vezes é o escopo de tratamentos teóricos. Lefebvre (1999, p. 46) observa que em toda parte, a monumentalidade se difunde, se irradia, se condensa e se concentra. Um monumento vai além de si próprio, de sua fachada, de seu espaço interno. A monumentalidade pertence a amplitude de um espaço que ultrapassa seus limites materiais. Le Goff (1985) busca as origens etimológicas dessas duas palavras, monumento e monumentalidade, mostrando as maneiras diferentes como esses 30 termos têm sido utilizados pelos historiadores ao longo do desenvolvimento da ciência histórica. Sobre monumento o autor escreve o seguinte. A palavra latina monumentum remete para a raiz indo-europeia men, que exprime uma das funções essenciais do espírito (mens), a memória (memini). O verbo monere significa ‘fazer recordar’, donde ‘avisar’, ‘iluminar’, ‘instruir’. O monumentum é um sinal do passado. O mesmo autor, LE GOFF (1985), recorre às origens filológicas, em que o monumento é tudo aquilo que pode evocar o passado, perpetuar a recordação. Já Rodrigues (2001, p.42) apresenta uma visão mais ampliadas e comenta que a monumentalidade se difunde e se concentra nas mais variadas formas, e aqueles que habitam as cidades, especialmente, mas não unicamente, os grandes centros e capitais, aqueles que convivem, admiram, que se sentem intimidados, e, às vezes, se sentem desafiados. Para Choay (2001), o monumento assegura e desafia o tempo, pois é a garantia das origens e a natureza do seu propósito é essencial, não é somente a de apresentar, dar uma informação neutra, e sim a de emocionar, como uma memória viva. O autor reforça que, em relação às obras de arquitetura, monumento, designa um edifício construído para eternizar a lembrança de coisas memoráveis, ou concebido, erguido ou disposto de modo que se torne um fator de embelezamento e de magnificência nas cidades. Rodrigues (2001, p.42) salienta que a monumentalidade atua na dimensão do simbólico, dando visualidade, representando e valorizando as ideias, ações e concepções daqueles que a utilizam. Isso porque tem sempre uma razão de ser, a qual pode estar bem explicitada ou não. Assim, a ideia de monumento está mais ligada ao efeito produzido pelo edifício que ao seu fim ou destinação, ajusta-se e aplica-se a todos os tipos de edificações. Conforme o autor supracitado o conceito de monumento configura-se como fundamental e útil para alcançar uma definição e um entendimento maior sobre a monumentalidade. A monumentalidade (categoria abstrata) ao mesmo tempo que é inerente ao monumento (categoria concreta), também o transcende. A monumentalidade mostra-se complexa ao limitar-se à realidade empírica imediata. Se houver uma indagação maior sobre o seu significado na construção do espaço, sua origem e seu papel social na história, a monumentalidade pode até aparecer, mas não é óbvia, estando aí talvez a razão de seu limitado tratamento teórico. Riegl (1987), também apresenta um conceito amplo de monumento 31 semelhante ao de Le Goff (1985), apesar de suas análises estarem voltadas especificamente para o que chama de o culto moderno dos monumentos, mas em linhas gerais, a valorização dos monumentos como representantes de um período histórico e da arte, cultura e sociedade a ele correspondentes, que começa na Renascença, se afirma no séc. XVIII, e se intensifica no séc. XIX, no ocidente. Para Riegl (1987, p. 35) por monumento, no sentido mais antigo e verdadeiramente original do termo, entende-se uma obra criada pela mão do homem e edificada dentro do fim preciso de conservar sempre presente e vivo na consciência das gerações futuros a lembrança de tal ação ou tal vida (ou as combinações de uma e de outra). Para o autor, todos os tipos de monumentos são dotados de um valor de rememoração, seja ele intencional ou não, e seu maior valor estaria na sua antiguidade, na sua capacidade de resistência à ação do tempo. Segundo Meneguello (2000) o monumento passa a fazer parte da categoria dos bens culturais, pois, o sentido de monumento passa a ser reportado a algo grandioso (com grandes dimensões) até pequenos casebres, que possuam um valor cultural. Elsen (1975), Alvarez (1991), Tinniswood (1998) vinculam monumentalidade e autoridade ao analisar detalhadamente a simbologia de obras e elementos arquitetônicos diversos (como portas, escadas, janelas e outros), construídos e utilizados em épocas históricas diferentes, mas que apresentam em comum seus valores propagandísticos. Observam que a carga simbólica da arquitetura monumental tem servido como publicidade para o poder de governantes e ideologias dominantes, havendo, assim, uma coordenação para permitir o triunfo da articulação entre a vontade, a forma e seusignificado. Além do exposto acima, com o ensaio de Riegl (1987), houve uma importante contribuição para a definição conceitual da conservação através de inventários. Como esclarece Choay (2001) trata-se da primeira interpretação da conservação dos monumentos de acordo com uma teoria dos valores. Esta análise se estrutura em torno da contraposição entre duas categorias principais de valores associados aos monumentos: os valores memoriais, ligados ao passado e a sua memória, e os valores de contemporaneidade, referentes ao momento presente. O monumento é um legado à memória coletiva, um legado criado pela mão do homem e por ele edificado para carregar consigo toda uma carga de concepções que o farão símbolo de uma mensagem que quis ser passada, de um aviso ou de uma 32 instrução que se desejou transmitir, como defendido por Rodrigues (2001). A categoria concreta, empírica do monumento não se limita, então, ao objeto, uma vez que ele leva uma carga simbólica, abstrata, sua monumentalidade, a qual tem por função trabalhar sobre o imaginário social. Os avisos instrutivos simbolizados no monumento, por sua vez, são ditos através de um monólogo: o monólogo do poder. Conforme a autora (2001, p. 45) erigido como símbolo transmissor de ideologias dominantes na história das sociedades, o monumento, como poder transmutado sobretudo pela arquitetura, a única resposta que se espera deve vir sob a forma de respeito, admiração e até mesmo medo. A arquitetura encerra em si uma monumentalidade, a qual, por sua vez, é transcendente, pois ela não é só mais um objeto presente no espaço urbano; ela é ideia, concepção, crença: objetivo simbolizado em objeto- símbolo, mas capaz de viajar no imaginário. Rodrigues (2001) afirma que toda obra arquitetônica serve de testemunho do poder da história de uma sociedade, uma história que deixa legado à memória coletiva a fim de tentar perpetuar-se, fazendo recordar às gerações futuras de sua existência, e, mais que isso, avisando e instruindo sobre sua força. Sobre essa linha de pensamento Riegl (1987) aponta que os valores são vistos em detalhe, como forma de identificar as diferentes atitudes de preservação possíveis. No que tange os valores ligados ao passado ou valores de rememoração, o autor define: a) Valor rememorativo intencional: relacionado ao monumento intencionalmente construído com função memorialística; b) Valor histórico: ligado à história em seus vários ramos; c) Valor de antiguidade: que representa, simplesmente, o gosto por tudo àquilo que seja antigo. Wieczorek (1984) observa que diferentemente do caráter elitista do valor histórico e do valor artístico relativo, o valor de antiguidade atinge também às massas. Ou seja, que não resulta de interpretações artísticas ou históricas, mas que é adquirido pela sobrevivência de um objeto a passagem do tempo, resultando marcas dessa passagem que transformam esse sobrevivente em um testemunho e lhe atribuem a consequente valoração. O que se vê em Riegl (1987), é que a noção de monumento ou o culto dos monumentos, vai do valor rememorativo intencional, passando pelo valor histórico, até o valor de antiguidade ou a compreensão intuitiva que todo e qualquer um tem das marcas da passagem do tempo. Nesta ordem, dos valores citados tem-se a evolução dos valores de rememoração no culto dos monumentos. “ A noção de patrimônio, com a ideia de posse que lhe é implícita, sugere-nos imediatamente que estamos na presença de algo de valor” (Silva, 2000, p. 218). 33 Valor que os seres humanos, tanto individual como socialmente, atribuem ao legado material do passado, valor no sentido do apreço individual ou social atribuída à arquitetura numa dada circunstância histórica. Trata-se de um conceito relativo, que varia com as pessoas e com os grupos que atribuem esse valor, permeável às flutuações da moda e aos critérios de gosto dominantes, matizado pelo figurino intelectual, cultural e psicológico de uma época. Ter consciência da história não é informar-se das coisas outrora acontecidas, mas perceber o universo social como algo submetido a um processo ininterrupto e direcionado de formação e reorganização. É exatamente na moldura da consciência histórica, apenas, que a identidade passa a ser o eixo de atribuições relativas a um ser que se percebe produto de forças em ação e sujeito a mutações. Por isso mesmo, não assimila nostálgica ou submissamente um passado de coisas e eventos acontecidos, homogeneizado e desfibrado, mas instaura com ele um equilíbrio dinâmico: é um interlocutor que o interroga criticamente. Em outras palavras, a memória gira em torno de um dado básico do fenômeno humano, a mudança. Se não houver memória, a mudança será sempre fator de alienação e desagregação, pois inexistiria uma plataforma de referência e cada ato seria uma reação mecânica, uma resposta nova e solitária a cada momento, um mergulho do passado esvaziado para o vazio do futuro. É a memória que funciona como instrumento, Menezes (1984), de identidade, conservação e desenvolvimento que torna legível os acontecimentos. Nesse sentido, Pollak (1989 e 1992) afirma que a memória é uma operação coletiva dos acontecimentos e das interpretações do passado que se quer salvaguardar. O autor aponta três elementos constitutivos da memória, quais sejam: os acontecimentos vividos pessoalmente, pessoas e personagens e, por fim, os lugares. Compreende que a memória, então, se estrutura em torno desses três aspectos, com os quais o sujeito pode ter entrado em contato diretamente ou indiretamente. Nesse contexto, cabe citar Nora (1993): informações passadas, ou que ele representa como passadas. Nesse sentido, Pollak (1989 e 1992) afirma que a memória é uma operação coletiva dos acontecimentos e das interpretações do passado que se quer salvaguardar. O autor aponta três elementos constitutivos da memória, quais sejam: os acontecimentos vividos pessoalmente, pessoas e personagens e, por fim, os lugares. Compreende que a memória, então, se estrutura em torno desses três 34 aspectos, com os quais o sujeito pode ter entrado em contato diretamente ou indiretamente. Nesse contexto, cabe citar Nora (1993) que a razão fundamental de ser de um lugar de memória é parar o tempo, é bloquear o trabalho do esquecimento, fixar um estado de coisas, imortalizar a morte, materializar o imaterial para prender o máximo de sentido num mínimo de sinais, é claro, e é isso que os torna apaixonantes: que os lugares de memória só vivem de sua aptidão para a metamorfose, no incessante ressaltar de seus significados e no silvado imprevisível de suas ramificações. A memória coletiva e memória individual conforme o passado é organizado sob a forma de lembrança. Se o passado for resguardado em torno de uma determinada pessoa, que vê esse passado do seu ponto de vista, trata-se de uma memória individual, interior ou pessoal. Por outro lado, se as lembranças se distribuem dentro de uma sociedade grande ou pequena, da qual são imagens parciais, trata-se de uma memória exterior ou social (Halbwachs, 2006, p. 102) Finalizando Nora (1993, p. 15) que trata da necessidade moderna de eleger lugares onde depositar memórias, impor a certos espaços ou objetos a tarefa de capturar a memória e deixá-la ali encerrada para a qualquer momento ser despertada pelo homem. O autor destaca que a memória é registradora, que delega ao arquivo o cuidado de se lembrar por ela e desacelera os sinais onde ela se deposita, como a serpente sua pele morta. Dessa forma, é a arquitetura que detêm a memória e que media a relação do homem com seu passado, como se a memória não fosse recurso suficiente para promover uma conexão direta entre presente e passado. Nora (1993, p. 12) reforça que é necessário algum meio material onde alojar a memória e as lembranças. O passado revela um sentimento de identidade