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2018 - 05 - 08 A ética dos precedentes - Ed. 2016 PRIMEIRAS PÁGINAS © desta edição [2016] 2018 - 05 - 08 © desta edição [2016] A ética dos precedentes - Ed. 2016 SOBRE O AUTOR LUIZ GUILHERME MARINONI Professor Titular de Direito Processual Civil da UFPR. Pós-Doutorado na Universidade Estatal de Milão. Visiting Scholar na Columbia University. Autor de vários livros publicados no Brasil e quinze no exterior (América e Europa). Diretor da Revista Iberoamericanade Derecho Procesal e da Revista de Processo Comparado. Professor Visitante na Universidade de Florença, na Universidade de Gênova, na Universidade de Pavia, na Universidade do Litoral (Argentina), na PUC de Valparaíso (Chile), na PUC do Peru, entre outras. Recebeu o prêmio Jabuti em 2009 e já foi indicado ao mesmo prêmio por outros dois livros. Vice-Presidente da Associação Brasileira de Direito Processual Constitucional. Membro da Diretoria Executiva do Instituto Iberoamericano de Derecho Procesal. Membrodo “Council” da International Association of Procedural Law. Consultor Internacional do Projeto “Principles of Transnational Civil Procedure” (American Law Institute e UNIDROIT). Ex-Presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, Subseção de Curitiba. Ex-Procurador da República. Advogado e parecerista, com intensa atuação nos Tribunais e Cortes Supremas. 2018 - 05 - 08 © desta edição [2016] A ética dos precedentes - Ed. 2016 AGRADECIMENTOS AGRADECIMENTOS Após as reformas implementadas no currículo de minha Universidade, tive a oportunidade de conferir a uma disciplina do Curso de Graduação um conteúdo voltado ao estudo das relações entre "direito processual e cultura". Muito recentemente e com grande proveito, essa disciplina teve como objeto o estudo da influência da religião sobre o direito processual. A partir daí o livro brotou. Esse livro, além de contar com aportes de sociologia do direito, exigiu compreensão de ordem teológica. Sou grato à inteligência e à generosidade do Dr. Rogério Kampa pelos diálogos esclarecedores que inspiraram o desenvolvimento do texto. A Ricardo Alexandre da Silva agradeço pela discussão da obra de Max Weber e pelas suas preciosas sugestões para o aperfeiçoamento da argumentação. Também agradeço a Paula Pessoa pela sua colaboração nas aulas da disciplina de "Processo e cultura" e na discussão do tema. Agradeço, ainda, a Daniel Mitidiero pela análise do texto, e a Juliana Fonseca pelos artigos enviados da Yale Law School. 2018 - 05 - 08 A ética dos precedentes - Ed. 2016 INTRODUÇÃO INTRODUÇÃO Há algum tempo me incomodava a variação das decisões, muitas vezes de um mesmo colegiado, acerca de uma mesma questão de direito. Como sempre me preocupei com o senso comum a respeito do funcionamento da "justiça", ficava sobremaneira inquieto ao ouvir alunos e outras pessoas indignados com o fato de a tutela de um direito ser conferida a um e não a outro sujeito em situações idênticas. Como esse panorama, embora anacrônico, mantinha-se no cotidiano da prática forense há muito tempo, era difícil reagir em termos teóricos, já que a doutrina e os tribunais enxergavam o fenômeno como algo absolutamente normal, como uma decorrência inevitável do nosso sistema. Animei-me, então, ao estudo comparatístico e rumei na qualidade de Visiting Scholar aos Estados Unidos, onde permaneci por algum tempo na Columbia University. Foi fácil perceber que os costumeiros e mitificados argumentos contrários aos "precedentes obrigatórios", especialmente os de que esses, além de obstaculizarem a evolução do direito, seriam cabíveis apenas nos sistemas de menor conteúdo legislado ou naqueles em que o direito é criado pelos juízes, eram claramente improcedentes, estando a sua razão de ser na necessidade de se conferir estabilidade às decisões judiciais. Evita-se, dessa forma, a negação da previsibilidade e da igualdade, sendo sempre possível, exatamente para o desenvolvimento do direito, operar mediante as técnicas do distinguishing e do overruling. Nessa perspectiva, enfatizando que os precedentes obrigatórios podem satisfazer necessidades não só do common law, mas também do civil law, e analisando as técnicas de operação com precedentes à luz do direito brasileiro, escrevi o livro Precedentes obrigatórios.1 Mais recentemente, preocupado em evidenciar que os precedentes obrigatórios, no direito brasileiro, devem ser fixados pelas Cortes Supremas, escrevi O STJ enquanto Corte de Precedentes,2 em que demonstrei que a função das Cortes Supremas, diante do impacto do constitucionalismo e da evolução da teoria da interpretação, é atribuir sentido ao direito e contribuir para a sua evolução mediante decisões que não podem deixar de ter força obrigatória, na medida em que são autônomas em relação aos textos legal e constitucional, agregando algo de novo à ordem jurídica. Restei absolutamente convencido, diante de tudo isso, que estava demonstrada a razão para o nosso sistema não poder prescindir dos precedentes obrigatórios, assim como esclarecidas as questões que viabilizariam a operação com precedentes em prol do desenvolvimento do direito. Não obstante, intrigou-me a circunstância de alguns fingirem não enxergar a minha proposta. Foi quando percebi que o problema não estava mais em demonstrar, em termos teóricos, que o stare decisis não se confunde com o common law ou não pode ser privilégio de um direito não legislado, bem como que o civil law, em virtude da transformação do conceito de direito e da evolução da teoria da interpretação, não pode continuar atribuindo às suas Cortes Supremas a função de tutela do legislador. Surgira o momento de discutir os motivos pelos quais, apesar da evolução do nosso direito, muitos convivem com naturalidade com um direito incoerente e com um sistema despido de racionalidade, incapazes de propiciar a previsibilidade, a igualdade e a liberdade. Essa nova perspectiva deixa de lado questões já superadas pelos dois primeiros livros - vinculadas a como o sistema deve ser -, pois está atenta especialmente à cultura, tentando relacionar, em termos sociológicos, aspectos culturais com a vocação para a irracionalidade, a falta de previsibilidade e a indiferença diante da desigualdade perante o direito. O presente livro, invocando a ideia weberiana de direito racional e considerando a célebre obra A ética protestante e o "espírito" do capitalismo - de Weber3 -, busca demonstrar que a racionalidade jurídica formal, própria ao direito continental europeu do final do século XIX e início do século XX, tem um nítido componente da "ética protestante", mais claramente dos valores calvinistas - que, como é sabido, também estiveram presentes na Revolução Inglesa de 1688 (a Revolução Gloriosa) e, logo depois, à base da criação da Constituição dos Estados Unidos.4 Os valores religiosos que determinaram o modo de vida do protestante, que propiciou o desenvolvimento do capitalismo, exigiram um direito racional e previsível, expresso na abrangência e na clareza organizacional peculiares ao positivismo científico ou ao conceitualismo alemão do início do século XX.5 O common law inglês, visto por Weber como um direito destituído de racionalidade formal fundamentalmente por não permitir a generalização e a abrangência, converteu-se num direito previsível mediante o stare decisis, o que serve para evidenciar não apenas que esse não se confunde com o common law, mas especialmente para esclarecer que os "precedentes obrigatórios" se tornam necessários na medida em que o direito se afasta da calculabilidade. A transformação do civil law em virtude do impacto do constitucionalismo, do emprego cada vez mais difundido das cláusulas gerais e da evolução da teoria da interpretação eliminaram as pretensões do positivismo logicista e, por consequência, a previsibilidade que mediante ele seria alcançável. Porém, se o direito cogitado por Weber deixou de existire o novo direito passou a depender em boa medida da subjetividade do julgador, isso não quer dizer que a sociedade poderia restar desamparada ou destituída das garantias da previsibilidade e da igualdade, como se o novo perfil do direito de civil law não pudesse se compatibilizar com uma ordem jurídica coerente e com a distribuição racional da justiça. Considera-se, ainda, o impacto dos valores do catolicismo tridentino sobre a colonização do Brasil e, especialmente, o conceito weberiano de patrimonialismo sob a ótica de Sérgio Buarque de Holanda, demonstrando-se o seu significado na relação do brasileiro com a Administração Pública. O patriarcalismo e o patrimonialismo, traços particulares da formação da nossa cultura, deram origem ao conceito buarqueano de "homem cordial",6 o sujeito que, acostumado ao ambiente íntimo e de troca de favores da família, transforma o espaço público em privado e, exatamente por não poder suportar a impessoalidade e a racionalidade, também vê a lei como algo que deve ser contornado mediante o auxílio do "funcionário patrimonial",7 isto é, do funcionário que está na Administração Pública ou da justiça apenas para dela se beneficiar. Note-se, desde logo, que não é difícil estabelecer uma ligação bastante clara entre uma cultura que sustenta, sem qualquer constrangimento, a possibilidade de o homem resistir à lei que o prejudica mediante o uso das suas relações e um sistema que ecoa a falta de unidade na solução de casos iguais, vendo o tratamento diferenciado das pessoas como algo natural. De modo que a ausência de reação a um sistema judicial que nega a igualdade e a previsibilidade pode revelar um interesse de várias posições sociais, inclusive de grupos de juízes e de parcela dos advogados. O personalismo, outra característica da nossa formação cultural, constituiu-se num obstáculo para a coesão social a ponto de poder ser apontado como uma causa da conhecida tibieza das nossas instituições. A falta de visão institucional de alguns juízes tem atrás de si a exaltação da autonomia e do individualismo, ainda que mascaradas de "liberdade para julgar" e de "submissão exclusiva à lei". Também não é impossível perceber, desde aqui, que um juiz que não tem qualquer comprometimento com objetivos gerais não pode compreender que a jurisdição depende de várias funções, uma das quais a de atribuir sentido ao direito mediante precedentes obrigatórios. Ao final, busca-se demonstrar a fundamentalidade dos precedentes para a unidade e o desenvolvimento do direito, a clareza e a generalidade, a promoção da igualdade, o fortalecimento institucional, a limitação do poder do Estado, a previsibilidade, a racionalidade econômica, o respeito ao direito e o incremento da responsabilidade pessoal. A justificativa, ou melhor, a eticização dos precedentes, além de estar relacionada a todos estes fatores, implica ver que o respeito aos precedentes é uma maneira de preservar valores indispensáveis ao Estado de Direito, assim como de viabilizar um modo de viver em que o direito assume a sua devida dignidade, na medida em que, além de ser aplicado de modo igualitário, pode determinar condutas e gerar um modo de vida marcado pela responsabilidade pessoal. Para se ter uma vida pautada no direito - uma ética pessoal de respeito ao direito independentemente das consequências da sua inobservância -, assim como para que o direito tenha força para regulá-la, é indispensável a unidade do direito e, portanto, que as Cortes Supremas funcionem como Cortes de Precedentes, com o que também será possível estimular um ética baseada na responsabilidade pessoal. FOOTNOTES 1 . Luiz Guilherme Marinoni, Precedentes obrigatórios, 3. ed., São Paulo: Ed. RT, 2013 [2010]. 2 . Luiz Guilherme Marinoni, O STJ enquanto Corte de precedentes, 2. ed., São Paulo: Ed. RT, 2014 [2013]. 3 . Max Weber, A ética protestante e o "espírito" do capitalismo (edição de Antônio Flávio Pierucci), São Paulo: Companhia das Letras, 2004. © desta edição [2016] 4 . Sanford Levinson, Constitutional Faith, Princeton: Princeton University Press, 1988; Gordon S. Wood, The Creation of the American Republic: 1776 -1787, North Carolina: The University of North Carolina Press, 1998; Fernando Rey Martínez, La éticaprotestante y el espíritu del constitucionalismo, Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 2003. 5 . Max Weber, Economia e sociedade, Brasília: UnB, 2004, vol. 2, p. 1-153; Max Weber, Essais de sociologie des religions, Paris: Gallimard, 1996. 6 . Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil, São Paulo: Companhia das Letras, 1995 [1936]; Sérgio Buarque de Holanda, O homem cordial, São Paulo: Companhia das Letras e Penguin Group, 2012. 7 . A categoria "funcionário patrimonial", devida a Max Weber, é utilizada por Sérgio Buarque de Holanda: "para o funcionário 'patrimonial', a própria gestão política apresenta-se como assunto de seu interesse particular; as funções, os empregos e os benefícios que deles aufere relacionam-se a direitos pessoais do funcionário e não a interesses objetivos, como sucede no verdadeiro Estado burocrático, em que prevalecem a especialização das funções e o esforço para se assegurarem garantias jurídicas aos cidadãos (Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil cit., p. 146). 2018 - 05 - 08 A ética dos precedentes - Ed. 2016 I. PROTESTANTISMO, CAPITALISMO, RACIONALIDADE DO DIREITO E PREVISIBILIDADE EM WEBER. ENTRE O COMMON LAW E O CIVIL LAW DO FIM DO SÉCULO XIX I. PROTESTANTISMO, CAPITALISMO, RACIONALIDADE DO DIREITO E PREVISIBILIDADE EM WEBER. ENTRE O COMMON LAW E O CIVIL LAW DO FIM DO SÉCULO XIX 1. Protestantismo, ascese intramundana, racionalidade e capitalismo Weber, entre 1904 e 1905, publica as duas partes da primeira versão do clássico A ética protestante e o "espírito" do capitalismo. Essa primeira versão é, por assim dizer, "complementada" em 1920 - pouco antes da sua morte -, quando são incorporadas à obra importantes acréscimos e robustas notas, destinados especialmente a esclarecê-la e a responder críticas.1 O propósito de Weber é demonstrar que o modo de vida das pessoas de religião protestante, entre as quais situa os calvinistas, os luteranos, os metodistas, os menonistas e os quakers, contribuiu para o desenvolvimento do capitalismo. Inicialmente o livro faz uma relação entre progresso econômico e populações de religião protestante, demonstrando existir um nítido vínculo entre as orientações religiosas protestante e católica, a escolha da profissão e o subsequente destino profissional.2 Relata-se que os católicos tinham maior interesse pelos Gymnasien humanísticos, enquanto os protestantes preferiam os estabelecimentos especialmente destinados a preparar para as profissões comerciais e industriais, ou seja, para a vida de negócios, fenômeno que não poderia ser explicado pela diferença de fortunas, mas que explicaria o reduzido interesse dos católicos pela aquisição capitalista. No segundo Capítulo da Parte I Weber faz referência ao que chama de "espírito" do capitalismo. Alude a um texto de Benjamin Franklin de que se extrai a ideia de "profissão como dever" e de "ganho de dinheiro" como resultado e expressão da habilidade na profissão. As máximas de Franklin, ao recomendarem o trabalho árduo e sistemático, aliadas à austeridade, sintetizariam o "espírito do capitalismo". Trata-se, segundo Weber, de uma "ética" cuja violação representa o descumprimento de um dever.3 É nesse contexto cultural que surge a ideia, atualmente trivial, de "profissão como dever", elemento constitutivo do capitalismo.4 O terceiro Capítulo refere-se ao conceito de vocação em Lutero. Trata-se de um conceito relacionado à ideia de trabalho como missão dada por Deus, presente nas expressões Beruf e calling. Pretende-se evidenciar que os protestantes, ao contrário dos católicos, rejeitaram a ascese monástica (vista como ascese extramundana)como meio de salvação, vendo no estrito cumprimento dos deveres intramundanos o único meio de viver que agrada a Deus.5 A glorificação a Deus, segundo o protestantismo, deveria ocorrer nas práticas cotidianas, não na reclusão de uma vida monástica. O dever de bem exercer a profissão, assim, seria um dos efeitos da Reforma. Daí a ideia de "vocação profissional" em Lutero e, mais precisamente, a relação entre um modo de viver influenciado pelo protestantismo - em especial pelo calvinismo - e o "espírito" do capitalismo.6 Na Parte II, Weber trata, no primeiro Capítulo, dos "fundamentos religiosos da ascese intramundana". Ou seja, dos valores da religião protestante que teriam conduzido à ideia de que a devoção a Deus deve ser demonstrada mediante práticas e condutas que fazem parte do cotidiano, como a busca de perfeição no exercício da profissão. A ascese intramundana parte da premissa de que o trabalho é um dever religioso que deve ser exercido com rigorosa disciplina, caracterizando-se como o meio ideal para o cristão cumprir, no "interior do mundo", o desejo de Deus. É nesse sentido que Weber fala de "protestantismo ascético" e, com cautela, considera os conteúdos dos valores primordiais do calvinismo, do pietismo, do metodismo e dos movimentos anabatistas para evidenciar e caracterizar os fundamentos religiosos da ascese intramundana. Assim, Weber adverte, ao se referir ao calvinismo, que a doutrina da predestinação - nenhum ato praticado pelo homem pode influir sobre a salvação, estando todos os homens já condenados ou eleitos mediante decreto divino - é um fundamento dogmático da moralidade puritana no sentido de uma conduta de vida ética metodicamente racionalizada. Weber demonstra que o calvinismo rejeitou os meios sacramentais de salvação característicos ao catolicismo, especialmente a salvação por meio de obras ou mesmo pela confissão, centrando-se na preocupação com a conduta intramundana, especificamente com o trabalho profissional, meio de ação que daria ao calvinista a comprovação da sua eleição.7 A preocupação com a correção da conduta e com o adequado exercício das tarefas do cotidiano, necessária para o calvinista comprovar a sua salvação, estimulou o controle metódico na condução da vida. De acordo com Weber, essa racionalização da conduta de vida no mundo, mas de olho no "outro mundo" é o resultado da concepção de profissão do protestantismo ascético.8 No último Capítulo, Weber relaciona a ascese proveniente do protestantismo com o "espírito" do capitalismo. Demonstra que a compreensão do trabalho como dever religioso, como meio de comprovação da fé e da própria eleição, teria sido uma poderosa alavanca para uma vida marcada pelo "espírito" capitalista. Esse trabalho sistemático e continuado, de que naturalmente surgem ganhos, colaborou com o desenvolvimento do capitalismo precisamente por significar uma maneira adequada de se glorificar a Deus dentro do mundo. O lucro seria o resultado de uma conduta de vida sistemática, inclusive no trabalho, constituindo uma forma adequada de louvor a Deus. Mas a ascese protestante não só rompeu as amarras que inibiam o lucro, como ainda condenou o gozo descontraído das posses, estrangulando o consumo frívolo, especialmente o consumo de luxo, daí resultando, no dizer de Weber, acumulação decapital mediante coerção ascética à poupança.9 A relação entre a ascese, derivada especialmente do calvinismo, com o "espírito" do capitalismo, passa pela racionalização da conduta humana. A ascese intramundana ou o exercício do trabalho como dever religioso não só é claramente ligado à racionalização do controle da condução da vida, como constitui uma forma racional de ver a salvação, na medida em que essa, para os adeptos da doutrina da predestinação, jamais poderia depender de meios mágicos ou sacramentais - como as obras -, mas apenas demandar comprovação mediante o controle racional do desempenho profissional ou dos atos da vida intramundana. O repúdio aos sacramentos, vistos como magia, e a concepção de que apenas a perseverança em uma conduta orientada à glorificação de Deus ou à busca de sinais da eleição teria significado, levou Weber, na segunda versão do A ética protestante e o "espírito" do capitalismo, a aludir a "desencantamento do mundo". Refere-se Weber a um processo histórico de desmagificação da salvação e, assim, de racionalização da vida no ocidente.10 Como explica a abordagem de Pierucci, "desencantamento-desmagificação" e "eticização-moralização" são dois lados de uma mesma moeda ou duas faces de um mesmo processo histórico-religioso que definitivamente caracteriza a direção seguida pela racionalização social e cultural do Ocidente, que conforma seu caráter específico de racionalização vivida como trabalho racional.11 O desencantamento do mundo ou a desmagificação da salvação relacionam-se com a ascese intramundana e com o exercício do trabalho impregnados pelos valores do protestantismo, que conduziram a uma forma de vida racional e orientada a fins. Trata-se de uma forma peculiar de racionalização, advinda de valores religiosos. Portanto, é certo que não se pode pensar em desencantamento como (sinônimo de) racionalização, como se essa última não pudesse ter outras origens ou intensidades ou, enfim, como se a racionalização operada pelo desencantamento do mundo não fosse uma particular racionalização do modo de vida ocorrida em virtude de um específico motivo. Isso porque o processo da racionalização, conforme assinala Weber, ocorre de forma distinta em diferentes esferas da vida social. Como é sabido, o conteúdo do calvinismo é fortemente marcado pela doutrina da predestinação, tal como posta na Confissão de Westminster, de 1647, em que está consignado que, "por decreto de Deus, para a manifestação de Sua glória, alguns homens são predestinados (predestinated) à vida eterna e outros preordenados (foreordained) à morte eterna" (Capítulo III, n. 3). E ainda: "Aqueles do gênero humano que estão predestinados à vida, Deus, antes de lançar o fundamento do mundo, de acordo com o Seu desígnio eterno e imutável, Sua secreta deliberação e o bel-prazer de Sua vontade, escolheu-os em Cristo para Sua eterna glória, por livre graça e por amor, sem qualquer previsão de fé ou de boas obras, ou de perseverança numa e noutras, ou qualquer outra coisa na criatura, como condições ou causas que O movessem a tanto, e tudo em louvor da Sua gloriosa graça" (Capítulo III, n. 5). O calvinista, por aceitar a doutrina de que determinados homens foram eleitos ou salvos antes de a humanidade vir ao mundo, não podia buscar a salvação em sua vida, seja por meio de obras ou sacramentos, mas apenas tentar encontrar a comprovação de que havia sido eleito por Deus.12 Weber questiona como foi possível suportar essa doutrina em uma época em que o "outro mundo" era mais importante e, em diversos aspectos, também mais seguro do que os interesses da vida nesse mundo.13 Uma vez que a incerteza da eleição gerava extrema angústia, Weber adverte que o trabalho profissional sem descanso foi distinguido como o meio mais saliente para se conseguir a autoconfiança na eleição, visto como a única forma de dissipar a dúvida religiosa e dar a certeza do estado de graça. Como o trabalho sistemático auxilia na comprovação da eleição, é natural que daí surja um forte acento sobre a responsabilidade pessoal. O calvinista, exatamente porque sente o peso do "dever da profissão", não pode deixar de cumprir as obrigações inerentes a ela. Não há apenas dever de bem cumprir a "missão profissional", mas também dever de cumprimento das obrigações derivadas do exercício da profissão. Descurar do rigoroso e contínuo exercício da profissão, mas também deixar de pagar uma dívida, tudo isso é indício de ausência de eleição. O exercício da profissão e o cumprimento das obrigações como dever religioso geram ao calvinista um extremo rigor consigo mesmo, isto é, uma rigorosa e contínuainspeção da sua conduta profissional e pessoal. A comprovação da eleição, como nada tem a ver com a realização de obras meritórias isoladas, ou seja, com obras para a salvação,14 exigia uma autoinspeção contínua e sistemática, capaz de propiciar ao calvinista a "certeza" de que fora eleito.15 Note-se, portanto, que a ideia de dever profissional, a que se associou um forte acento sobre a responsabilidade - resultante da necessidade de comprovação da eleição -, consiste em um modo de viver dotado de racionalidade. A busca da comprovação da eleição nos atos da vida intramundana, especificamente no exercício da profissão, não podia ocorrer sem um método capaz de permitir o controle racional sobre a ação humana. Para que essa pudesse gerar os melhores resultados era imprescindível a previsibilidade, sem a qual o sujeito jamais poderia saber se os seus atos produziriam efeitos positivos. O controle racional da própria conduta requer a consciência de como a ação humana será avaliada, ou seja, implica previsibilidade dos resultados das ações e dos eventos. A ausência de previsibilidade retira qualquer possibilidade de conduta metódica no exercício da profissão. Quando se pensa no exercício ótimo da profissão como forma de santificação ou de exteriorização da eleição, não basta perguntar sobre a adequação da ação às regras religiosas, mas é necessário verificar se a ação pode alcançar um resultado que vai agradar a Deus. Para tanto, é necessário que as regras que disciplinam a vida do indivíduo sejam previsíveis. Vale dizer que a previsibilidade do direito é imprescindível para que se possa exercer a profissão de modo adequado, obtendo-se, dessa maneira, um resultado que constitua sinal de eleição. Sem previsibilidade o indivíduo não tem como saber se sua ação metódica lhe permitirá alcançar os resultados almejados. A religião entra aí como um estímulo para o devido exercício da profissão e para a obtenção de um resultado ótimo; não, evidentemente, como um indício ou sinal de que esse resultado será obtido. Isso quer dizer que os valores do protestantismo, do mesmo modo que têm íntima relação com o "espírito" do capitalismo, igualmente podem ser associados à racionalidade do direito. 2. Racionalidade do direito, capitalismo e religião Para o desenvolvimento do capitalismo era imprescindível um direito racional e previsível. Weber, em A gênese do capitalismo moderno, após lembrar a completa irracionalidade do direito chinês primitivo, afirma que, com um direito dessa índole, "o capitalismo não pode operar; o que ele precisa é de um direito calculável, do modo similar a uma máquina; aspectos religioso-rituais e mágicos não podem ter importância alguma".16 Aludindo a essa passagem de Weber, anota Jessé Souza que "o direito racional formal é percebido por Weber como fundamental para a existência do capitalismo moderno, por sua natureza calculável e por sua previsibilidade. Não será possível planejamento nem cálculo a longo prazo, atividades imprescindíveis para a existência de mercado competitivo baseado em princípios impessoais, se a justiça depender de pressupostos mágicos, como no caso dessa passagem específica, que cita o exemplo da sociedade chinesa, ou da discricionariedade de juízes que decidem de acordo com seu próprio arbítrio".17 Swedberg igualmente lembra que a elaboração weberiana da sociologia econômica confere especial atenção ao direito, enfatizando que "um dos pressupostos do capitalismo racional ocidental, segundo Weber, 'é uma lei racional, ou seja, previsível'".18 Não há dúvida de que, para Weber, há uma íntima relação entre racionalidade do direito e capitalismo, assim como também há uma clara conexão entre protestantismo ascético e capitalismo. Porém, é necessário investigar a possibilidade de associação entre protestantismo e racionalidade do direito. Como é óbvio, jamais se pretendeu dizer que, se não fossem os valores do calvinismo, o capitalismo não teria se desenvolvido, mas que esses valores contribuíram para um comportamento social - a ascese intramundana - que constituiu o "espírito" capitalista e, por conseguinte, contribuiu para o seu desenvolvimento. Por outro lado, o capitalismo, para se desenvolver, dependia da racionalidade e da previsibilidade do direito. Porém, não há porque apenas associar protestantismo com capitalismo, entendendo que a racionalidade do direito constituiu uma premissa para o desenvolvimento do capitalismo que não teve qualquer influência do protestantismo. Como antes dito, o protestantismo também colaborou para uma vida metódica e dotada de racionalidade. A ação do indivíduo, exatamente por não poder se desligar de um fim ou resultado ótimo como comprovação da eleição, constituía uma ação racional, que não podia descurar da previsibilidade. De modo que a vida pautada pela ascese intramundana, característica ao calvinismo, também exigia um direito racional e marcado pela previsibilidade. Frise-se que o interesse dos protestantes - que compunham os quadros da burguesia - na calculabilidade do direito é destacado por Weber.19 Não se pretende fazer crer, evidentemente, que a racionalidade do direito tenha como causa, nem como principal causa, o protestantismo ascético. Lembre-se que Weber não só acreditava que o direito europeu era mais racional do que os direitos de outras civilizações; ele também demonstrou que esse direito foi moldado a partir de diversas características peculiares à história do direito ocidental - como a tradição do direito romano e aspectos do direito medieval -, como também recebeu o influxo de diversas e amplas tendências religiosas, econômicas e políticas da vida ocidental.20 Portanto, o que realmente se deseja colocar às claras é que, assim como os valores do protestantismo deram origem a um modo de viver que se identificou no "espírito" do capitalismo, contribuindo para o seu desenvolvimento, é possível sustentar que esses mesmos valores contribuíram para um modo de vida racional e para a racionalização do direito. Em termos estritamente weberianos, pode-se afirmar que o direito previsível está em relação de causalidade adequada com o modo de vida sistemático e metódico resultante da ascese intramundana. Perceba-se que, se o aprimoramento dos negócios é uma busca racionalmente orientada a partir de valores religiosos e se, para tanto, é imprescindível a racionalidade e a previsibilidade do direito, é pouco mais do que flagrante a relação entre os valores do calvinismo e a racionalidade do direito. Ajuda aqui a ideia weberiana de ação social racionalmente determinada em relação a fins e a valores. De acordo com Weber, "a ação social, como toda ação, pode ser determinada: (i) de modo racional referente a fins: por expectativas quanto ao comportamento de objetos do mundo exterior e de outras pessoas, utilizando essas expectativas como 'condições' ou 'meios' para alcançar fins próprios, ponderados e perseguidos racionalmente, como sucesso; (ii) de modo racional referente a valores: pela crença consciente no valor - ético, estético, religioso ou qualquer que seja sua interpretação - absoluto e inerente a determinado comportamento como tal, independentemente do resultado; (iii) de modo afetivo, especialmente emocional: por afetos ou estados emocionais atuais; (iv) de modo tradicional: por costume arraigado".21 É certo que o calvinista, ao conduzir a sua vida, pautava-se em valores religiosos, ainda que estivesse em busca de sinais exteriores da sua eleição, ou seja, de resultados que evidenciassem a sua salvação. De modo que se pode dizer que o calvinista exercia uma ação social racional referente a um fim - a obtenção de êxito na profissão ou nos negócios -, mas ao mesmo tempo exercia uma ação social racional orientada ou também determinada por um valor religioso - a doutrina da predestinação. Seria mesmo possível dizer que a ação racional consistente no trabalho metódico e sistemático estaria determinada,em um só tempo, por um fim e por um valor. Pierucci, em sua tese sobre o conceito weberiano de "desencantamento do mundo", afirma que Weber procura mostrar que, com essa coincidência entre a atividade profissional e a certeza interior da salvação da alma adquirida no ato de trabalhar racionalmente, o protestantismo ascético produziu uma unidade inquebrantável e singular entre a ação racional referente a fins [Zweckrationalität] e a ação racional referente a valores [Wertrationalität] e que aí teria ocorrido, em outros termos, um encaixe historicamente inaudito entre a racionalidade prático-técnica e a racionalidade prático-ética.22 Contudo, se é possível aí ver uma modalidade de ação determinada por um fim e por um valor, que perfaz as condições da racionalidade prática em sua inteireza, não há como deixar de perceber que essa ação, seja para alcançar o fim seja para não descurar do valor, não pode prescindir de um direito racional e previsível. Sem dúvida, além de a conduta "protestante" constituir uma ação inegavelmente racional, orientada por um valor religioso e preocupada com a obtenção de um fim, essa ação exigia, para não ser frustrada, um direito capaz de garantir o fim ou o resultado. O direito, é certo, obviamente não objetiva garantir o valor, mas sim o fim cuja realização importa para a concretização do valor. O direito opera aí como instrumento de racionalização da vida orientada pela religião e dirigida à obtenção de fins. José Eduardo Faria, em prefácio à conhecida obra de Anthony Kronman a respeito da sociologia jurídica weberiana, lembra que Weber mostra, ao estudar o islamismo, o judaísmo e a China antiga, como a história moderna é caracterizada pela progressiva racionalização de todos os setores da vida, convertendo a eficiência e o cálculo em critérios supremos. A ação racional daí decorrente, sempre relacionando meios e fins, poderia ser vista como (i) ação racional prática - que envolve a escolha de meios disponíveis e eficientes para o alcance de um fim -, (ii) ação racional material - fundada em valores escolhidos segundo a convicção pessoal -, e (iii) ação racional formal - que exige regras impessoais, abstratas e gerais encadeadas de maneira lógica para orientar as condutas sociais.23 Após advertir que, por fixar marcos referenciais e gerar expectativas de que sejam observados, a ação racional formal é a que mais oferece previsibilidade e probabilidade de sua ocorrência, Faria enfatiza que "um exemplo emblemático de racionalidade formal apontado por Weber é o direito positivo, por ele visto como um mecanismo para aumentar a probabilidade de que certas ações ocorram de modo determinado, ou seja, da maneira como foram prescritos por códigos e leis. Por garantir o respeito à propriedade, assegurar a validade e o cumprimento dos contratos, oferecer aos agentes econômicos a segurança de que precisam para investir e tornar previsíveis até mesmo as mudanças de suas próprias regras e procedimentos, o direito positivo funciona como um 'mitigador' da indeterminação das ações sociais, como mecanismo facilitador das interações humanas e como marco referencial para as chamadas 'regras do jogo'. É com base nessa linha de raciocínio que Weber explica como o pensamento político, a legislação, a administração da justiça e as práticas econômicas vão, na passagem do mundo medieval para o mundo moderno, libertando-se de todos os grilhões expressos por mitos, tabus e mistérios, de tal modo que a separação entre o Deus transcendente e um mundo sem magias é concluída pelo protestantismo de natureza calvinista e pelo subsequente advento da modernidade e do capitalismo".24 A lembrança ao prefácio de José Eduardo Faria tem o objetivo de demonstrar a relação umbilical entre ação racional dirigida a fins e incentivada por valores, própria à vida marcada pelo protestantismo ascético, e a racionalidade do direito. O exercício da profissão pelo calvinista, uma ação dirigida ao sucesso para a comprovação da eleição e, portanto, igualmente pautada em valor, não podia prescindir de uma ação racional formal, isto é, do direito positivo, única forma capaz de garantir as expectativas depositadas na energia despendida com o trabalho. Vale dizer: única maneira de justificar o próprio exercício da profissão como mecanismo de comprovação da predeterminação da eleição. Em suma: a ascese intramundana, ou mais especificamente o exercício do trabalho como meio de comprovação da salvação, nada mais é do que uma clara expressão do "desencantamento com o mundo", decorrente do rompimento com a magia dos sacramentos salvíficos, uma ascese que consistia numa ação racional impulsionada por valores e dirigida a fins. Exatamente por isso, essa ascese não podia prescindir de um mecanismo - o direito - que, com clareza e lógica, fosse apto a garantir o resultado da energia e do valor depositado nos atos da vida. 3. Racionalidade do direito e previsibilidade Outro ponto que aqui importa diz respeito ao significado, em Weber, de racionalidade do direito, e ainda o de se, no seu entender, há distinção entre racionalidade formal do direito e previsibilidade. Weber alude a quatro tipos ideais de direito: (i) direito formalmente irracional; (ii) direito substancialmente irracional; (iii) direito substancialmente racional; e (iv) direito formalmente racional. Ainda que o realmente importante, no presente contexto, seja verificar o que Weber entendia por direito formalmente racional, convém lembrar que os escritos a respeito da teoria de Weber advertem que os referidos tipos ideais de direito correspondem, ainda que de maneira não exata, aos quatro estágios da evolução histórica do direito versados na obra weberiana.25 O direito formalmenteirracional, não controlado pelo intelecto, avesso a padrões gerais e, insensível aos argumentos das partes, é o direito da época em que as decisões derivam de revelações feitas mediante o oráculo.26 No direito substancialmenteirracional, as decisões operam mediante critérios fundados em considerações práticas e éticas sobre cada caso.27 A "justiça do Cádi" é o exemplo de direito materialmente irracional. Weber compreendia "justiça do Cádi" como um conceito mais amplo que o de justiça administrada pelo juiz muçulmano local. Na sua visão, tal conceito representava a ideia de julgamento feito de acordo com o próprio senso de equidade do juiz e sem qualquer consideração das regras.28 No direito substancialmente racional, as decisões operam mediante leis ou critérios, mas o sistema de direito, por estar ancorado num pensamento externo, fica na dependência da possibilidade da compreensão dos princípios que orientam o pensamento que lhe dá sustentação.29 Weber alude, no ponto, à lei islâmica e à lei chinesa. O poder teocrático e o poder patrimonial impuseram uma forma sistematizada de direito influenciada por elementos que pertencem, por exemplo, à religião e à ideologia política. Embora esses sistemas tenham relações com princípios fixos, eles se recusam a reconhecer qualquer limite ao direito e tem por fim a concretização de ideais éticos, políticos ou religiosos, o que significa uma racionalização material do direito. Ou melhor, a aderência a princípios fixos caracteriza o sistema como racional - ao contrário dos dois primeiros -, mas a ideia de concretização de valores religiosos, éticos e políticos faz supor uma racionalização material, e não formal, do direito.30 A quarta modalidade de direito, que se coloca em outro patamar em relação a todas as anteriores, é a do direito formalmente racional. Trata-se do direito moderno legislado.31 Os códigos civis derivados do direito romano e fundados nos ensinamentos dos Pandectistas constituem o exemplo de direito formalmente racional.32 Mas é a categoria do direito formalmente racional que aqui interessa. Para se tentar entender o que é direito formalmente racional para Weber é preciso ter em conta que, para ele, apenas os sistemas quese desenvolveram a partir do direito romano e que foram moldados por meio da ciência do direito dos Pandectistas são capazes de refletir, em grau significativo, condutas e métodos de natureza formal e racional.33 Como pondera Anthony Kronman, o elevado grau de racionalidade formal desses códigos tem explicação no fato de eles se basearem na "interpretação lógica do sentido" e possuírem uma natureza altamente sistemática, de modo a respeitar os cinco postulados elaborados por Weber: "(i) que cada decisão jurídica concreta seja a 'aplicação' de uma proposição jurídica abstrata a uma 'situação factual' concreta; (ii) que deva ser possível, em todo caso concreto, derivar a decisão de proposições jurídicas abstratas por meio de lógica jurídica; (iii) que o direito deva constituir verdadeira ou virtualmente um sistema de proposições jurídicas 'sem lacunas', ou deva, pelo menos, ser tratado como se fosse um sistema sem lacunas; (iv) que tudo o que não puder ser 'interpretado' racionalmente em termos jurídicos também é juridicamente irrelevante; e (v) que toda ação social de seres humanos deva ser sempre vista como uma 'aplicação' ou 'execução' de proposições jurídicas ou uma 'infração' delas, haja vista que a 'inexistência de lacunas' do sistema jurídico precisa resultar em uma 'ordenação jurídica' sem lacunas de toda conduta social".34 É interessante notar que Weber observou que o abandono da justiça do oráculo - em que a vontade humana não tinha relevância - e a prevalência de um direito formalmente racional trouxe consigo a necessidade de justificação da decisão, de que deriva, no contexto, a previsibilidade. Como escreve Kronman, se uma pessoa que soluciona conflitos pode alegar que fala em nome de Deus ou de um poder transcendente, pode existir pouca pressão para que ela apresente os motivos para decidir, uma vez que ela mesma é um oráculo. Porém, quando os casos são solucionados por um homem e não por poderes oraculares, existe grande necessidade prática de justificação. Isso significa que a admissão da responsabilidade do ser humano pela decisão não só introduziu a necessidade de justificação, mas, antes, tornou-a possível.35 O "desencantamento do direito" - que não pode ser confundido com a categoria do "desencantamento do mundo",36 na medida em que significa somente a passagem do poder de julgar do divino ou transcendental para o humano - assume especial importância quando o direito passa a ser formalmente racional. É aí que surge a necessidade de uma demonstração racional da decisão e, acompanhada dela, uma espécie de previsibilidade dotada de sentido.37 Porém, a ideia de previsibilidade, em Weber, é muito mais ampla e apenas pode ser compreendida a partir da percepção do que ele entende por sistema jurídico, ou mais precisamente dos conceitos que, segundo ele, o sustentam, quais sejam: os conceitos de abrangência e clareza organizacional. Como esclarece Kronman, uma ordem jurídica é abrangente somente se não houver, em princípio, ações sociais que fujam ao seu alcance e se ela não contiver lacunas ou omissões, e possui clareza organizacional se os princípios que a sustentam forem "nitidamente claros e aplicados de modo autoconsciente".38 Isso quer dizer que, para Weber, quanto mais abrangente e organizacionalmente claro for determinado ordenamento jurídico mais previsíveis serão as consequências das ações sociais praticadas sob a sua guarda. Isso indica, portanto, que a ideia de previsibilidade, em Weber, não se desliga da ideia de sistema jurídico e, bem vistas as coisas, é uma noção dotada de relatividade, na medida em que pode variar conforme o sistema jurídico seja mais ou menos abrangente ou claro. Ciente disso, adverte Kronman que, "conforme demonstra o common law inglês, uma certa previsibilidade - talvez até um grau significativo dela - pode ser alcançada sem a construção de um sistema jurídico verdadeiro. Todavia, a previsibilidade máxima só pode ser alcançada quando as regras da ordem jurídica tiverem sido organizadas de um modo abrangente e claro em termos conceituais; por maior que seja a sua previsibilidade, é sempre possível tornar um sistema jurídico mais previsível por meio de sua sistematização".39 Não existe identidade entre racionalidade formal do direito e previsibilidade, uma vez que a previsibilidade é uma consequência de um sistema jurídico a despeito da sua maior ou menor racionalidade. A previsibilidade é objetivo de um sistema dotado de abrangência e clareza organizacional, mas pode decorrer de um sistema menos racional ou até de um direito formalmente irracional, como é o primitivo common law inglês para Weber. Lembre-se que, segundo a concepção de Weber, no common law o grau de racionalidade jurídica é significativamente menor e de uma modalidade distinta da dos sistemas da Europa continental.40 Chega-se, assim, ao ponto: considerando-se que a Inglaterra é o berço do capitalismo e um local em que o calvinismo se projetou de modo muito incisivo, como explicar a conclusão de Weber no sentido de que o common law inglês é um direito formalmente irracional ou não dotado do mesmo grau de racionalidade do direito continental europeu? Teria Weber feito uma leitura inadequada da relação entre religião e capitalismo? Haveria, no raciocínio de Weber, uma má compreensão do common law inglês ou da história da Inglaterra? Ou, simplesmente, o sistema de precedentes obrigatórios nada teria a ver com a racionalidade formal do direito? 4. O chamado "problema da Inglaterra" O argumento de que a obra de Weber teria uma contradição ou um equívoco surgiu, fundamentalmente, a partir de um ensaio de David Trubeck, intitulado "Max Weber on Law and the Rise of Capitalism", publicado em 1972 na Wisconsin Law Review. Trubeck, nesse ensaio, refere-se a artigo de aluno seu, Jerold Guben, intitulado de "'The England Problem' and the Theory of Economic Development", um working paper presente no Program in Law and Modernization daYale Law School. Trubeck alega que Weber equipara racionalidade jurídica a previsibilidade (ou calculabilidade) e entende que a última não está presente no common law, de modo que a Inglaterra seria uma exceção à teoria de que há uma relação entre calculabidade e capitalismo ou uma exceção à ideia de que a racionalidade formal e a calculabilidade necessariamente andam juntas.41 Trubeck advertiu que alguns observadores42 teriam dito que a Inglaterra desenvolveu um sistema de direito racional antes mesmo da ascensão do capitalismo e que o grande defeito da análise de Weber estaria na equivocada distinção por ele feita entre o common law inglês e o direito continental europeu.43 O "problema da Inglaterra" também foi objeto da análise de Swedberg.44 O sociólogo sueco sustenta que Trubeck se equivoca ao afirmar que, na obra de Weber, existe uma identidade necessária entre previsibilidade e um grau elevado de formalismo lógico ou de racionalidade formal. Adverte que Weber deixa claro que os grupos burgueses exigiam do sistema jurídico previsibilidade e que essa é inteiramente compatível com um grau reduzido de racionalidade formal. Recorda que Weber afirma que o common law inglês, ainda que não dotado de racionalidade formal, é previsível. Argumenta, ainda, que está implícita na formulação de Trubeck acerca do problema da Inglaterra uma visão demasiadamente estreita da relação entre capitalismo e direito, uma vez que, para que o capitalismo racional exista, não é suficiente previsibilidade e um alto grau de racionalidade formal, mas é também necessário que existam regras jurídicas sofisticadas acerca de grande número de instituições econômicas avançadas, especialmente contratos e empresas econômicas, o que é reconhecido por Weber. O principal argumento de Swedberg está em que Trubeck teria cometido um erro ao ver em Weber uma identidade necessária entre previsibilidade e um alto grau de racionalidade jurídica formal. Esse equívoco, aliás, foi antecipadopela fundamentação exposta no tópico anterior, quando se esclareceu que a previsibilidade é objetivo de um sistema dotado de abrangência e clareza organizacional, mas pode decorrer de um sistema menos racional ou até de um direito formalmente irracional. Como afirma Anthony Kronman, a instauração de um modo de produção capitalista eficiente não pressupõe o nível máximo de previsibilidade alcançável pela racionalização formal do direito, de modo que não há contradição entre a afirmação de Weber sobre a menor racionalização do direito inglês e o desenvolvimento capitalista da Inglaterra.45 Sem dúvida, não só é possível extrair da argumentação de Weber o entendimento de que o common law inglês, embora não dotado do mesmo grau de racionalidade do direito europeu continental, era previsível,46 como se encontra na obra de Weber passagens que claramente assim afirmam - como a lembrada por Swedberg. Para que se compreenda o motivo pelo qual Weber não viu racionalidade jurídica formal no direito inglês primitivo, é preciso observar que o common law, por não se preocupar com a abstração, não impulsionava a elaboração de princípios gerais.47 Não havia como produzir "conceitos gerais", já que, a partir dos casos, surgiam regras concretas, que se diferenciavam a partir de critérios externos. Regras dessa modalidade, ainda que numerosas, não podem ter pretensão de "abrangência", que, como visto, ao lado da clareza organizacional, caracterizava o ideal de sistema jurídico weberiano.48 Mas isso não significou que o commonlaw inglês, para Weber, não fosse dotado de qualquer grau de previsibilidade. Weber admite que a previsibilidade pode ser alcançada não só apenas mediante um sistema dotado de princípios gerais e, por isso, capaz de alcançar a abrangência das situações imagináveis. Kronman afirma claramente, ao aludir à discussão de Weber, que, mesmo que a ordem jurídica careça de abrangência e clareza organizacional, um grau suficientemente elevado de previsibilidade pode ser alcançado "se os responsáveis pela administração das regras compreenderem e respeitarem os acordos contratuais e entendimentos baseados no direito costumeiro que definem a maior parte das transações comerciais".49 Weber também considera o staredecisis (o sistema de precedentes obrigatórios) um elemento de importância para o alcance da previsibilidade.50 Isso, aliás, é reconhecido expressamente por Kronman ao aludir ao contraste que Weber faz entre o direito baseado no oráculo e a decisão judicial do commonlaw, que, por exigir justificação, segundo Weber tende a tornar a ordem jurídica mais previsível: "na verdade, a menos que suponhamos que a elaboração de precedentes [refere-se à fundamentação do precedente] e a regra do staredecisis aumentem a previsibilidade dos resultados jurídicos de modo significativo, é difícil explicar a contribuição positiva feita pelo sistema jurídico inglês ao desenvolvimento, na Inglaterra, de uma economia capitalista racional baseada na troca de mercado, uma forma de organização econômica que, segundo Weber, exige a aplicação previsível de um conjunto estável de regras jurídicas".51 Tendo em vista que a fundamentação é um requisito para a racionalidade do sistema de precedentes, é evidente que a contribuição para a previsibilidade e, por decorrência, para o desenvolvimento do capitalismo, foi identificada no stare decisis, ou seja, na crença justificada e racional de que a administração da justiça não deixaria o empreendedor desamparado. Note-se que Kronman não apenas diz que o staredecisis contribuiu para a previsibilidade de "modo significativo", como ainda pondera que, sem o staredecisis, seria "difícil explicar" a contribuição positiva feita pelo commonlaw ao desenvolvimento do capitalismo. Assim, é correto afirmar que o stare decisis foi um importante elemento de balanceamento da falta de sistematicidade do common law, tendo contribuído notavelmente para a previsibilidade e, assim, para a atenuação da falta de racionalidade jurídica formal do direito inglês nos termos weberianos. 5. Síntese das ideias Os valores calvinistas deram origem a um comportamento racional que contribuiu para o desenvolvimento do capitalismo e exigiu um direito racional e previsível. Isso quer dizer que os valores e a cultura de um povo podem e devem ser relacionados à racionalidade do direito e da administração da justiça. Essa primeira ideia é muito importante, na medida em que se pretende, mais adiante, relacionar a cultura do brasileiro com a irracionalidade da distribuição da justiça e com a ausência de um sistema de precedentes. Por outro lado, Weber não identificou racionalidade jurídica formal com previsibilidade, mas, ao contrário, viu no stare decisis um mecanismo capaz de propiciar a previsibilidade num direito formalmente irracional, o que não compromete a ideia de que, embora o common law não detenha a mesma racionalidade do direito continental europeu, ele teria sido capaz de garantir, em virtude do sistema dos precedentes obrigatórios, um grau de previsibilidade que permitiu o florescimento do capitalismo. A alegação de Trubeck,52 no sentido de que a tese de Weber teria gerado uma incoerência ao admitir que a Inglaterra, berço do capitalismo, tinha um direito formalmente irracional, não resiste ao argumento de que Weber jamais identificou racionalidade jurídica formal e previsibilidade e, ainda, enxergou no stare decisis um meio capaz de garanti-la, o que teria permitido o desenvolvimento do capitalismo mesmo num direito destituído de racionalidade formal. Fica claro que Weber, ao comparar o common law com o direito continental europeu, admitia a racionalidade formal deste em virtude do seu modo de ser naquele momento histórico, lembrando-se que Weber estava particularmente diante do positivismo científico, do conceitualismo alemão, do cognitivismo interpretativo e do logicismo na aplicação do direito. Isso quer dizer que, como será visto adiante, a evolução da teoria da interpretação, o impacto do constitucionalismo e a transformação do próprio conceito de direito fizeram surgir uma nova racionalidade jurídica no civil law, que, portanto, pode exigir e conviver com um sistema de precedentes obrigatórios. Além disso, o common law, por não possuir a mesma racionalidade formal do direito legislado, teria adotado o stare decisis como meio para contrabalançar a sua pouca racionalidade e previsibilidade. Reafirmar que o common law não se identifica com o stare decisis é algo que obviamente não precisa ser evidenciado mediante a obra de Weber.53 Mas a oportunidade que Weber oferece para a demonstração de que o stare decisis é um instrumento para o alcance da previsibilidade num direito percebido como de menor racionalidade do que o do direito da época do positivismo científico tem grande relevância para se apontar para a imprescindibilidade de um sistema de precedentes obrigatórios num direito como o brasileiro contemporâneo, em que se tornou absolutamente comum decidir casos iguais de modo diferente, sem se dar qualquer importância para a previsibilidade, valor moral indispensável para o homem se desenvolver e requisito necessário para a racionalidade econômica. FOOTNOTES 1 . "Weber nos deixou não somente duas edições d'A ética protestante, mas duas versões. A primeira, publicada em duas levas, em 1904 e 1905, e a outra, revista e ampliada, editada em 1920. Todas as traduções que até hoje conhecemos, a começar da primeira, de 1930, assinada por Talcott Parsons, usaram a versão ampliada de 1920, inserida por Weber no volume I dos Ensaios reunidos de Sociologia da Religião. Há diferenças importantes entre as duas versões, já que a segunda recebeu do autor não só pequenas alterações e ajustes terminológicos ou gramaticais, mas também e principalmente acréscimos preciosíssimos" (Antônio Flávio Pierucci, O desencantamento do mundo - Todos os passos do conceito em Max Weber, São Paulo: Editora34, 2005, p. 187). 2 . "Os artesãos católicos mostram uma tendência mais acentuada a permanecer no artesanato, tornando-se portanto os mestres artesãos com frequência relativamente maior, ao passo que os protestantes afluem em medida relativamente maior para as fábricas para aí ocupar os escalões superiores do operariado qualificado e dos postos administrativos" (Max Weber, A ética protestante e o "espírito" do capitalismo (edição de Antônio Flávio Pierucci) cit., p. 32-33). 3 . "Com efeito: aqui não se prega simplesmente uma técnica de vida, mas uma 'ética' peculiar cuja violação não é tratada apenas como desatino, mas como uma espécie de falta com o dever: isso, antes de tudo, é a essência da coisa. O que se ensina aqui não é apenas 'perspicácia nos negócios' - algo que de resto se encontra com bastante frequência -, mas é um ethos que se expressa, e é precisamente nesta qualidade que ele nos interessa" (Max Weber, A ética protestante e o "espírito" do capitalismo cit., p. 45). 4 . Cf. Max Weber, A ética protestante e o "espírito" do capitalismo cit., p. 47. 5 . "No conceito de Beruf, portanto, ganha expressão aquele dogma central de todas as denominações protestantes que condena a distinção católica dos imperativos morais em 'pracepta' e 'consilia' e reconhece que o único meio de viver que agrada a Deus não está em suplantar a moralidade intramundana pela ascese monástica, mas sim, exclusivamente, em cumprir com os deveres intramundanos, tal como decorrem da posição do indivíduo na vida, a qual por isso mesmo se torna a sua 'vocação profissional'" (Max Weber, A ética protestante e o "espírito" do capitalismo cit., p. 72). 6 . "Foi o ensino reformado, com efeito, que proclamou pela primeira vez que a atividade profissional e a função social tinham um valor não somente moral, como também essencialmente religioso. O que a Deus agrada não é o ascetismo dos monges, mas, bem pelo contrário, o consciencioso exercício de todas as atividades profissionais e seculares que o homem executa na vida diária. É à minuciosa execução dessas tarefas profanas que o homem é chamado por Deus, são elas que constituem o objeto de sua vocação" (André Biéler, O pensamento econômico e social de Calvino, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, p. 586). 7 . "e, de outro lado, distingue-se o trabalho profissional sem descanso como o meio mais saliente para se conseguir essa autoconfiança. Ele, e somente ele, dissiparia a dúvida religiosa e daria a certeza do estado de graça" (Max Weber, A ética protestante e o "espírito" do capitalismo cit., p. 102). 8 . "E essa ascese não era mais um opus supererogationis, mas um feito exigido de todo aquele que quisesse certificar-se de sua bem-aventurança. Essa singular vida dos santos, cobrada pela religião e distinta da vida 'natural', passava-se - o decisivo é isto - não mais fora do mundo em comunidades monásticas, senão dentro do mundo e suas ordens. Essa racionalização da conduta de vida no mundo mas de olho no Outro Mundo é o efeito da concepção de profissão do protestantismo ascético (Max Weber, A ética protestante e o "espírito" do capitalismo cit., p. 139). 9 . "A ascese protestante intramundana - para resumir o que foi dito até aqui - agiu dessa forma, com toda a veemência, contra o gozo descontraído das posses; estrangulou o consumo, especialmente o consumo de luxo. Em compensação, teve o efeito psicológico de liberar o enriquecimento dos entraves da ética tradicionalista, rompeu as cadeias que cercavam a ambição de lucro, não só ao legaliza-lo, mas também ao encará-lo (no sentido descrito) como diretamente querido por Deus (...). E confrontando agora aquele estrangulamento do consumo com essa desobstrução da ambição de lucro, o resultado é evidente: acumulação de capital mediante coerção ascética à poupança" (Max Weber, A ética protestante e o "espírito" do capitalismo cit., p. 155 e 157). 10 . Como esclarece Pierucci, um dos mais importantes Weberólogos das últimas décadas, "o termo desencantamento entendido como desmagificação assume a dimensão de um 'grande' processo histórico que é especificamente ético-religioso e especificamente ocidental, e assim pretende designar, quase à guisa de um nome próprio e não comum, o longuíssimo período de peculiarracionalizaçãoreligiosa por que passou, mercê de motivos puramente históricos [reinhistorisch], a religiosidade ocidental sob a hegemonia cultural alcançada por esta forma 'caracteristicamente moralizada' de fé monoteísta repressora da magia universal chamada judeu- cristianismo. Seus criadores e primeiros portadores [Träger] foram os profetas de Israel, florão do judaísmo antigo; e foram as seitas protestantes seus radicais e autoconfiantes portadores [Träger] na época heroica do parto cultural da moderna civilização do trabalho, seu ponto de chegada religioso" (Antônio Flávio Pierucci, O desencantamento do mundo - Todos os passos do conceito em Max Weber cit., p. 199). 11 . Antônio Flávio Pierucci, O desencantamento do mundo - Todos os passos do conceito em Max Weber cit., p. 206. 12 . "Ora, o que - nos países onde o Capitalismo e a cultura eram mais desenvolvidas, a Holanda, a Inglaterra e a França dos séculos 16 e 17 -, caracterizou, de maneira a mais típica, as igrejas e as seitas calvinistas, na época em que eram mais ardentemente combatidas, é seu dogma da predestinação. É em torno deste dogma que se travaram as mais violentas lutas eclesiásticas durante os séculos 17 e 18; é, pois, ele que deve ser havido por o mais específico dogma da fé calvinista. É ele que, para um reformado (diz Weber), lhe dá sentido a todos os atos da vida, até mesmo aos que mínimos se afiguram. O homem não vive para si, mas só para a honra de Deus, soberano único, os decretos de quem determinam toda a história da humanidade e decidem a salvação de cada indivíduo" (André Biéler, O pensamento econômico e social de Calvino cit., p. 588). 13 . "Ora, o problema para nós decisivo é antes de tudo: como foi suportada essa doutrina numa época em que o Outro Mundo era não só mais importante, mas em muitos aspectos também mais seguro do que os interesses da vida neste mundo" (Max Weber, A ética protestante e o "espírito" do capitalismo cit., p. 100). 14 . "O que, portanto, da moral católica distingue essencialmente o moralismo puritano é que o zelo ativo do calvinista é estimulado pela única e inabalável certeza de que está salvo pelo único e soberano decreto de Deus, enquanto o católico crê dever agir moralmente para influenciar o decreto final de Deus. E o que desse ascetismo distingue o ascetismo medieval é que o crente de então buscava a fidelidade em uma rígida moral que se não deveria deixar conspurcar pelas atividades do século; Lutero tinha suprimido inteiramente as barreiras do convento; seu ascetismo, porém, persevera a tradicional relutância para com as atividades de um determinado mundo político e profissional. O Calvinismo, ao contrário, introduziu um ideal ascético no interior do século (innerhalb des weltlichen Berufslebens),e até em atividades profissionais as mais profanas. Vai até mais longe: é na prova das atividades temporais que a fé se verifica. Se é ele um réprobo, aparecerá o homem visivelmente como tal em sua maneira de comporta-se nas tarefas profanas; se ele é eleito, ao contrário, todas as suas atividades exteriorização a marca das bênçãos divinas" (André Biéler, O pensamento econômico e social de Calvino cit., p. 590). 15 . "A eliminação da magia como meio de salvação, não foi realizado na piedade católica com as mesmas consequências que na religiosidade puritana (e, antes dela, somente na judaica). O católico tinha à sua disposição a graça sacramental de sua Igreja como meio de compensar a própria insuficiência: o padre era um mago que operava o milagre da transubstanciação e em cujas mãos estava depositado o poder das chaves. Podia-se recorrera ele em arrependimento e penitência, que ele ministrava expiação, esperança da graça, certeza do perdão e dessa forma ensejava a descarga daquela tensão enorme, na qual era destino inescapável e implacável do calvinista viver. Para este não havia consolações amigáveis e humanas, nem lhe era dado esperar reparar momentos de fraqueza e leviandade com redobrada boa vontade em outras horas, como o católico e também o luterano]. O Deus do calvinismo exigia dos seus, não 'boas obras' Isoladas, mas uma santificação pelas obras erigida em sistema. [Nem pensar no vaivém católico e autenticamente humano entre pecado, arrependimento, penitência, alívio e, de novo, pecado, nem pensar naquela espécie de saldo da vida inteira a ser quitado seja por penas temporais seja por intermédio da graça eclesial.] A práxis ética do comum dos mortais foi assim despida de sua falta de plano de conjunto e sistematicidade e convertida num método coerente de condução da vida como um todo. Não foi por acaso que o rótulo 'metodistas' colou naqueles que foram os portadores do último grande redespertar de ideias puritanas do século XVIII, da mesma forma que aos seus antepassados espirituais do século XVII fora aplicada, com plena equivalência de sentido, a designação de 'precisistas'" (Max Weber, A ética protestante e o "espírito" do capitalismo cit., p. 106-107). 16 . Max Weber, A gênese do capitalismo moderno (organizado e comentado por Jesse Souza), São Paulo: Ática, 2006, p. 95. 17 . Jessé Souza, Comentários à obra "A gênese do capitalismo moderno", de Max Weber. São Paulo: Ática, 2006, p. 95. 18 . Richard Swedberg, Max Weber e a ideia de sociologia econômica, Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2005, p. 155. 19 . "Naturalmente, cabe sobretudo aos interessados burgueses exigir um direito inequívoco, claro, livre de arbítrio administrativo irracional e de perturbações irracionais por parte de privilégios concretos: direito que, antes de mais nada, garanta de forma segura o caráter juridicamente obrigatório de contratos e que, em virtude de todas essas qualidades, funcione de modo calculável" (Max Weber, Economiaesociedade, vol. 2 cit., p. 123). 20 . David M. Trubeck, Max Weber on Law and the Rise of Capitalism, Wisconsin Law Review, 1972,p. 737. 21 . Max Weber, Economia e sociedade, Brasília: UnB, 2009, vol. 1, p. 15. 22 . Antônio Flávio Pierucci, O desencantamento do mundo - Todos os passos do conceito em Max Weber cit., p. 205. 23 . José Eduardo Faria, Prefácio em "Max Weber", de Anthony Kronman, Rio de Janeiro: Elsevier, 2009. 24 . José Eduardo Faria, Prefácio cit. 25 . Richard Swedberg, Max Weber e a ideia de sociologia econômica cit., p. 166. "A criação e a aplicação do direito podem ser racionais ou irracionais. São formalmente irracionais quando, para a regulamentação da criação do direito e dos problemas de aplicação do direito, são empregados meios que não podem ser racionalmente controlados - por exemplo, a consulta a oráculos e a sucedâneos destes" (Max Weber, Economia e sociedade, vol. 2 cit., p. 12). 26 . Richard Swedberg, Max Weber e a ideia de sociologia econômica cit., p. 166. 27 . David M. Trubeck, Max Weber on Law and the Rise of Capitalism, WisconsinLawReview, 1972, p. 748. Nas palavras de Weber, o direito será materialmente irracional "(...) na medida em que a decisão é determinada por avaliações totalmente concretas de cada caso, sejam estas de natureza ética emocional ou política, em vez de normas gerais" (Max Weber, Economia e sociedade, vol. 2 cit., p. 13). 28 . Richard Swedberg, Max Weber e a ideia de sociologia econômica cit., p. 170. 29 . David M. Trubeck, Max Weber on Law and the Rise of Capitalism, Wisconsin Law Review, 1972, p. 748. 30 . Anthony Kronman, Max Weber, Rio de Janeiro: Elsevier, 2009, p. 120. 31 . Richard Swedberg, Max Weber e a ideia de sociologia econômica cit., p. 166-167. 32 . Sobre o tema, Franz Wieacker, Privatrechtsgeschichte der Neuzeit unterbesonderer Berücksichtigung der deutschen Entwicklung (1967), 2. ed., Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1996, p. 348 e ss. (tradução para o português, História do direito privado moderno, tradução de Antônio Manuel Hespanha, 2. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993, p. 397 e ss). 33 . Anthony Kronman, Max Weber cit., p. 127-128. 34 . Idem, p. 120-121. 35 . Anthony Kronman, Max Weber cit., p. 120. 36 . Sobre isso, v. Antônio Flávio Pierucci, O desencantamento do mundo - Todos os passos do conceito em Max Weber cit. 37 . Anthony Kronman, Max Weber cit., p. 129. 38 . Idem, p. 137-138. 39 . Anthony Kronman, Max Weber cit., p. 138. 40 . Max Weber, Economia e sociedade, vol. 2 cit., p. 150. 41 . "If these contrasting positions indicate that Weber had no clear image of English history in mind, they also reflect his concern with the issue of legal calculability and his tendency to equate it with one mode of legal thought-a mode of thought which clearly was not well developed in England. His constant temptation was to maintain the key importance of calculability, and deal with England either as an exception to the theory that legal calculability and capitalism are related, or as an exception to the idea that logically formal rationality and calculability necessarily go together" (David M. Trubeck, Max Weber on Law and the Rise of Capitalism, Wisconsin Law Review, 1972, p. 748). 42 . Não obstante, em nota de rodapé, cite apenas o trabalho do seu aluno Jerold Guben, "The England Problem" and the Theory of Economic Development. 43 . "some observers have argued that England did develop a truly 'rational' legal system before the rise of capitalism, and that the major flaw in Weber's analysis was the false distinction he drew between English and continental law" (David M. Trubeck, Max Weber on Law and the Rise of Capitalism, Wisconsin Law Review, 1972, p. 748). 44 . Sally Ewing, no ensaio Formal justice and the spirit of capitalism: Max Weber's sociology of law, publicado na Law and Society Review, rejeita a ideia de que Weber teria sustentado que um alto grau de racionalidade jurídica seria essencial para o desenvolvimento do capitalismo, demonstrando que, na verdade, Weber teria admitido que, para o desenvolvimento do capitalismo, bastaria um "direito" capaz de facilitar as transações comerciais e garantir a previsibilidade. "For Weber, the 'legal order' that was relevant to the rise of capitalism was not a particular type of legal thought but a social order in which law facilitated capitalist transactions by contributing to the predictability of social action. (...) Thus, according to Weber, the legal order that was essential to the growth of capitalism was a contractual one that limited patriarchal discretion and protected its subjects' rights to establish contractual relations and to mobilize the coercive apparatus to enforce those contracts. By thus protecting and enforcing a set of social relations, law became explicitly relevant to economics. It was, in other words, 'a complex of actual determinants of human conduct'. It made no particular difference whether those relations were defined by a logically formal system or a more informal common law system. To the extent that each system defended the freedom of contract and protected guaranteed rights, the capitalist economic order could thrive. This brings us back to the question about the relationship between types of legal thought and the rise of capitalism. If one concentrates, as Rheinstein did, on legal thought itself, then according to Weber's ideal types common law would be considered 'substantively irrational', while civil law would be classified as 'logically formally rational' (Weber, 1954: xlii). But if one is concerned not with legal thought but with empirical validity, then Weber quiteclearly set out the historical conditions that in England gave birth to a legal system that was particularly well suited to the demands of the bourgeoisie for guaranteed rights and formal justice, the characteristics that distinguish a bourgeois, or liberal, legal system from all those that preceded it. In this sense the common law system, with its 'formal rational administration of justice' (Weber, 1978: vol. 2, p. 813) and in spite of all its juridical irrationality, was certainly a formal, rational legal system in the sociological sense of the term" (Sally Ewing, Formal justice and the spirit of capitalism: Max Weber's sociology of law, Law and Society Review, n. 21, p. 498-499; grifou-se). 45 . "À luz dessa interpretação, a aparente tensão entre a alegação de Weber de que o 'direito e a administração formalmente racionais' sejam um pré-requisito para que se atinja o maior grau possível de previsibilidade na ação econômica e a sua afirmação de que o empreendimento capitalista se desenvolveu na Inglaterra a despeito da irracionalidade do common law simplesmente desaparece: só existe uma contradição se compararmos o grau máximo de previsibilidade jurídica que pode ser alcançado por meio de racionalização formal ao grau mínimo exigido para o estabelecimento inicial de um sistema de produção capitalista eficiente" (Anthony Kronman, Max Weber cit., p. 189). 46 . Hubert Treiber, ao tratar do "problema da Inglaterra" em Weber, observa: "The peculiar nature of modern capitalism, especially its technical and economic substructure, requires that success be calculable, and law figures as one means to assure this. However - and this is decisive to the argument - in England and Germany the chances that law and adjudication would be rendered calculable depended on differente premises. (...) Despite the rationalization differential between England and Germany with respect to the formal qualities of law, legal proceedings were predictable in both places due to the predictability of the judges, though this may have been assured in differente ways" (Hubert Treiber, "Elective affinities" between Weber's sociology of religion and sociology of law, Theory and Society, n. 14, p. 841-842). 47 . Lembre-se que parte da doutrina inglesa do final do século XVIII e início do século XIX, descontente com a falta de racionalidade e de previsibilidade do common law, fez coro ao direito escrito. Assim, Jeremy Bentham, Truth versus Ashhurst; or law as it is, contrasted with what it is © desta edição [2016] said to be. The works of Jeremy Bentham, vol. 5, Edinburgh: William Tait, 1843; John Austin, Lectures on jurisprudence, or thephilosophy of positive law, 5. ed., vol. 2, London: John Murray, 1911. 48 . Anthony Kronman, MaxWeber cit., p. 139. 49 . Anthony Kronman, MaxWeber cit., p. 187-188. 50 . Max Weber, Economiaesociedade, vol. 2 cit., p. 150: "E também para o formalismo jurídico há válvulas de escape. Na área do direito privado, commonlaweequity são, sem dúvida, em grande parte, 'formalistas' na aplicação prática, já em virtude da vinculação a precedentes". É digno de nota que neste contexto o termo "formalismo" é sinônimo de previsibilidade. 51 . Anthony Kronman, MaxWeber cit., p. 135. 52 . David M. Trubeck, Max Weber on Law and the Rise of Capitalism, Wisconsin Law Review, 1972, p. 748. 53 . "To a historian at least any identification between the common law system and the doctrine of precedent, any attempt to explain the nature of the common law in terms of stare decisis, is bound to seem unsatisfactory, for the elaboration of rules and principles governing the use of precedents and their status as authorities is relatively modern, and the idea that there could be binding precedents more recent still. The common law had been in existence for centuries before anybody was very excited about these matters, and yet it functioned as a system of law without such props as the concept of the ratio decidendi, and functioned well enough" (A. W. B. Simpson, The common law and legal theory. In: Horder, Jeremy (ed.). Oxford essays in jurisprudence. Oxford: Clarendon Press, 1973, p. 77). 2018 - 05 - 08 A ética dos precedentes - Ed. 2016 II. A TRANSFORMAÇÃO DO CIVIL LAW II. A TRANSFORMAÇÃO DO CIVIL LAW 1. Sistematicidade, abrangência e previsibilidade na tradição do civil law No positivismo científico - base da pandectística alemã - o direito é deduzido dos conceitos e dos princípios gerais elaborados pela ciência jurídica. As normas são deduzidas logicamente do sistema - dos princípios e dos conceitos gerais -, sem que importem elementos de ordem não jurídica. Questões de ordem moral, religiosa, política ou econômica, ou melhor, não extraíveis do próprio sistema de direito, não podem ser consideradas.1 Esse sistema jurídico é autônomo em relação à realidade social, devendo sua coerência apenas às instituições e normas que lhe dão conteúdo. Os casos podem ser resolvidos mediante mera operação lógica de subsunção da situação real e concreta a uma valoração hipotética contida num princípio geral doutrinário e implícito nos conceitos científicos. Nesses estão presentes princípios permanentemente válidos sobre a correção do direito, de forma que a aplicação lógica do conceito e do princípio é suficiente para fazer chegar numa decisão correta ou justa.2 O sistema não apenas é fechado - autônomo e coerente -, mas também goza de plenitude. A partir dos conceitos e de conexões lógicas sempre será possível suprir eventuais lacunas da lei mediante o que ficou conhecido como "construção criadora". Os conceitos jurídico-científicos são trabalhados e moldados exatamente para viabilizar a subsunção lógica de toda e qualquer situação concreta, eliminando-se as lacunas do direito positivo. Importa perceber que a busca de plenitude mediante a conceitualização tinha o nítido objetivo de garantir a previsibilidade e a certeza na aplicação do direito. Se a solução dos casos depende unicamente de raciocínios lógicos pautados em conceitos e princípios jurídicos-científicos, sem nada dever a critérios morais, religiosos etc., torna-se factível o ideal de previsibilidade e de certeza do direito sem ser preciso recorrer a quaisquer critérios externos aos conceitos jurídicos e a outros meios de garantia da previsibilidade, como o sistema de precedentes obrigatórios. Isso - frise-se desde já - é claramente incompatível com um sistema de decisões que não pode viver à distância de questões morais, econômicas etc. e em que as particularidades da situação conflitiva são imprescindíveis à justiça do caso concreto.3 De qualquer forma, o positivismo científico não se confunde com o positivismo legalista. O primeiro se funda em conceitos e princípios gerais de natureza científica, enquanto que o segundo tem como premissa a ideia de que o direito está na lei.4 A diferença fica mais clara ao se recordar que a ciência jurídica alemã, especialmente na primeira metade do século XIX, esteve preocupada em elaborar uma dogmática capaz de responder à falta de um código de direito privado comum a toda a Alemanha. A partir da segunda metade do século XIX, contudo, vários estados alemães elaboram códigos e o próprio movimento liberal da unificação impôs, ainda que depois da sua derrota política, a continuação dos trabalhos de codificação do direito comum a toda a Alemanha.5 Daí que, no lugar do positivismo científico, tenha surgido espaço ao positivismo legalista. Segundo Franz Wieacker, isso constituiu uma vitória, ainda que não plenamente e detectada pela consciência social, da nação política sobre a nação cultural.6 Deixando-se de lado a história do direito alemão, cabe lembrar que, ao contrário do que ocorreu na Inglaterra, a assembleia parlamentar do direito francês, ainda que derrotando o monarca, monopolizou o poder mediante o princípio da legalidade.7 Disso também deriva a impossibilidade