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ros e sua correta utilização. Em pouco tempo, o rapaz estava apto a entender as quantidades redigidas nos documentos de carga e a impor- tância da contabilidade para a empresa. Assim teve contato com a Administração e pôde observar seu funcionamento. Todo dia encontrava com seus insuportáveis escribas, quase todos muito detalhistas, o que fez com que Nemenhat logo desenvolvesse antipatia por eles. Mas ao mesmo tempo aprendeu a forma mais con- veniente de tratá-los e como eram suscetíveis a determinado tipo de presentes. Isso, sem dúvida, facilitava o caminho para a empresa e eco- nomizava as tediosas inspeções de alfândega que tanto demoravam para distribuir as mercadorias. Agora, claro, tinha de ser muito cuidadoso nas formas de tratamento para assim evitar mal-entendidos, pois todos se consideravam filhos do próprio Thot. Nunca tinha imaginado a quantidade de gente que aquele negócio envolvia. Os agentes que combinavam as compras; as companhias que fretavam os barcos; as tripulações que as transportavam e em cujas mãos se colocava grande parte das esperanças da empresa; os trabalha- dores dos portos; os funcionários aduaneiros; os intermediários que às vezes distribuíam os produtos... Todo um exército voraz que necessita- va de seu respectivo pedaço. Passando o tempo, Nemenhat chegou a adquirir tal domínio daquele meio que era capaz de calcular o lucro líquido que lhe daria qualquer produto no mercado, a viabilidade do transporte de determi- nadas mercadorias em função da margem de benefício; o risco que implicavam as viagens por mar; o lugar onde se devia receber ou enco- mendar a carga... Tudo era considerado por sua mente analítica, que ao mesmo tempo se divertia ao fazer isso, como se fosse uma brincadeira de criança. Comprovou a crueza das regras que regiam a economia e também que o ouro não tem coração. Passou outro ano entre comerciantes sem escrúpulos, escribas ambiciosos, estivadores rudes e capitães que bem poderiam ganhar a vida como piratas desalmados. Nemenhat se tornou homem. Deu um salto definitivo da sempre instável adolescência para uma realidade bem diferente de qualquer outra que teria imaginado. Hiram se sentia muito satisfeito com seu trabalho, ao ponto de lhe confiar os assuntos mais delicados, certo do bom tino que aquele jovem havia demonstrado. E, acima de tudo, estava aquela discrição que Nemenhat sempre mostrava, coisa intrínseca à sua própria nature- za, que o fenício já tinha adivinhado muito tempo atrás e na qual havia apostado. Discrição que, por outro lado, Nemenhat não circunscrevia unica- mente ao âmbito pessoal, mas que extrapolava para seu trabalho a todo momento. — Nunca achei que ia encontrar alguém assim — dizia a si mesmo o fenício, satisfeito, enquanto observava, de sua janela, como o jovem discutia com o inspetor de turno junto ao cais. Sentia realmente uma fraqueza por aquele jovem em quem pensa- va ver o filho que nunca teve e que agora, às portas da velhice, tanto desejava. Isso o fazia valorizar ainda mais as qualidades que aquele poderia ter, mas isso era inevitável para um homem que, como ele, só havia tido olhos para seus negócios. Por esse motivo, era irremediável que valorizasse não só a discrição, como a prudência que o jovem exi- bia, e aquela impressionante facilidade para o cálculo. Nunca, em toda sua vida, Hiram tinha conhecido alguém capaz de utilizar os números com tanta rapidez. Isso o tornava um negociador formidável, a ponto de os próprios escribas do porto reconhecerem tal capacidade, sentindo um indubitável respeito por alguém que, como o jovem, não tinha sido instruído nos mistérios matemáticos na Casa da Vida. Naquelas ocasiões, Hiram o achava frio como as cobras do deserto, com uns olhos que se transformavam em dois blocos de gelo, como os que uma vez viu, quando era pequeno, nas montanhas do Líbano. Durante aqueles dois anos, Shepsenuré continuou fazendo suas negociatas com Hiram. Claro que, àquela altura, este já estava cansado de saber de onde provinham aquelas jóias, mas nunca disse nada. Continuou proporcionando tudo o que o carpinteiro necessitava e passando adiante as jóias adequadamente. O egípcio estava realmente orgulhoso de seu filho e se alegrava de ter escolhido uma profissão tão diferente da sua. Havia se tornado um homem, e Shepsenuré tinha motivos mais do que suficientes para não se preocupar nem um pouco com seu futuro. Sentia-se feliz pela pri- meira vez na vida, como se tivesse conseguido alcançar uma meta árdua e distante. Ter sobrevivido, e inclusive prosperado, não era tarefa fácil para um pária como ele naquele tempo. Por isso, ver o filho transfor- mado num homem respeitável satisfazia todos seus desejos, embora, às vezes, tivesse que agüentar as conversas moles que Seneb, como de cos- tume, lhe impingia todas as tardes. — Digo que não há nada mais digno aos olhos dos deuses que o trabalho feito com as mãos. — Não vamos começar de novo, Seneb. Ele escolheu um bom tra- balho, pois é feliz com ele. — Humm, feliz, feliz. O que os jovens sabem disso? Quando des- cobrem o que lhes convém, às vezes, é tarde demais. Além disso, não 04 ® #o há nada tão bonito como fabricar móveis, utensílios para as pessoas e, inclusive, sarcófagos. Ptah se orgulharia disso. — Deixemos Ptah no templo por hoje, meu amigo. O comércio é tão honroso como qualquer outra atividade. — O comércio? Ora! Você está em contato permanente com estrangeiros, gente sem nenhuma crença nem moral. Nada de bom sai de seus corações, onde só se aninham a avareza e a ambição. — Não exagere, Seneb. Suponho que, em outros lugares, também deve haver alguma pessoa decente. — Estou avisando, acabarão corrompendo o coração do rapaz. Que Amon, o Oculto, permita que eu esteja enganado. — A cada dia você está mais enjoado. Os tempos estão mudando, olhe ao redor. Esta cidade está aberta ao comércio como nenhuma outra. Nosso povo, sem saber, começa a depender disso, e sua impor- tância é inquestionável. Acho que Nemenhat escolheu muito bem, além disso já não é mais um garoto. O embalsamador baixou os olhos para o copo que tinha entre as mãos. Permaneceu calado, o olhar fixo nele, talvez observando os refle- xos que a luz produzia sobre o vinho e suas mudanças de tonalidade. — Acha mesmo que as coisas mudaram tanto? — murmurou, por fim, dirigindo um olhar a seu amigo. — Mais do que você pensa. E principalmente aqui, em Mênfis. No Alto Egito, a presença estrangeira é escassa e forma comunidades mais fechadas. Lá a vida é diferente. — Durante mais de cem gerações, o povo se manteve fiel a seus costumes. A vida de um filho pouco diferia da de um pai ou da de um avô de seu pai. Mas agora, veja — continuou, abrindo os braços — , as pessoas aceitam as modas desses estrangeiros, inclusive cultuam seus deuses, como Astarté, Kadesh, Baal... Não sei onde vamos parar. — Não se preocupe — interveio Shepsenuré, sorrindo. — O sol continuará aparecendo pela manhã, como todos os dias. Aquilo não agradou em nada a Seneb, que levou a taça aos lábios como se fosse um refúgio para sua alma. — Aceite e deixe para lá. Os jovens devem abrir caminho quando quiserem. — É — disse, fazendo outro de seus típicos trejeitos. — Talvez tenha razão. A nossos filhos sobra o ímpeto que nos falta. O mundo é deles e seguirão seu caminho, embora não o compreendamos. Veja só minha filha. Tem 16 anos e ainda não pensou em formar uma família. É incrível! As vizinhas da idade dela têm pelo menos dois filhos. Todo mundo deve pensar que ela é meio esquisita. — Deixe que pensem o que quiserem, ela escolherá na hora certa. — Pois é, masespero não estar tão velho — respondeu, dando um gole. — Ha, ha... já vi tudo. Está querendo ser avô, não é? — E daí, se fosse? Nada como ver a continuidade de nosso sangue, Shepsenuré. Na realidade, esse é o único motivo pelo qual estamos aqui. — Você está começando a caducar, Seneb. Não se preocupe tanto, logo vai ver como sua filha lhe fará avô. — Para isso terei que arrumar um namorado para ela, porque ela não pensa em nada que não seja fazer remédios com as benditas plan- tas. Conhece as ervas mais estranhas com que faz fórmulas inimaginá- veis que receita na vizinhança. Vive só para isso. Imagine que há dias em que nem vem nos trazer alguma coisa para comer ao meio-dia — concluiu, movendo a cabeça. — Confiemos neles, deixemos que caminhem sozinhos. * * * o|J ® Jp Certamente a vida de Nubet estava muito distante da que seu pai tinha desejado. Inclusive não se parecia em nada com tudo o que so- nhara em sua infância. Longe estavam seus desejos de entrar nos sagra- dos templos para servir a seus deuses. A mera idéia de se tornar uma Divina Adoradora de Amon lhe parecia agora uma quimera impossível de realizar, nostalgias de um tempo já distante. Sem pretender, havia entrado num mundo que a ia aprendendo à medida que se aprofundava nele. Um vasto universo formado pelos recursos que tão generosamente sua terra lhe dava e que não fazia nada além de estreitar mais ainda seus vínculos com Nubet. Acácias, cebolas, malvaviscos, aipo, salsa, absinto, coentro, cominho... estava tudo ali, oferecendo-se com generosidade para seu uso. Percorria os campos recolhendo tudo aquilo de que necessitava e que depois utilizava para elaborar fórmulas antiqüíssimas recolhidas nos velhos papiros de seu pai. Tudo estava escrito desde tempos imemoriais. De fato, os médicos se prendiam àquelas normas escritas não só para prescrever corretamente a seus pacientes, como também para se resguardar de qualquer possível erro. A lei era inflexível quanto a isso. Se um paciente morria por negligência do médico, por ele não ter intervindo conforme as regras, este podia ser castigado sendo conde- nado à morte. Esta estrita regulamentação trouxe, sem dúvida, o alto grau de especialização que os médicos egípcios chegaram a ter, e sua reconhe- cida fama em todo o mundo. Adquiriam seus conhecimentos nas Casas da Vida, verdadeiros templos do saber da época, onde aprendiam sua profissão se especiali- zando, depois, em qualquer um dos diversos ramos que compõem esta ciência, de tal modo que todos os médicos tinham alguma especia- lidade. O centro de ensino mais reconhecido se encontrava em Qfe to #o Per-Bastet*, onde, segundo se dizia, os tratados lecionados tinham sido escritos por Thot. Nem é preciso mencionar que aquela profissão era fortemente hie- rarquizada, pois havia médicos comuns, inspetores, supervisores e pro- fessores. Todos se encontravam sob a proteção da deusa Sejmet, sua patrona, o que não deixava de ter certa graça, pois era do conhecimen- to de todos sua energia destrutiva, considerada a causa de pragas e doenças. Destruidora dos inimigos de seu pai Rá, quando se enfurecia sua cólera não tinha medida. No entanto, a Mais Forte, o significado de seu nome, possuía a mesma facilidade para curar que para matar. Como Senhora dos Mensageiros da Morte, outro dos aterrorizantes nomes pelo qual era conhecida, ninguém na terra, nem mesmo o faraó, esta- va a salvo de suas calamidades. Mas, se a acalmavam apropriadamente, tinha o poder de curar os mortais. Para conseguir que a deusa deixasse de lado suas raivas e se mos- trasse benfeitora, existiam alguns ritos chamados de Apaziguamento de Sejmet, que eram realizados diante de suas estátuas em seus templos, duas vezes por dia, pelos heryheb, seus mestres sacerdotes. Todos estes atos litúrgicos não deixavam de conter um claro componente mágico. O fato de que a deusa fosse capaz de transmitir doenças induzia à possi- bilidade de que estas pudessem ser combatidas com a magia. Para isso, existiam tanto médicos como pessoal eclesiástico especializado em todo tipo de rituais mágicos, que tinham como finalidade a libertação de todos aqueles "maus espíritos". Era comum, portanto, que as pessoas fossem ao templo em busca de um médico mago que expulsasse os demônios causadores de sua doença. * Isso foi durante o Império Novo. Durante a Época Baixa, e último período, foram famosos os de Sais e Abydos. % - s . Diariamente, costumavam se formar longas filas de cidadãos em frente aos templos, todos com a esperança de que suas estranhas doen- ças fossem aliviadas e que, por fim, seus sofrimentos acabassem. A maioria das pessoas tinha uma fé cega naqueles magos que, com suas cerimônias, costumavam produzir um efeito psicoterapêutico. "Eis aqui uma doença de que tratarei." Eram as palavras que, pro- nunciadas pelo médico, desejavam escutar seus pacientes, agarrando- se a elas cheios de esperança. Os médicos egípcios conheciam mais de duzentos tipos de doen- ças, com centenas de prescrições para cada caso específico, sendo mui- tas delas de eficácia duvidosa. Mas a medicina egípcia era realmente boa na cirurgia e no tratamento de lesões externas. Claro que os grandes médicos estavam ligados aos templos, à casa real, ou atendiam aos dignitários capazes de pagar o alto preço que cobravam por suas consultas. O povo, no entanto, tinha que se confor- mar com os médicos comuns que, em número abundante, atendiam a preços mais modestos. Mas, numa cidade tão grande como Mênfis, nem todo mundo podia se permitir ir a um sunu (doutor) cada vez que se sentia mal com alguma doença. Era por isso que proliferava todo tipo de curandeiros, tira-dentes ou feiticeiros que faziam seu pé-de-meia entre a população, formulando as mais extravagantes receitas*. Nubet não pertencia a nenhum desses grupos, embora sentisse um grande respeito pelos médicos e nenhum pelos curandeiros. Ela apenas se dedicava a experimentar os inumeráveis componentes que a terra lhe dava, compilando aquelas velhas receitas que não eram só médicas, * No Antigo Egito, tinha-se o cuidado de fiscalizar para evitar que médicos não autorizados dessem consulta. Os falsos médicos eram muito perseguidos. % * > j p mas que também abrangiam campos como o da perfumaria ou da cosmética. O galpão, situado no pátio de sua casa, junto à despensa, foi se transformando num verdadeiro laboratório onde a jovem confecciona- va seus compostos. O que tinha começado como uma mera curiosida- de, ou vocação, havia se tornado um autêntico fascínio que chegava a dominar todo o seu tempo. Em seguida se deu conta de que aquela apaixonante atividade podia ajudar as pessoas. Primeiro, foi um remédio para as rugas; depois, outro para se depilar, mais um para o mau hálito... e assim até que, sem ter planejado, deu o primeiro conselho médico a uma vizinha que tinha herpes. Fez uma mistura de mel fermentado, mirra seca e sementes de coentro, e aplicou nas feridas. Em pouco tempo, o herpes desapareceu, e a mulher se desmanchou em elogios à jovem. Isso, mais o fato de que não cobrava um só deben por seus conselhos, fez com que o nome de Nubet corresse pela vizinhança como se ela fosse uma reencarnação da divina mãe ísis. Foi assim que começou a receber visitas diárias de gente com doenças comuns, como dores de cabeça, resfriados ou prisão de ven- tre. Nubet recebia a todos muito amável e tratava seus problemas com atenção e sem interesse financeiro. Mas os vizinhos, que não por serem humildes eram mal-agradecidos, obstinavam-se em lhe pagar de algum modo pelos serviços. Legumes, cereais, hortaliças... e logo a despensade Seneb já não tinha mais lugar para tantos presentes. Não tinha outro jeito senão aceitar, com medo de que os vizinhos se ofendessem. O cotidiano no bairro dos artesãos de Mênfis, como em qualquer outro de uma grande cidade, estava exposto a todo tipo de doenças e infecções, que se manifestavam diariamente nas mais diversas formas. Os egípcios eram assíduos comedores de grande variedade de verduras, % » frutas e hortaliças que, às vezes, ingeriam sem lavar, ou que tinham sido regadas com águas estagnadas em que proliferavam todo tipo de para- sitas, que lhes produziam doenças como hematúria , causadas por tênias, quistos amébicos ou infecções intestinais geradas por lombrigas, das quais praticamente ninguém escapava. Além disso, existiam doen- ças tão graves como varíola, poliomielite ou tuberculose — esta, muito difundida entre a população — , e diante das quais pouco se podia fazer. "Nem mesmo os melhores magos dos templos podiam expulsar do corpo os demônios que causavam tais males." Como se tudo isso fosse pouco, havia grande quantidade de indiví- duos com deformidades ósseas como acondroplasia, que produzia anões, ou excrescências superficiais nas vértebras (bico-de-papagaio), muito freqüente entre homens com mais de 40 anos. Diante de um quadro desses, não era de se estranhar que os doentes procurassem magos, curandeiros ou feiticeiros que pudessem libertá- los daquelas doenças inexplicáveis, e que só podiam ser produzidas, acreditava-se, por entes malignos e poderosos. Para isso, ajudava, sem dúvida, a concepção que o egípcio tinha do corpo humano. Para eles, o coração era o centro não só vital, como também das emoções, senti- mentos e de todo raciocínio. O corpo era cheio de canais chamados de metu, que comunicavam todos os órgãos entre si e pelos quais circula- vam, além do sangue, o ar que respiravam, os alimentos, a urina, os detritos, o esperma etc.* Por isso, quando sentiam alguma doença em qualquer órgão, pensavam que o metu se encontrava tapado e não dei- xava circular os diferentes fluidos que transportava. Iam, então, ao médico, com a esperança de que este deixasse livres de novo os canais internos e tudo voltasse à normalidade. * Os olhos se comunicavam com os ouvidos. A boca com o ânus etc. Para os transtornos menores do aparelho digestivo conheciam todo tipo de lavagem intestinal e laxantes que comumente costumavam aliviá- los, resolvendo o problema, mas muitas vezes "os canais" resistiam a ficar livres e, então, como foi dito anteriormente, só restava a magia. Em pouco tempo, Nubet conheceu a variada vizinhança que tinha. Havia as pessoas que vinham buscar conselho para qualquer problema, as que não queriam vir de jeito nenhum, as que iam contra a vontade, as que se apresentavam todo dia com uma doença diferente, ou as que voltavam sempre com a mesma doença. A senhora Hentawy pertencia a este último grupo e visitava Nubet diariamente, queixando-se de dores no ânus*. No começo, a jovem não estranhou, pois eram muito comuns os pacientes com problemas no ânus. Recebeu-a gentilmente e com deferência e lhe deu um trata- mento que continha vitríolo de cobre, folhas de cebola e folhas de mal- vavisco em água de rosas. O remédio devia ser aplicado todo dia com uma pena de íbis. Mas a senhora Hentawy voltava no dia seguinte se queixando de novo de seu ânus. Nubet insistia na necessidade de manter o tratamen- to durante um tempo para acompanhar seus efeitos. Mas era inútil, pois, dia após dia, Hentawy voltava a visitá-la. — Acredite, Nubet, não posso suportar a dor. — Senhora Hentawy, deve ter um pouco de paciência, já verá como a dor vai aliviar — disse, tentando acalmá-la. Mas a senhora Hentawy não era fácil de acalmar e, pondo as mãos nos lados da cabeça, começou a movê-la desesperadamente. * É curiosa a grande quantidade de problemas no ânus descritos nos papiros médi- cos egípcios (dor, ardência etc.). % «* 4P — Acalme-se ou vai desfazer seu belo penteado — Nubet tratou de acalmá-la, referindo-se a seu cabelo tingido, que exalava um cheiro desagradável. — Gosta mesmo de meu cabelo? — perguntou, meio chorosa. — Claro que sim. Tem um cabelo muito bonito. — É pintado, sabe? — disse Hentawy, como se lhe confiasse um segredo. — Ninguém diria isso — continuou Nubet, tranqüilizando-a. — Como conseguiu? — Bem, é uma fórmula secreta, que pouca gente conhece. E, na minha idade, todos os truques são poucos para parecer jovem. — Ora, senhora Hentawy, você ainda é jovem. — Bem que eu gostaria, querida, mas me falta pouco para fazer 40*. E, se não fosse por minha fórmula, meus cabelos estariam total- mente brancos. Fez uma pausa e depois continuou: — Bem, vou contar a você. Você é jovem e não precisa disso. Mas deve me prometer que não dirá a ninguém, nem mesmo como receita. — Que Sejmet me fulmine se o fizer. — Muito bem, neste caso eu direi. Mas só por alto. Calou-se por um instante, enquanto olhava fixamente para Nubet, com malícia. — É feita com fígado podre de burro em óleo** — murmurou em voz baixa, ao mesmo tempo que apoiava uma mão sobre o braço da jovem. — Fígado podre de burro em óleo? * Aos 40 anos os egípcios eram considerados pessoas idosas. ** Esta fórmula é absolutamente verdadeira. % » £> — Sim — confirmou em voz baixa — , mas por favor, entenda, não posso dar as medidas. Só digo que é muito mais eficiente que san- gue de boi negro cozido em óleo. Nubet sorriu com a receita, pois conhecia bem todos esses trata- mentos que a ela pareciam repugnantes, mas que, no entanto, muita gente usava. — Quanto à minha doença — continuou Hentawy, mudando de novo de expressão — , acho que sei qual é a causa. Nubet arqueou a sobrancelha, à espera da resposta. — A dor no ânus é de origem demoníaca — a senhora disse, por fim. — Ah! — respondeu a jovem. — Pode me deixar dar uma olhada? — Claro que sim, querida — exclamou com ar festivo, enquanto subia a saia e se posicionava. A jovem examinou, mas não observou nenhum tipo de anormalidade. — Acho que tem razão, senhora Hentawy. Sua doença é desse tipo. Mas não se preocupe, pois tenho a fórmula certa para o caso. — Jura? — perguntou a senhora, inquieta. — Em quatro dias estará livre da doença. Para isso, precisa tomar um composto muito fácil de fazer. — Mas sou eu que tenho de fazer? — Naturalmente. Seus demônios devem ser muito persistentes e é melhor que você mesma fabrique a fórmula, para que eles não a inco- modem mais. — Mas... — Não se preocupe, eu lhe dou os ingredientes e você só terá que misturá-los. — Ah, bom! — Primeiro, vamos colocar 1/8 de absinto — disse, enquanto tira- va o componente de um saco — , depois 1/16 de bagas de zimbro e 1/32 de mel. Misture tudo isso com 10 ro de cerveja doce e depois fil- tre. Beba a poção durante quatro dias, e verá como os demônios deixa- rão seu ânus tranqüilo*. Com isso, a senhora Hentawy se foi, muito agradecida, louvando Eneada Heliopolitana pela sabedoria da jovem. Por sorte, nem todo mundo era igual a essa senhora, mas infeliz- mente muitos sofriam de males reais. No começo, Nubet ficou surpresa ao comprovar a grande quantidade de vizinhos que tinham parasitas intestinais. Não havia dia em que não tivesse que receitar remédio para as lombrigas. Então se deu ao trabalho de prepará-lo com antecedência. Costumava utilizar dois compostos que davam bons resultados. Um deles ela fazia moendo 5 ro de folhas de papiro com 5 ro de absin- to, depois misturava com 20 ro de cerveja doce e coava. O outro era um pouco mais complexo e tinha como base as vagens de algarobeira, uma plantamuito usada como vermífugo, mas que não era utilizada somente para tratar de vermes. Também podia ser empre- gada tanto para esvaziar intestinos como para suspender a diarréia, e inclusive para tratar bolhas de queimaduras. Nubet misturava 1/8 de polpa de vagens de algarobeira com 2,5 ro de suco de planta fermentada, 1/64 de ocre vermelho, 1/8 de parafina e 25 ro de cerveja doce. Depois cozinhava tudo. O resultado era mag- nífico. * As prescrições egípcias usavam a unidade de 5 ro, e frações de outra medida de capacidade chamada dja, que era quatro vezes maior que 5 ro. A unidade dja costu- mava ser representada como 1, 1/1, 1/4 etc. Enquanto que a ro era sempre escrita. Como exemplo, vejamos algumas equivalências: 1 320 ml, - » 1/2 160 ml, - > 1/4 80 ml etc. O^ » #o Tamanho foi o sucesso desta planta que a jovem se viu obrigada a fazer uma provisão das vagens e das sementes. Portanto, era comum ver Nubet pela manhã bem cedo perambular pelo mercado à procura dos mais diferentes ingredientes para elaborar suas fórmulas. Os mercadores, que a conheciam, costumavam lhe dar de presente muitos deles e, às vezes, lhe faziam encomendas que eram difíceis de encontrar. Depois, em casa, se concentrava na leitura daqueles velhos papiros que seu pai guardava como um tesouro precioso, onde descobria cen- tenas de receitas prescritas fazia mais de mil anos e que se apressava a preparar. Às vezes a surpreendia à tarde, absorta naqueles escritos anti- gos, tendo de correr para preparar o jantar a fim de que este estivesse pronto quando seu pai e Min chegassem. Também aproveitava, sempre que podia, para ir aos belos campos e palmeirais que rodeavam a cida- de, e, se dispunha de tempo, visitava seu pai, como costumava fazer antes para lhe levar o almoço. Poderia se dizer que Nubet se sentia plenamente feliz com a vida que levava. Então, quando seu pai resmungava, recriminando-a por não ter um namorado, ela lhe dirigia o mais furioso dos olhares, chamando-o de velho caduco ou rabugento. A jovem ficava muito chateada quando seu pai vinha com essa con- versa mole de namoro. Não é que ela tivesse alguma coisa contra os homens, era que simplesmente não tinha interesse em formalizar rela- ção alguma com ninguém. Era feliz fazendo o que fazia e não tinha intenção de complicar a própria vida, como o resto de suas vizinhas Mantinha com elas a melhor das relações, ajudando-as, dentro do possível, a amenizar todos aqueles males femininos. Menstruações muito fortes, complicações no útero, indução de parto ou estímulo à produção de leite. Elas, por sua vez, a informavam de suas intimidades, contando as aventuras e desventuras que seus casamentos as faziam passar. Tampouco as solteiras pareciam viver sossegadas. As que não tinham namorado a perseguiam pedindo todo tipo de conselhos para utilizar este ou aquele cosmético, ou sobre a maquiagem mais adequa- da para conquistar o homem escolhido. As que tinham namorado, por sua vez, se preocupavam com que a relação desse certo ou com a possibilidade de engravidar antes do casamento. Isso acontecia com Nubjesed, uma belíssima moça um pouco mais jovem que ela, que se sentia obcecada com a possibilidade de uma gra- videz não desejada. E, como tanto ela quanto seu namorado eram de natureza mais do que fogosa, a moça costumava visitar Nubet com fre- qüência, em busca de possíveis remédios contraceptivos. — De quantos dias é o atraso desta vez? — perguntou Nubet, que triturava cominho quando ela apareceu. — Quase uma semana — respondeu Nubjesed, apertando as mãos, angustiada. — Bem, isso acontece quase todos os meses. Não deve se preocu- par. Vai ver que logo ela desce. Tomou a salsa? Nubjesed moveu a cabeça, negativamente. —- Pois deve tomar, ajudará seu ciclo a ser mais regular. —• É que desta vez acho que não é um alarme falso — disse, aflita. Nubet deixou o cominho e cruzou os braços diante da moça. — Seu namorado ejaculou dentro? Agora o movimento da cabeça de Nubjesed foi afirmativo. — Quantas vezes? —— Uma só, mas tenho medo de que eu estivesse no per íodo fértil. — Eu recomendei que tivesse muito cuidado e não deixasse que seu namorado pusesse sua semente em seu útero. — Já sei — respondeu a moça, sufocando um soluço, enquanto tapava o rosto com as mãos — , mas é que não deu para evitar. Toda vez que tenho o membro dele em minhas mãos, minha vontade evapora e não sei dizer não. — Mas só penetrou essa vez? — perguntou Nubet, indulgente. — Penetrar? Não, não me penetrou — respondeu a moça, estra- nhando. — Não penetrou? Mas não disse que ejaculou dentro de você? — Claro, na minha boca. E eu, sem querer, me engasguei e engoli parte do seu mu — disse de novo, angustiada. — Você sabe, a boca está ligada com a vagina. Então, dá no mesmo... Nubet a olhou com alguma recriminação, mas, ao ver o rosto des- composto da bela Nubjesed, aproximou-se dela, pegando suas mãos para acalmá-la. — Bem — disse com suavidade — , não precisa se preocupar. Vamos dar um jeito nisso. — Acha que tenho de me submeter a um "desvio da gravidez"?* — Comigo é claro que não — respondeu Nubet, evidentemente chateada. — Jamais cometeria um pecado semelhante aos olhos dos deuses. E... além do mais é proibido. — Me perdoe — disse a moça, desatando a chorar. — Nem sei mais o que digo... — Olhe, Nubjesed, não acho que você esteja grávida — conti- nuou Nubet, suspirando. — Mas, para prevenir, você vai fazer umas * Expressão pela qual se designava o aborto. Era proibido. fumigações de trigo torrado na região genital, e depois beberá uma poção que vou lhe dar. — Obrigada, obrigada! — exclamou agitada, tentando beijar a mão de Nubet, que a afastou prontamente. — Do que é a poção? — É uma mistura de 5 ro de óleo, 5 ro de aipo e 5 ro de cerveja doce. Você deve tomar durante quatro manhãs consecutivas em jejum. — E você acha que vai funcionar? -— Com certeza. Nubjesed não pôde conter a alegria e abraçou Nubet. Depois, pegou o recipiente onde estavam os ingredientes que deveria cozer e se despe- diu de novo, exultante, daquela que era, sem dúvida, sua salvadora. — Nubjesed — disse Nubet, ao se despedir — , seria bom que você apressasse seu casamento, ou um dia desses a gravidez será para valer. Quando a moça foi embora, Nubet ficou pensativa por um instante. "Não há dúvida de que ter um namorado pode ser um bom proble- ma", pensou, maliciosa. Felizmente, nem todos os vizinhos tinham o problema de Nubjesed, que passava a vida em sobressaltos mensais. Pelo contrário, eram freqüentes as visitas que lhe pediam algum tipo de afrodisíaco para o cônjuge decaído. Para isso, nada como uma fórmula que tinha como componente principal a raiz da mandrágora e que Nubet prepa- rava com singular maestria, tendo muito cuidado nas proporções, pois a mandrágora tem efeitos narcóticos. Com o tempo, acabou conhecendo as "particularidades" de seus clientes e quais eram suas necessidades mais comuns, chegando a sen- tir que fazia parte de suas vidas. Seneb, embora resmungasse diariamente, se sentia orgulhoso de sua filha e do trabalho que realizava, sem poupar elogios a ela diante dos demais. E se além de tudo lhe desse um neto! Então sua felicidade se veria coroada. Dois anos se passaram e Nubet floresceu por completo, transfor- mando-se em mulher. Uma mulher de beleza exótica, pois seus traços adquiriram essa particularidade singular. Tudo nela parecia na medida certa. Seu cabelo, negro como o azeviche, caía curto, emoldurando um rosto de feições primorosamente definidas. Seu nariz, sua boca, suas mãos e seus pés eram perfeitos. Suafigura delicada bem que poderia ter despertado a inveja da própria Hathor como deusa do amor. Simetria de formas puras, que pareciam tiradas dos papiros dos geômetras que tão ciumentamente os templos guardavam. Assim era Nubet. Apenas uma coisa se destacava de modo desproporcional em tão harmônico equilíbrio, pois as imperfeições, às vezes, são dadas pelos deuses como selo indelével da pessoa. Inclusive, há ocasiões em que estas chegam a ser tão insultantes que poderiam ser tomadas mais como uma irrealidade que como um defeito. Era o caso dos olhos de Nubet, irreais, por estranhamente belos. Desproporcionais porque não era possível ver outros tão grandes e bonitos e, dentro deles, uma cor escura como as noites sem lua em que se pode ver o fulgor de mil estrelas. Assim era seu olhar, dotado de uma luz que poderia ter sido roubada àquelas estrelas, que pareciam habitar no mais profundo de seus olhos, porque eram a noite do Egito. Sentado em seu lugar favorito, Nemenhat desfrutava da tarde que a primavera oferecia. As plantações estavam a ponto de serem colhidas e seus frutos saturavam o ambiente com suas fragrâncias naturais. A brisa que a essa hora vinha do rio arrastava essa fragrância até ele, convidando-o a se deleitar. Aspirava-as, tentando distinguir cada aroma, mas eram tantos que acabou por se abandonar num estado de semiconsciência extremamente agradável. Quase não se lembrava daquele prazer de que gostava tanto, antiga- mente, e de que não desfrutava já fazia muito tempo. Na realidade, fazia mais de dois anos que não voltara ali, desde o dia em que entrou na pi- râmide de Unas e que tinha ficado com uma lembrança inquietante. "Dois anos!", pensou. Dois anos em que tinha se aventurado num ambiente que, no começo, ignorava que existisse e que tinha acabado por transformá-lo numa pessoa muito diferente da maioria de seus compatriotas. Os pilares sobre os quais aquela sociedade se sustentava haviam sido postos com sabedoria havia mais de 1.500 anos. Durante todo esse tempo, os alicerces tinham sido erodidos pouco a pouco por uma nobreza cada vez mais influente e pela insaciável ânsia de poder dos templos. Seu país se encontrava ancorado em velhas estruturas carco- midas pelos poderes emergentes que não existiam quando foram forja- das e que se empenhavam em continuar mantendo o Egito como se fosse uma ilha inacessível. No porto de Mênfis, Nemenhat pudera comprovar a corrupção generalizada da Administração e a existência de um mundo além das fronteiras de seu país, que surgia lenta, mas inexorável, atrás de novos espaços, numa nova ordem. Aquele grande mar que os egípcios sempre haviam desprezado era a chave que abriria o acesso a novos caminhos que conduziriam ao progresso durante os próximos mil anos. E o Egito se negava a percorrê-lo. Preferia que outros países sulcassem o Grande Verde e comercializassem com tudo o que fosse necessário sem mais complicações, não reparando que, sem o controle daquele mar, cedo ou tarde, seria terra conquistada. Para Nemenhat, não havia dúvida de que o país de Kemet se sufocaria numa lenta agonia. Mas isso tudo não significava que não amasse sua terra. Ao respirar aquela brisa, sentia o quanto a queria e era tomado de uma aflição diante do que ele considerava inevitável. "Dois anos!", pensou de novo, enquanto esticava seus membros preguiçosos. Em todo esse tempo, mal tivera alguns dias livres para se divertir. Nem no décimo dia semanal*, em que não se trabalhava, nem nos "cinco dias acrescentados"** ao final do ano, quando eram comemo- rados os nascimentos dos deuses Osíris, Hórus, Set, ísis e Neftis, havia deixado de ir ao escritório de Hiram. Tempo demais, sem dúvida. E era tão agradável estar ali que pro- meteu a si mesmo que, a partir daquele momento, aproveitaria todos os dias de folga que pudesse. Levantou- se um pouco e olhou para trás, onde começava o deser- to. Às vezes, tinha saudade de suas explorações pela necrópole, ainda que agora lhe parecesse uma coisa que tinha acontecido numa época muito distante. Veio-lhe à cabeça a idéia de encontrar a tumba perdida que sempre o tinha obcecado, e sorriu com certa indulgência. Idéias descabeladas de um rapaz, das quais, no entanto, não tinha se esquecido. — Bem, não se deve perder as esperanças — murmurou enquan- to se sentava abraçando os joelhos e observava os palmeirais. A estrada que os circundava tinha grande afluência naquela hora em que o entardecer apressava seus conterrâneos a voltar à cidade. Pessoas * Os egípcios tinham uma semana de dez dias. No décimo se descansava. ** O calendário egípcio se dividia em 12 meses de trinta dias, sobrando, portanto, cinco dias, a que eles chamavam acrescentados e que são conhecidos como "Epagômenos". de todo tipo, mas principalmente camponeses que voltavam dos cam- pos, agora que as colheitas estavam próximas. Homens e animais de carga que iam e vinham, como todo dia, pelo caminho de Mênfis. Estava olhando há um tempo, distraído pela movimentação, quan- do algo o fez pestanejar, tirando-o de sua concentração. Ali, na estrada empoeirada, havia uma figura que lhe pareceu bem familiar. Aqueles passos lembravam alguém que ele não conseguia precisar, pois estava um tanto distante para identificar o rosto. Prestou toda a atenção, tentando adivinhar a identidade da pessoa, conforme ela se aproximava. Voltava para a cidade e levava o que parecia um cesto sobre a cabeça, o qual, no entanto, não a fazia perder a compostura nem alte- rar o movimento gracioso de seu corpo esbelto. Era Nubet. Já próxima, Nemenhat a examinou com interesse. Fazia muito tempo que não a via; tinha ido à casa de Seneb talvez umas duas vezes nos últimos dois anos. Então, ainda era uma garota convencida, mas agora quem vinha pela estrada era uma mulher, e que mulher! Não estranhou ver como os homens paravam para vê-la passar, pois sua figura era como a que, com freqüência, representava ísis nas paredes dos templos. Só que esta tinha ganhado vida. Nemenhat se levantou e desceu do morro para a estrada, chegando justo quando ela passava. Aproveitando que ainda não tinha reparado nele, Nemenhat pôde olhá-la a seu bel-prazer. Nubet já era uma moça bonita na última vez que a vira, mas Nemenhat jamais tinha imaginado que poderia se transformar numa mulher assim. Nunca havia visto nenhuma que pudesse ser comparada, nem mesmo Kadesh. É que as formas arredondadas desta pertenciam ao padrão de beleza traçado pelos homens, que em nada podiam r4> equiparar-se com aquele corpo de deliciosas curvas, delineado confor- me critérios que só aos deuses competiam. — É ísis reencarnada, ou por acaso me encontro nos Campos de Ialu? Nubet mal reparou naquelas palavras, que não significavam mais que uma frase entre muitas que tinham lhe dito naquela tarde, e passou ao largo. Tinha aproveitado o dia para ir aos campos em busca de alguns ingredientes para preparar suas fórmulas e, de passagem, para curtir um dia de ócio rodeada pelas plantas que tanto amava. — Ei, Nubet, volte ao mundo dos vivos. Sou eu, Nemenhat. A jovem parou e virou a cabeça. — Nemenhat! — exclamou, admirada ao ouvir aquela voz. — Que surpresa. Ambos os jovens se aproximaram sorridentes, cumprimentando-se de forma amistosa. Em seguida, Nemenhat se apressou em pegar o cesto que ela transportava e prosseguiram juntos pela estrada. — O que leva aqui? — perguntou ele, com curiosidade, ao sentir como pesava. — Arruda, murta, coentro, romã, papoula e figos de sicômoro. — Sério? Ela assentiu, sorridente. — Não vai me dizer que vai dar tudo isso para o bom Seneb jantar.Ou por acaso é para o monstro insaciável que se chama Min? Nubet riu delicadamente. — Não é um monstro insaciável, é adorável. E tudo isso são ervas e frutos que colho para fazer poções. — Ah, sim, agora lembro que seu pai me falou disso uma vez. E, pelo que ele falou, acho que você faz uma coisa louvável. % » — Você conhece meu pai, sabe que é exagerado: Mas me diga, o que faz por aqui tão longe do porto? É a última pessoa que esperava encontrar. — Na verdade, foi um acaso. Fazia dois anos que não vinha a este lugar. Antes, eu gostava de vir sempre que podia. Sentava ali entre os palmeirais e o deserto. Tem uma vista bonita. — Sim. Pelo que meu pai disse, você passa o dia inteiro trabalhan- do no porto. — Pois é. O bom Seneb me recriminava por isso, às vezes. Você sabe, ele não gosta muito deste tipo de trabalho. Ele gostaria que eu fosse carpinteiro como meu pai. — Acontece a mesma coisa comigo. Sempre se lamentando por isso ou aquilo. Acho que está ficando velho. Nemenhat riu com delicadeza. — É um bom homem. Se todos os homens fossem como ele! Continuaram caminhando em silêncio durante um instante. Nubet aproveitou para olhá-lo, dissimuladamente. Estava muito mudado desde a última vez que o vira. Restava pouco nele dos traços suaves da puberdade; agora os traços de seu rosto eram de um homem, curvas que lhe davam um aspecto atraente e muito varonil. Além do mais, con- tinuava tendo esse ar misterioso que Nubet achava sedutor. Voltou a olhá-lo com discrição enquanto ele caminhava com o cesto na cabeça, seguro com uma mão. Era um jovem alto e esbelto, com ombros largos e desenvolvidos, que brilhavam sob os raios do sol vespertino sobre o suor. — Continua fazendo aquela lentilha deliciosa? — perguntou Nemenhat, de repente. — Sim. Na verdade, melhor ainda. Mas acho que você não gostou muito, não, pois nunca voltou para repetir. E já faz muito tempo. Mais de dois anos, não? — Mais de dois anos! — exclamou o jovem. — Quem diria. Mas garanto que gostei muito da lentilha. Não provei nada igual desde então. — Não preciso dizer que pode aparecer quando quiser. Além disso, daria uma grande alegria a meu pai. Ele gosta de você como a um filho. — E, eu sei. E eu correspondo como tal. Já disse antes que é o melhor homem que conheço. Gostaria de visitar vocês na primeira noite que puder. Nubet sorriu ante suas palavras. — São suas ocupações que o impedem, ou por acaso são outros afazeres? Nemenhat olhou-a, surpreso. — Desculpe se pareci descortês, pois garanto que nada me agrada- ria mais que jantar com vocês freqüentemente. Mas, confesso, o traba- lho me absorve de tal maneira que há noites em que nem como nada. Às vezes, passam-se dias sem que eu veja meu pai, pois acordo muito cedo e quando volto para casa ele já está dormindo. — O trabalho é uma boa forma de honrar os deuses todos os dias, mas também devemos desfrutar de tempo livre para glorificá-los. Eles gostam disso. — Certamente — respondeu Nemenhat, lacônico. — Mas lembre o pouco apego que tenho por eles. E o trabalho me permitiu o acesso a caminhos que nem suspeitava que existissem e nos quais aprendo todo dia. Nubet fez um gesto brincalhão, enquanto seus olhares se cruzavam. — Já sei que pensa que se aprende a verdadeira sabedoria nos tem- plos — apressou-se em dizer o jovem. — Mas não é a essa que me refi- ro, mas à da vida, a que faz o homem seguir em frente. — Os deuses criaram a ordem estabelecida, o que está bem e o que está mal. Nós deveríamos nos limitar a segui-la — respondeu Nubet, sem poder se conter. — Não gostaria de discutir com você, mas acho que o princípio que impulsiona nossa existência não está nos templos. Para o bem ou para o mal, os deuses que moram neles estão tão necessitados dele como nós. — Do que está falando? — indagou Nubet, enquanto enrugava levemente a testa. — De ambição, de riqueza, de poder. Três palavras que costu- mam ir sempre unidas e foram desejadas pelos homens desde que o mundo é mundo. Até o último dos sacerdotes dos templos procura por elas. — Suas palavras me apavoram, Nemenhat — exclamou Nubet, escandalizada. — Garanto que se você visse como nossos hierarcas se curvam todo dia diante delas, seu escândalo seria de outro tipo. Fez-se um pesado silêncio durante alguns minutos, enquanto os dois jovens entravam por uma das portas da cidade. — Não gostaria que pensasse que são estas premissas que me ani- mam. Aprendo a sobreviver, pois garanto a você que aí fora há mais chacais do que em todo o deserto ocidental. — O mundo que me mostra não me interessa. Se existe, prefiro não conhecer. — O mundo não se importa com isso. Segue seu caminho. Mas é preciso conhecer suas regras, pois não tem piedade. Outra vez se fez silêncio entre eles. Mas, em seguida, Nemenhat o quebrou: — Mas não gostaria que brigássemos por isso, Nubet. Apesar de nossas diferenças, acredite, me alegrei muito em ver você novamente. Além do mais, também aprendi algumas coisas que certamente vão lhe parecer úteis. — Mesmo? — respondeu Nubet, sem poder dissimular sua ironia. — Sim. Aprendi aritmética e geometria. Nubet abriu os olhos, surpresa. — Aprendeu aritmética e geometria no porto? — Sim. Hiram e um dos escribas da alfândega me ensinaram. Agora posso fazer a contabilidade de Hiram e o ajudo em todos os cál- culos de que necessita para manter o controle do seu negócio. — Hiram? Que Hiram? Meu pai nunca me falou dele. — É um fenício de Biblos que faz comércio com todo tipo de arti- gos. Tem sua base aqui, em Mênfis, e faz negócios com todo o mundo conhecido. Seu nome é famoso e respeitado em todas as partes. A jovem o olhou, pasmada. — Você trabalha sob as ordens de um fenício? Admita que só posso me surpreender. — Já sei que Seneb não gosta nem um pouco dos estrangeiros, mas, para ser sincero, devo dizer que só posso falar bem deste homem. Ele me aceitou em sua empresa sem ter motivo e me deu a oportuni- dade de aprender o que, de outra forma, não teria conseguido. Criamos um vínculo muito forte entre nós e, francamente, para mim tanto faz que seja fenício, líbio ou cananeu. — Não tenho nada contra essa gente — respondeu a jovem com a delicadeza que a caracterizava. — Muito pelo contrário. E me alegro que você tenha aprendido a lidar com os números — terminou, sorrindo. «9 ^O Sem se dar conta, quase tinham chegado à casa de Seneb, onde uma figura esperava postada junto à porta. — É a senhora Hentawy — murmurou Nubet, incrédula. — Quem? — A senhora Hentawy, a mulher de Aya, o oleiro. É uma mulher que vive obcecada pelas doenças. Acha que sofre de todas. E, pode acreditar, está mais sã do que nós dois juntos. Ao vê-la, Hentawy começou a gesticular, enquanto vinha rapida- mente a seu encontro. — ísis benfeitora, por fim encontro você! Se não tivesse chegado, teria caído em completo desespero. — Acalme-se, senhora Hentawy, e me conte o que está acontecen- do — disse Nubet, pegando-a delicadamente pelo braço. — Vai ver, querida, desta vez não sou eu a castigada pelas iras de Sejmet. É meu marido, o pobre Aya, que sofre. — Fique calma e me conte tudo. — É algo terrível. E tenho muito medo de que seja também de ori- gem demoníaca. — E por que seu marido não veio me ver? — Porque é cabeça-dura como uma mula. Se nega sistematicamen- te a seguir meus conselhos e me garante que está bem, mas não é verdade. — Se se encontra bem, não vejo por que deva seguir conselho nenhum. — É que não está bem, por mais que ele queira dissimular — disse Hentawy, fechando os punhos como quepossuída de uma raiva repentina. — Está bem, o que há com seu marido? — perguntou Nubet, finalmente se rendendo. G 4 ? — Vai ver — continuou Hentway, aproximando-se e baixando a voz o mais que pôde. — É um problema delicado, pois se trata de seu membro. Nubet olhou para ela, perplexa. — Sim, o membro. E acho que a coisa é séria. — Tem algum problema de ereção? — Não, minha filha — respondeu Hentawy, sorrindo. — Esse não é um problema para mim, pois já faz muito tempo que não temos rela- ções. É outra coisa — disse, fazendo uma nova pausa. A senhora Hentawy se aproximou de novo da jovem, com um gesto confidencial. — Às vezes, de noite, enquanto dormimos, Aya se levanta para uri- nar. Eu ouço ele gemer, como se sentisse uma dor horrível. Mas quan- do lhe pergunto, ele nega dizendo que não sente nada, fora alívio. Mas estou certa de que alguma coisa acontece e que sente dor ao urinar e não quer reconhecer. Talvez eu lhe tenha transferido os demônios do meu ânus. Nubet suspirou enquanto trocava um olhar com Nemenhat, que, atônito, assistia à cena. A jovem acariciou o queixo uns instantes enquanto pensava. — Acho que vamos ter sorte de novo, senhora Hentawy. Se seu marido seguir meu tratamento, nos livraremos finalmente destes demônios persistentes. — Sabia que me daria uma solução, querida — exclamou, abra- çando-a agitada. Nubet escapou de seu abraço enquanto tratava de acalmá-la. — A primeira coisa que seu marido tem que fazer é beber muita água — disse, por causa da possibilidade de ser um cálculo renal. — % » 4 > Mas se certifique de que é fresca e pura. Depois moa murta e misture com suco de papiro fermentado. Com o composto pronto, aplique-o no membro de seu marido. A senhora Hentawy pestanejou, espantada. — Não me olhe assim, senhora Hentawy, pois o problema é deli- cado e, se queremos solucioná-lo, deverá seguir minhas instruções ao pé da letra. — ísis protetora! — exclamou Hentawy. — Eu sabia que meu marido tinha um problema grave. Mas farei tudo o que for necessário para curá-lo. Então tenho de lhe aplicar a receita no membro? — Isso mesmo, toda noite, sem exceção. Não deixe de jeito nenhum que seu marido se aplique, pois os demônios foram transferi- dos por você. Por isso, você mesma deve expulsá-los. Esfregue bem o membro e procure, durante o tratamento, ser complacente com seu marido. Dentro de um mês, verá que Aya estará curado. — Não sabe que peso me tira das costas. Estou há várias noites sem dormir, tal era minha preocupação. Depois, como que voltando à realidade de seu singular estado, a senhora Hentawy reparou em Nemenhat. — Mas que distraída que sou — disse, enquanto arrumava o cabe- lo com as mãos. — Não sabia que tinha companhia. Finalmente resolveu ter um namorado? — continuou, com malícia. — É Nemenhat, o filho de Shepsenuré, o carpinteiro. Não é meu namorado. Apenas foi gentil ao me acompanhar e me ajudar com o cesto. — Pois é uma pena, porque é muito bonito. Eu não pensaria tanto, querida. Enfim, vou indo, Nubet. Não vejo a hora de começar o trata- mento o quanto antes. A Eneada inteira proteja você — finalizou, enquanto se dirigia para sua casa. % « 4 > — Todas as suas pacientes são assim? — perguntou Nemenhat, dando uma gargalhada. Nubet riu com ele, mas negava com a cabeça. — Felizmente não — disse, ainda rindo. — A senhora Hentawy é única. — Nem me fale. Mal sabe o marido o que o espera. Prometa que vai me contar como o tratamento acabou — disse de novo o jovem. — Espero que a velha fique ocupada por um bom tempo — res- pondeu Nubet, que, a duras penas, podia conter o riso. — Prometo contar tudo. A tarde, que caía definitivamente, os surpreendeu dando passagem às sombras que, vindas da noite, chegavam a Mênfis. As primeiras lan- ternas foram acesas para dar às ruas sua luz tênue. Ali, naquela penum- bra, os jovens se despediram, garantindo que não iam deixar passar mais dois anos até a próxima vez em que se veriam. Assim, Nemenhat insistiu em seu desejo de acompanhá-la da próxima vez em que fosse ao palmeiral em busca de plantas, e se comprometeu que arranjaria tem- po para isso. Ela concordou e, desejando-se boa-noite, despediram-se. Mas de novo obscuras idéias invadiram o coração de Nemenhat. Como que enviadas por influências malignas, chegaram ao jovem sem mais nem menos, para se apoderar dele e fazer com que sentisse de novo o desejo irreprimível de visitar a necrópole. O velho desejo de encontrar uma tumba intacta o consumia por completo. Tinha se dado conta disso naquela tarde quando, sentado no morro, nos limites do deserto, observara outra vez as ruínas dos velhos monumentos funerários de Saqqara. À noite, mal conseguiu conciliar o sono, pensando no fato de encontrar, por fim, um sepulcro intacto. Sua vida mudara, ou pelo menos ele achava isso, mas, ao sentir de novo aquela inexplicável atração dentro de si, deu-se conta de que ainda não havia rompido com seu passado. Necessitava procurar aque- la tumba, sem mais razão que a de fechar definitivamente a porta a todas aquelas maléficas idéias que tinham voltado a atormentá-lo. Jurou a si mesmo que estes pensamentos não voltariam a abalar seu ânimo, contaminando, assim, seu espírito. Iria pela última vez à sua procura, com o firme propósito de que, acontecesse o que acontecesse, seu coração ficaria fechado a tão diabólicos influxos com ferrolhos invisíveis que o selariam para sempre. Aproveitou um de seus poucos dias de folga para buscá-la. Ainda não havia amanhecido quando saiu de casa, montado em seu burro, envolvido pela mais absoluta escuridão. Os passos do animal soavam estranhamente abafados na terra que cobria a rua, enquanto as lanternas fracas, que lutavam para iluminá-la, criavam curiosos jogos de luzes impossíveis de definir. A cidade os engoliu por completo com claridade tão difusa, enquanto os observava curiosa, consciente dos interesses que os moviam. Ainda ia demorar para as pessoas acordarem para sua rotina diária. Por isso, abandonaram Mênfis sem cruzar com ninguém. Depois foram engolidos pela espessa vegetação que rodeava os palmeirais enquanto atravessaram por eles. A alvorada começava a se anunciar quando o burro pisou as primei- ras areias de Saqqara. Nemenhat desmontou, sentindo-as frias, sem dúvida por causa da noite do deserto. No entanto, a quietude que se respirava ali, como em tantas outras vezes, o encheu de satisfação. % » - P Já fazia tanto tempo que não andava naquelas paragens que aquele primeiro contato o fez lembrar com saudade das épocas passadas. Estivera pensando durante dias para onde ir. Anos atrás, havia per- corrido quase por completo a necrópole, restando, apenas, o setor meridional para explorar. Era o local mais afastado da cidade e também o mais solitário, onde muito pouca gente se aventurava. Era ali que seu pai havia encontrado a tumba dos sacerdotes de Ptha, e decidiu que era o lugar adequado. Reis e nobres da VI dinastia estavam enterrados ali; tempos distantes e propícios para que, com sua antigüidade, cobrissem os velhos monumentos com o manto do esquecimento. Os primeiros raios de sol incidiam sobre seu rosto quando chegou. Parou por um momento e observou como as trevas davam passagem à luz, e depois olhou com atenção a pirâmide em frente. Estava quase em ruínas, como tudo o que a rodeava, mas pelo jeito com que os restos de sua base ainda estavam de pé devia ter tido, em sua época, pelo menos cinqüenta metros de altura e devia ter sido bela. Não tinha a menor idéia de a que deus pertencia, mas fora poderoso, com certeza, a julgarpela quantidade de vestígios de outras constru- ções anexas que rodeavam a pirâmide. Não tinha nenhum interesse em entrar nela, convencido de que não encontraria nada que já não tivesse sido achado. Então, andou por ali, olhando com curiosidade tudo o que a rodeava. Ali tinham se erguido, no mínimo, mais três pequenas pirâmides, pertencentes a suas rainhas e a um templo funerário cujos escombros ainda se encontravam junto à face leste do monumento. Perto do tem- plo, foram descobertas as primeiras fieiras de pedras do que poderia ter sido outra pequena pirâmide anexa, a quarta, que Nemenhat desco- briu de imediato, como os restos do que, em outros tempos, constituiu sua pirâmide satélite. r4> Durante longo tempo, esteve perambulando entre as ruínas, total- mente distraído, até que a força do sol o fez reparar que a manhã avan- çava com rapidez. Se queria aproveitar o dia, devia abandonar aqueles escombros que pouco podiam lhe oferecer. Então, pegou de novo as rédeas de seu burro e deixou para trás aquela pirâmide que ele ignora- va ter pertencido a Pepi I. Bem em frente se encontrava a de Dyedkare-Izezi, um faraó que antecedeu Unas e que se fizera enterrar naquela zona, longe de seus familiares que governaram durante a V dinastia. Nemenhat olhou-a e pensou que não valia a pena perder tempo com ela examinando seus restos. Devia se concentrar em algum ponto onde as possibilidades de achar algo fossem maiores. Era absurdo acre- ditar que podia encontrar intacta a tumba de algum deus. Se havia um sepulcro por descobrir, este pertenceria a algum nobre ou sacerdote. Disso tinha certeza. Olhou ao redor e, à direita, um tanto afastada, viu a solitária silhue- ta da pirâmide de Merenra. Observou-a com atenção durante alguns instantes e decidiu ir em sua direção. Como as outras, esta também estava completamente destruída e sem nenhum sinal que pudesse interessar ao jovem. Ele ficou um momento agachado, examinando toda a região. Aquelas três pirâmides formavam um grande triângulo onde, estava convencido, deviam estar enterrados nobres que serviram àqueles faraós. Do outro lado, para oeste, a planície era quebrada por pequenas escarpas como as que tinha visto junto à via de procissão de Unas. Isso o fez pensar por um instante, lembrando-se das tumbas escavadas naquele tipo de rocha, as quais visitara tempos atrás. Dirigiu-se para o lugar, observando o te r reno com atenção. Somente parecia haver ali areia e mais areia. Mas não desanimou e se aproximou do leito rochoso, enquanto deixava que o burro vagabun- deasse livremente. Durante horas percorreu de cima a baixo o local, sem outro resul- tado que não fosse o mais absoluto fracasso. Os deuses não lhe eram favoráveis de novo, embora isso fosse natural. Sentou-se para descansar um pouco, encostando-se naquela pequena fralda rochosa, e fechou os olhos, resignado. Amaldiçoou-se por sua estupidez ao acreditar que encontrar uma tumba poderia ser tão simples como sair à sua procura. No entanto, seu instinto lhe dizia que ali existiam sepulcros ignorados e que talvez ele estivesse sentado sobre um. Estava absorto nessas reflexões, quando os zurros de seu burro vie- ram tirá-lo delas de repente. Abriu os olhos e viu o burro com as patas afundadas na areia, queixando-se. A primeira reação de Nemenhat foi de surpresa, ao ver o pobre bicho meio tragado pelas dunas, mas em seguida seu coração acelerou: compreendeu que o burro tinha caído num poço*. O jovem se precipitou para o burrinho e, após grandes esforços, con- seguiu tirá-lo dali. Depois, pegou a enxada que levava e começou a cavar. O poço não era muito profundo, apenas seis côvados e, ao termi- nar de escavá-lo, Nemenhat se deparou com uma porta com os selos intactos. * Embora pareça incomum, foi exatamente isso o que aconteceu nas imediações do Oásis de Behariya, lugar situado a cerca de trezentos quilômetros a sudoeste do Cairo, quando, em 1996, um burro se afundou na areia deixando à mostra quatro tumbas com 105 múmias, cujos féretros estavam cobertos de uma fina camada de ouro. O doutor Zahi Hawass foi encarregado de dirigir a missão que revelou seme- lhante descoberta. O jovem sentiu como a alegria tomava conta dele e como seu pulso se acelerava, incontrolável. Pôs a mão sobre o peito e notou o coração bater veloz como os carros do faraó. Não era possível tanta sorte. E a origem da descoberta tinha de ser nada menos que um burro. Deu uma pequena gargalhada ao pensar nisso, que soou estranha dentro daquele buraco. Depois prestou atenção de novo à porta. O sol se punha já fazia tempo quando Nemenhat a derrubou. Era o acesso a uma antiga mastaba tragada pela areia havia pelo menos mil anos. Velha, sem dúvida, como o resto dos monumentos que a rodeavam. Permaneceu um bom momento sentado no fundo do poço, espe- rando que o ar rarefeito que o tinha esbofeteado ao abrir a porta se renovasse. Depois entrou na tumba. Sentiu uma irrefreável euforia quando acendeu sua lamparina e pôde observar a magnitude de sua descoberta. Não tinha palavras para expressar a beleza indescritível daquele lugar surgido das entranhas da terra. Nem em seus melhores sonhos pudera imaginar encontrar uma tumba semelhante. Diante dele se abria um corredor em cujas paredes estavam repre- sentados os mais maravilhosos baixos-relevos multicoloridos que havia visto. Homens carregando animais como motivos de oferenda para o defunto; carregadores com seus cestos de frutas e alimentos, tudo rea- lizado com um realismo como o jovem nunca vira antes; gazelas, antí- lopes, aves... todos levados pelos servidores que, em interminável pro cissão, percorriam as paredes do corredor daquela mastaba. Próximo à entrada, Nemenhat viu uma passagem estreita que surgia à direita da galeria. Seguiu-a lentamente e, dali a pouco, estava numa sala. O jovem levantou sua lamparina com cuidado e olhou ao redor. Era uma peça ampla, sustentada por colunas, em que se encontra- va apinhado todo tipo de canastras contendo os restos do que um dia foram alimentos. Era como um grande depósito em que o morto encontraria sustento para o resto da eternidade. O jovem moveu o nariz ao captar o cheiro desagradável que havia ali e decidiu sair ao corredor principal para continuar seu caminho. Andou por ele admirando, extasiado, como uma fila de sacerdotes realizavam seus rituais de purificação diante do defunto, representado sobre um fundo azul acerado, de beleza inigualável. Dirigiu a lampari- na de um lado a outro e, por todas as partes, surgiam maravilhosas figu- ras lavradas sobre as velhas paredes. Aquele corredor era em si mesmo uma obra de arte. Continuou avançando, cativado por tudo que seus olhos viam, e paulatinamente seu coração começou a se impregnar de toda a magni- ficência que o rodeava. Uma inexplicável sensação de respeito, como nunca tinha experimentado, se apoderou dele, fazendo-o adotar uma atitude de recolhimento totalmente nova. Tudo era tão bonito que, em seguida, sentiu a infâmia que cometia por estar ali. Mas seus pés desli- zavam mecanicamente por aquele corredor que parecia não ter fim, submergindo-o no mundo do além, repleto de luz e harmonia. "Eu gostaria de ir para um lugar assim quando morrer", pensava, os olhos se deleitando com as mil e uma imagens carregadas de uma simbologia que revelava felicidade. Por fim, quase sem se dar conta, sua fraca lamparina iluminou uma nova porta no final daquele corredor. Dava acesso a outra câmara, na qual Nemenhat sentiu que se desvanecia. Milhares de reflexos cintilantes o assaltaram quando moveu sua lamparina naquela sala: lampejos douradoscuja pureza o fez conter a respiração por alguns instantes, tratando de assimilar tudo o que seus 0 4 - » # olhos viam. Ouro, ouro por todas as partes. Ouro em todas as formas imagináveis. A sala inteira estava repleta de ouro. Nemenhat passava uma vez depois da outra a luz tênue da lamparina, negando-se a acreditar no que via. Jóias, adornos, miçangas, utensílios do cotidiano... Até as bacias eram de ouro! Nunca tinha suspeitado que alguém pudesse ser capaz ae reunir tal quantidade do precioso metal. E, no entanto, ali estava. O proprietário daquela mastaba não se conformara em construir a mais bela das tumbas que um ser humano poderia imaginar. Não. Além disso, a tinha enchido com o brilho dos deuses. Nemenhat tentou abrir caminho entre aquele monte de objetos espalhados por toda a peça. Seus pés roçaram o metal frio, o que o levou de imediato a um estado de euforia, pois, até onde ele sabia, nunca antes ouvira que alguém tinha caminhado sobre ouro. Observou uma massa pétrea que se erguia difusa no centro da câmara. Aproximou-se com cautela, até comprovar que era feita de granito de Assuan. Era o sarcófago. Nemenhat avançou uma mão e a colocou sobre a superfície da tampa, acariciando-a com reverência. Era fria e ligeiramente rugosa, mas ao mesmo tempo dotada de vida própria, como se aquela pedra tivesse acumulado energia através dos séculos. Nemenhat compreen- deu imediatamente que não devia abrir o sarcófago. Suas mãos não podiam ir além daquelas suaves carícias. Deixaria tudo como estava, sem tocar em nada. Imagens de vertigem passaram por seu coração, enquanto exami- nava tudo: centenas de descobertas frustradas, junto com seu pai, que não lhes trouxeram nada além de mais miséria e, por fim, o golpe de sorte que mudou suas vidas. No entanto, agora que se encontrava no interior da tumba mais rica que poderia ter desejado, foi capaz de compreender que as circunstâncias tinham mudado por completo. Não precisava roubar nada dali para poder continuar subsistindo. Possuía bens suficientes para viver e, se saqueasse aquela mastaba, esta- va certo de que a mais terrível das desgraças cairia sobre ele. Se existia outro mundo governado pelos deuses, como se dizia, estava convencido de que estes o castigariam sem piedade, se cometesse aquele pecado. Tudo era tão perfeito ali que decidiu deixar exatamente como estava. Retrocedeu, respeitoso, até sair de novo para o corredor, disposto a abandonar a tumba, quando reparou em outra sala nova que se abria à esquerda. Encaminhou-se para ela mais por curiosidade que por qualquer outro motivo, pois estava disposto a ir embora com aquele segredo guardado em seu coração para sempre. Entrou naquela câmara e, outra vez, infinitas representações de um mundo feliz e perfeito irromperam, esmagando-o por completo. Era uma peça de dimensões regulares, construída para servir de capela destinada ao defunto. Todos os belos afrescos e baixos-relevos das paredes assim o indicavam, e Nemenhat percebeu de imediato o mis- ticismo da atmosfera que o rodeava. Avançou por ela até chegar ao fundo, onde a falsa porta, a mais magnífica que já vira, lhe impedia a passagem. Era gravada em tons ocres e amarelos, com uma elegância e tal perfeição que nada tinham a invejar aos hieróglifos que vira nas paredes do faraó Unas. Ficou extasiado com eles, enquanto passava sua lamparina, uma vez depois da outra, para observá-los em toda sua bele- za. E de novo perdeu a hora. Caiu em si ao notar que respirava com dificuldade. Foi uma sensa- ção que o invadiu devagar, até torná-lo consciente do que acontecia. Afastou-se imediatamente da porta que dava acesso à alma desde a eternidade, e voltou sobre seus passos, disposto a ir embora. Nesse momento, viu a figura negra do deus Anúbis deixada junto à porta. Estranhou não ter reparado nela ao entrar, mas agora, ao vê-la, sua imagem o surpreendeu. Ali estava o deus guardião da tumba, obser- vando-o com seus olhos inexpressivos, disposto a amaldiçoá-lo até o fim dos tempos. Nemenhat se aproximou, contemplando-o por um momento. Parecia ausente, como se seu lugar naquela mastaba fosse meramente cerimonial. Junto a suas patas dianteiras, Nemenhat observou algo que lhe chamou a atenção. Aproximou a lamparina com cuidado e viu um pequeno escaravelho, que, de imediato, o subjugou. O jovem o pegou e o examinou com cuidado. Era de coralina e tinha a parte posterior repleta de pequenos hieróglifos tão perfeitos como os que contempla- ra antes. Pareceu-lhe extraordinário, e sentiu subitamente a tentação de ficar com ele, pois era bem pequeno e não possuía incrustação de metal precioso algum. "Será a última lembrança que conservo de minha descoberta", pensou, convencido de que não causaria nenhum mal com isso. Levantou-se de novo e voltou a sentir como sua respiração se tor- nava difícil. O ar ali dentro parecia estranhamente sutil, contaminado por séculos de quietude. Mas em seguida lembrou o que tantas vezes tinha ouvido seu avô dizer. — Se alguma vez encontrar uma tumba intacta, vai ver que o ar que se inala dentro é particularmente etéreo, e que será difícil respirar. Não se preocupe com isso, pois não é o ar que chega a seus pulmões, mas "a respiração de Anúbis". Nemenhat sentiu um calafrio ao lembrar as palavras de seu avô Sekemut e, em seguida, achou que percebia a respiração do deus guar- dião da tumba. Anúbis o lembrava que sua presença talvez não fosse ilusória. % ^ < p Nemenhat apertou com força o escaravelho na mão e foi apressado para o corredor que o levaria de novo à saída. Percorreu-o olhando fi- xamente para a saída, sem reparar nas figuras que tanto admirou antes. Quando, por fim, chegou ao final, ainda foi capaz de sentir o tênue sopro do ar que parecia persegui-lo desde o interior, "a respiração de Anúbis". Escurecia quando saiu do poço com um torvelinho de emoções em seu interior. Fora, o burrinho o esperava, manso, quase no mesmo lugar onde o deixara. Nemenhat observou-o por um instante, pensan- do na incrível descoberta que o animal havia lhe proporcionado. Depois, pegou de novo sua enxada e se apressou a cobrir o poço com a areia que o tinha sepultado durante séculos. Quando terminou, nin- guém seria capaz de dizer que naquele lugar se encontrava sepultada uma mastaba. Ali ficaria seu segredo, enterrado nas profundezas de Saqqara. Nunca mais voltaria àquele lugar. Pelo menos era isso que achava. Shemu, a estação da colheita, encheu o país das Duas Terras com seu espírito festivo, ao mesmo tempo que cobriu de esforçados campo- neses todos os campos do Egito. Lavradores, peões, capatazes, escribas, inspetores, animais de carga... Todas as terras férteis eram um ferve- douro de pessoas que se atarefavam em colher o fruto que aquela terra, bendita pelas águas do divino Hapy, oferecia-lhes. Nubet gostava dessa estação como de nenhuma outra, pois, a seu ver, era a culminação de todo um ciclo que os deuses lhes haviam pro- porcionado com generosidade. Respirava segurando o ar nos pulmões, desfrutando aquela atmos- fera carregada dos aromas de sua terra. Para ela, não havia nada igual. o% » - p Naquele ano, a colheita seria magnífica; uma notícia insuperável para seu povo, acostumado a ter que padecer, de vez em quando, pro- vações terríveis. Mas agora haveria trigo suficiente para encher os silos e abastecer o povo em caso de necessidade nos anos seguintes. A jovem havia se encontrando com Nemenhat em várias ocasiões, tendo a oportunidade de conhecê-lo um pouco melhor. Sentia que uma esperança havia nascido em seu peito, uma esperança que a deixa- va jovial e felizcomo nunca antes. Uma esperança que pela primeira vez a enchia de emoções não provadas, e que, a duras penas, podia con- trolar. Seria aquilo o que todas as moças de seu bairro lhe asseguravam sentir por seus namorados? Nubet só sabia que tinha prazer em estar com ele, ouvindo seus pontos de vista sobre as coisas, tão diferente dos seus em muitos aspec- tos, ou simplesmente caminhando em silêncio, sentindo sua presença a seu lado. Aquele misterioso magnetismo, que sempre notara nele, havia se multiplicado com os anos, ao ponto de ter se tornado um traço evidente de sua personalidade. Gostava de seu jeito tranqüilo e da sensatez com que tratava qual- quer assunto. Sempre amável e respeitoso, mas ao mesmo tempo firme e decidido, acostumado a pensar nas palavras antes de dizê-las e, por outro lado, disposto a brincar a todo momento. E havia ainda aquele porte tão varonil, seus lábios sensuais, seu belo sorriso, seu olhar sere- no que se tornava malicioso tantas vezes, seus olhos que se tornavam de um verde cativante quando a luz incidia sobre eles, seus cabelos negros sempre curtos, como se usava durante o Antigo Império... Achava-o tão bonito! Nemenhat cumpriu sua promessa de acompanhar a jovem em seus passeios pelo vale frondoso. Usava seu dia livre na semana, o décimo, e sempre que o trabalho lhe permitia aproveitava para visitá-la. Ao con- trário de Nubet, ele sabia perfeitamente o que sentia, a irresistível atra- ção que a jovem havia despertado nele e que o fazia passar as noites pensando nela. Era tão bonita que, às vezes, surpreendia a si mesmo embasbacado, absorto em sua lembrança, coisa que o incomodava muito. No entanto, havia outras coisas que o jovem considerava e que lhe parecia que poderiam ser um obstáculo em sua relação. Primeiro, a própria Nubet, claro, pois Nemenhat não esquecia o fato de que a jovem fora educada de maneira muito diferente da sua. Seus conceitos sobre a vida e a sociedade egípcia nada tinham a ver com os de Nubet, enchendo-o de dúvidas quanto a como seria uma convivência entre ambos. Além disso, ela era uma pessoa muito apegada à sua terra, e ele o era cada vez menos. Mesmo isso sendo algo a considerar, não teria sido um impedimento sério se, além do mais, ela não fosse filha de Seneb. Nemenhat dizia o que sentia ao garantir a bondade do embalsa- mador, e esse carinho e respeito que tinha por ele sem dúvida era um freio para dar o passo definitivo. Por fim, havia o passado, sórdido e desprezível para qualquer egípcio honesto; e Seneb e sua filha o eram. Às vezes, imaginava a cara que ambos fariam se soubessem a que ele e seu pai tinham se dedicado durante anos. Estava certo de que os des- prezariam para sempre. E, claro, depois vinha o mais importante, que era Nubet sentir o mesmo que ele. Tudo isso Nemenhat pensava com os olhos cravados no teto de seu quarto, dando voltas e mais voltas ao assunto e procurando uma solu- ção que achava difícil, na qual havia implícito um jogo cujas conse- qüências eram impossíveis de avaliar. Quando parecia que o problema era insolúvel, acendia uma luz em seu interior e lembrava uma das máximas populares que o sábio Ptahotep escreveu um milênio atrás: "Em caso de dúvida, siga seu coração". o % » E seu coração o levava de novo para Nubet, seus olhos, seu olhar, seu sorriso... Num dia, combinaram de visitar a chapada de Gizé. Ficava um pouco distante, mas, ao saber que Nemenhat não a conhecia, Nubet insistiu em ir. Saíram muito cedo, montados no burr inho. Começava o mês Epep* (maio-junho), quando os dias são bonitos e longos e os deuses convidam a desfrutá-los. A estrada até Gizé serpenteava entre as matas de palmeiras, atravessando magníficos campos com suas plantações a ponto de serem colhidas. Uma festa para a vista, sem dúvida, e uma prova evidente de que aquela terra se encontrava sob a proteção divina. Cruzaram pontes sobre os pequenos canais que, afastados do pai Nilo, cobriam a região, fertilizando a terra em sua passagem, para depois se unir de novo a ele como filho amantíssimo, próximo de Heliópolis. Ambos os jovens avançavam em silêncio. Nemenhat caminhava segu- rando as rédeas do burrinho em que Nubet ia montada, desfrutando a beleza que todas aquelas paragens lhe proporcionavam. Nunca tinha se aventurado tão ao norte, e se surpreendeu com o viço dos extensos cana- viais repletos de papiros que cresciam às margens dos riachos. — Não é por nada que são o símbolo do Baixo Egito — disse Nubet, como resposta a um comentário do jovem. Essas plantações de papiro, por outro lado, os acompanharam até o desvio de um novo caminho que os levaria até Gizé. Era uma encru- zilhada que existia desde o Antigo Império, de onde surgiam duas estradas. Uma, à direita, que levava para a velha Heliópolis, e outra, à esquerda, que entrava no deserto e conduzia à necrópole de Gizé. * O terceiro da estação de Shemu. Q $ se "De novo o contraste", pensava Nemenhat, enquanto afundava os pés num terreno desnivelado que mal se podia chamar de estrada. Fecundidade, esterilidade; deserto, éden; abundante, ermo. Assim era seu país, capaz de transformar, em poucos metros, a maior das exu- berâncias em extrema aridez, tão ambivalente como, às vezes, somos nós, os humanos. Após um bom trecho, a estrada abandonada chegou aos promon- tórios por onde ziguezagueou, tornando-se cada vez mais reta. Os últimos barrancos deram lugar a uma planície que se perdia na distância. Ofegando pelo esforço de puxar o burro com a sua bela carga pela encosta, Nemenhat de repente topou com o inesperado. Até perdeu o fôlego diante de tal grandiosidade. Às vezes, tinha-nas visto ao longe, de Saqqara, brilhando sob os raios do sol como gemas surgidas do deserto. Havia escutado muitas histórias sobre elas, lendas de todo tipo que, sem dúvida, alimentaram sua vontade de conhecê-las. Agora, ao estar diante delas pela primeira vez, não pôde evitar um sentimento de insignificância, pois a magnitude daqueles monumentos lhe pareceu demolidora. O sol quase alcançara o zênite e projetava seus raios sobre a cama- da branca de pedra calcária de Tura que cobria a pirâmide, fazendo-a refulgir. — Custa resistir diante de tanta magnificência — ouviu que Nubet dizia atrás dele. — Como o homem conseguiu fazer algo assim?! — murmurou o jovem, com voz baixa. — Parece, antes, obra de seres portentosos, não é mesmo? Nemenhat moveu a cabeça afirmativamente, sem dizer nada. % » — Pois garanto a você que foram mãos como as suas que as cons- truíram. Mas não acho que haja nada igual sobre a terra. Nemenhat permaneceu mudo alguns instantes, diante daquelas palavras. Certamente, Nubet tinha razão ao dizer que não havia nada comparável na terra, pois construir algo assim parecia não estar ao alcance dos mortais. — Nada mal para um panteão familiar — disse o jovem, por fim. — Uma necrópole real apenas para três reis. Incrível, não é mesmo? — Pelo que sei, só três gerações estão aqui: Quéops, seu filho Quéfren e seu neto Miquerinos. — Sim, mas poderia ter pelo menos mais um, pois Quéops foi sucedido por seu filho Dyedefre. — Sério? — Sim, era meio-irmão de Quéfren e muito devoto do culto heliopolitano a Rá. Foi o primeiro a se batizar como filho de Rá, e construiu sua pirâmide muito perto da cidade, em Abu Rawas. Morreu muito jovem e seu meio-irmão o sucedeu. Meu pai diz que, entre os dois irmãos, houve grandes diferenças, certamente devido a disputas pela sucessão. — Então apenas três reis foram enterrados aqui? — Sim, três reis e uma infinidade de rainhas, príncipes e prince- sas. Até os operários