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Todos os direitos desta edição reservados a Pontes Editores Ltda. Proibida a reprodução total ou parcial em qualquer mídia sem a autorização escrita da Editora. Os infratores estão sujeitos às penas da lei. A Editora não se responsabiliza pelas opiniões emitidas nesta publicação. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Tuxped Serviços Editoriais (São Paulo — SP) Bibliotecário Pedro Anizio Gomes CRB-8/8846 C578q Cirne, Alexcina Oliveira; Efken, Karl Heinz (org.) Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista / Organizadores: Alexcina Oliveira Cirne e Karl Heinz Efken. 1. ed. – Campinas, SP : Pontes Editores, 2024, 229 p. E-book: 7 Mb; PDF. Inclui bibliografia. ISBN 978-85-217-0526-0. 1. Análise do Discurso. 2. Formação de Professores. 3. Linguística. 4. Prática Pedagógica. I. Título. II. Assunto. III. Organizadores. Índices para catálogo sistemático: 1. Educação. 370 2. Formação de professores – Estágios. 370.71 3. Métodos de ensino instrução e estudo– Pedagogia. 371.3 4. Análise do discurso. 401.41 5. Linguística. 410 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA Alexcina Oliveira Cirne Karl Heinz Efken (Organizadores) PONTES EDITORES Rua Dr. Miguel Penteado, 1038 — Jd. Chapadão Campinas — SP — 13070-118 Fone 19 3252.6011 ponteseditores@ponteseditores.com.br www.ponteseditores.com.br Copyright © 2024 — Dos organizadores representantes dos autores Coordenação Editorial: Pontes Editores Revisão: Alexcina Oliveira Cirne Editoração: Acessa Design Capa: Lilian Maria de Oliveira PARECER E REVISÃO POR PARES Os capítulos que compõem esta obra foram submetidos para avaliação e revisados por pares. CONSELHO EDITORIAL: Angela B. Kleiman (Unicamp — Campinas) Clarissa Menezes Jordão (UFPR — Curitiba) Edleise Mendes (UFBA — Salvador) Eliana Merlin Deganutti de Barros (UENP — Universidade Estadual do Norte do Paraná) Eni Puccinelli Orlandi (Unicamp — Campinas) Glaís Sales Cordeiro (Université de Genève — Suisse) José Carlos Paes de Almeida Filho (UNB — Brasília) Rogério Tilio (UFRJ — Rio de Janeiro) Suzete Silva (UEL — Londrina) Vera Lúcia Menezes de Oliveira e Paiva (UFMG — Belo Horizonte) SUMÁRIO Apresentação Capítulo 1 Uma defesa da educação quilombista Ricardo Matheus Benedicto Capítulo 2 A experiência de constituir uma cultura fiscalizatória relativa a uma política educacional anticasta Jorge Luís Terra da Silva Capítulo 3 Educação indígena e multiculturalidade: direito fundamental e instrumento de enfrentamento ao racismo Edson Kayapó e Flávio de Leão Bastos Pereira Capítulo 4 Uma análise discursivo-pragmática das viagens textuais do conceito racismo estrutural no caso Miguel Santana e seus desdobramentos para a luta antirracista no Brasil Marco Antonio Lima do Bonfim 7 14 34 55 73 Capítulo 5 Feminismos negros, feminismos africanos e mulherismos: distintas formas de ser mulher negra, reexistir e resistir Halina Macedo Leal Capítulo 6 Da escola à universidade: cabelo, cabelo meu, quem sou eu? Vera Regina Rodrigues da Silva e Laisa Bibiano Nascimento Capítulo 7 Una lectura a Tambores en la Noche de Jorge Artel: intelectualidad negra en el caribe colombiano y filiaciones poético-políticas Eliana Díaz Muñoz Capítulo 8 Racionais MC’s - “o rap vai diretamente até os que mais sofrem”: uma análise discursiva crítica numa perspectiva intertextual Alexcina Oliveira Cirne e Karl Heinz Efken Capítulo 9 Uso das narrativas da religiosidade afro- brasileira na educação básica: os desafios da recepção Kilza Maria de Melo Pascoal Capítulo 10 Educação para as relações étnico-raciais: relato de experiência docente no curso de História da Unicap Leandro Nascimento de Souza e Maria do Rosário da Silva 93 108 131 153 181 201 7 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista APRESENTAÇÃO Esse e-book é resultado de uma longa jornada de reflexões, encontros, parcerias, leituras e vivências. As realidades sociais e históricas que marcam o território brasileiro, sobretudo, nos colocam (quase que permanentemente) num ciclone de eventos que desafiam nosso pensar e que nos mobilizam a reservar um tempo para processar as densas, permanentes e incontáveis práticas sociais que envolvem as questões étnico-raciais. De forma que é impossível pensar o Brasil e sua democracia sem colocar o racismo no centro dessa reflexão. As problemáticas e as discussões permanecem atuais. Esse e-book, Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista, tem por característica fornecer um panorama interessante e fru- tífero por meio de uma rede interdisciplinar, pois o tema central aqui proposto envolve diversas sobreposições, não apenas étnicas, históricas, culturais e econômicas, como legais e teóricas. Colocar à disposição do público leitor esse e-book, estruturado em 10 capítulos, com participação de 14 pesquisado- res e 10 instituições, é oferecer um rico trabalho de pesquisadores que contri- buem de maneira relevante para que essas reflexões e conhecimentos sejam disseminados e atinjam um público cada vez mais amplo. Os temas que norteiam os capítulos buscam contemplar os diversos desafios do enfrentamento ao racismo e múltiplas formas de resistência, e buscam incorporar esse contingente de reflexões na direção de uma edu- cação antirracista. Podemos afirmar também que o e-book é permeado por reflexões que são pautadas nas experiências educacionais das autoras e dos autores. De forma que os trabalhos conseguem descrever, não apenas as práticas racistas que ainda nos rodam, mas apresentar como as práticas pedagógicas efetivas podem ser antirracistas. 8 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista A educação antirracista é um desafio dado o próprio fenômeno que enfrenta (maléfico e camaleônico), resgatando as palavras1 do profes- sor Kabengele Munanga, professor na USP, “sem dúvida, todos os racismos são abomináveis e cada um faz as suas vítimas do seu modo. O brasileiro não é o pior, nem o melhor, mas tem ele as suas peculiaridades, entre as quais o silêncio, o não dito, que confunde todos os brasileiros e brasileiras, víti- mas e não vítimas. Como disse Ali Wiesel, judeu Nobel da Paz, o carrasco sempre mata duas vezes, a segunda é pelo silêncio, prática característica do racismo brasileiro que sempre mata duas vezes: mata fisicamente, como mostra as estatísticas sobre a genocídio da juventude negra em nossas peri- ferias; mata na inibição da manifestação da consciência de todos, brancos e negros, sobre a existência do racismo em nossa sociedade. É por isso que eu costumo dizer que o racismo brasileiro é um crime perfeito”. Um dos papéis desempenhados pela educação deve ser justamente o combate ao racismo nas suas múltiplas manifestações e valorização da con- tribuição histórica dos diversos povos brasileiros. Cada capítulo desse livro se apresenta como uma potente abordagem das diferentes formas de refe- renciação aos desafios e possibilidades de trabalho que intencionam dar a devida visibilidade aos povos ancestrais. Intencionamos, desde o primeiro momento, que o e-book caminhasse contrariamente ao que Lélia Gonzalez cunhou de ‘racismo por omissão’. Aquela faceta do racismo, que finge que o negro não existe, no dizer dela, o negro é: “esquecido”, “tirado de cena” “invi- sibilizado”, recalcado” 2. No dizer do líder indígena Ailton Krenak, também precisamos ficar bem atentos aos modelos educacionais, “acho gravís- simo as escolas continuarem ensinando a reproduzir esse sistema desigual e injusto. O que chamam de educação é, na verdade, uma ofensa à liberdade 1 Trecho do discurso proferido pelo professor em ocasião em que foi homenageado pela luta contra todas as formas de discriminação racial, pela Área de Direitos Humanos da Faculdade de Direito, da Universidade de São Paulo (USP). Disponível em https://www.ufrb.edu.br/cahl/ noticias/2128-professor-visitante-da-ufrb-e-homenageado-pela-faculdade-de-direito-da-uspnegativas e, em razão disso, são desvalorizados. Este é um círculo vicioso que, conforme Staub (2003), pode ser rom- pido por meio do trabalho com valores humanitários e de oportunização de experiências em que grupos diferentes trabalharem juntos. As conclusões de Staub (2003) foram alcançadas por meio de experimentos desenvolvidos em Ruanda, pouco após o genocídio lá perpetrado em decorrência dos con- flitos entre tutsis e hutus . Allport (1966), em sua obra seminal sobre a natureza do preconceito, já falara sobre o que denominava de teoria do contato, ou seja, de um contato entre grupos sem competição, sem hierarquia, preferencialmente trabalhando em conjunto sob as diretrizes de pessoa respeitada por todos os grupos como uma autoridade. Essa linha do contato intercultural qualificado pode ser aplicada no ambiente escolar para tratar da questão racial, em especial, em escolas com poucas pessoas negras na posição de estudante ou de professor. Aliás, escolas que tenham poucas pessoas negras nas posições referidas podem promover ou participar de encontros com outras escolas de diferentes perfis, propiciando uma troca rica para seu público interno. Com base na teoria do contato, a Comissão de Direitos Humanos da Procuradoria-Geral do Estado do Rio Grande do Sul promoveu uma feira de Direitos Humanos, mobilizando 300 estudantes de escolas privadas e públicas. O evento reuniu estudantes com e sem deficiência, de escolas regulares e de escolas abertas, de ensino fundamental, médio e de educação 43 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista para jovens e adultos. Todos os grupos apresentaram trabalhos de pesquisa em direitos humanos e realizaram atividades culturais, bem como participaram de uma roda de conversa sobre direitos humanos. Ao realizar as mesmas tarefas e não apenas dividir um espaço físico, proporcionou-se uma expe- riência de igualdade e de valorização. O resultado positivo das avaliações respondidas pelos alunos e pelos professores confere segurança para dizer que esse é um método que pode levar ao alcance de resultados favoráveis. Tratar das histórias e das culturas indígenas e negras no âmbito escolar é uma ação valorativa capaz de enfrentar estereótipos e de elevar a autoes- tima dos grupos desvalorizados, bem como de mudar as suas relações com a educação formal e com a escola, ressaltando o direito à diferença e afastando critérios artificiais de diferenciação. Dessa forma, essa ação, ao impactar o desempenho escolar, assume também um caráter redistributivo, em outros termos, pode ampliar as condições para que esses estudantes tenham mais e melhores oportunidades de avanço acadêmico. Importa registrar que os ganhos também podem ser auferidos pelos estudantes integrantes do grupo potencialmente violador. Isso ocorre porque, ao estabelecer uma relação diferenciada e próxima com aqueles que são potencialmente discriminados, eles passam a pensar, sentir e agir com esteio no conhecimento e não em estereótipos ou em crenças. De igual importância se reveste a educação para as relações étnico-ra- ciais, porque essa objetiva que pessoas de diferentes grupos se conheçam, respeitem-se, reconheçam suas diferenças e semelhanças, podendo estudar, trabalhar e ter outros relacionamentos sempre de um modo colaborativo. Embora a lição de Fraser (2006, p. 232) aponte para a importância de harmonizar o direito ao reconhecimento e o direito à redistribuição econômica, realizando composição entre a política cultural da identidade e a política social da igualdade, é oportuno colacionar o seu conceito de ação valorativa ou de reconhecimento: 44 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista O remédio para a injustiça cultural, em contraste, é alguma espécie de mudança cultural ou simbólica. Pode envolver a revalorização das identidades desrespeitadas e dos produ- tos culturais dos grupos difamados. Pode envolver, também, o reconhecimento e a valorização positiva da diversidade cultural. Mais radicalmente ainda, pode envolver uma trans- formação abrangente dos padrões sociais de representa- ção, interpretação e comunicação, de modo a transformar o sentido do eu de todas as pessoas. Embora esses remédios difiram significativamente entre si, doravante vou me referir a todo esse grupo pelo termo genérico “reconhecimento”. Ao abordar a possibilidade de que uma parte dos estudantes seja tratada diferentemente por conta de raça, oportuniza-se momento de referir que de tal situação não apenas influencia a relação desses estudantes com a edu- cação formal, mas também interfere em seu desempenho e na permanência escolar. Com esteio em pesquisas do Center on Developing Child of Harvard Universitye e do National Scientific Council on the Developing Child, em 2020, foi informado que crianças negras e indígenas estadunidenses, ao enfrentarem constantemente racismo e outras formas de discriminação, têm seus sistemas de resposta ao stress ativados em níveis elevados por longo tempo e acabam por gerar desgaste excessivo em seus cérebros em desenvolvimento e em outros sistemas biológicos. Como consequência, haveria efeito na aprendi- zagem, no comportamento, na saúde física e na saúde mental. Como se isso não fosse suficiente, esses grupos raciais teriam menor expectativa de vida do que os brancos, independentemente do nível de renda, e mais casos de problemas crônicos de saúde . 2. A EXPERIÊNCIA DE CONSTITUIR UMA CULTURA FISCALIZATÓRIA RELATIVA A UMA POLÍTICA EDUCACIONAL ANTICASTA 45 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista Em 2003, foi editada a lei 10.639, que instituiu o artigo 26-A da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e esse dispositivo legal foi modi- ficado com o advento da lei 11.645/2008. O fim da norma que se extrai do dispositivo já mencionado é que, na íntegra do currículo das escolas de ensino fundamental e médio, privadas ou públicas, haja a inserção de temas e de questões que conduzam a um afastamento de um sistema eurocêntrico. Visa-se ao equilíbrio necessário que demonstre não haver superioridade ou inferioridade de algum ou de alguns dos grupos raciais formadores do povo brasileiro. Urge consignar que não se busca a alteração das posições na falsa hierarquia de raças e de culturas hoje existente. Objetiva-se que não haja posições de dominantes e de dominados, ou melhor, que não haja hierarquia cultural ou racial. Então está correto dizer que, por meio do conhecimento, pretende-se valorizar histórias e culturas atualmente desvalorizadas, promo- vendo valores humanitários consagrados. Daí a razão de se entender que se está diante de uma política anticasta. Outra decorrência do afastamento do eurocentrismo, informada pela mesma ideia, é a modificação das interações entre pessoas de grupos raciais diferentes com o intuito de gerar coesão e harmonia. Por isso, não é o bastante ministrar aulas sobre as histórias e as culturas indígenas e afro-brasileiras; é indispensável que haja tralho pertinente às relações étnico-raciais para que o desafio seja plenamente enfrentado. A alteração legislativa (configurada com as edições das leis 10639/2003 e 11645/2008), por si só, não é hábil a promover a passagem de um sistema para outro. Mister que haja planejamento, investimento em recursos humanos, criação de técnicas pedagógicas, monitoramento e avaliação ex ante e ex post. O silogismo concernente ao disposto no artigo 26-A da LDBEN e aos fatos da vida diária pertinentes ao que se está a falar permitem concluir 46 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista que há uma atenção especial às novas gerações, mirando na formação de novos processos de produção de subjetividade. Isso implica uma sociali- zação baseada no reconhecimento da validade das diferentes formas de ser e de viver, bem como no entendimento de que as oportunidades não podem ser limitadas por causa do pertencimento racial ou davinculação a especí- ficas culturas. Diferentemente de outras políticas, essa está estreitamente ligada à intergeracionalidade. Tal fato, seguramente, permite inferir que ela poderá otimizar outras políticas ligadas ao desenvolvimento social e econômico. Frisa-se, então, que se está diante de algo que representa um fim e também um meio: ao mesmo passo que há intervenção em uma infraestrutura social, a educação, geram-se efeitos em outros domínios. Nunca é assaz anotar que a influência dos fenômenos raciais causa retornos desproporcionais aos investimentos em educação, violência, ampliação dos gastos com saúde, injustiças no mundo trabalho, no sistema de segurança e no sistema de justiça, não oferta de oportunidades, desper- dício de talentos, obrigação de pagamento de indenizações, perda de com- petitividade de empresas e polarização. Em suma, há uma série de custos socioeconômicos, bem como de objetivos republicanos e de desenvolvimento sustentável que dependem do enfrentamento do racismo e dos demais fenô- menos raciais para que tenham o tratamento adequado. De toda forma, o primeiro passo é cumprir a norma, preparando os pro- fissionais e atualizando a documentação escolar (projeto político-pedagógico, plano de ensino e plano de aula). Diante da percepção de que, em numerosas vezes, o movimento social e os profissionais da educação mencionavam o artigo 26-A da LDBEN - alguns com expectativas que a normativa não podia satisfazer – e já tendo passado período correspondente a dez anos a con- tar da instituição do artigo referido, o signatário entrou em contato com o Ministério Público de Contas do Rio Grande do Sul. 47 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista A estratégia utilizada, diante da informação não oficial de que as escolas públicas e privadas não estariam cumprindo o que determinava e determina a LDBEN, era a de dirigir esforço para convencer entidade que pudesse exercer fiscalização de, pelo menos, uma parte desse grande número de esta- belecimentos de ensino, os públicos situados nos limites territoriais do Rio Grande do Sul. O fato é que a população negra no Rio Grande do Sul e em outros esta- dos não conseguia, e não consegue, incidir nas agendas políticas dos gover- nos e esses, em grande parte das vezes, não tomam os problemas que afli- gem a população negra como questões socialmente relevantes1. Com maior impossibilidade de mobilizar ações governamentais, a população indígena enfrenta situação ainda pior do que a da população negra no que se refere às pautas que definem as demandas prioritárias. A concepção de uma política pública apresenta duas fases: a identifica- ção de um problema e a definição da agenda política. No que tange às popu- lações indígena e negra, não é incomum ter questões específicas que não são tidas como um problema que mereça uma solução. Além de haver a influ- ência dos fenômenos raciais nos julgamentos e nas tomadas de decisão, é de se levar em conta a baixa representação dessas populações nas casas legislativas, nos ministérios e nas secretarias. Nesse contexto, naturaliza-se o não enfrentamento do que prejudica, fragiliza ou desatende parte da popu- lação brasileira. Retomando o trilho anteriormente mencionado, o Ministério Público de Contas foi procurado para explanação sobre o que determinava a LDBEN e sobre os dados atinentes ao racismo em três domínios além da educação. O objetivo era sublinhar como poderia ser diferente a situação se o pervasivo racismo fosse enfrentado no âmbito escolar. 1 Exemplo dessa situação é a inação estatal diante do grande número de jovens negros mortos por arma de fogo anualmente no país. 48 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista Tendo havido acolhida, foi criado um questionário sobre a temática que o Ministério Público de Contas se encarregou de enviar para uma significativa parcela dos municípios jurisdicionados que, divididos por região e por porte, correspondiam a aproximadamente 63% da população estadual. Recebidas as respostas, em acordo com o Ministério Público de Contas, passou-se a convidar pessoas da área da Educação e do Direito para que a amostragem fosse examinada sob os dois prismas. Dessa iniciativa nasceu o grupo que foi denominado de GT-26A. Nesse momento, tendo uma amostragem e o correspondente relatório em mãos, foi possível instar o Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul a iniciar, pioneiramente no Brasil, a fiscalização da implementação do que determina o artigo 26-A da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Nessa época, não era raro ouvir que o descumprimento legal se devia à resistência dos professores. Tal alegação estava em flagrante descompasso com o texto da lei. Ora, se estava estipulado que deveria ocorrer a altera- ção do currículo para serem inseridas as histórias e as culturas indígenas e afro-brasileiras, evidentemente, não cabia aos professores iniciarem esse processo, mas sim aos gestores educacionais. Isso valia para a instituição de disciplina específica na qual se ministraria educação para as relações étni- co-raciais ou se o tema fosse tratado de forma transversal em mais de uma disciplina. Oportuno asseverar que o Ministério da Educação, no início da vigência do artigo 26-A, deveria ter levado a cabo a mudança dos currículos das gra- duações. Diferentemente, cumpriu um roteiro antieconômico permitindo que estudantes saíssem das Universidades sem condições técnicas de dar concretude na rede básica ao que estava estampado no suficientemente indi- cado artigo da LDBEN. Quando esses, na qualidade de profissionais da edu- 49 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista cação, ingressavam nas redes públicas e privadas de ensino, deparavam-se com dificuldades que não tinham condição de superar. Se isso não fosse suficiente, o Ministério da Educação custeava cursos de capacitação ou de formação continuada apenas para as escolas públi- cas. Esse conhecimento, no entanto, deveria ter sido ofertado na gradua- ção. Diferentemente, era oferecido quando o então profissional podia estar trabalhando em dois turnos na escola2. A União deveria ofertar a disciplina de educação para as relações étnico-raciais e inserir as histórias e as culturas afro-brasileiras e indígenas em toda extensão do currículo nas escolas federais de nível fundamental e médio. Da mesma forma, os estados e municípios deveriam fazer o mesmo em seus sistemas de ensino. Aliás, o Estado tem em seu sistema escolas que oferecem o curso de magistério. Inegavelmente, as instituições que podem exercer a fiscalização falharam ao não se estruturarem adequadamente para essa função e ao não dimen- sionar o efeito para a sociedade de as escolas privadas e públicas darem concretude à estipulação legal. Nesse cenário, ganha mais relevo a decisão do Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul de se dedicar ao tema, acolhendo sugestão e apoio de agente externo, isto é, do GT26-A. Como de costume, o TCE iniciou trabalhando de forma educativa mesmo já tendo ocorrido o transcurso de onze anos de 2003 a 20143. Para tanto, em parceria com o GT26-A, promoveu seminários versando sobre o tema e conclamou gestores da educação e pessoas ligadas ao controle interno dos municípios e do Estado a comparecer. Sem sucesso, tentou-se que os conselhos de educação municipais e o estadual participassem dos eventos mencionados. 2 O conhecimento, como formação continuada, deveria ser oferecido somente para aqueles que não estavam na graduação quando da necessária mudança curricular nos estabelecimentos de nível superior. 3 https://jorgeterra.wordpress.com/wp-content/uploads/2014/03/oficio-tcers.jpg https://jorgeterra.wordpress.com/wp-content/uploads/2014/03/oficio-tcers.jpg 50 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista A relação entre o TCE/RS e o GT26-A se estruturou e se operacionali- zou sob o influxo colaborativo. Em outros termos,o GT26-A procurou saber mais sobre as competências e sobre os limites do TCE/RS, visando fazer propostas realistas e eficazes. O TCE/RS, por seu turno, por meio daqueles que trabalharam diretamente com o GT26-A, empenhou-se em se apropriar rapidamente dos temas tratados. Com base na experiência e no conhecimento de professores e de audi- tores externos, o questionário foi aprimorado, permitindo um levantamento mais adequado de dados, bem como a indução das escolas a se prepararem para a desejada implementação. Em verdade, o questionário tem sido cons- tantemente avaliado e aperfeiçoado desde 2015 . A declaração do TCE/RS de que realizaria a fiscalização teve impacto imediato no meio dos municípios jurisdicionados, pois esses passaram a ten- tar obter informações sobre o escopo dessa atividade. Lamentável é que esse interesse dos jurisdicionados não se traduziu em rápida adequação documen- tal e, por óbvio, em concretização do que viesse a constar nos atualizados documentos escolares (projeto político-pedagógico, plano de ensino e plano de aula). Por outro lado, constatou-se ampliação do número de processos formativos e de atividades sobre a temática no âmbito dos sistemas de ensino capitaneados pelo Estado e pelos municípios. Indispensável dizer que o objetivo do GT26-A é dar suporte ao Tribunal de Constas do Estado do Rio Grande do Sul para que este sempre efetu- asse auditoria de forma correta, justa e célere. Para tanto, desde o primeiro momento, foi promovida a capacitação dos Auditores externos inclusive quando a auditoria foi realizada de forma virtual nos 497 municípios gaúchos. A Escola de gestão do Tribunal de Contas do Estado, com o apoio do GT26-A, produziu um curso com o intuito de repassar informações, em especial, para que os Auditores externos saibam as consequências edu- cacionais e sociais do trabalho que precisam realizar. 51 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista O GT26-A, com o fito de orientar e facilitar a concretização de audi- torias in loco, criou documentos escolares para que os Auditores externos soubessem as formas possíveis de constar a temática auditada no projeto político-pedagógico, no plano de ensino e no plano de aula. Frisa-se que o Tribunal de Contas tem condição de fazer análise documental, sendo invi- ável que Auditor externo acompanhe aula ou aulas nas escolas do Estado ou de algum município com o fim de comprovar a plena adequação à lei. Por essa razão, sempre se procurou dizer que o controle oficial não substi- tuiria o controle social. Essas duas formas de controles são complementares e necessárias. Cumpre registrar que, a despeito dos esforços dispendidos, não se obteve a participação efetiva e sintonizada dos conselhos de educação esta- dual e municipais. Por outro lado, o GT26-A não dirigiu esforços para transmitir conhecimento e forma de os pais e responsáveis acompanharem o que fosse transmitido aos estudantes. Na continuidade do trabalho, utilizando-se de site específico, poderá o GT26-A transmitir conhecimento e estimular o controle por meio da sociedade. Conferindo maior visibilidade ao trabalho desempenhado pelo GT26-A junto ao Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul desde 2013, foi lançada uma obra sobre educação antirracista no formato de e-book e ela está disponível no site do TCE/RS. Acompanhando a evolução da discussão nas redes de ensino audita- das, bem como na sociedade, em 2025, será produzido um novo curso a ser disponibilizado para redes de ensino e, principalmente, para outros Tribunais de Contas . No ano de 2023, foi realizado seminário alusivo aos dez anos do GT26-A, momento no qual ficou estabelecido que esse grupo será for- malizado mediante a celebração de instrumento jurídico entre o Tribunal e a 52 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista Universidade Federal do Rio Grande do Sul, permitindo-se o convite de pes- soas vinculadas a outras instituições. O GT26-A sempre teve o objetivo de que o trabalho desenvolvido com o Tribunal fosse replicado e esse servisse de referencial para outros órgãos de controle. Assim sendo, considerou-se como uma importante vitória a con- solidação das Cortes de Contas como instituições fiscalizadoras do cumpri- mento do artigo 26-A da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Essa consolidação se perfectibilizou quando a Associação dos Membros de Tribunais de Contas do Brasil (ATRICON), em 2023, inseriu a fiscalização mencionada no Marco de Medição do Desempenho dos Tribunais de Contas (MMD-TC). O Marco de Medição do Desempenho dos Tribunais de Contas é ferramenta de análise de desempenho das Cortes de Contas. Assim sendo, os Tribunais de Contas terão de exercer a fiscalização da implementação do que determina o artigo 26-A da Lei de Diretrizes e Bases da Educacional Nacional porque esse é o critério de avaliação do indicador “Fiscalização e Auditoria da Gestão da Educação”. Nessa quadra, é de se parabenizar a ATRICON pelo caráter indutor da sua iniciativa. CONSIDERAÇÕES FINAIS A pendente implementação do que dispõe o artigo 26-A da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional segue a passos extremamente lentos no Brasil. Aquele estudante que, no ano de 2003, estava na então primeira série, hoje primeiro ano do nível fundamental, pode já ter concluído o doutoramento nesses vinte e um anos. Não há dúvida de que outros órgãos de controle como o Ministério Público e a Defensoria, que inclusive podem ter um escopo de atuação maior por poderem também fiscalizar as escolas privadas, precisam se engajar 53 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista nesse processo. Aliás, tendo por base a experiência aqui referida, esses órgãos podem buscar o apoio de professores e de pesquisadores, o que lhes permi- tiria realizar composições extrajudiciais com segurança. As escolas, por seu turno, não precisam aguardar a fiscalização ou a ocorrência de desgastantes casos de racismo para agir. Elas podem se pre- parar para constituir um robusto plano que conduza à adequação dos docu- mentos escolares e a uma realidade escolar fiel a essa documentação. Não é novidade que, quanto mais cedo são alcançados conhecimentos e valores humanitários relativos à igualdade, à justiça e à liberdade e ao desenvolvimento, maiores são as probabilidades de se formar adultos anti- discriminadores. Então que seja no primeiro espaço público frequentado que as crianças comecem a constituir um país mais justo . REFERÊNCIAS ALLPORT, G. W. The nature of prejudice. Cambridge: Addison-Wesley Publishing Company, 1966. EDDO-LODGE, R. Why I’m no longer talking to white people about race. London: Bloomsbury publishing, 2018. MIRANDA, F. C. P. de. Democracia, Liberdade, Igualdade: os três caminhos. Rio de Janeiro: Olympio, 1945. NATIONAL SCIENTIFIC COUNCIL ON THE DEVELOPING CHILD. Connecting the Brain to the Rest of the Body: Early Childhood Development and Lifelong Health Are Deeply Intertwined: Working Paper No. 15. Retrieved from www. developingchild.harvard.edu, 2020. SILVA, J. L. T. Cidadania, fenômenos raciais e tecnologia. In: SARLET, I. W.; RUARO, R. L.; LEAL, A. A. F. (orgs). Direito, Ambiente e Tecnologia: estudos em homenagem ao professor Carlos Alberto Molinaro. Porto Alegre: Editora Fundação Fênix, 2021, p. 928. 54 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista SILVA, J. B. de A. e. Representação a Assemblea Geral Constituinte e Legislativa do imperio do Brasil sobre a escravatura. Paris: Typographia de Firmin Didot, 1825. STAUB, E. Preventing violence and generating humane values: healing and reconciliation in Rwanda. In: IRRC, vol. 85, n.852, p. 791 – 806, December, 2003. THALER, R. H.; SUNSTEIN, C. R. Nudge: Improving Decisions about Health, Wealth, and Happiness. New Haven: Yale University Press, 2008. 55 EDUCAÇÃO INDÍGENA E MULTICULTURALIDADE: DIREITO FUNDAMENTAL E INSTRUMENTO DE ENFRENTAMENTOAO RACISMO “O Império deu lugar a uma República de Fazendeiros” (Muniz Sodré) Edson Kayapó Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia – IFBA Núcleo de Direitos Indígenas e Quilombolas da Comissão de Direitos Humanos da OAB/SP Museu de Arte de São Paulo (MASP) Flávio de Leão Bastos Pereira Universidade Presbiteriana Mackenzie Advogado atuante perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos em defesa dos povos indígenas Núcleo de Direitos Indígenas e Quilombolas da Comissão de Direitos Humanos da OAB/SP Technische Hochschule Nürnberg Georg Simon Ohm Membro Associado da Associação de Advogadas/os, Juízas/es e Promotoras/es em Direitos Humanos da América Latina e Caribe 56 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista INTRODUÇÃO É cediço que o direito à educação representa uma das mais importantes prerrogativas componentes do rol de direitos sociais reconhecidos pelas sociedades contemporâneas, desde o advento do conjunto de fatores políti- cos, econômicos, sociais e jurídicos que viabilizaram o reconhecimento deste mencionado grupo de direitos pelas ordens jurídicas nacionais e também pelo Direito Internacional, desde a Constituição do México de 1917. Assim, não é difícil constatar como as sociedades que mais valorizam e investem na educação encontram-se mais próximas de alcançar um pata- mar de bem-estar social, especialmente sob o atual cenário antropocênico e sob um contexto capitalista que vem, atualmente, de modo mais acelerado, comprometendo o planeta tanto por meio da concentração de renda e manu- tenção de injustiças sociais, quanto pela degradação ambiental cada vez mais intensa, sempre com o objetivo de acumulação de riquezas para poucos. Se é possível identificar e extrair proposições voltadas ao desenvol- vimento sustentável e justo das sociedades a partir do modelo predatório acima, certamente a educação constitui o instrumento mais idôneo e eficaz para que soluções que considerem a preservação do planeta, de suas identi- dades e a distribuição sustentável dos recursos necessários à sobrevivência da espécie humana possam ser alcançadas. Neste sentido, considerando o caso brasileiro (e podemos identificar exemplos semelhantes em outras experiências latino-americanas), o sis- tema educacional foi, historicamente, utilizado como veículo supremacista, racista, eugênico, excludente e hegemônico. Assim, o epistemicídio em relação às culturas indígenas (e também africanas) e suas histórias, que caracteriza o sofrível sistema educacional brasileiro desde quando se passou a conce- ber o Brasil como um país a partir de 1808, não resulta de erros, equívocos 57 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista ou ausência de visão de nação, mas de um cálculo decorrente de decisões políticas racialistas. A Constituição da República de 1988 rompe com a visão assimilacionista (e, por óbvio, etnocida1) ao garantir que os referenciais culturais que com- põem o processo civilizatório brasileiro sejam acessíveis e exercíveis pela sociedade (artigo 215, §1°, CF/88). Também, ao estabelecer como fundamento da República o pluralismo político (artigo 1º, inciso V). Neste sentido, repensar o sistema educacional brasileiro para que seus currículos viabilizem o acesso à história e ao conhecimento produzidos pelas sociedades indígenas (e africanas) do Brasil, com o consequente resgate das novas gerações, submetidas a visões limitadas apenas a parâmetros colonizadores que geram a ignorância de um país em relação às próprias origens e identidades, revela-se como etapa inafastável na construção de um país verdadeiramente democrático, desenvolvido e antirracista. Referida análise é o objeto do texto ora proposto. 1. EDUCAÇÃO MULTICULTURAL: PARÂMETROS NA ORDEM CONSTITUCIONAL BRASILEIRA E NO DIREITO INTERNACIONAL Sob a perspectiva política, e para além de um direito humano funda- mental, a educação pode ser considerada como elemento estratégico para a permanente via de construção da democracia. Inversamente, é também veículo eficaz para a consolidação de sociedades totalitárias, ditatoriais, auto- cráticas ou, ainda que formalmente democráticas, essencialmente autoritárias e racistas. 1 Utilizamos o termo “genocida”, no contexto do texto, sob a visão de Raphael Lemkin, criador do termo genocídio e que considera o genocídio passível de ser cometido não apenas pelo exter- mínio físico, mas também pelo apagamento de uma cultura (etnocídio). Ver LEMKIN, Raphael. El Domínio del Eje en la Europa Ocupada. Buenos Aires: Prometeo Libros; Eduntref, 2009, capítulo IX. 58 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista A história do Brasil é pródiga em exemplos que apontam para as deci- sões políticas e, mesmo constitucionais, excludentes. Em realidade, exclusão e desigualdade são projetos previamente elaborados que marcam a formação da sociedade brasileira. A título de exemplo, mesmo a primeira Constituição social do país, de 1934, em seu artigo 138, determinava a competência da União, Estados e Municípios em estimular a educação eugênica. A pro- clamação da República brasileira, por meio de golpe militar, não significou uma mudança substancial de visão em termos de nação, cidadania e espirito coletivo, mas adaptação de uma sociedade escravista com o olhar voltado para as sociedades industrializadas, liberais e capitalistas, mantidas as estrutu- ras oligárquicas e que, até os dias de hoje, explicam, em parte, a falta de cons- ciência republicana de grande parcela da população que, em pleno século XXI, ainda anseio pela restauração de ditaduras militares em solo brasileiro. Interessante a análise de Muniz Sodré a respeito das raízes históricas oligárquico-racialistas e que são, ainda, engrenagens que condicionam o fun- cionamento da sociedade brasileira (Sodré, 2023, p. 37): Muito diferente do americano é o caso do Brasil, marcado por baixa cultura republicana, ou seja, por mediações sociais mais “familiais” (relações de parentesco, compadrio, amizade e cooptação grupal) do que legais. A transição histórica foi “proclamada” por militares tornados republicanos de curta data...uma espécie de vanguarda ao atraso, ou seja, a guarda palaciana do Império convertida em guarda constitucional: os mesmo que antes coonestavam a tortura dos escravos e que quase exterminaram a população paraguaia em nome do imperador. O Império deu lugar a uma República de Fazendeiros. País territorialmente segmentado e contro- lado por oligarquias latifundiárias, não houve aqui um pacto fundacional dos estados, e sim uma transformação multis- secular da empresa colonial das origens – realizada por lati- fúndio monocultor e regime escravista, no lugar de Estado – em território nacional. 59 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista Não é apenas a história do Brasil que apresenta, à evidência, na América Latina, contextos históricos condicionantes que, até os dias atuais, têm suas consequências diariamente constatáveis, guardadas as realidades próprias de cada país. Em distintas sociedades americanas, os respectivos sistemas educacionais foram mobilizados para o apagamento das sociedades autóc- tones, suas histórias, dinastias, culturas e identidades. Em relação aos povos indígenas, o continente americano possui uma dinâmica comum: as esco- las colonizadoras foram responsáveis, em grande parte, pela erradicação dos povos originários de sua própria historiografia. Idiomas, culturas, hábitos, crenças, sistemas econômicos, entre outros, foram, sem exceção, eliminados. Podemos mencionar dois exemplos marcantes e objetos de debates: o caso das escolas canadenses para indígenas (em estágio avançado quanto à construção de sua memória coletiva; apuração da verdade histórica e efe- tivação da justiça); e, o caso do Uruguai, cuja sociedade vem sendo palco de recentes e relevantes debates sobre seu passado indígena, julgado extinto pela maioria deseus cidadãos. No caso canadense, o respectivo processo para apuração das massivas violações cometidas durante décadas contra crianças indígenas pelo fami- gerado sistema de escolas residenciais indígenas ainda é objeto de perma- nentes ações para concretizado de sua justiça de transição (GOVERNMENT OF CANADA). O processo de implantação de uma educação colonizadora predominou no hemisfério norte, como analisado por Alex Alvarez (2014, p. 1432, tradução livre): 2 Texto original em inglês: The ideia of using formal schools and education as a way do forcibly incul- cate Western mores, beliefs, and traditions among Native Americans datas back to the first settel- ments and colonies. The Spanish used schools in their mission stations in an attempt to bring both Christianity and European values to the Natives under their sway, and as early as the 1600s Jesuit missionaries established missions in what would become Maine, New York, Wisconsin, Michigan, Ohio, Illinois and Louisiana, as well as in Canada. In the British portions of North America, King James odered the creation of "some churches and schools for ye education of ye children of these Barbarians in Virginia." To this end, the Virginia Company tried to develop a system in which Native yourths would be raised and educated in the homes of British colonists and also tried to se up a college for Native Americans, both attempts ultimately failing. In New England, the Puritans put a great deal of effort into converting and educating Natives by creating an entire system of "Indian Praying Towns" where Natives would live, work, dress, and pray in Anglo fashion". 60 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista A ideia de usar escolas e educação formais como forma de inculcar à força os costumes, crenças e tradições oci- dentais entre os nativos americanos remonta aos primeiros assentamentos e colônias. Os espanhóis usaram escolas em suas estações missionárias na tentativa de impor o cristia- nismo e os valores europeus para os nativos sob seu domínio, e já em 1600, missionários jesuítas estabeleceram missões no que se tornariam o Maine, Nova York, Wisconsin, Michigan, Ohio, Illinois e Louisiana, bem como no Canadá. Nas porções britânicas da América do Norte, o rei Jaime ordenou a criação de "algumas igrejas e escolas para a educação dos filhos des- ses bárbaros na Virgínia". Para este fim, a Virginia Company tentou desenvolver um sistema no qual os jovens nativos seriam criados e educados nas casas dos colonos britânicos e também tentou criar uma faculdade para os nativos ame- ricanos, ambas tentativas fracassadas. Na Nova Inglaterra, os puritanos fizeram um grande esforço para converter e edu- car os nativos, criando todo um sistema de "cidades indígenas de oração", onde os nativos viveriam, trabalhariam, vestiriam- -se e orariam no estilo anglo-americano. A América do Sul não se viu livre do processo colonizador-educacio- nal etnocida. Um dos primeiros países da região a estabelecer um sistema educacional foi o Uruguai. Atualmente, é comum e propagada a ideia de que esta República sul-americana não mais possui indígenas entre sua popu- lação. Com o nome do país de origem Guarani, a existência de indígenas em seu território não é reconhecida. Operações militares do século XIX (1831) levou o povo Charrúa à extinção por meio de um genocídio. Contudo, desde meados da década de oitenta determinados grupos da sociedade uruguaia vêm reivindicando sua ascendência e suas identidades Charrúa. A partir de meados da segunda metade do século XX, recentes relatos identitários foram registrados a partir de novos cenários políticos (Asenjo, 2023). 61 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista Assim, também no Uruguai o sistema de ensino sempre priorizou os mitos nacionais e tratou os povos indígenas como um passado não mais existente. Neste sentido: Os manuais escolares, o índio em todas as lembran- ças. O índio é ensinado segundo os símbolos patrióticos, que geralmente são a primeira abordagem da História. Aqui, o jogo dialético entre identidade e alteridade no Uruguai, não se contentando com alteridades exógenas, teve que recorrer a alteridades endógenas: negros, imigrantes e, claro, indígenas e mestiços, na forma do crioulo ou do gaucho. Este fato é visível nos manuais escolares, que cons- tituem um vetor privilegiado de propaganda patriótica, e cuja função é, em parte, ajudar na construção de uma identidade coletiva. É assim que o eu-narrador se transforma em um nós homogêneo, forjando assim o sentimento de pertenci- mento buscado (Sansón Corbo, 2011).3 (Asenjo, 2023, p. 329, 330, livre tradução). Como se denota pela análise dos exemplos oriundos de outras nações americanas, os sistemas educacionais, via de regra, consistiram em eficientes modelos para objetivos de homogeneização cultural-étnico-racial e construção de um sentimento nacional. Não foi diferente no Brasil . No plano normativo, especialmente a partir do pós-guerra e com a ampliação dos instrumentos normativos internacionais protetivos dos direitos humanos, o reconhecimento da multiculturalidade enquanto fundamento para as sociedades democráticas passou a ser incorporado tanto 3 Texto original em castelhano: Los manuales escolares, el indio en todas las memorias. El indio se enseña después de los símbolos patrióticos, que son generalmente el primer acercamiento a la Historia. Aquí, el juego diálectico entre identidad y alteridad en Uruguay, al no satisfacerse con alteridades exógenas, debió recurrir a las alteridades endógenas: negros, inmigrantes, y por supuesto indígenas y mestizos, bajo la forma del criollo o del gaucho. Este hecho es visible en los textos escolares que son un vector privilegiado de la propaganda patriótica, y cuya función es en parte ayudar a la construcción de una identidad colectiva. Es así que el yo-narrador se transfor- ma en un nosotros homogéneo, forjando de esa manera el sentimiento de pertenencia buscado (Sansón Corbo, 2011). 62 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista em normas de soft-law quanto de hard-law. Como exemplo, podemos citar a Declaração das Nações Unidas Sobre os Direitos dos Povos Indígenas (2007), que estabelece, em seu artigo 13, o direito dos povos indígenas de revitalizar, utilizar, desenvolver e transmitir às gerações futuras suas histórias, idiomas, tradições orais, filosofias, sistemas de escrita e literaturas, e de atribuir nomes às suas comunidades, lugares e pessoas e de mantê-los. (ONU, 2007). Ainda, a Declaração Americana Sobre os Direitos dos Povos Indígenas (OEA, 2016), que, dentre várias determinações relacionadas à educação, estabelece a obrigação dos Estados, em conjunto com os povos indígenas, de garantir currículos que projetem a natureza multicultural de suas sociedades, nos termos seguintes: Os Estados promoverão relações interculturais harmônicas, assegurando nos sistemas educacionais estatais currículos com conteúdo que reflita a natureza pluricultural e multilín- gue de suas sociedades, e que incentivem o respeito e o conhecimento das diversas culturas indígenas. Os Estados, em conjunto com os povos indígenas, incentivarão a educa- ção intercultural que reflita as cosmovisões, histórias, línguas, conhecimentos, valores, culturas, práticas e formas de vida desses povos . O sistema constitucional brasileiro, como já enfatizado anteriormente, rompe com a visão secular assimilacionista (e etnocida) com a promulgação da Constituição da República de 1988, que deixa de entender os povos indí- genas como uma categoria social transitória (CIMI), especialmente por conta da consagração de princípios norteadores da efetivação do direito à educa- ção como o pluralismo de ideias, o pluralismo de concepções pedagógicas, a gestão democrática e a universalização, dentre outros . A própria República é fundamentada no pluralismo político, princípio que estabelece comobase fundante a garantia de efetivação, acesso e exer- 63 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista cício a todas os referenciais culturais formadores do processo civilizatório brasileiro (CF/88, artigo 1º, inciso V c/c artigo 215, §1°). Cumpre, ainda, salientar que normas infraconstitucionais também asse- guram a conexão entre o ensino tradicional vigente na sociedade dominante e os referenciais educacionais indígenas, como é o caso da Lei n° 10.172/2001, que aprova o Plano Nacional de Educação) e prevê, em seu item 9, as dire- trizes para implantação da educação indígena, incluídas suas diretrizes (item 9.2), além dos objetivos e metas (item 9.3). A Lei de Diretrizes e Bases da Educação estabelece, ainda, em seu artigo 79, que programas integrados de ensino e pesquisa devem ser elaborados com a oitiva das comunidades indígenas. Como explica Villares (2013, p. 273): Toda legislação relativa à educação indígena prevê o respeito à cultura e à participação dos povos indígenas na formulação e execução da política de educação. Ela permite que o sistema escolar indígena seja inserido no sistema geral e, ao mesmo tempo, utilize a língua indígena, respeite os conhecimentos tradicionais, use material didático específico preparado pelos próprios indígenas, calendário adaptado aos costumes e fes- tas indígenas, tenha professores indígenas, currículo e dire- trizes próprias, participação da comunidade indígena etc. A par da previsão legal, a prática da educação indígena está longe da idealizada. A construção de uma sociedade substancialmente democrática passa pelos processos de decolonização em todas as suas searas, incluída a educa- cional, isto é, dinâmicas de conscientização e postura necessárias à cessação da base teológica e das fundações europeias para a (epistemologia) teoria do conhecimento e exegese (hermenêutica), como ensina Álvaro de Azevedo Gonzaga Guarani-Kayowá (Gonzaga, 2021, p. 132). 64 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista Referido processo decolonizador se impõe atualmente como condi- ção indispensável para o setor público, para o setor privado, para o terceiro setor. Aliás, assegurar a educação inclusiva, equitativa, de qualidade e pro- mover oportunidades de aprendizagem ao longo da vida para todas e todos, sem exceção, constitui o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável n°4, das Nações Unidas (ODS 4). Como já pudemos enfatizar, devem o Estado e a sociedade brasileira, inclusive o setor privado e produtivo, preservar os referenciais identitários dos povos indígenas e de suas culturas,... por meio de políticas públicas eficazes (Kayapó; Kayapó; Pereira, 2022). 2. DIÁLOGOS INTERCULTURAIS E DEMOCRATIZAÇÃO DO CONHECIMENTO: VIA DEMOCRÁTICA RUMO AO REENCONTRO DOS BRASILEIROS COM SUAS ORIGENS. A lei 11.645/08, que estabelece a obrigatoriedade do estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena nas escolas, abre novos horizontes para o ensino da história e cultura dos povos indígenas, possibilitando o rompi- mento com o silêncio e com a memória distorcida produzida pelos grupos hegemônicos. A tarefa a ser realizada pelas instituições educacionais é a construção de um olhar renovado e propositivo sobre a temática indígena, combatendo a narrativa hegemônica que pretende ser a única voz autorizada, amorda- çando as vozes das diversidades sociolinguísticas e cosmológicas. A chegada das caravelas colonizadoras nos territórios originários inau- gurou um brutal processo de violência que culminaria no extermínio dos povos indígenas, se não fossem as habilidosas estratégias de resistências projetadas e executadas por esses povos. Uma das agências ideológicas amplamente utilizadas pelos agentes colonizadores foi a educação, visando assimilar, civilizar e catequizar (obje- 65 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista tivos intimamente interligados), fazendo desaparecer os traços dos per- tencimentos identitários e, ao mesmo tempo, promovendo a conformação dos originários habitantes ao projeto colonial. No período pós-independência do Brasil, a educação manteve-se fortemente vinculada aos ideais cristãos, acrescendo-se o ideal de abrasileiramento e de integração dos povos indí- genas à nação brasileira. O passado genocida e epistemicida implantado pelo projeto coloniza- dor deixa rastros duradouros. Quijano (1997) nomeia como “colonialidade” o vínculo duradouro entre o passado e o presente, configurando-se como um padrão de poder entendido como uma experiência colonial moderna. Desse modo, podemos conceber o silêncio dos povos indígenas nas práti- cas escolares como tributário de práticas coloniais, que reproduzem tanto o esquecimento quanto os discursos herdados da ideia do “índio” bestial, sem fé, sem rei, sem lei e dotado de uma natureza inferior, tanto biologica- mente quanto culturalmente. Analisando as perspectivas indigenistas colonizadoras que proliferaram no Brasil e suas implicações na educação escolar, é relevante o estudo da pro- fessora Bittencourt (2013), onde é constatado que, nos tempos da monarquia, foi difundida a imagem do "índio" selvagem e genérico nas escolas, o que pode ser entendido como uma marca da historiografia produzida sob as influ- ências de Francisco Varnhagen sobre os povos indígenas, a exemplo do livro História Geral do Brasil (1854), para uso nas escolas de instrução primária. Varnhagen, era um dos mais respeitados intelectuais do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, defendia que essas sociedades não tinham história, apenas etnografia, e que seu fatal destino era a extinção. Durante todo o período monárquico, os livros didáticos eram repletos de ilustrações iconográficas que faziam alusões às características genéri- cas da cultura indígena, ignorando qualquer traço de identidade particular ou valorização das diversidades socioculturais. 66 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista Gersem Baniwa4 (2006a; 2006b), respeitado intelectual indígena, lembra que, a partir do século XX, a historiografia brasileira pautou o debate em torno do índio da mestiçagem étnica à democracia racial, cuja preocupação era a “formação do povo brasileiro em seus aspectos de miscigenação” (Bittencourt, 2013 p. 115), em que se buscava referendar algumas das qualidades herdadas dos indígenas na composição do povo brasileiro. Nas escolas e nos livros didáticos, os debates aconteciam em torno da dubiedade entre o “índio sel- vagem”, vítima da crueldade colonizadora, mas detentor de potenciais carac- terísticas que compõem a cultura nacional mestiça. Assim sendo, os povos indígenas foram transformados em mestiços, sem qualquer interesse da escola em conhecer o seu passado e seu presente. Afinal, a mestiçagem era vista de forma otimista na construção da identidade brasileira, apagando as histórias, memórias, saberes e línguas desses povos. Tal perspectiva anula os conflitos travados entre povos indígenas e coloni- zadores e aponta para o futuro nacional sem vencidos e vencedores, dando lugar ao discurso da “democracia racial”. Nas décadas posteriores, a educação escolar manteve o silenciamento e a subalternização dos povos indígenas. Durante quase todo o século XX, foi propagada a perspectiva da “democracia racial”, com destaque à ideia de que o processo de miscigenação teve a necessária predominância da “raça branca” sobre os demais grupos formadores do povo brasileiro. Fica evidente que as escolas e seus currículos, sutilmente ou declarada- mente, vêm acompanhando a ação genocida do Estado, apagando as memó- rias e as histórias desses povos nas suas ações pedagógicas. Um aspecto que merece atenção é a criação do mito do “índio genérico e exótico”: o currículo escolar se reporta ao Tupi, a Tupã e apresenta todos os indígenas com tipo físico semelhante, vivendo nus nas florestas. Trata-se 4 Para buscar o pesquisador na plataforma Lattes, deve-se utilizar o nome GersemJosé dos Santos Luciano. 67 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista de uma representação repleta de estereótipos, romantizações e generalida- des, quase sempre lembrada por ocasião do dia 19 de abril, data eleita para comemorar o “dia do índio”. Toda essa maneira de pensar e ensinar a história e cultura dos povos indígenas está sob suspeita nas últimas décadas. A escola e o ensino de História são repensados no diálogo com os movimentos sociais demo- cráticos, e particularmente no diálogo com o movimento indígena. Os debates ensinam que são necessárias relações pedagógicas que reconheçam a pluralidade da nação brasileira e a diversidade dos povos indígenas, ressaltando que esses povos estão inseridos na história e no tempo presente. O novo olhar pedagógico deve dialogar com os projetos de resistência e de re-existência dos povos indígenas, denunciando a brutalidade das “guerras justas”, a escravidão, as epidemias programadas e a desestruturação de seus modos próprios de organização social. De igual modo é necessário compreender que toda essa dinâmica de enfrentamentos colaborou para a atualização das suas línguas, cosmologias e modos de vida . Para além da perspectiva que enxerga apenas traços indígenas herda- dos pelo povo brasileiro, é preciso investigar a fundo as contribuições desses povos à cultura nacional, evidenciando os povos indígenas no mundo con- temporâneo e seus saberes milenarmente construídos. Berta Ribeiro (1995) assinala que os povos indígenas são detentores de saberes que passam pelo campo do manejo florestal, práticas agrícolas e medicinais que fazem parte do convívio cotidiano nas aldeias e nos meios não-indígenas. A autora demonstra que as pesquisas realizadas por antropólogos e biólogos entre os indígenas levaram ao desenvolvimento de ramos associados entre a etno- logia e a biologia, aos quais se deu o nome de etnobotânica, etnozoologia e outros campos da etnociência. 68 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista Vale ressaltar que o estudo da história e da cultura dos povos indígenas nas escolas não podem se restringir às histórias das derrotas e das perdas, que culminam na narrativa do extermínio. Tal perspectiva derrotista silencia as histórias das resistências e das estratégias de continuidade e manutenção das tradições originárias, que pressupõem históricas ações de autodefesa, pactos e diálogos com os grupos políticos do entorno. Os dados apresentados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), referentes à contagem da população em 2022, repor- tam-se ao aumento de quase oitenta por cento da população indígena no país, em comparação com os números do censo de 2010. Em todos os estados brasileiros e em quase todos os municípios, foi identificada a presença de indí- genas, dando claro sinal de que, apesar da vigência do projeto genocida, os povos originários resistem, revitalizam suas línguas, memórias históricas e cosmologias e, ao mesmo tempo, lutam pela demarcação de seus territórios originários, realizam a autodemarcação e conduzem seus projetos societários em coletividade. Em tempos antropocênicos, com fortes sintomas do esgotamento das relações socioambientais predatórias, é necessário que a escola assuma a responsabilidade de debater a emergência climática. Nesse contexto, o diá- logo com os povos indígenas e seus saberes, mais uma vez, mostra-se perti- nente, uma vez que esses povos têm demonstrado a capacidade de conviver de maneira simples, sem serem contaminados pelo consumismo desenfreado próprio do sistema capitalista doentio, além de viverem em equilíbrio com a natureza e todos os elementos que a compõem, o que significa dizer que são eles portadores de um saber que envolve conhecimentos experimentados e milenarmente construídos. Um dos desafios é romper com a tendência de identificar a diversi- dade sociocultural e as organizações próprias desses povos como inimigos do progresso e da soberania nacional. A escola pode se tornar uma agência 69 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista de proteção dos seus direitos, com destaque para o direito aos seus ter- ritórios originários, espaços cosmogônicos de produção da vida, vitais para o equilíbrio climático no planeta. É importante destacar ainda a necessidades da reestruturação curricu- lar dos cursos de licenciaturas nas instituições de ensino superior no Brasil, bem como lembrar o poder público e as demais instituições mantenedoras das escolas sobre a necessidade de viabilizar a formação continuada do corpo docente, qualificando-os para atuar com a temática indígena em sala de aula . Outro aspecto relevante é a necessidade do protagonismo indígena nas formações dos profissionais docentes, tanto na formação inicial quanto na formação continuada. As instituições devem garantir a presença de sábias e sábios indígenas em tais formações, bem como devem viabilizar o diálogo com a produção intelectual dos escritores indígenas. Está aberto o convite e o desafio para o estabelecimento de diálogos interculturais, buscando promover a democratização do conhecimento e a revisão de tudo o que a sociedade e as escolas sabem e ensinam sobre a temática indígena. É a oportunidade das crianças, adolescentes e jovens terem contato com outras histórias, que podem promover o sentimento de pertencimento e de responsabilidade com a Terra. CONSIDERAÇÕES FINAIS Resta patente a estruturação jurídico-constitucional, bem como inter- nacional, definidora da multiculturalidade como norte e fundamento para a realização de uma sociedade democrática de fato a partir da viabilização de um sistema educacional multicultural. O protagonismo dos povos indíge- nas no desenvolvimento ancestral de suas culturas, instituições e crenças, 70 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista além de suas lutas de resistência diante do avassalador processo coloniza- dor, deve compor as bases epistemológicas antes apagadas. Essas bases apontam para um futuro promissor marcado pelo resgate de uma identidade brasileira mais completa pelo acesso aos referenciais culturais componentes do processo de formação do povo brasileiro, inclusive a partir dos povos indígenas do Brasil . Como demonstrado pelo presente artigo, o sistema educacional, his- toricamente, revelou-se um importante instrumento para o cometimento do etnocídio e do epistemicídio, promovendo a erradicação dos referenciais culturais próprios das nações originárias, tanto na historiografia brasileira quanto nas Américas, que cedem espaço para os referenciais eurocêntricos. Dentre inúmeros reflexos e consequências do mencionado processo colonizador e epistemicida, destacam-se o racismo enquanto mecanismo estrutural e institucional para o funcionamento da sociedade brasileira, bem como o esgotamento dos recursos naturais, que define o período do antropoceno, atualmente em curso . Neste sentido, decolonizar o sistema educacional brasileiro (e dos demais países americanos) constitui tarefa urgente, visando à ampliação do conhecimento e à compreensão mais completa sobre a própria identidade, pelas novas e futuras gerações, condição indispensável para a sobrevivência do planeta e da própria espécie humana . A reformulação democrática e pluricultural do sistema educacional brasi- leiro, de modo a que as culturas originárias, bem como a visibilização não ape- nas dos genocídios impostos e suportados por tais povos, mas também sobre suas tradições, histórias, dinastias, seus mitos e crenças, além de toda a influ- ência que exercem sobre os referenciais da sociedade dominante, representa importante avanço no combate ao racismo. Afinal, o conhecimento é um fator que favorece a alteridade e, portanto, contribui para a criação de um ambiente de pertencimento e de solidariedade. 7 1 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista REFERÊNCIAS ALVAREZ,Alex. Native America and the question of genocide. Maryland: Rowman & Littlefield, 2014. ASENJO, Dario Arce. Uruguay, Una Nación de Extremo-Occidente En El Espejo de Su História Indígena. Fundación de Cultura Universitaria: Montevideo, 2023. BITTENCOURT, M. Circe F. História das populações indígenas na escola: memória e esquecimento. In: Araújo, Cintia M. de. Ensino de história e culturas afro- brasileiras e indígenas. Rio de Janeiro: Pallas, 2013. BRASIL. Lei 11.645. Brasília: Senado federal, 2008. CANADA. Truth and Reconciliation Commission of Canada. Disponível em https://www.rcaanc-cirnac.gc.ca/eng/1450124405592/1529106060525. Acesso em 31 de maio de 2024. CONSELHO INDIGENISTA MISSIONÁRIO (CIMI). Estatuto do Índio. 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VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. História geral do Brasil. Tomo Primeiro. Rio de Janeiro: E. e H.Laemmert, 1854. VILLARES, Luiz Fernando. Direito e Povos Indígenas. Curitiba: Juruá, 2013. 73 UMA ANÁLISE DISCURSIVO-PRAGMÁTICA DAS VIAGENS TEXTUAIS DO CONCEITO RACISMO ESTRUTURAL NO CASO MIGUEL SANTANA E SEUS DESDOBRAMENTOS PARA A LUTA ANTIRRACISTA NO BRASIL Marco Antonio Lima do Bonfim Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Líder do Grupo de Pesquisa Linguagens e Estudos Afro-Latino-Americanos (LEAFRO/ UFPE/ CNPq) Coordenador da Comissão de Diversidade, Inclusão e Igualdade – CDII da ABRALIN. 74 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista INTRODUÇÃO No dia 02 de junho de 2020, na cidade de Recife, estado de Pernambuco, no auge da pandemia do Coronavírus (COVID-19) e poucos dias após o assas- sinato do segurança negro George Floyd em Mineápolis, Estados Unidos, Miguel Otávio Santana da Silva, um menino negro de 5 anos de idade, filho de Mirtes Renata Santana de Souza, uma mulher negra e trabalhadora doméstica, morreu depois de ter sido deixado aos cuidados da patroa, Sarí Corte Real, uma mulher branca casada com Sérgio Hacker, um homem tam- bém branco e, à época, prefeito da cidade de Tamandaré, cidade localizada no mesmo estado. Neste dia, Mirtes Sousa teve como uma de suas obrigações levar o cachorro da patroa para passear, tendo que deixar o filho sob a respon- sabilidade de Sarí Corte Real, que estava sendo atendida por uma mani- cure, ao mesmo tempo em que prestava cuidados à criança. Conforme as informações veiculadas na mídia local e nacional, a patroa deixou Miguel Santana sozinho no elevador, tendo apertado o botão de um andar superior. Em seguida, ele caiu do 9º andar do prédio, de uma altura de 35 metros, o que levou a sua morte. Sarí Corte Real chegou a ser presa, porém após pagar a fiança de R$20 mil, foi solta e responde pelo crime em liberdade. No ano de 2022, ela foi con- denada a 8 anos e seis meses de prisão por abandono de incapaz com resul- tado de morte, mas conseguiu responder em liberdade a essa ação. Ainda, em 2022, Mirtes Sousa, entrou com um recurso ao Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE) solicitando que a pena fosse aumentada. Por fim, em julho de 2023, o Tribunal Superior do Trabalho (TST), condenou Sari Corte Real e Sérgio Hacker a pagarem R$ 386 mil por dano coletivo moral. A decisão teve por base o conceito de racismo estrutural. 75 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista Figura 1 – À esquerda, Miguel Santana da Silva; à direita, Sarí Corte Real. Fonte: https://diplomatique.org.br/aqui-para-a-primeira-condenacao- judicial-por-racismo-estrutural/ - acessado em 01. out.2023. O caso foi noticiado em vários veículos de comunicação em todo o país, como a Carta Capital, g1.globo.com, Folha de São Paulo, Tribuna Online, BBC, Le Mond Diplomatique Brasil, entre outros. Portanto, esse fato foi sendo (re)construído na mídia, nas palavras de Blommaert (2008, p. 109), “através de uma sequência de reentextualizações, envolvendo recontextualizações para além [do fato ocorrido] [...] [d]a história é toda a trajetória do texto”. Diante deste fato, neste capítulo realizo uma análise discursivo-prag- mática da circulação do conceito racismo estrutural em textos midiáticos relativos ao “Caso Miguel Santana”. Especificamente analisarei, convocando pensadoras(es) negros(as), os Estudos Críticos do Discurso (Fairclough, 2001) e a Antropologia Linguística (Bauman; Briggs, 1990; Duranti, 1997), os pro- cessos de descontextualização, entextualização e reentextualização (viagens textuais) do conceito racismo estrutural, atentando para como ele é descolado das práticas/instituições sociais, do sistema de poder da supremacia branca https://diplomatique.org.br/aqui-para-a-primeira-condenacao-judicial-por-racismo-estrutural/ https://diplomatique.org.br/aqui-para-a-primeira-condenacao-judicial-por-racismo-estrutural/ 76 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista brasileira. Essa discussão objetiva explorar os desdobramentos destas viagens textuais para a luta antirracista. Para tanto, dividi o capítulo em duas seções. Na primeira, discorro acerca do racismo estrutural, conectando-o à produção de subjetividades racializa- das, principalmente no que se refere à identidade racial branca no Brasil e à forma como a perpetuação do racismo estrutural se efetiva por meio da (re) produção de vantagens raciais de pessoas brancas sobre pessoas negras. Também discuto a participação da linguagem enquanto discurso nesse pro- cesso. Na segunda seção, apresento o conceito de trajetória textual por meio dos processos de descontextualização, entextualização e reentextualização discursiva para, em seguida, efetuar a análise discursivo-pragmática das via- gens textuais do conceito racismo estrutural em contexto midiático. Por fim, nas considerações finais, apresento minhas observações conclusivas acerca da análise, contemplando os seus desdobramentos para a luta antirracista no Brasil . 1. SOBRE O CONCEITO DE RACISMO ESTRUTURAL E SUA RELAÇÃO COM A BRANQUITUDE BRASILEIRA O racismo estrutural e antinegro é uma forma sistemática de domina- ção que tem na raça, ou melhor,na hierarquia racial entre corpos brancos e negros, o seu fundamento. Ele é estrutural e estruturante de qualquer relação social, pois não está apenas no nível do preconceito racial (no ato individual de um sujeito branco(a), a partir de um conjunto de crenças e valores, depre- ciar e estereotipar corpos negros), mas organiza, estrutura e integra inesca- pavelmente a organização econômica, política, cultural e discursiva de nos- sas sociedades. O racismo é um sistema de poder/ dominação. O racismo antinegro desumaniza os corpos negros ao passo que confere humanidade 77 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista aos corpos lidos como socialmente brancos, por meio de uma série de “dis- positivos de racialidade”, nos termos da filósofa e pensadora negra brasileira, Sueli Carneiro (2023). Para o sociólogo negro brasileiro Ronaldo Sales Júnior, o racismo é “um sistema de dominação social baseado nas relações raciais, efetivando- -se nas formas do preconceito, da discriminação e da desigualdade raciais” (Sales Júnior, 2006, p. 01). O filósofo e advogado negro Silvio Almeida (2019), ao definir o racismo como estrutural, parte da concepção de que “o racismo é uma decorrência da própria estrutura social, ou seja, do modo ‘normal’ com que se constituem as relações políticas, econômicas, jurídicas e até familiares, [...]” (Almeida, 2019, p. 50). Em sendo estrutural, o racismo antinegro estrutura também a forma como interpelamos os outros e a forma como os outros nos interpelam, no sentido de sermos constituídos discursivamente de nossas identidades sociorraciais serem produzidas a partir da representação/construção que o outro faz de nós (Bonfim, 2016). Aqui, dialogo com a intelectual negra Zelma Madeira (2020, p. 145), quando ela afirma que o racismo só pode existir se tiver uma estrutura social que identifica esses grupos [raciais], [uma estrutura] que cria subjetividades dentro desses grupos e que estabelece relação de poder, que independe inclusive do propósito do indivíduo. Não existe racismo sem teoria que o sustente, além da teo- ria carece de narrativas históricas, de instituições que repro- duzam a subjetividade para funcionar a partir dessa lógica de desigualdades. Como um estudioso da linguagem como prática social e das conexões entre linguagem e raça, questiono: como os textos participam desse processo de constituição/naturalização, reprodução e/ou contestação/ desnaturaliza- ção de subjetividades? Como o discurso, enquanto uma dimensão das práti- 78 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista cas sociais, isto é, como constitutivo das formas de produção de vida social, produz subjetividades raciais e, por meio de instituições sociais reproduz essa lógica de desigualdades entre corpos negros e brancos em um país estruturalmente racista? Ao considerar o discurso como um conceito analítico no âmbito dos Estudos Críticos do Discurso enquanto “[...] um modo de ação, uma forma em que as pessoas podem agir sobre o mundo e especialmente sobre os outros, discurso não apenas como um modo de representação do mundo, mas como uma prática de significação do mundo, constituindo o mundo em significado” (Fairclough, 2001, p. 91, grifos meus), busco aqui demonstrar como aspectos políticos e históricos do racismo se efetuam discursivamente, ou melhor, como ele (o racismo) age na constituição e reprodução de hie- rarquias raciais. Se, como nos mostra Silvio Almeida (2019), a manifestação estrutural do racismo se efetiva, entre outras dimensões, no âmbito ideológico, e, por sua vez, os significados linguísticos são constitutivos da realidade social, esta- belecendo a manutenção de relações de dominação entre pessoas, grupos e instituições, uma vez que “as práticas discursivas são investidas ideologica- mente à medida que incorporam significações que contribuem para manter ou reestruturar as relações de poder”, de acordo com Fairclough (2001, p. 121), temos que “o racismo, enquanto processo político e histórico, é também um processo de constituição de subjetividades, de indivíduos cuja consci- ência e afetos estão de algum modo conectados com as práticas sociais” (Almeida, 2019, p. 63). No entanto, é possível verificarmos que, no contexto brasileiro, circula uma percepção/interpretação de que o racismo estrutural não se encarna em práticas sociais e não se materializa na supremacia branca. Parece que, ao afirmar que “é culpa do racismo estrutural” ou “é o racismo arraigado”, a dis- cussão é encerrada, como se a estrutura não fosse movimentada por sujeitos 79 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista e seus posicionamentos discursivos. Incluindo aqui a ideologia, entendida, nos termos de John Thompson (2007, p. 76), como “sentido [que] serve para estabelecer e sustentar relações de dominação”. A esse respeito, a intelec- tual negra Sueli Carneiro (2023, p. 52), em um evento realizado em outubro de 2020 acerca das “alianças possíveis e impossíveis entre brancos e negros para a equidade racial”, afirmou: porque nós nos acostumamos a falar do racismo no Brasil de maneira em que, de um lado, aparece a vítima (o negro assassinado, o negro na indigência humana, o negro subalter- nizado), e, de outro, está o tal do racismo estrutural, que não se encarna em nenhum sujeito concreto, que não se encarna concretamente nas práticas sociais [...]. Para a análise discursivo-pragmática das viagens textuais do conceito racismo estrutural na mídia que farei a seguir, ou seja, para uma análise da conexão entre a estrutura linguística e a macroestrutura social mais ampla, assumirei que a reprodução e a manutenção do racismo estrutural estão assentadas nas formas de poder incrustadas nas relações sociais e hierárqui- cas exercidas pelas pessoas lidas socialmente como brancas sobre a pessoas negras em sociedades estruturadas pelo racismo antinegro, como é o caso do Brasil. Como mencionado anteriormente, o racismo antinegro e estrutural está conectado aos processos de constituição de subjetividades. Tais formas de ser no mundo social, ao serem reproduzidas, sustentam a lógica de produção de desumanização e desigualdades pelas quais passam as pessoas negras. Desse modo, a constituição da identidade racial branca – incluindo o(a) bran- co(a) brasileiro(a) como branco(a)-mestiço(a), como “um lugar de privilégios simbólicos, [...] materiais e palpáveis” (Cardoso, 2010, p. 611) – participa e con- tribui para a naturalização e reprodução da estrutura racista. Esta, inclusive, é a posição dos(as) demais pesquisadores(as) que integram o campo de estudos críticos sobre a branquitude. 80 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista Os estudos críticos sobre a branquitude (Critical whiteness studies) se configuram como um campo de pesquisa relativamente recente no âmbito das pesquisas acerca das relações raciais. Este campo tem despontado princi- palmente nas áreas da Sociologia, Psicologia Social, Antropologia, Educação, ganhando espaço também nos Estudos Críticos do Discurso (Bento, 2002, 2022; Cardoso, 2010, 2020; Schucman, 2012, 2014, 2020; Bonfim et al, 2022, entre outros/as). De acordo com Cardoso (2010), tais estudos tiveram o Brasil como palco inicial, pois foi o sociólogo negro Alberto Guerreiro Ramos (1915- 1982), em meados dos anos 1950, a partir da publicação do artigo “A patolo- gia social do branco brasileiro”, um dos primeiros a tratar da brancura como dispositivo de poder nas relações raciais. Desde então, houve a continui- dade e desenvolvimento destes estudos tanto no Brasil quanto no exterior (África do Sul, Estados Unidos e Austrália) que foram constituindo este campo de pesquisa. Por exemplo, nos Estados Unidos, as pesquisas nesse sentido passam a se consolidar na década de 1990. Robin Diangelo é uma das pes- quisadoras brancas que tem tido destaque no contexto estadunidense mais recentemente. Sobre branquitude e poder,ela nos diz : A branquitude se baseia em uma premissa fundadora: a defi- nição dos brancos como norma ou o padrão do humano e das ‘pessoas de cor’ [pessoas negras] como um desvio dessa norma. A branquitude não é reconhecida pelos brancos, e o ponto de referência branco é presumido como universal e imposto a todos (Diangelo, 2018, p. 48). Esse campo de pesquisa busca compreender, a partir do constructo ideológico de poder nomeado de branquitude, as formas de poder constitu- tivas das relações sociais entre pessoas brancas e pessoas negras. Busca-se, nesta abordagem, racializar o(a) branco(a) nas relações raciais, isto é, focalizar a constituição da identidade racial branca. Para Schucman (2014), a branqui- tude é entendida como uma posição que confere a estes corpos vantagens no que diz respeito ao “acesso a recursos materiais e simbólicos, gerados 81 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista inicialmente pelo colonialismo e pelo imperialismo, e que se mantêm e são preservados na contemporaneidade” (Schucman, 2014, p. 94). É desse lugar de suposta neutralidade, de falta de reconhecimento, ou como diriam France Twine e Amy Steibugler (2006), de falta de letramento racial (literacy racial) e de manutenção dos seus privilégios, que a branqui- tude opera e (re)produz o racismo. Para romper com essa prática, é neces- sário que as pessoas brancas reconheçam e problematizem a branquitude, analisando a sua posição de opressor(a) e as estratégias de manutenção dessa opressão. A invisibilidade da branquitude naturaliza a suposta isenção das pessoas brancas na luta antirracista. Faz-se necessário, por parte dos(as) brancos(as) antirracistas, problematizar entre os(as) seus(suas) a noção de vantagem racial com a qual “raramente querem se defrontar, transfor- mando-a rapidamente num discurso de mérito e competência que justifica uma situação privilegiada, concreta ou simbólica” (Bento, 2002, p. 43). Cida Bento (2022, p. 121), psicóloga e intelectual negra brasileira, cunhou o conceito de pacto narcísico da branquitude. Em suas palavras, os “[...] pactos narcísicos exigem a cumplicidade silenciosa do conjunto dos membros do grupo racial dominante e que sejam apagados e esquecidos os atos anti-humanitários [portanto, racistas] que seus antepassados praticaram.” Trata-se, portanto, de um dispositivo de poder que, ao mesmo tempo em que perpetua temporalmente tal acordo tácito entre a branquitude, conferindo- lhe vantagens raciais, reproduz e naturaliza a desigualdade racial entre brancos(as) e negros(as). É preciso que sujeitos brancos(as) desenvolvam e/ou sejam interpelados por práticas/experiências raciais que os(as) levem a praticar um antirracismo de fato, e não um antirracismo de fachada (Mattos; Accioly, 2021). Como consequência disto, espera-se que passem a efetuar mudanças em seus micro-lugares de poder e atuação, contribuindo para a desnaturaliza- ção de práticas e discursos racistas. Uma das maneiras de colaborar para isso 82 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista é entender como o conceito de racismo estrutural, paradoxalmente, tem sido usado como um escudo pela branquitude, na medida em que essa noção é posta a circular discursivamente de forma descolada das práticas sociais. Na próxima seção, explorarei esse aspecto a partir da discussão e análise das viagens textuais do conceito racismo estrutural em contexto midiático. 2. AS VIAGENS TEXTUAIS DO CONCEITO RACISMO ESTRUTURAL NA MÍDIA BRASILEIRA E SEUS EFEITOS SOCIAIS Inicio esta seção dialogando com alguns linguistas aplicados(as), tais como Daniel Silva (2014), Luiz Paulo da Moita Lopes e Branca Fabrício (2018), apropriando-me da metáfora da viagem e de como ela pode nos ensinar sobre mobilidade textual. Em nosso cotidiano, dizemos que “livros circulam mais do que outros” ou que “no mundo de hoje as informações circulam mais rápido”. Alinho-me a esses(as) pesquisadores(as) e a uma literatura no campo da Antropologia linguística (Bauman; Briggs, 1990; Agha, 2007; Blommaert, 2008; 2010; Duranti, 1997; Pinto, 2015; Silva, 2015) que sugere que textos – como agregados de signos – só podem ser compreendidos por proces- sos contínuos de entextualização-descontextualização-recontextualização por meio dos quais vamos movimentando “textos ou fragmentos de textos que legitimamos como adequados aos processos de construção do signi- ficado. Um tal processo sugere que textos não são confinados a nenhum espaço específico” (Moita Lopes; Fabrício, 2018, p. 772). Tais estudos buscam focalizar a mobilidade textual dos discursos através de evidências etnográficas, isto é, buscam investigar os modos de transfor- mação do discurso (materializado em textos), para entender a mobilidade de textos e contextos culturalmente situados. Ao mesmo tempo, analisam os micros e macro contextos de circulação desses discursos. A esse respeito, adiciono o argumento de Inês Signorini (2008, p. 7), quando ela defende “[...] 83 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista a focalização da língua[gem] situada, ou seja, não descolada de contextos de uso e práticas específicas de interação social”. Assim sendo, discutir a mobilidade textual é analisar como eles podem ser descontextualizados (deslocados do seu contexto inicial), entextualizados (viajarem por entre contextos) e reentextualizados em outra situação comu- nicativa. Os antropólogos-linguistas Richard Bauman e Charles Briggs (1990, p. 188) afirmam que entextualizar é o processo de tornar o discurso passível de extração, de trans- formar um trecho de produção linguística em uma unidade – um texto – que pode ser extraído de seu cenário interacional. Um texto, então, nesta perspectiva, é discurso tornado pas- sível de descontextualização. A entextualização pode muito bem incorporar aspectos do contexto, de tal forma que o texto resultante carregue elementos da história de seu uso consigo. De acordo com Daniel Silva (2014, p. 68), a entextualização captura “os sentidos da relativa autonomia das unidades linguísticas de se tornarem textos, no trânsito de um contexto a outro”. O processo de entextualizar está relacionado à trajetória de textos, à viagem deles no tempo/espaço (Bonfim; Alencar, 2017). Para entendermos um dado enunciado, nessa perspectiva, precisamos acompanhar a história natural do discurso (Silverstein; Urban, 1996), analisando a força agentiva do próprio ato de fala performativo (Austin, 1962), que, ao circular/ viajar, constrói contextos próprios de significação. Portanto, diante das explicitações que forneci no início deste capítulo sobre o conceito racismo estrutural, passarei agora a uma análise da viagem tex- tual do conceito racismo estrutural em textos midiáticos relativos ao “Caso Miguel Santana”. Desde junho de 2020, várias matérias jornalísticas foram veiculadas na mídia brasileira acerca desses momentos desse trágico evento. Em ter- mos metodológicos, selecionei as seguintes manchetes a fim de analisar 84 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista os processos de descontextualização, entextualização e reentextualização do conceito racismo estrutural: a) “Caso menino Miguel: ‘A nossa suprema- cia branca é assim’, diz historiadora”1 ; b) “ONU cita caso de Miguel como exemplo de ‘racismo sistêmico’ na pandemia”2 e c) “Aqui para”: a primeira condenação judicial baseada em racismo estrutural”.3 Os critérios usados para a seleção destas manchetes foram a) notícias que, em seu título, reme- tessem diretamente ao caso Miguel Santana e b) Manchetes em que apare- cessem, de forma direta, menções ao conceito racismo estrutural. Procurei responder as seguintes questões: de que maneira uma análise da viagem textual do conceito racismo estrutural em textos midiáticos relativos ao “Caso Miguel Santana” evidencia (ou não) ações discursivas que tentam desconec- tar o racismo da branquitude? E quais os desdobramentos2 GONZALEZ, Lélia. Racismo por omissão. In: RIOS, F.; LIMA, M. Por um feminismo afro-latino- -americano: ensaios, intervenções e diálogos. Rio de Janeiro: Zahar, 2020, p. 220-221. https://www.ufrb.edu.br/cahl/noticias/2128-professor-visitante-da-ufrb-e-homenageado-pela-faculdade-de-direito-da-usp https://www.ufrb.edu.br/cahl/noticias/2128-professor-visitante-da-ufrb-e-homenageado-pela-faculdade-de-direito-da-usp 9 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista de pensamento, é tomar um ser humano que acabou de chegar aqui, chapá-lo de ideias e soltá-lo para destruir o mundo“ 3 . O e-book mobiliza práticas: atuação, participação, engajamento, manifestação, visibilidade. Em seguida, apresentamos cada capítulo. O primeiro capítulo é consagrado à defesa de uma educação qui- lombista no Brasil, escrito por Ricardo Matheus Benedicto (Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira/UNILAB), que tem por título Uma defesa da educação quilombista. O autor defende que o sis- tema educacional brasileiro, desde o período colonial até os dias atuais, per- petua valores eurocêntricos e racistas, negligenciando a cultura e a história afro-brasileira. Ricardo Benedicto assevera que para resolver o problema educacional é necessário a recriação de nossos processos de transmissão intergeracional, e que é necessário a educação quilombista adotar currículos e pedagogias afrocentradas. No capítulo, ele também enfatiza a importância de formar professores comprometidos com a história e cultura afro-brasileira e com uma sólida formação científica nos conhecimentos africanos. O segundo capítulo é intitulado de A experiência de constituir uma cul- tura fiscalizatória relativa a uma política educacional anticasta. O capítulo é de autoria de Jorge Luís Terra da Silva (Procurador do Estado do Rio Grande do Sul) que discute as relações étnico-raciais e o antirracismo, bem como a obrigação constitucional de se planejar e de se ter foco na eficiência e na efi- cácia. O capítulo aborda sua experiência vivenciada no esforço para que uma instituição pública fiscalizasse a implementação da norma prevista no artigo 26-A da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, no âmbito do Estado do Rio Grande do Sul, servindo de referencial para que essa iniciativa seja replicada em outras unidades da Federação. O terceiro capítulo tem por título Educação indígena e multiculturali- dade: direito fundamental e instrumento de enfrentamento ao racismo. É de 3 KRENAK, Ailton. A vida não é útil. São Paulo: Companhia das Letras, 2020, p. 55. 10 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista autoria de Edson Kayapó (Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia/IFBA) e de Flávio de Leão Bastos Pereira (Universidade Presbiteriana Mackenzie). Os autores propõem repensar o sistema educacional brasileiro para que seus currículos viabilizem o acesso à história e ao conhecimento produzidos pelas sociedades indígenas (e africanas) do Brasil, com o conse- quente resgate das novas gerações, submetidas a visões limitadas apenas a parâmetros colonizadores que geram a ignorância de um país em relação às próprias origens e identidades. Revela-se como etapa inafastável na cons- trução de um país verdadeiramente democrático, desenvolvido e antirracista. O quarto capítulo revisita o ocorrido no Recife, em 02 de junho de 2020, que envolveu a morte do menino Miguel Santana. O capítulo tem por título Uma análise discursivo-pragmática das viagens textuais do conceito racismo estrutural no caso Miguel Santana e seus desdobramentos para a luta antir- racista no Brasil, escrito por Marco Antonio Lima do Bonfim (Universidade Federal de Pernambuco). O autor realiza uma análise discursivo-pragmática da circulação do conceito ‘racismo estrutural’ em textos midiáticos relativos ao “Caso Miguel Santana”. O autor, Marco Bonfim, utiliza o conceito de trajetória textual, explorando os processos de descontextualização, entextualização e reentextualização discursiva, para realizar uma análise discursivo-pragmá- tica das viagens textuais do conceito racismo estrutural em contexto midiático e contemplar seus desdobramentos para a luta antirracista no Brasil . O quinto capítulo é de autoria de Halina Macedo Leal (Universidade Regional de Blumenau) e tem por título Feminismos negros, feminismos africanos e mulherismos: distintas formas de ser mulher negra, reexistir e resistir. A autora ressalta a importância de reconhecer e respeitar a diversidade nas formas de luta e resistência das mulheres negras, reafirmando a luta contra um sistema opressor e pela visibilidade dessas múltiplas perspectivas. Halina Leal reflete que as reivindicações de questões voltadas exclusivamente à opressão de gênero não contemplam as mulheres 11 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista negras, assim como as reivindicações referentes unicamente às questões acerca das opressões raciais. Ela se questiona, a partir de suas experiências como mulher negra afrodiaspórica, se existem outras formas legítimas de ser mulher negra, reexistir e resistir e se existem outros feminismos que se referem às mulheres negras . O sexto capítulo é intitulado Da escola à universidade: cabelo, cabelo meu, quem sou eu? que foi escrito por Vera Regina Rodrigues da Silva (Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira/ UNILAB) e Laisa Bibiano Nascimento (Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira/UNILAB). As autoras enfatizaram a importância de tratar a corporeidade na ambientação escolar, sobretudo, dos corpos negros. Elas argumentam no capítulo que a presença do racismo incandesce a percepção negativa do negro sobre o próprio corpo, dificultando uma construção positiva da própria identidade. Vera Silva e Laisa Nascimento apontam que a presença do racismo impacta significativamente na constru- ção da identidade negra, impedindo o desenvolvimento de uma autoestima pacífica que contribui para um exercício de negação dos próprios traços . O sétimo capítulo é de autoria de Eliana Díaz Muñoz (Universidad del Atlántico), intitulado Una lectura a Tambores en la noche de Jorge Artel: intelectualidad negra en el caribe colombiano y filiaciones poético-políticas. A autora analisa a obra poética de Jorge Artel, poeta colombiano do século XX, que utilizou a literatura como meio de resistência anticolonial e de afirmação da identidade afrodescendente. Eliana Muñoz explora o contexto histórico e social do Caribe colombiano, onde artistas e intelectuais negros, como Artel, afirmaram-se apesar da marginalização imposta pelas elites locais e pela herança colonial. A autora também explora as categorias “decolo- nial”, “pós-colonial” e “anticolonial” para contextualizar o impacto da obra de Artel. No capítulo há uma defesa que Jorge Artel não apenas representa a negritude colombiana, mas propõe um tipo de “consciência de América” 12 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista onde as diversas raízes culturais são reconhecidas e celebradas como parte essencial da identidade continental. O oitavo capítulo tem por título Racionais MC’s - “o rap vai diretamente até os que mais sofrem”: uma análise discursiva crítica numa perspectiva intertextual e é de autoria de Alexcina Oliveira Cirne (Universidade Católica de Pernambuco) e Karl Heinz Efken (Universidade Católica de Pernambuco). Os autores propõem um enfoque sobre as músicas cantadas pelo grupo Racionais MC’s, a partir de análise intertextual, que visa entender essas músicas como ato político, educacional, que não hesita em desafiar práticas históricas abusivas, autoritárias, racistas e violadoras de direitos humanos. Alexcina Cirne e Karl Heinz Efken realizam uma análise crítica do impacto social do grupo Racionais MC's no contexto da periferia brasileira, desta- cando seu papel como voz das comunidades marginalizadasdestas viagens textuais para a luta antirracista no Brasil? Analisar o processo de entextualização discursiva é perseguir as tra- jetórias de um ato de fala performativo em sua cadeia de várias entextu- alizações e sucessivas reentextualizações (Silva, 2014). Noutras palavras, é perseguir os rastros, as pistas da circulação de um dado ato de fala per- formativo. A seguir, efetuo a análise discursivo-pragmática da trajetória tex- tual do conceito racismo estrutural nestas três manchetes, apontando como elas constituem uma cadeia de várias entextualizações e reentextualizações discursivas: Celebridades e políticos, como a ex-senadora Marina Silva e a vice-governadora de Pernambuco, Luciana Santos, se manifestaram sobre a morte do garoto e afirmaram que o caso mostra o racismo estrutural e o desprezo pelas vidas negras no país. (05/06/2020). 1 Fonte: https://g1.globo.com/pe/pernambuco/noticia/2020/06/05/caso-menino-miguel-a-nos- sa-supremacia-branca-e-assim-diz-historiadora.ghtml - acessado em 01. Out. 2023. 2 Fonte: https://www.geledes.org.br/onu-cita-caso-de-miguel-como-exemplo-de-racismo-siste- mico-na-pandemia/ - acessado em 01. out.2023. 3 Fonte: https://diplomatique.org.br/aqui-para-a-primeira-condenacao-judicial-por-racismo-es- trutural/ - acessado em 01. out.2023. https://g1.globo.com/pe/pernambuco/noticia/2020/06/05/caso-menino-miguel-a-nossa-supremacia-branca-e-assim-diz-historiadora.ghtml https://g1.globo.com/pe/pernambuco/noticia/2020/06/05/caso-menino-miguel-a-nossa-supremacia-branca-e-assim-diz-historiadora.ghtml https://www.geledes.org.br/onu-cita-caso-de-miguel-como-exemplo-de-racismo-sistemico-na-pandemia/ https://www.geledes.org.br/onu-cita-caso-de-miguel-como-exemplo-de-racismo-sistemico-na-pandemia/ https://diplomatique.org.br/aqui-para-a-primeira-condenacao-judicial-por-racismo-estrutural/ https://diplomatique.org.br/aqui-para-a-primeira-condenacao-judicial-por-racismo-estrutural/ 85 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista Notem que o conceito racismo estrutural foi descontextualizado do uso empregado pelo Movimento Negro e por pensadores(as) negros que tem investigado esse fenômeno, com profundidade, no campo de pesquisa dos estudos para as relações raciais. Ele viajou e foi reentextualizado no con- texto de uma prática discursiva jornalística que, ao atribuir a personalidades da política brasileira (como Marina Silva, ex-senadora e atual Ministra do Meio Ambiente e Mudança de Clima do Brasil e a vice-governadora do Estado de Pernambuco, à época, Luciana Santos) o discurso relatado “sobre a morte do garoto” como uma amostra “do racismo estrutural e do desprezo pelas vidas negras no país (Brasil)”, desconecta o racismo estrutural do sistema de poder da supremacia branca, isto é, da atuação da branquitude, conforme explicitei anteriormente na reprodução do racismo. Isso ocorre, nesse texto, por meio do que Thompson (2007), ao discor- rer sobre os modos de operação da ideologia enquanto formas simbólicas que estabelecem e sustentam relações assimétricas de poder, denominou como reificação. Por esse modo de operação da ideologia, relações de domi- nação, nesse caso, o racismo estrutural, são representadas como se fossem permanentes, naturais e atemporais. O fato de termos a presença do conceito de racismo estrutural nesse enunciado não sugere que esse texto esteja tratando do racismo como uma construção social. Na verdade, o que há é a reificação por meio da estratégia da naturalização do racismo estrutural sem que ele esteja estruturalmente conectado à branquitude. O mesmo pode ser dito da forma como, três meses depois da circulação da matéria acima, o conceito racismo estrutural viaja e é reentextualizado no discurso da Organização das Nações Unidas como “racismo sistêmico”. Na manchete “ONU cita caso de Miguel como exemplo de “racismo sistê- mico” na pandemia” (30/09/2020), no caso deste ato de fala performativo, é possível verificarmos que o processo de descontextualização-entextuali- zação-reentextualização se efetua através da relexicalização. 86 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista Para Fairclough (2001, p. 230-231), “a relação das palavras com os signi- ficados é de muitos-para-um e não de um-para-um, [...] as palavras têm tipi- camente vários significados, e estes são ‘lexicalizados’ tipicamente de várias maneiras [...] lexicalizações diferentes mudam o sentido”. Desse modo, ainda que a manchete acima tenha sido veiculada pelo Instituto da Mulher Negra – Geledés, reconhecido nacionalmente por sua luta incansável diante das pau- tas de gênero e raça no Brasil, o fato da manchete trazer o termo racismo sistêmico e entre aspas (representando um discurso citado, isto é, não se responsabilizando pelo emprego do termo e, portanto, não assumindo a sua autoria) sugere uma escolha lexical: ao invés de “racismo estrutural”, optou-se por “racismo sistêmico”. Muito embora o termo “sistêmico” sirva para apontar que se trata de um sistema que, por conta de sua configuração interna, estabelece padrões hierárquicos e naturaliza formas históricas de dominação (Almeida, 2019), a maneira como ele é reenquadrado no ato de fala performativo “ONU cita caso de Miguel como exemplo de “racismo sistêmico” na pandemia”, tal como o enunciado analisado anteriormente, não vincula o racismo sistêmico à prá- ticas sociais concretas, a sujeitos sociais concretos responsáveis pela repro- dução deste sistema. Por fim, na manchete: “‘Aqui para’: a primeira condenação judicial base- ada em racismo estrutural”, é possível notar, inicialmente, dois aspectos a) a manchete é introduzida com uma citação direta de Thales Vieira, funda- dor e coordenador executivo do “Observatório da Branquitude”, que aparece no decorrer da matéria acerca da condenação judicial do casal Corte Real a partir do argumento de racismo estrutural. O entrevistado disse que essa decisão tornou possível “romper essa lógica [do racismo estrutural], falando ‘aqui para’”; b) o conceito racismo estrutural é entextualizado aqui a partir de uma relação de contiguidade com a acepção atribuída pelo Movimento Negro e pelos(as) pensadores(as) negros(as) a esse conceito, de modo a 87 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista materializar, de fato, a estruturalidade do racismo brasileiro evidente no caso Miguel Santana, uma vez que a supremacia branca enquanto branquitude, garantiu um lugar de poder, de autoridade, de privilégio simbólico e material do casal Corte Real sobre Mirtes Sousa, seu filho e sua mãe. Vide o fato de Sarí Corte Real, em plena pandemia do Coronavírus (COVID-19), ter em sua casa uma mulher negra trabalhando, e que, por ordem de Sarí, saiu para passear com o cachorro, arriscando contaminar-se com o vírus mortal. Figura 2 – Mirtes Sousa, mãe de Miguel Santana Fonte: https://reporterbrasil.org.br/2023/07/caso-miguel-conceito-de-racismo- estrutural-motiva-decisao-historica-do-tst/ - acessado em 25. jun. 2024. Se, em diálogo, com Silvio Almeida (2019, p. 51), por um lado, “pensar o racismo como parte da estrutura não retira a responsabilidade individual sobre a prática de condutas racistas e não é um álibi para racistas” e, de outro, se “as instituições são [...] a materialização de [...] um modo de socialização que tem o racismo como um de seus componentes orgânicos” (Almeida, 2019, p. 47), o racismo estrutural se fez presente na morte de Miguel Santana. Essa forma de dominação sociorracial penetrou as relações trabalhistas (incluindo https://reporterbrasil.org.br/2023/07/caso-miguel-conceito-de-racismo-estrutural-motiva-decisao-historica-do-tst/ https://reporterbrasil.org.br/2023/07/caso-miguel-conceito-de-racismo-estrutural-motiva-decisao-historica-do-tst/ 88 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista tanto Mirtes Sousa, como sua mãe, Marta Maria Alves) evidenciada pela ausência de formalização de vínculo empregatício edo registro de um outro vínculo de trabalho. Ambas eram registradas como trabalhadoras domésticas negras, mas não exerciam, na prefeitura da cidade de Tamandaré, suas ativi- dades. Portanto, o conceito racismo estrutural, neste enunciado, não aparece desencarnado da branquitude e de suas práticas. CONSIDERAÇÕES FINAIS Neste capítulo, a partir de pensadoras(es) negros(as), dos Estudos Críticos do Discurso e da Antropologia Linguística, efetuei uma análise dis- cursivo-pragmática da circulação do conceito racismo estrutural em textos midiáticos relativos ao Caso Miguel Santana, especificamente atentando para os seus desdobramentos para a luta antirracista no Brasil. A análise demonstrou que devemos compreender textos, interação linguística e práticas discursivas como recursos linguísticos e discursivos que circulam socialmente e que, ao circularem, adquirem não apenas significações diversas, podendo descolar sujeitos sociais de suas práticas sociais. Foi possível notar os desdobramentos sociais oriundos destas viagens textuais, tanto no que diz respeito a reprodução do racismo antinegro (por meio do processo de descolar o conceito de racismo estrutural da constituição de subjetividades raciais) como no que se refere a luta antirracista no Brasil, pois, acompanhar, através dos processos de descontextualização-entextuali- zação-reentextualização, a mobilidade textual do conceito racismo estrutural demonstrou como a vantagem racial opera e se materializa discursivamente. No caso em tela, até o momento em que finalizo este texto (maio de 2024), o que sabemos de notícias recentes é que Sarí Corte Real, até hoje, res- ponde em liberdade e que a Justiça do Trabalho em Pernambuco reduziu de 89 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista R$2 milhões para R$1 milhão, a indenização que o casal Corte Real deve pagar à família de Miguel Santana. Mirtes Sousa, por sua vez, continua, mandingando, ou seja, se apropriando da “engenhosidade como usamos [população negra] a linguagem de forma estratégica [...] para sobreviver enquanto população constantemente aniquilada”, nos termos da linguista negra brasileira Kassandra Muniz (Muniz, 2021, p. 281). Diante disso, é imperativo que, principalmente brancos(as) que se reivindi- cam aliados(as) da luta antirracista problematizem(se) entre os(as) seus(suas) buscando desnaturalizar essa vantagem racial e, por conseguinte, esse pacto da branquitude. REFERÊNCIAS AGHA, A. Language and social relations. New York. Cambridge University Press, 2007. ALMEIDA, S. Racismo estrutural. São Paulo: Pólem, 2019. AUSTIN, J. How to do things with words. Harvard University Press, 1962. BAUMAN, R; BRIGGS, C. Poética e Performance como perspectivas críticas sobre a linguagem e a vida social. Trad. Vânia Z. Cardoso. ILHA (Revista de Antropologia), 1990, p. 185-229. BENTO, C. O pacto da branquitude. 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Considero, assim, a análise de nossas possibilidades de interação social, reconhecimentos de nossas capacidades de significação do mundo, nossos valores, ideias, pensamentos, percepções e trânsito real em distintos ambientes. 1. EU E OS FEMINISMOS NEGROS Minhas experiências e meu olhar são de uma mulher negra afrodiaspó- rica e feminista negra que acredita que as opressões sofridas pelas mulheres negras são resultantes da intersecção de opressões de gênero, de raça e de classe, e que tal intersecção molda as várias experiências às quais somos submetidas. Isso significa dizer que as reivindicações de questões voltadas exclusivamente à opressão de gênero não nos contemplam, assim como as reivindicações referentes unicamente às questões acerca das opressões raciais. As mulheres brancas, embora sofram as consequências da opressão de gênero, numa sociedade racista, não sofrem a opressão de raça. Os homens negros, embora sofram as consequências do racismo, por serem homens nesta sociedade patriarcal, sexista e machista, não sofrem a opressão de gênero. Nesse sentido, tanto homens negros quanto mulheres brancas encontram con- dições de se constituírem, em algum grau, enquanto sujeitas/os. Com relação 95 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista a este ponto, Grada Kilomba, em Memórias da Plantação: Episódios de Racismo Cotidiano, afirma : As mulheres brancas têm um status oscilante, como o eu e como a ‘Outra ’ dos homens brancos porque elas são bran- cas, mas não homens. Os homens negros servem como opo- nentes para os homens brancos, bem como competidores em potencial por mulheres brancas, porque são homens, mas não são brancos. As mulheres negras, no entanto, não são brancas nem homens e servem, assim, como a ‘Outra ’ da alteridade (Kilomba, 2019, p. 191, grifo da autora ) Kilomba ressalta que as narrativas separadas mantêm a nossa invi- sibilidade, enquanto mulheres negras, nos debates acadêmicos e políticos (Kilomba, 2019). Portanto, não é possível, no nosso caso, compreender gênero e opressão racial de forma separada, pois essa separação aumenta a invisi- bilidade de nossas necessidades quando comparadas aos homens negros e às mulheres brancas. Kilomba (2019) afirma, assim, que nós habitamos uma espécie de vácuo de apagamento e de contradição que se sustenta pela polarização entre mulheres de um lado e negros de outro, enquanto nós permanecemos no meio. Lélia Gonzalez já nos indicava, em vários de seus textos, que a separa- ção do gênero e da raça, na nossa situação de mulheres e negras, nos invi- sibiliza. Gonzalez “teceu críticas a membros do Movimento Negro Unificado (MNU) pela falta de elaboração mais profunda sobre as mulheres negras; e ao Movimento de Mulheres, pela dificuldade em reconhecerem a diversidade interna do movimento.”1 1 Duarte, M. J.; Oliveira, D.; Ignácio, K. Gênero, Raça e Sexualidade: Uma proposta de debate inter- seccional? In: IRINEU, B. A. (org.) Diversidade Sexual, Étnico-Racial e de Gênero, Salvador. BA: Devires, 2021, p. 161 96 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista Com relação ao Movimento de Mulheres, Lélia Gonzalez, em A mulher negra na sociedade brasileira: uma abordagem político-econômica, de 1981, afirma: A maioria dos textos, apesar de tratarem das relações de dominação sexual, social e econômica a que a mulher está submetida, assim como da situação das mulheres das camadas mais pobres etc., etc., não atentam para o fato da opressão racial. As categorias utilizadas são exatamente aquelas que neutralizam o problema da discriminação racial e, consequentemente, o do confinamento a que a comunidade negra está reduzida. Ao nosso ver, as representações sociais manipuladas pelo racismo cultural também são internalizadas por um setor que, também discriminado, não se apercebe da ideologia de branqueamento e do mito da democracia racial (Gonzalez, 1981, p. 47-48). É nesse sentido que, enquanto feminista negra, eu entendo que a inter- seccionalidade ajuda a compreender as condições advindas do entrecruza- mento de opressões, sendo uma ferramenta teórica e metodológica que nos auxilia a refletir acerca da inseparabilidade estrutural entre patriarcado, sexismo, racismo e suas articulações. A intersecção de estruturas racistas, sexistas e machistas nos expõe ainda mais a condições de vulnerabilidade política e social . Segundo Patrícia Hill Collins e Sirma Bilge, no livro Interseccionalidade: A interseccionalidade investiga como as relações intersec- cionais de poder influenciam as relações sociais em socie- dades marcadas pela diversidade, bem como as experiên- cias individuais na vida cotidiana. Como ferramenta analítica, a interseccionalidade considera que as categorias de raça, classe, gênero, orientação sexual, nacionalidade, capacidade, etnia e faixa etária – entre outras – são inter-relacionadas e moldam-se mutuamente. A interseccionalidade é uma forma 97 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista de entender e explicar a complexidade do mundo, das pes- soas e das experiências humanas (Collins; Bilge, 2021, p. 15-16). A partir do conceito de interseccionalidade, articulamos o feminismo negro como um movimento não essencialista e que questiona as epistemolo- gias universalistas. Apreende-se esse não essencialismo, na medida em que acreditamos que a compreensão da nossa situação passa pela compreensão da sobreposição de opressões estabelecidas socialmente. Não há uma natu- reza e nem a possibilidade de se recorrer a essências para justificar o que ocorre. Cito Hill Collins, em Pensamento Feminista Negro . Não existe um ponto de vista homogêneo da mulher negra. Não existe uma mulher negra essencial ou arquetípica cujas experiências sejam típicas, normativas e, portanto, autênticas. Um entendimento essencialista do ponto de vista da mulher negra suprime as diferenças entre as mulheres negras em busca de uma unidade de grupo enganosa. Em vez disso, pode ser mais correto dizer que existe um ponto de vista cole- tivo das mulheres negras, caracterizado pelas tensões gera- das por respostas diferentes a desafios comuns. Ao reconhe- cer e buscar incorporar essa heterogeneidade na elaboração dos saberes de resistência das mulheres negras, esse ponto de vista renuncia ao essencialismo em favor da democra- cia. Uma vez que o pensamento feminista negro tanto surge no interior de um ponto de vista das mulheres negras como grupo quanto visa articulá-lo com as experiências associadas às opressões interseccionais que elas sofrem, é importante ressaltar a composição heterogênea desse ponto de vista do grupo (Collins, 2019, p. 73, grifo da autora). O foco é destacar a necessidade de explicar os múltiplos aspectos da identidade, ao considerar como a realidade social é construída. Nesses termos, tudo depende de interações e articulações sociais em que grupos 98 Questões étnico-raciais e os caminhos para umaeducação antirracista são definidos de determinada forma, em função de interesses de domínio e de hegemonia. Com relação à construção social, sobretudo no que se refere ao gênero, Oyèrónké Oyewùmí (2021) afirma que a construção social do conceito de gênero diz respeito a uma narrativa ocidental em que os papéis sociais estão associados a um determinismo biológico e que a afirmação da cons- trução social do gênero retroalimenta esse determinismo. Segundo ela, em A invenção das mulheres: construindo um sentido africano para os estudos ocidentais de gênero : A preocupação ocidental com a biologia continua a gerar construções de ‘novas biologias’, mesmo quando alguns dos antigos pressupostos biológicos são desalojados. De fato, na experiência ocidental, a construção social e o determinismo biológico têm sido dois lados da mesma moeda, uma vez que ambas as ideias continuam se reforçando mutu- amente. Quando categorias sociais como gênero são cons- truídas, novas biologias da diferença podem ser inventadas. Quando interpretações biológicas são consideradas convin- centes, as categorias sociais extraem sua legitimidade e poder da biologia. Em suma, o social e o biológico se retroalimentam (Oyewùmí, 2021, p. 37). Para Oyewùmí (2021, p. 37), “o debate sobre quais papéis e quais identi- dades são naturais e quais são construídos terá sentido somente em culturas em que as categorias sociais são concebidas como não tendo uma lógica própria independente”. O que, segundo a pensadora, não ocorre em todas as sociedades, mas, devido ao imperialismo, Oyewùmí pontua que se tende à universalização de tal visão. Para a pensadora, essas categorias foram impostas nas interpretações realizadas sobre as sociedades africanas, e ela alerta: 99 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista O fato de muitas categorias da diferença serem social- mente construídas no Ocidente pode sugerir a mutabilidade das categorias, mas também é um convite a construções intermináveis de biologias – na medida em que não há limite para o que pode ser explicado por meio do apelo ao corpo (Oyewùmí, 2021, p. 37). O debate e as problematizações sobre a construção social do gênero, a meu ver, não excluem os problemas de opressão de gênero advindos de dife- renciações e naturalizações de características atribuídas ao feminino e ao masculino, sobretudo em função do universalismo imperialista e colonialista que traz como consequência a imposição e a constituição de sociedades patriarcais. O que, acredito, incide diretamente sobre nós, mulheres negras, nas sociedades patriarcais. As colocações de Oyewùmí abrem possibilidades, trazem-nos diferentes perspectivas de se pensar as questões de gênero no que se refere às mulheres negras. Para além disso, tais colocações nos conduzem a considerar outras formas de existir – e de ser – enquanto mulher negra. Embora eu me identifique, enquanto mulher negra afrodiaspórica, com os feminismos negros, questiono-me se existem outras formas legítimas de ser mulher negra, reexistir e resistir. Questiono-me se existem, por exemplo, outros feminismos que se referem às mulheres negras. Quais as experiências das mulheres negras africanas? Existem feminismos no continente africano? Em que correspondem e em que divergem das experiências dos feminismos negros? Em que correspondem e em que divergem da minha experiência enquanto mulher negra no Brasil, na América? 2. FEMINISMOS AFRICANOS Os feminismos africanos são movimentos intelectuais, políticos e sociais que abordam as lutas das mulheres africanas, considerando suas realidades históricas, culturais e sociais. 100 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista Tais movimentos são diversos e refletem a multiplicidade de contex- tos do continente africano. Pode-se afirmar que tais movimentos integram uma abordagem interseccional, tratando de como gênero se cruza com outras formas de opressão, como raça, classe, etnia, religião, sexualidade e colonia- lismo. Os feminismos africanos reconhecem que as mulheres africanas enfren- tam múltiplas camadas de discriminação que vão além do gênero, incluindo o impacto do colonialismo e do imperialismo na formação de desigualdades estruturais que ainda persistem. Há, nesta perspectiva, um esforço em resistir às noções de superioridade cultural e social do Ocidente que muitas vezes tentarm ditar como as mulheres africanas devem ser e agir. Os feminismos africanos lutam pela criação de linguagens e práti- cas feministas que respondam às necessidades e às realidades locais. Eles são movimentos enraizados nas tradições e culturas africanas e enfatizam a importância de respeitar e valorizar os saberes e práticas locais, ao mesmo tempo em que questionam as práticas patriarcais dentro dessas mesmas tradições. Ao invés de uma ênfase em soluções individualistas, os feminis- mos africanos frequentemente privilegiam abordagens coletivas, nas quais a libertação de uma mulher está conectada à libertação da comunidade como um todo. Esse foco na coletividade se relaciona à ideia de uma filosofia africana que sublinha a interconectividade entre os seres humanos. A nigeriana Minna Salami, no artigo Uma Breve História do Feminismo Africano, reage à ideia de que os feminismos não são africanos e de que sim- plesmente expressam (importam) imposições ocidentais. Salami (2017, n.p) diz : A verdade é que o feminismo é uma necessidade absoluta para as sociedades africanas. Nós ocupamos o mais baixo lugar no índice global da igualdade de género, temos alguns dos números mais elevados de violência doméstica, o número mais elevado de circuncisões e mutilações femininas, e de outras tradições prejudiciais (que não preciso mencionar). 101 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista No entanto, continuo a ver artigos que começam de forma promissora, mas que fazem afirmações como ‘... o principal objectivo [sic] da mulher nigeriana é o imperativo da constru- ção da família como o primeiro passo na construção da nação’ e ‘as mulheres africanas não sentem a mesma urgência ou necessidade de se verem livres dos papéis de género tra- dicionais’. Ou este tipo de pergunta feita de maneira enfática: ‘O que há de errado com uma mulher ter sucesso, e continuar submissa ao seu homem? Sinceramente!’. Segundo Salami (2017), o fato é que, embora o termo seja importado, as mulheres africanas há muito se opõem a situações desvantajosas impostas a elas. Salami (2017, n.p) continua: [...] cabe somente às mulheres africanas assumir a respon- sabilidade de proteger as histórias das mulheres africanas e conectá-las às situações de hoje. Temos muitos tectos [sic.] de vidro para quebrar. Para começar a fazê-lo, devemos per- ceber que a situação actual [sic.] é tremendamente desvan- tajosa para as mulheres. As mulheres são sistematicamente marginalizadas dentro de nossas sociedades ao nível local e global. À medida que nossos olhos se abrem cada vez mais para esta verdade, devemos continuar a nos libertar e nos defender de noções limitadas de feminilidade. E isso é um trabalho urgente! Não precisamos reinventar a roda. Podemos e devemos inspirar-nos naquelas que já estão na luta para ajudar a criar uma narrativa da feminilidade africana, e deve- mos dar legitimidade à escolha feita por muitas de nós [mulheres africanas] em usar o feminismo como ferramenta para a nossa luta . Os feminismos africanos abordam questões como a violência sexual, o casamento infantil, a mutilação genital feminina e o direito à saúde sexual e reprodutiva. No entanto, o enfoque é sempre sensível às complexidades 102 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista culturais, reconhecendo a necessidade de diálogo e transformação gradual, no lugar de imposição de soluções externas. Em outras palavras, podemos compreender os feminismos africanos como feminismos a partir de uma perspectiva afrocentrada que,considerando a heterogeneidade do continente, identifica realidades (opressivas) comuns às mulheres em grande parte dos seus países. Realidades inclusive que não são exclusivas da África (como pobreza, fundamentalismos, violências e mortes de mulheres, por exemplo). De acordo com a angolana Florita Cuhanga António Teló1, em O Pensamento Feminista Africano e a Carta dos Princípios Feministas para as Feministas Africanas: Em sua perspectiva, o discurso feminista africano, embora deva muito ao movimento feminista global, preocupa-se em delinear essas inquietações que são peculiares à situação africana. Ele também questiona as características de culturas tradicionais africanas sem as ‘maldizer’, entendendo que elas podem ser vistas de forma diferente, por diferentes classes de mulheres (Teló, 2017, p. 2). Essa perspectiva feminista surge para corrigir as injustiças de gênero. Continuando, Florita Teló (2017, p. 2) explica: O movimento de mulheres/feminista em África atua em prol de políticas de gênero focadas nas mulheres, visando trabalhar a transformação das sociedades africanas em três níveis, descritos por [Amina] Mama: 1) da subjetividade; 1 Doutoranda em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, gênero e feminismo pela Universidade Federal da Bahia – PPGNEIM. Mestra em Direitos Humanos pela Universidade Federal da Paraíba. Licenciada em Direito pela Universidade Agostinho Neto em Luanda/Angola. Membra fundadora do primeiro Colectivo Feminista Angolano Ondjango Feminista. Membra Fundadora e Vice-Presidente da Associação Angolana Observatório de Políticas Públicas na Perspectiva de Género. Membra do Grupo de Pesquisa GIR@ da UFBA, do Grupo de Pesquisa LES da UFRB. Colunista do jornal virtual Correio Angolense. Nascida em Angola na província do Uíge. 103 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista 2) das nossas vidas e relacionamentos pessoais e; 3) da economia política. A libertação das mulheres exige abordar a injustiça de gênero em todo o seu percurso, ao nível micro e macro da política, não se afastando de qualquer nível de luta. Para o pensamento feminista africano pesquisa e ativismo caminham de mãos dadas . Mas, as formas de resistências e lutas das mulheres negras estão vol- tadas somente aos feminismos? Obviamente que não. Há outras formas de existências, reexistências e resistências das mulheres negras que indi- cam caminhos distintos dos feminismos e um desses caminhos é o proposto pelos mulherismos. 3. MULHERISMOS Em relação aos mulherismos, é possível identificar o mulherismo repre- sentado por Alice Walker, principalmente em seu livro Em Busca do Jardim de Nossas Mães. Walker (2021) contrapõe as experiências das mulheres negras às das mulheres brancas, atuando num contexto em que ainda consi- dera questões de gênero e, por esse motivo, aproxima este tipo de mulherismo dos feminismos negros, mas sem direcionar seus pontos de crítica e resis- tência aos homens negros. Seus pressupostos se sustentam em tradições nacionalistas, a partir das quais negros e brancos não podem atuar como iguais em um mesmo território ou instituições sociais. A partir da perspec- tiva nacionalista, afirma-se que as pessoas brancas, enquanto grupo, estão comprometidas com o sistema supremacista branco, portanto, há pouca utilidade na integração ou assimilação das pessoas negras em um sistema que as subjuga. A definição de mulherismo de Walker (2021) parte da ideia de distância dos brancos em geral e das mulheres brancas em particular. Nesse sentido, 104 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista as mulheristas expressam pouco interesse em trabalhar com mulheres bran- cas, pois estas são definidas como parte do problema. Por outro lado, o mulhe- rismo de Walker parece buscar o fortalecimento de relações entre as mulheres e os homens negros. Segundo Walker, as mulheristas estão comprometidas com a sobrevivência e a integridade das pessoas negras inteiramente, ou seja, tanto de homens quanto de mulheres (Walker, 2021). Mas, o conceito de mulherismo não se reduz à proposta de Walker. Um outro tipo de mulherismo é Mulherismo Africana, proposto por Clenora Hudson-Weems em 1980. Segundo a autora: “O Mulherismo Africana não pode ser confundido com o 'mulherismoʼ de Alice Walker”, porque “o interesse de Walker é quase que exclusivo na mulher, sua sexualidade e sua cultura” (Hudson-Weems, 2020, p. 43). Para Hudson-Weems (2020, p. 44): O Mulherismo Africana é uma ideologia criada e proje- tada para todas as mulheres de descendência Africana. Fundamenta-se em nossa cultura e, portanto, concentra-se necessariamente nas experiências, lutas, necessidades, dese- jos únicos das mulheres Africana. Abordando criticamente a dinâmica conflitante entre a feminista, feminista negra, femi- nista Africana e a mulherista Africana. A conclusão é que o Mulherismo Africana e sua agenda são únicos e distintos do feminismo branco e do feminismo negro [...] e do femi- nismo Africana. A principal abordagem do Mulherismo Africana é a materno-centrada e que não está necessariamente ligada à gestação uterina, mas a todo um conjunto de valores e comportamentos de gestar potências e perma- nência comunitária, considerando a liderança social que as mães negras exercem nas comunidades. 105 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista O Mulherismo Africana surge como uma alternativa para se compre- ender, refletir e agir para superação da condição imposta pela perspectiva ocidental (saída da Maafa2). A partir da voz de Maat (deusa da verdade e da justiça, no Egito Antigo), o Mulherismo Africana ressalta o papel matrigestor das pessoas negras como líderes na luta para reconstrução, recuperação e criação de uma integridade cultural que defenda os princípios de Maat (reci- procidade, equilíbrio, harmonia, justiça, verdade, integridade e ordem) com vis- tas à luta por sobrevivência, existência e resistência das pessoas negras. Cabe salientar, por um lado, que a compreensão da perspectiva do Mulherismo Africana requer a neutralização de referências eurocêntri- cas impostas a esse terrritório. Por outro lado, devemos nos atentar de que existem várias correntes de pensamento associadas aos mulherismos, cada uma com suas particularidades culturais e históricas, mas todas enfatizando o protagonismo das mulheres na luta por emancipação e dignidade. CONSIDERAÇÕES FINAIS Depois desse breve percurso, tentando apreender e aprender com algu- mas diferentes formas de ser mulher e negra, deixo um caminho aberto à refle- xão. Se a história androcêntrica imposta a nós pressupõe a narrativa única, serei eu a defender o meu ponto de vista de feminista negra como o caminho válido e legítimo para que as mulheres negras possam se autodefinir e se fortalecer? Não! Reivindico nossa existência diversa e múltipla, sem imposi- ções ou comparações. Defendo um caminho comum de luta, a partir do lugar 2 Maafa é o termo geralmente utilizado para expressar o grande desastre que ocorreu com a po- pulação negra, afrodiaspórica e africana, a partir de traumas históricos decorrentes da escravi- zação; tal termo se refere à desumanização de africanas e africanos e descreve a história e os efeitos contínuos das atrocidades infringidas à esta população até hoje. 106 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista no qual nos identifiquemos. Defendo que nossos alvos não sejamos nós mes- mas, nem nossas verdadeiras/os parceiras/os, mas o sistema que tenta insti- gar divergências entre nós e manter o controle, impondo-se, oprimindo-nos e apagando nossa existência. Acredito que nossa situação particular sob esses sistemas opressivos nos proporcione ângulos diferentes das próprias opressões e que essa situ- ação está longe de ser privilegiada e completa. Por isso, identificar nossa heterogeneidade é essencial para continuarmos na luta. Neste momento, eu me reafirmo como feminista negra,mas reivindico a apresentação e dis- seminação das ideias, experiências, teorias e pensamentos das feministas africanas, mulheristas, mulheristas africana e outras tantas perspectivas das mulheres negras que permitem nosso fortalecimento, existência, reexis- tência e resistência! REFERÊNCIAS COLLINS, P. H.; Bilge, S. Interseccionalidade. São Paulo: Boitempo, 2021. COLLINS, P. H. Pensamento Feminista Negro: conhecimento, consciência e a política do empoderamento. Tradução: Jamile Pinheiro Dias. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2019. DUARTE, M. J.; OLIVEIRA, D.; IGNÁCIO, K. Gênero, Raça e Sexualidade: Uma proposta de debate interseccional?, In: IRINEU, B. A. (Org.) Diversidade Sexual, Étnico-Racial e de Gênero, Salvador. BA: Devires, 2021, p. 161. GONZALEZ, L. A mulher negra na sociedade brasileira: uma abordagem político- econômica (1981). In: RIOS, F; LIMA, M (org.). Por um feminismo afro-latino- americano: Ensaios, intervenções e diálogos. Rio de Janeiro: Zahar, 2020, p. 39-52. 107 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista HUDSON-WEEMS, C. Mulherismo Africana: recuperando a nós mesmas. São Paulo: Editora Ananse, 2020. KILOMBA, G. Memórias da Plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019. OYEWÙMÍ, O. A Invenção das Mulheres: construindo um sentido africano para os discursos ocidentais de gênero. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021. SALAMI, M. Uma Breve História do Feminismo Africano. 2017 Disponível em: . Acesso em: 31 jul. 2022. TELÓ, F. C. A. O Pensamento Feminista Africano e a Carta dos Princípios Feministas para as Feministas Africanas. In: Anais Eletrônicos do 13º Seminário Internacional Mundos de Mulheres & Fazendo Gênero 11, Florianópolis, 2017. ISSN: 2179-510X. WALKER, A. Em busca dos jardins de nossas mães: prosa mulherista. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021. 108 DA ESCOLA À UNIVERSIDADE: CABELO, CABELO MEU, QUEM SOU EU? Vera Regina Rodrigues da Silva Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro Brasileira – Unilab Líder do Grupo de pesquisa Oritá - Espaços, Identidades e Memórias Vice-coordenadora do Comitê de Antropólogos(as) Negros(as) da ABA - Associação Brasileira de Antropologia. Diretora de áreas acadêmicas da ABPN - Associação Brasileira de Pesquisadores(as) Negros(as) Gestão 2020-2022 e 2022-2024 Laisa Bibiano Nascimento Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro Brasileira - Unilab 109 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista INTRODUÇÃO 1. A ESCOLA, EU E MEU CABELO . Ao longo dos anos nas ambientações escolares, temos acompanhado o fortalecimento das discussões e dos estudos voltados à educação para as relações étnico-raciais. Isto foi legalmente dissolvido pela Lei 10.639/03, que garante o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira, incluída na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (1996). A lei contempla tam- bém as Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das Relações Étnico-Raciais Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (2004). Em 2008, a Lei 11.645 foi sancionada, incluindo o ensino da cultura dos povos indígenas em todo o currículo escolar. As diretrizes em questão contemplam o auxílio assertivo de conhecimento necessário para a educação das rela- ções étnico-raciais, o que também corrobora para a construção da formação de identidade. O espaço escolar é derivado de múltiplos significados, dando ênfase, especialmente, ao trabalho de aprendizagem de conteúdos e disciplinas específicas. Contudo, é importante entender que esta não é sua principal função pois, a mesma objetiva a formação cidadã. Isso envolve não ape- nas o aprendizado de conteúdos, mas o saber dos valores culturais, sociais, de gênero, classe, raça, preconceitos e crenças. A escola, desde então, torna-se um lugar que vai para além da efeti- vação da construção e articulação de diferentes saberes e conhecimentos. Ela passa a ser um importante espaço de socialização entre os integrantes da comunidade escolar, como alunos, responsáveis, educadores, demais servidores e, sobretudo, sociedade. As transformações ocorridas na socie- 110 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista dade contribuem para a instituição de uma escola que cumpra a sua tarefa constitucional no auxílio à formação dos sujeitos para a vida em sociedade. Portanto, é possível pontuar que, através dessa relação entre os indivíduos, funda-se de forma dinâmica, o processo educacional, não somente como um processo escolar, mas como um amplo processo de humanização. A educação é, como outras, uma fração do modo de vida dos grupos sociais que a criam e recriam, entre tantas outras invenções de sua cultura, em sua sociedade. Formas de educação que produzem e praticam, para que elas reproduzam, entre todos os que ensinam-e-aprendem, o saber que atravessa as palavras da tribo, os códigos sociais de conduta, as regras do trabalho, os segredos da arte ou da religião, do artesanato ou da tecnologia que qualquer povo precisa para reinventar, todos os dias, a vida do grupo e a de cada um de seus sujeitos, através de trocas sem fim com a natureza e entre os homens, trocas que existem dentro do mundo social onde a própria educação habita, e desde onde ajuda a explicar – às vezes a ocultar, a necessidade da existência de sua ordem (Brandão, 1981, apud Gomes, 2002. p. 38). Diante desse fenômeno, no espaço escolar, infelizmente, é possível se deparar com situações recorrentes e desagradáveis. Apesar da referida contribuição para a formação cidadã que a educação escolar proporciona, este ambiente é palco reprodutivo de intensas desigualdades e preconceitos. Isso ocorre quando as influências externas se adentram através de discursos dos sujeitos que se tornam reprodutores desses discursos e quando é possível interligar a isso a diferença com o outro, as características físicas, culturais, e a sua corporeidade. Referimo-nos à projeção do racismo no ambiente escolar: as piadas, os apelidos e as brincadeiras mascaradas de preconceito. Ampliamos estas categorias para abordar a problematização desses acontecimentos na ins- tituição escolar, considerando, sobretudo, sua influência na trajetória de pessoas que são vítimas desse preconceito. 111 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista O que a escola tem feito? Será que ela trata as questões sobre a dife- rença, principalmente ligada à construção de identidade? Queremos enfatizar a importância de tratar sobre a corporeidade na ambientação escolar, tra- tando-se, sobretudo, dos corpos negros. Isso porque a presença do racismo incandesce a percepção negativa do negro sobre o próprio corpo, dificultando uma construção positiva da própria identidade. Não sendo possível desen- volvê-la, através disso, aproximamos do que será discutido neste capítulo: a trajetória escolar, a identidade racial e as corporeidades. 2. QUEM SOU EU, MULHER NEGRA ? O Brasil é repleto de multiculturalidade e essa dinâmica social nos faz estar inseridos em lugares e contatos sociais diversos. A diversidade étnico- -racial toma-se um espaço para ser palco dessa marca multicultural. Em nosso país, vivemos uma dualidade: de um lado, padecemos sob o mito da demo- cracia racial, onde, de forma ilusória, as pessoas convivem de forma harmô- nica; de outro, enfrentamos a tensão do racismo ambíguo, onde a existência do mesmo para a maioria das pessoas é desconhecida. Essas extremidades se condensam na compreensão da sociedade no que é ser negro, na projeção do racismo, na classificação dominante étnica de identidade de um determi- nado grupo sobre outro. No Brasil, vivemos sob o mito da democracia racial e padecemos de um racismo ambíguo. A partir daí, é preciso compreender que uma das características de qualquer racismo é sustentar a dominação de determinadogrupo étnico/racial em detrimento da expressão da identidade de outros. É no cerne dessa problemática que estamos inseridos, o que significa estarmos em uma zona de tensão (Gomes, 2002, p. 42). 112 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista Souza (1983) destacou que o processo de identidade negra se sucede através de um sofrimento para o sujeito, isto é, um desencadeamento resul- tante da descoberta da própria identidade. Pensar sobre a identidade negra redunda sempre em sofri- mento para o sujeito. Em função disto, o pensamento cria espaços de censura à sua liberdade de expressão e, simul- taneamente, suprime retalhos de sua própria matéria (Souza, 1983, p. 10 ). Primeiramente, é preciso entender como esse processo ocorre. A cons- trução da identidade negra está voltada ao uso por inteiro do corpo negro, ou seja, o sujeito está suscetível ao lidar com conflitos internos, levando em consideração a margem social que o mesmo “representa”. Não é tão sim- ples reconhecer e tomar conhecimento desse processo, trata-se de uma construção do indivíduo que, sobretudo, não se faz no isolamento. Ela é fruto de uma interação dialogada com o outro ao longo da vida, e se desenvolve quando o indivíduo, atravessado pelo outro, através da implicação social, cultural e histórica é refletida sobre si, essa por sua vez sobrepõe a cons- trução da própria identidade. A autora inclusive afirma que “ser negro não é uma condição dada, a priori, é um vir a ser. Ser negro é tornar-se negro” (Souza, 1983, p. 77), ou seja, é pensar não só na condição de possuir a cor, mas envolve as perspectivas que cercam o “vir a ser”, sendo uma construção coletiva e afirmativa. É preciso levar em consideração que há uma grande dificuldade dos negros e negras no Brasil se reportarem como negros. É mais simples, e menos doloroso, apresentar-se publicamente usando expressões como “moreno” ou “morena”, desvinculando-se de um “vir a ser”. Isso ocorre porque, ao se afirmar como negro, esse indivíduo automaticamente se coloca numa categoria que mais está próxima de ser vítima do preconceito racial, fruto da manutenção dominante do racismo em sociedade. O racismo, uma vez 113 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista em existência, projeta categorias de preconceito no indivíduo, causando uma repulsa, um descomprometimento e dificultando a construção de uma identidade negra positiva sobre si. É preciso entender que o processo não é fácil e demanda tempo. A iden- tidade negra se constrói através de uma posição política, isto é, deixar de negar a realidade, trazer a identidade para si, tomar consciência de processos histó- ricos, culturais, sociais e corpóreos. Como discorreu Souza (1983, p. 77), “cons- truir uma identidade negra - tarefa eminentemente política. Amparada pelas marcas historicamente disseminadas e ainda reverberadas cada vez mais, colocando-os em uma posição de segregação”. Tomar consciência dessas percepções é o primeiro passo para a construção da identidade negra que, sobretudo, é inteiramente, uma autoafirmação. Ao falar sobre a identidade negra, é também possível descrever seus símbolos, ou seja, aquilo que a identidade carrega, e um deles é o cabelo. Esse atributo no Brasil é palco para intensas discussões, e é através dessas discussões que procuramos neste capítulo explorar as facetas que cercam essas discussões incorporadas nas perspectivas das memórias de mulheres negras. O cabelo, no processo de desenvolvimento identitário negro, traça uma linha de rupturas ligadas à autoestima, que são criadas pelo racismo implantado. Nessa perspectiva, queremos enfatizar que a presença do racismo impacta significativamente na construção da identidade negra, o mesmo impede o desenvolvimento de uma autoestima pacífica e contribui para um exercício de negação dos próprios traços . O corpo feminino negro, tomado pelo racismo, percebe-se incorporando intensas transformações de produtos e afins. No caminho para a desco- berta identitária estética do corpo negro, é interessante entender os meca- nismos presentes que norteiam o impasse dessa não projeção negra de si. Sabendo-se que foi imposto um ideal modelo fora da estética negra para 114 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista nos projetar. Como refletiu Gonzalez (2020), somos forçados desde a infân- cia a nos idear no aceitável corpo branco. Isto é, o modelo estético ocidental (branco) que nos foi imposto para ser atingido: Por isso mesmo nós, negras e negros, éramos sempre vistos como o oposto daquele modelo através do reforço pejorativo das nossas características físicas: cabelo ruim, nariz chato ou fornalha, beiços ao invés de lábios, tudo isso resumido na expressão “feições grossas ou grosseiras” (Gonzalez, 2020, p. 224). O cabelo, como símbolo identitário negro, carrega marcações históri- cas importantes para a cultura. Esse objeto traz consigo o suporte simbólico do conceito de beleza negra, sendo um aporte que exala autoestima. Porém, mesmo com todos esses conceitos que enriquecem a comunidade negra, esse ícone identitário projeta, para mulheres negras, na maioria das vezes, um processo de insatisfação. No Trabalho de Conclusão de Curso, intitu- lado “Cabelo além de cuidados: um estudo de memórias no âmbito familiar de mulheres negras sobre seus fios”, há relatos de entrevistadas que mos- tram que a criança negra, desde pequena, é influenciada a fazer alterações em seus cabelos. “Eu lembro que eu era cacheada, tinha o cabelo grande e quando entrei na minha adolescência já quis alisar e pas- sei um bom tempo lisa. As minhas lembranças boas eram quando eu era criança, na minha infância, era cacheado e eu não precisava me preocupar com o cabelo. E na adolescên- cia minhas lembranças ruins foram quando eu alisei o meu cabelo, eu tive corte químico, tive que cortar muito curto. Perdi todo o meu cabelo natural para virar lisa. Eu desejava mudar o meu cabelo porque eu achava o cabelo cacheado muito trabalhoso, não gostava, sei lá… eu queria ser lisa, via minhas amigas alisando os cabelos e queria alisar tam- bém.” (Entrevistada 1). 115 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista Podemos perceber, pelo relato da entrevistada, o peso que era lidar com um cabelo cacheado sendo “trabalhoso”, e, por isso, ela não o gos- tava de cuidar dele. O cuidado exige zelo, tempo, dedicação e contemplação em forma de sentimento. Essa expressão marca a transição para uma trans- formação que agora sai de cena o trabalho que é cuidar, e não mais precisar do pente para puxá-lo e desembaraçar, isso porque, apesar do corte químico nos fios, que ela relata que foi uma lembrança ruim, notamos que este pro- cesso não se deu de forma harmoniosa. É perceptível o choque sentimental do processo de mudança que causa insegurança, sentimentos de dor e difi- culdades desgastantes. Existe uma cultura de práticas que ainda permeia a nossa realidade. Em decorrência disso, “as meninas negras, durante a infância, são submetidas a verdadeiros rituais de manipulação do cabelo, realizados pela mãe, tia, irmã mais velha ou pelo adulto mais próximo” (Gomes, 2002, p. 43). Essa manipu- lação é reverberada através da influência do racismo implantado associado ao volume do cabelo. O cabelo é adornado com tranças, por exemplo, para não “assanhar”, ou até mesmo “esconder” sua categoria crespa. Quanto mais crespo o cabelo, mais suscetível ele é a passar por transformação capilar química. “Ele era um cabelo crespo, aquele crespo “pixaim”, não tinha como eu cuidar dele como eu cuido agora. Não era fácil cuidar dele. Teve um período que eu não gostei dele. Era quando ele era muito crespo. Tipo assim, eu queria usar ele solto, porque ele era aquele cabelo muito assanhado, não era aquele cabelo hidratado. O período que eu achei mais difí- cil era quando eu era menor. Na infância era aquele cabelo muito seco, não tinha o tratamentoideal para ele, até porque eu era muito pequena, não tinha como eu cuidar dele, como eu cuido dele agora. Porque antigamente, o shampoo, não era qualquer shampoo que ele se dava. Hoje já tem o sham- poo apropriado para ele, creme apropriado, essas coisas. Eu nem sei te dizer realmente se eu cuidava dele, porque 116 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista eu não tinha os produtos ideais para cuidar dele,era só na água. Teve um tempo que eu queria tratar dele passando alisamento, só que com o alisamento, ele piorou. A textura ficou mais seca, a cor do cabelo foi mudando, só piorou, ele já era ruim, depois que molhava voltava ao normal, aquela coisa estranha que não era tratada. Na infância, ainda nem estava no ensino médio. As pessoas falavam muito assim, “ai mulher, teu cabelo tá muito seco” as pessoas não tinham coragem de chegar para mim e dizer “teu cabelo tá feio, tá muito desi- dratado” as pessoas diziam que tava estranho, não chega- vam e diziam pra eu ir em um profissional para fazer o tra- tamento adequado, não falava. O que foi feio que achava logo no começo e isso me incomodava até hoje era quando eu molhava meu cabelo, chegava nos lugares e as pessoas diziam “vai tomar banho”, sendo que eu já tinha molhado, e eu ficava meio assim, levava na brincadeira, e respondia que já tinha tomado banho. As pontas ficavam molhadas e do meio pra cima ficava seco. Aí eu decidi mudar o crespo pro liso porque isso me incomodava.” (Entrevistada 2). No relato da entrevistada, é possível perceber a gama sentimental de conflitos dolorosos que resultaram na mudança, ela sente dificuldade para tratar os fios, sem produtos que permitissem o cuidado. A textura do cabelo, sua maior fraqueza, por causa da textura era ridicularizada, conformando, assim, a sua mudança para não mais passar pela dor da rejeição. Podemos notar que as expressões lançadas sobre este corpo femi- nino deixaram memórias irreparáveis, consolidando a repulsa e abominação do próprio cabelo. Gomes (2019, p. 12) diz que, quanto mais preta é a cor da pele e mais crespo é o cabelo, mais as pessoas que possuem tais caracterís- ticas são desvalorizadas e ensinadas a se desvalorizar, não só esteticamente, mas também enquanto seres humanos: O racismo e a branquitude, ao operarem em conjunto, lança, dardos venenosos sobre a construção da identidade negra 117 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista e tentam limitar os indivíduos negros, sobretudo crianças e mulheres que, ao se mirarem no espelho, veem aquilo que ele - o racismo - coloca a sua frente. Na infância, meninas negras são interpeladas pelas influências visuais nos meios sociais de convivência: na família, na escola, na mídia e na tele- visão. Esta fase é envolta de processos memoráveis, como, por exemplo, quando elas se veem diante de um espelho e percebem um atrito entre estas influências e aquilo projetado a sua frente, por ela mesma. Falamos isto porque é na infância que sentimentos conflitantes são carregados de memó- rias pesadas e difíceis de serem digeridas por pequenas meninas e futuras mulheres. A percepção do corpo e dos traços que se diferem das proje- ções visuais que influenciam a sociedade como sendo bons e agradáveis, inicia-se, por exemplo, através dos brinquedos, da boneca de pele branca, dos seus cabelos lisos, loiros e de olhos azuis, nas brincadeiras de usar a toa- lha na cabeça para fingir que é um cabelo liso, no protagonismo televisivo branco e na escola, quando seu cabelo é volumoso, cacheado ou crespo, e se torna motivo de piadas. Quando a criança negra crespa sofre a experiência amarga de ter sem- pre seu cabelo adornado para se alinhar ao padrão do cabelo baixo, puxado, desembaraçado e sem frizz, ela adquire um sentimento de conflito no sen- tido de negar a si mesma, projetando ódio ao cabelo que não é semelhante ao cabelo da colega, que é solto, que é leve e que não tem volume. Se tra- tando de crespas e cacheadas, desde a infância, somos educadas a não gostar do próprio cabelo. Muitas, por sua vez, recorrem à química como redentora dos conflitos internos causados pelas influências que o racismo projeta: a negação. “Não que eu tenha preconceito com cabelos crespos, mas eu desejava ter cabelos lisos, eu achava muito bonito na época. Eu acho bonito cabelo crespo, mas para mim eu não com- 118 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista bino. Tanto que quando eu era pequena eu sempre quis ter um cabelo liso. Quando eu era pequena eu sofria muito bullying na escola o pessoal dizia “ah o cabelo de bombril”, “menina do cabelo duro”, eu não gostava disso e isso gerou uma mudança muito grande em mim que foi o alisamento.” (Entrevistada 2) Esse trecho revela a manutenção do preconceito e do racismo no ambiente escolar. Expressões como “cabelo ruim”, “cabelo de bombril” e “menina do cabelo duro” estão frequentemente sendo proferidas na escola, mascaradas de brincadeiras, quando na verdade buscam ridicularizar a vítima, contribuindo para a abertura de uma ferida que se finca em um corpo negro, sobre o que lhe é pertencente. Ao considerar a constância desse “eu” modi- ficado, a criança começa uma lógica de não pertencimento dos traços her- dados, resultando em constrangimentos que geram a amargura sentimental de pertencer e possuir. Essas ocorrências são diárias na ambientação esco- lar e dificilmente são rebatidas na repartição gestora da escola ou do pró- prio regente de sala. Comumente, são inferidas a uma pequena brincadeira do colega, e esta não terá peso de culpa, não será punida e ao menos refletida. Esta é a manobra perfeita para a manutenção do racismo na escola. Engana-se quem pensa que isto se manifesta somente nos discursos dos alu- nos. Infelizmente, neste espaço se configura o que chamamos de currículo oculto, que é “constituído por todos aqueles aspectos do ambiente escolar que, sem fazer parte do currículo oficial, explícito, contribuem de forma implí- cita, para aprendizagens sociais relevantes” (Silva, 1999, p. 78). Logo, vê-se que o silenciamento pedagógico para tratar o discurso de ódio proferido contra estudantes negros contribui para a perpetuação do racismo. Por muito tempo, o negro foi vítima dos estereótipos corrompidos nos livros didáticos, associado unicamente ao período histórico de coloni- zação e escravidão. Assim, o sujeito negro em sala era motivo de piadas e de preconceito racial. Quantos negros e negras, em sua trajetória escolar, 119 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista não foram vítimas de apontamentos e associações diretas a este período histórico quando estudado sobre a escravidão na escola? Para a reparação deste problema, a Lei 10.639/03 foi criada, que inclui no currículo oficial das redes o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira, pre- vendo o estudo e ensino das relações étnico-raciais, possibilitando uma cons- trução positiva sobre a identidade negra. Neste momento, a educação escolar coloca o negro na centralidade de estudos, reposicionando suas potencia- lidades de atuação na sociedade brasileira. Esta lei prevê uma formação que garante a educação étnico-racial, mas é preciso que ela seja executada com seriedade, vinculada ao currículo escolar obrigatoriamente e trabalhada pelos educadores. Sabemos que há muitos percalços para a desenvoltura dessa educação, mas é preciso que os educadores e educadoras estejam atentos à necessidade de tratá-la em sala de aula. “Um período difícil e que eu não gostava era quando ele ficava alto, eu me olhava no espelho e não gostava, eu não me sentia bem. Eu dizia “Ah meu cabelo tá muito alto, eu quero cortar ele”. Eu não estava me sentindo bem. Na infância eu queria ele sempre liso, eu falava assim: um dia eu vou ter o meu cabelo liso. Assim, eu não tinha as coisas para manter, quando eu não tinha eu fazia somente lavar ele. Não era como esses shampoos bonsque tem agora. Eu não podia fazer uma hidratação e hoje já está mais fácil shampoo, condicionador, máscara para manter ele bem alinhado. Sempre eu cortava ele, custava a crescer. Me chamavam de “zé ramalho”, meu cabelo era cortado, em cima ele era grande, alto e embaixo era cacheado. Eu tive perebas na cabeça, tinha que cortar para ele crescer normal e foi esse tempo que ele cresceu em cima e embaixo que ficou só o “chitãozinho e xororó” porque o pessoal me chamava muito de apelido, eu entrava para casa chorando. Na escola eu amarrava com uma fivela, o cocó no meio e a fivela em cima. Eu percebia o olhar de rejeição. Depois eu fui para o salão 120 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista de beleza, lá tinha tratamento, eu fiz uma química no cabelo, ele foi crescendo. E agora ele tá liso do jeito que eu quero, eu estou hidratando com os kits que eu tenho… Assim, tinha as piadas, e eu desejava ter o cabelo liso, eu não gostava.” (Entrevistada 3) Souza (1983, p. 10) explica um dos estágios do racismo que configura essas facetas de mudança no corpo negro. Ela afirma que “o sujeito negro diante da “ferida” que é a representação de sua imagem corporal, tenta, sobretudo, “cicatrizar o que sangra”. Isto significa que, ao passar por mudan- ças vivenciadas pelo sujeito negro, ele é induzido aos estágios de racismo, que lhe roubam a capacidade de pensar por si mesmo. Desse modo, esse processo rouba também seu jeito de pensar, ou melhor, sua forma de viver com a sua personalidade, que é aquilo que um sujeito projeta. Assim, ao cica- trizar a ferida, que ele tenta remediar, os estágios do racismo, corroborados por cadeias da estigmatização, contribuem para a apagamento do negro, da sua cultura, da vivência, do modo de pensar e de quem ele é como um todo. Um dos exemplos desse apagamento vem do uso do “ferro quente”, um instrumento no formato de um pente, geralmente feito de ferro e que levado ao fogo serviu para alisar gerações de cabelos de mulheres negras das nossas famílias. Isso era algo geralmente doloroso, mas ao mesmo tempo almejado como o caminho para o tão sonhado cabelo liso e bonito. Era tam- bém o caminho para conseguir emprego, pois afinal era sinônimo, na época, da chamada “boa aparência”. Também era o caminho do afeto, pois as chances de atrair o olhar de um pretendente passavam pelos cabelos. E assim, desde pequenas vivenciávamos a temida solidão das mulheres negras. Foi pen- sando nesses aspectos de “tornar-se negro”, significando “as dores e delícias de saber quem se é”, que dialogamos com experiências vivenciadas no espaço da educação, mais precisamente uma universidade pública, fruto da demanda histórica do movimento negro brasileiro por acesso à educação para a popu- 12 1 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista lação negra, bem como na ótica de reconhecimento de nossa matriz africana na constituição de nossa identidade. 3. CRESPAS E CACHEADAS NA UNIVERSIDADE DA INTEGRAÇÃO INTERNACIONAL DA LUSOFONIA AFRO-BRASILEIRA. Estamos falamos da Unilab - Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira. A universidade foi gestada na dinâmica das polí- ticas públicas desenvolvidas pelo Ministério da Educação, por meio do REUNI – Reestruturação e Expansão das Universidades Federais em 2008, e con- cretizada em 25 de maio de 2011, com a solenidade de inauguração do cam- pus da Liberdade, reunindo autoridades locais, nacionais e o primeiro grupo de estudantes matriculados: 141 brasileiros e 39 estrangeiros nos cursos de Administração Pública, Agronomia, Enfermagem, Engenharia de Energias e Licenciatura em Ciências da Natureza e Informática. Segundo os últimos dados disponíveis, a Unilab possui um corpo dis- cente composto de 2.966 estudantes nacionais e 1.318 de estudantes inter- nacionais oriundos de Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, São Tomé e Príncipe e Timor Leste. Entre esses estudantes estão jovens nordestinas e africanas, cada uma com seus diferentes modos de pensar e lidar com seus cabelos. Algumas o descobrem nesse cenário de retomada de valores civilizatórios e estéticos, enquanto outras passam a questionar suas identidades antes e depois de vivenciar o processo de autodescobrimento que a universidade fomenta, ao provocar a criticidade sobre temas como colonialismo, racismo, educação afro diaspórica, entre outras reflexões sobre o agir, ser e existir no mundo. 122 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista Um desses momentos se deu em 2015 (foto abaixo) quando realizamos um encontro de “crespas e cacheadas” na Unilab : Fonte: acervo pessoal Naquela ocasião, mesclaram-se emoções e percepções como tinham até então vivenciado suas corporeidades no ambiente escolar e agora univer- sitário. Para a maioria delas o momento era de transição, pois o fato de esta- rem em uma universidade que buscava acolher e valorizar a diversidade presente no contexto vivido, fazia com que aquele fosse um espaço minima- mente seguro para vivenciar corporeidades e estéticas tidas como “não con- vencionais” naquele sentido da “boa aparência” tão conhecida por gerações de mulheres negras, especialmente no cenário brasileiro. A “boa aparência” pode ser lida como a normatização de uma estética padrão alinhada à branquitude, ou seja, traços fenotípicos de pessoas bran- cas tidos como universais e por si só sinônimos de uma beleza única, o que no caso dos cabelos, significado serem lisos e compridos. Ao confrontarmos em sala de aula, do ponto de vista das epistemologias contra hegemônicas, tais como feminismo negro e estudos decoloniais, visões de mundo sustenta- das pelo colonialismo, racismo e patriarcalismo, contribuímos para releituras teórico-políticas e modos de ser e estar no mundo. Assim foi possível, naquele encontro de “Crespas e Cacheadas”, ouvir depoimentos sobre como sentir-se “livre” e/ou, “bela”, a partir da construção 123 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista de um outro olhar para suas corporeidades e estéticas. Interessante também pontuar que para algumas, isso ter se dado na universidade, tal como antes ocorrera de forma na escola, denota que modelos de educação incidiam sobre a forma como viam o mundo e a si mesmas. Tal reflexão foi objeto do trabalho de conclusão de curso “O cabelo crespo e a trajetória escolar no processo de construção da identidade negra” elaborado pela estudante Luzyanne Maria da Silva (2014), do Curso de Bacharelado em Humanidades da Unilab, o referido TCC apresentava o seguinte resumo : O presente trabalho de conclusão de curso tem por objeto de estudo os dados obtidos por meio de uma pesquisa etno- gráfica realizada em duas instituições escolares na cidade de Redenção/CE. Dele emerge uma articulação entre a traje- tória escolar e o processo de construção da identidade negra, pondo em foco a significação social do cabelo crespo e os sentidos que lhes são atribuídos dentro e fora do espaço escolar. A pesquisa se desenvolveu na Escola Estadual de Ensino Médio Camilo Brasiliense e a Escola Estadual de Educação Profissional Adolfo Ferreira de Sousa. Em cada escola foram entrevistadas dez adolescentes com cabelos crespos. Para a realização da etnografia, a observação partici- pante e as entrevistas foram as técnicas utilizadas. O objetivo foi compreender, a partir de lembranças das adolescentes entrevistadas, como estas percebem o seu próprio cabelo e a relação estabelecida entre o cabelo crespo, a trajetória escolar e a identidade negra, constatar como esse processo de reconhecimento da identidade negra e das relações raciais incidem nos espaços escolhidos para o trabalho de pesquisa, além de observar como as instituições escolares vivenciam e dialogam com o processo de significação social do cabelo crespo. O entendimento desse contexto revela que as expe- riências vividas em torno do cabelo no ambiente escolar e na sociedadecomo um todo acontecem em meio a conflitos e contradições. 124 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista Outro TCC em diálogo com o tema foi “Cabelo além de cuidados: um estudo de memórias no âmbito familiar de mulheres negras sobre seus fios” de autoria de Laisa Bibiano (2023), também coautora desse capítulo. O resumo nos traz o seguinte: Na presente pesquisa de conclusão de curso do bachare- lado em humanidades foi realizado um estudo a respeito das memórias que o cabelo projeta na trajetória de mulheres negras no âmbito familiar. A questão é, aprofundar a dis- cussão para além dos relatos vividos por essas mulheres em relação aos seus cabelos, ou seja, apresentar uma discus- são a respeito da identidade negra, cabelo da pessoa negra, racismo, corpo negro, e afetos. A pesquisa parte de uma abordagem qualitativa com o intuito de acessar essas expe- riências e acontecimentos. A pesquisa foi realizada através de entrevistas com perguntas semiestruturadas. São mulheres negras que carregam histórias e transformações em seus fios. Em ambas as pesquisas nos deparamos com a produção acadêmica de jovens pesquisadoras negras que problematizam a temática de corpo- reidades, a partir de experiências vividas com seus cabelos, como forma de dialogar em âmbito coletivo sobre o que perpassa essas experiências e o que isso nos diz sobre educação antirracista e trajetórias de mulheres negras . 4. LIDANDO COM O CABELO E A SOLIDÃO. No ano de 2021, um outro encontro entre mulheres negras dessa vez de uma mesma geração, professoras universitárias, desaguou em uma escrivi- vência, como diria a escritora Conceição Evaristo. Naquela ocasião, a parceria afetiva, teórica e política com a socióloga Edilene Machado Pereira, levou-nos ao diálogo e escrita sobre o tema da solidão associada a noção e sentimentos 125 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista construídos ainda na infância, no ambiente escolar (Rodrigues; Machado Pereira, 2021). Para isso, fizemos o exercício da escuta no formato de entre- vistas com 68 mulheres negras, as quais nos trouxeram relatos de vivências em que o lócus familiar e a escola eram evidenciados no processo de “sen- tir-se só”. Cabe destacar que estudos como os de Cavalleiro (2003) e Gomes (2003) problematizam como corpos negros podem ser vistos e sentidos no ambiente escolar, já que esse nem sempre se configura como um espaço acolhedor, e nossa interlocutoras verbalizam essa realidade: Desde a infância fui preterida entre os amigos, não conse- gui me incluir, parecia ter uma doença grave que passava através do cabelo. Todo o tempo da escola foi assim e na Universidade foi um pouco pior, para minha sorte muitas pro- fessoras me ajudaram neste processo. Hoje vivencio está desumanização na política, mais precisamente nos partidos políticos. Acho que na questão familiar sempre senti isso, minha mãe era negra e foi embora quando eu tinha três anos, nunca tive referência por parte de mãe sobre negritude, sobre ser uma mulher negra. Acabei sendo criada pela família do meu pai que é branca e do interior do Rio Grande do Sul, onde eu sempre me sentia diferente, nunca me enquadrei, e muitas vezes as situações de racismo eram resolvidas com um "é só não dar bola". Pra mim a questão dessa solidão se manifestou mais num aspecto familiar mesmo. Corresponde a pensar a estrutura no qual a mulher negra está inserida e a partir disso compreender como ao seu redor seus laços afetivos são despedaçados desde sua infância, inicialmente pelo âmbito familiar e posteriormente pelos laços afetivos. 126 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista Desde a infância sempre servi para amiga, uma forma das pessoas xingar os meninos era dizer que eram meu namo- rado, como se fosse uma coisa horrível. É uma ferida que não cicatriza nunca. E o preterimento continua até na fase adulta. Estar por minha conta em todos os momentos da vida. Não há alívio. O mundo do trabalho é duro demais, a sociedade desumaniza com exigências que nunca damos conta e a família não entende quando não conseguimos cumprir todas as exigências. Solidão da mulher negra é quando ela não pode partilhar no campo afetivo, familiar, social, emocional e psíquico de uma tranquilidade, equilíbrio no usufruto das benesses do amor numa dimensão mais macro. É ter sempre que se explicar a todo tempo, mesmo para quem está próximo, seus sentimentos, pensamentos, existência. Como se você fosse um ser exótico do mundo dito "normal", como se fosse o negativo desse mundo. É ter dificuldade para apenas ser, porque o mundo não te enxerga, não te compreende, não te ouve. Outras pesquisadoras, como hooks (2019), Nascimento (1990) e Gonzalez (1982), trazem em seus estudos algumas reflexões a respeito do tratamento que a população negra que sofre desde os primórdios da humanidade, prin- cipalmente as mulheres negras. Desde o período escravocrata, foram criadas hierarquias sociais baseadas em raça e gênero, colocando as mulheres negras no final da fila. Essas mulheres, desde a infância, necessitam de uma cons- trução psíquica diária para se manter na superfície do mar de rejeição racial, sexual e relacional, em uma sociedade onde o perfil eurocêntrico é a “base”. Mesmo quando essas mulheres negras alcançam níveis altos de escolariza- ção, a seleção racial perdura. 127 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista Sabemos que a solidão da mulher negra, desde a sua infância, é um tema que a pouco tempo foi assumido e colocado nas pautas de estudos. É um tema visto como vitimismo, sabemos que não trazemos nas nossas memórias o preterimento de nossos ex-colegas no jardim de infância, nas séries iniciais, onde nunca éramos chamadas para dançar, ou ser par na formatura e, obvia- mente, ser paqueradas. Éramos a miss simpatia, a líder da sala ou até a melhor amiga. Esse estigma nos acompanha até mesmo no nível superior. Preterimento que parte também do homem negro. Não temos o perfil (Damasceno, 2011) exigido pela sociedade com padrões eurocêntricos. O marcador temporal da infância, associado ao processo de constru- ção da identidade negra, evidenciado pelas autoras em artigo anterior e no atual, através das entrevistas coletadas, nos possibilita situar as falas dessas interlocutoras em um momento crucial de suas vidas. Esse momento em que se sentem solitárias tem as marcas do silenciamento e da naturalização de não ser amada, vista ou valorizada, é resultado do racismo estrutural presente desde o nascimento, tanto no relacionamento familiar quanto fora dele. O preterimento vivenciado na infância e nas posteriores fases da vida, com a solidão desempenhando o papel de “personagem”, encontra no corpo negro o ponto inicial para exercer uma posição de superioridade étnica, tão apregoada ao longo dos séculos em uma sociedade racialmente hie- rarquicamente. A rejeição ao cabelo crespo, ao toque e à noção de beleza conduz a uma rejeição ainda maior: ela afeta o campo dos afetos, que não se constroem. Impede a admiração e aceitação social, que não ocorrem; e, por fim, resulta em uma baixa autoestima. Esse processo pode, inclusive, levar, na fase adulta, à culpabilização, ao auto ódio e ao adoecimento por estar e/ ou sentir-se só, como ilustram as falas a seguir : É um abandono. Falta de uma beleza externa. 128 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista Durante muito tempo eu achei que não era atraente, que nunca seria amada por um parceiro. Me submeti a relacionamentos que me deixavam mal. Era uma espécie de mendicância, porque eu me contentava com o pouco que as pessoas me davam Afeta a minha autoestima, fazendo com que eu tenda a me contentar com relacionamentos ruins, pois acho que não posso encontrar ninguém melhor ou que verdadeiramente goste de mim, me valorize. Eu tenho 20 anos e nunca ter me senti bonita e segura o suficientee das vítimas de violência e exclusão. O processo de intertextualidade histórica tem pro- tagonismo na análise de como o rap feito pelo grupo denuncia abusos, vio- lências, genocídio negro e a omissão do poder público, desafiando o status quo e promovendo uma consciência crítica antirracista e o engajamento social entre os jovens das periferias. O nono capítulo foi escrito por Kilza Maria de Melo Pascoal (Grupo de Estudos e Pesquisas em Autobiografias, Racismos e Antirracismos na Educação/UFPE) nomeado de Uso das narrativas da religiosidade afro- -brasileira na educação básica: os desafios da recepção. A autora apre- senta uma prática pedagógica realizada em uma escola da rede privada em Recife-PE, envolvendo uma turma do sexto ano do Ensino Fundamental II e discute a demonização da religiosidade de matriz africana. Kilza Pascoal também reflete a importância de abordar, no ambiente escolar, temas relacio- nados à cultura e à história africana e afro-brasileira, destacando a relevância de uma educação inclusiva e multicultural, que promova a compreensão 13 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista e o respeito pelas diversas manifestações culturais presentes na sociedade brasileira. O décimo capítulo é intitulado Educação para as relações étnico-raciais: relato de experiência docente no curso de História da Unicap (2024), foi escrito por Leandro Nascimento de Souza (Universidade Católica de Pernambuco) e Maria do Rosário da Silva (Universidade Católica de Pernambuco). Os autores relatam o desafio de enfrentar o eurocentrismo e a resistência dos estudantes da graduação e da estrutura institucional ao abordar questões étnico-raciais. Com base em referências como Nilma Lino Gomes e Kabengele Munanga, o texto destaca a importância de metodologias que vão além da transmissão de conteúdo, promovendo uma reflexão crítica sobre o racismo estrutural e a colonialidade no ensino. Sob essa perspectiva, os autores defendem que a inclusão de aulas invertidas, debates sobre racismo estrutural e atividades práticas, como visitas ao Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas (NEABI), ao Museu de Arqueologia e Ciências Naturais da UNICAP e ao grupo de capoeira Chapéu de Couro, além de uma aula de campo em Recife, fomentaram uma maior compreensão sobre as contribuições das populações afro-brasileiras e indígenas, fortalecendo uma consciência antirracista. Dessa maneira, acreditamos que a leitura do e-book possa contribuir para a formação de uma consciência crítica e construtiva, assim como ser estí- mulo para o desenvolvimento de estudos e pesquisas sobre questões étni- co-raciais e educação antirracista. Alexcina Oliveira Cirne Karl Heinz Efken (Organizadores) 14 UMA DEFESA DA EDUCAÇÃO QUILOMBISTA “Não estamos educando nossas crianças. Não temos estru- turas sistemáticas de socialização para as nossas crianças. Elas criam a si mesmas ou são criadas por outros. Falta-nos uma das funções vitais mais importantes, a responsabilidade pela transmissão cultural intergeracional”. (Asa Hilliard) Ricardo Matheus Benedicto Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira - UNILAB. Coordenador do Grupo de Pesquisa em Educação Afrocentrada Vice-Coordenador do Centro de Estudos Africana 15 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista INTRODUÇÃO O presente artigo parte dos seguintes pressupostos: a) a cultura euro- peia é racista baseada no desejo de poder; b) este poder é exercido por meio do controle dos povos e culturas não europeias; c) uma das maneiras de con- trolar estes povos e culturas é através da educação escolar; d) a educação escolar no Brasil, ao longo dos séculos XX e XXI, foi, e é constituída, sob a égide da supremacia branca – realidade esta permanente nesta sociedade. Estes fatos, como bem observou Asa Hiliard, devem ser colocados em perspectiva histórica. Em suas palavras: não é necessário entrar em grandes detalhes sobre a história da educação dos africanos sob a escravidão, colonização, apartheid e a ideologia do supremacismo branco. O registro é claro. O tratamento dado aos africanos não é caso de negligência ou acidente. Não foi benigno (Hilliard, 2007)1. Reconhecer esta realidade é de fundamental importância, pois, caso contrário, tomaremos uma falsa realidade como nossa e continuaremos con- trolados por nossos opressores. Diante destes fatos, segue-se que a escola pública brasileira não pretende e nunca pretendeu oferecer educação que pre- serve e transmita a cultura das amefricanas e amefricanos do Brasil. Desse modo, para resolver este problema, temos duas alternativas: 1. Tentar reformar o sistema educacional racista; 2. Criar nossos próprios modelos educacionais. Já demonstrei em outros trabalhos que a primeira alternativa, embora seja majoritariamente adotada pela comunidade afro-brasileira, consiste 1 A tradução é nossa. 16 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista em uma solução equivocada. Portanto, aqui, não me deterei nela2. Neste texto, aprofundarei os argumentos para sustentar que somente com a construção de modelos educacionais quilombistas cumpriremos de modo satisfatório a tarefa de educar as nossas crianças e jovens para conhecer, proteger, recriar e transmitir a cultura dos nossos antepassados. 1. RESPONSABILIDADE DA TRANSMISSÃO CULTURAL INTERGERACIONAL Mwalimu Shujaa, em seu artigo Education and Schooling: You Can Have One Without The Other, define educação como “um processo de trans- missão de uma geração para a geração seguinte o conhecimento dos valo- res, estética, crenças espirituais, e todas as coisas que dão singularidade a uma particular orientação cultural” (Shujaa, 1998, p. 15). O educador enfatiza que todo grupo cultural deve providenciar este processo de transmissão ou, caso contrário, deixará de existir. Eu endosso a definição de Shujaa e, neste sentido, penso que é neces- sário dizer algumas palavras sobre a responsabilidade da geração mais velha em educar a geração mais jovem, visto que nas últimas décadas o sistema 2 Sobre este tópico as palavras Chancellor Williams são proféticas: quando a segregação nas esco- las e residências foi declarada ilegal nos Estados Unidos, os brancos fugiram das cidades para os subúrbios como se uma praga tivesse sido liberada, ou como se alguma doença mortal fosse es- palhada. Os negros foram deixados sozinhos nas cidades, agora chamadas de guetos ou “centros decadentes.” Esta rejeição foi total e completa. A juventude negra dos Estados Unidos recebeu, pri- meiro e rapidamente, a mensagem dos brancos. Eles formaram novas frentes de batalha. Milhões de negros da “classe média” e seus líderes ainda não receberam a mensagem e provavelmente nunca receberão. Para eles o homem branco é o barco e todo o resto é o mar. Eles próprios não se sentem competentes para desenvolver modelos superiores de vida nas comunidades negras criadas por estes mesmos brancos que eles adoram. Para eles, não pode haver “educação de qualidade” a menos que, de qualquer maneira, algumas caras brancas, qualquer tipo de face bran- ca, estejam nas salas de aula. Seu principal objetivo é forçar os brancos fugitivos a aceitá-los ou, “por favor, povo superior, permita que andemos no mesmo ônibus ou que enviemos algumas de nossas crianças para suas escolas!” Assim que obtém estas vitórias vazias para o movimento de integração, eles adicionam um novo choro: “Dê-nos igualdade racial! ”Estes negros não têm nem orgulho étnico nem autorrespeito que é tão característico dos indígenas, japoneses e chineses; e eles parecem completamente insensíveis ao fato de serem abertamente rejeitados pelos brancos e trabalham com a ideia fantástica de que podem forçar os brancos a aceitá-los socialmente (1987, p. 311). As aspas são do original. 17 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista de supremacia branca vigente no Brasil fez com que nossa comunidadepara alguém, internamente eu sempre acho que as pessoas têm uma opção melhor do que eu. Também inclui situações em que me colocam apenas para uma relação algo casual e nunca uma relação que envolva laços de afetividade Sou uma mulher negra, pobre e gorda que nunca teve um relacionamento. Ao lermos as narrativas do assédio psicológico que as entrevistadas sofreram e ainda sofrem, permite-nos entender o prejuízo que padecem ao longo de suas trajetórias na sociedade. Embora, quando abordamos o assunto, nossa tendência seja a solidão vinculada ao campo afetivo das rela- ções amorosas, já nos perguntávamos se esse sentimento era mesmo algo restrito. Nas memórias constitutivas das nossas trajetórias de vidas, por exem- plo, nós as autoras, compartilhamos lembranças de infância sobre o sentir-se só. 129 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista CONSIDERAÇÕES FINAIS Nós, as autoras, compartilhamos lembranças de infância sobre o sen- tir-se só. Esse sentir-se só vinha acompanhado de um não-lugar, como se o mundo não nos acolhesse em nossa plena humanidade. Esse não acolhi- mento vinha do estranhamento que nossos corpos negros e nossos cabelos crespos pareciam gerar ao nosso redor. Levou algum tempo até nos reen- contrarmos conosco. Cada uma a seu tempo, ao seu modo, mas sempre em redes afetivas, teóricas e políticas. A mais velha se encontrou quando adentrou no movimento negro, quando encontrou os seus, as suas, com seus corpos que lhe eram espelho. A mais jovem, encontrou-se ao ingressar nesta universidade pública, nordestina, fruto da luta do mesmo movimento negro pelo acesso à educação para a população negra. Ambas se encontram na sala de aula, onde foram, respectivamente, pro- fessora e aluna, e, sobretudo, mulheres negras que se reconhecem no afeto, na produção de conhecimento e na luta antirracista. Por isso, afirmamos que fazemos parte de uma rede afetiva, teórica e política. Nessa sala de aula, inspiramo-nos em intelectuais negras que nos ensinaram a ver a “educação como prática de liberdade” (bell hooks, 2017, p. 26) e que existe uma leveza e “beleza de seguir a trama que paira sobre essa parte do corpo maleável, manipulável e potente” (Denise da Costa, 2019, p. 69). Nesse reencontro de, para e com mulheres negras, já sabemos quem somos, bem como nosso lugar no mundo. Sigamos! 130 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista REFERÊNCIAS BELL, hooks. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. Tradução de Marcelo Brandão Cipela. 2 ed. São Paulo; Editora WMF Martins Fontes, 2017. BELL, hooks. “E eu não sou uma mulher?” Mulheres Negras e Feminismo. Tradução Bhuvi Libanio. 1ª edição. Rio de Janeiro: Ed. Rosa dos Tempos, 2019. BIBIANO, Laisa. Cabelo além de cuidados: um estudo de memórias de mulheres negras no âmbito familiar de mulheres negras sobre seus fios. 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Mediante la enseñanza, la escritura, la plástica, el teatro o la intervención artística en general, la actuación del o la artista y del intelectual negro se torna fundamental, en primer lugar, porque ha estado disputando un espacio desde la conformación de nuestras élites intelectuales criollas y, em segundo lugar, porque constituye el enlace, el puente entre diversos capitales simbólicos que entran en diálogo o pugna cuando se trata de cartografiar la manera en que el racismo, en cuanto tecnología de control de los cuerpos y sus experiencias, opera. Ya lo ha señalado, de una forma categórica, bell hooks (2013, p. 10) que el “a devoção ao estudo, á vida do intelecto, era um ato contra- hegemônico, um modo fundamental de resistir contra as estratégias brancas de colonização racista” porque mediante esta confronta las ideas, los valores recibidos de la estructura familiar y comunitario con otras maneras de entender el mundo, su mundo. En el Caribe colombiano, ha proliferado una amplia tradición de intelectuales, artistas y escritores “negros” y “mulatos”- denominaciones étnico-raciales que se mantuvieron en el escenario colonial y poscolonial hispano del siglo XIX y XX, y que hoy se reivindican desde lugares de enunciación e identificación no monolíticos y en resistencia-. Según el historiador Francisco Flórez (2009), las dinámicas de formación de la nación colombiana han estado guiada por una serie de tensiones entre las élites 133 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista andinas que fueron producidas discursivamente como “civilizadas” y las clases subalternizadas de esas regiones, a su vez, narradas como “barbarizadas”. Esta tensión derivó, ciertamente, en la creación de unos imaginarios sobre las poblaciones racializadas como “invisibles” e “invisibilizadas”, lo cual no siempre corresponde con la realidad histórica experimentada por los sujetos en cuestión. Los afrodescendientes en el Caribe colombiano disputaron con las élites “blanco-mestizas” y acaudaladas de la región un lugar que fue garantizado por una educación en todo el curso del siglo XIX: Como ha sido ampliamente anotado por la historiografía que ha abordado el tema, la educación se convirtió en un elemento dinamizador de la sociedad, y facilitó procesos de movilidad social importantes durante todo el siglo XIX y buena parte del XX. Los sectores afrodescendientes del Caribe colombiano lograron por medio de su formación intelectualun grado de empoderamiento que les permitió con el tiempo posicionarse en distintos cargos de representación (Flórez, 2009, p. 44). Flórez ve una tradición importante de intelectuales “negros” y “mulatos” del siglo XIX, con el poeta Candelario Obeso a la cabeza. Juan José Nieto, Manuel Ezequiel Corrales o Manuel Pájaro Herrera cimentarán, luego, en el siglo XX una generación de jóvenes pensadores y escritores a la que pertenece el autor que nos ocupará en estas páginas: Jorge Artel que, en palabras del historiador es: Protagonista central de las transformaciones sociales culturales, sociales y políticas que siguieron a la celebración del centenario de la independencia de Cartagena, Artel inició una descomunal labor periodística a nivel local, regional, nacional e internacional, y sobre todo se distinguió en el mundo de la poesía, publicando interesantes obras, entre ellas su comentado Tambores en la noche, hasta el punto de convertirse en uno de los referentes principales de la 134 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista poesía colombiana del siglo XX (Prescott, 2000) (Flórez, 2009, p. 46). En esa revisión histórica que propone Flórez, para pensar el lugar del/ la intelectual negrx en el Caribe colombiano a mediados del siglo XX, Jorge Artel es un caso paradigmático. Nacido en Cartagena en 1909, bajo el nombre de Agapito de Arcos, se graduó de Derecho en la Universidad de Cartagena. En esta ciudad se vincularía y gestaría la actividad cultural con el grupo Mar y Cielo, a partir de las publicaciones en la sección Lunes literario del diario El Fígaro de Cartagena (Ramírez Botero, 2015, p. 317) durante los años 40. Este grupo congregaría a jóvenes intelectuales cartageneros que, de acuerdo con el trabajo de la historiadora de arte Isabel Cristina Ramírez (2015) serían los dinamizadores de una vanguardia artística en el Caribe. Tal y como fue señalado por Ferrer Ruíz (2010), en el prólogo que presenta Tambores en la noche, en la conocida edición de la Biblioteca de Literatura Afrocolombiana, la poética de Jorge Artel no se alinea con las estéticas neorrománticas y modernista colombianas en principios del siglo XX. Si los Nuevos no respondieron a cabalidad con el desafío de imponían las vanguardias, los piedracielistas tampoco van a mirar más lejos. Se quedaron en un “complaciente coloniaje” (Roca, año, p. 26). Es curioso, que en ese “cuento” llamado por Roca, la “historia de la poesía colombiana” poco figuren los poetas afrodescendientes con una marcada estética “negra”, apenas sean un sucesivo compendio de grupos que se reflejan o “decapitan” como este dice, unos a otros. La manera de contar las historias de la literatura colombiana quizás no nos permita ver las insularidades y los archipiélagos formados por fuera de los reconocidos grupos o de los claros períodos y generaciones con las que se suele delinear la historia. Pero tampoco en las introducciones históricas de la Antología de Poesía Colombiana, en los tomos curados por Fernando Charry Lara o por Rogelio Echavarría, aparecen menciones a la importancia de la poesía de Jorge Artel 135 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista en el panorama nacional más sí un poema “Velorio del Boga Adolescente”. Mas, cierto es que esta ausencia, lo único que nos recuerda es la escritura de Artel se encuentra distante de los modelos canónicos de poesía “nacional” y se afilia a otras poéticas. Quizás por su propia itinerancia, su poesía hecha en los tránsitos entre Colombia, Estados Unidos, México y Panamá conoció y miró hacia las inequidades sociales y raciales de una vasta América. De su producción, Tambores en la noche (1940) es el libro más conocido y comentado, pero, también encontramos Sinú, riberas de asombro jubiloso, Poemas con botas y Banderas (1972), Coctel de Estampa y Antología poética (1979), No es la muerte es el morir (Novela) (1979), y la obra de teatro De rigurosa etiqueta. Aunque separados temporal, espacial y estilísticamente, la obra de Jorge Artel y pensamiento anticolonial fanoniano dialogan de una manera interesante. Artel entendió, tempranamente, en el contexto del Caribe colombiano que las luchas contra el racismo y la desigualdad social encontraban en el poema, un instrumento de articulación política importante. Su escritura no estaba preocupada por hacer cierto revisionismo histórico sino por “organizar” la resistencia desde una experiencia sensitiva y política, política por lo sensitiva. Y, aunque, para ello recurra a ciertos estereotipos raciales y sexuales que no pueden pasarse por alto en esta reflexión y que se ajustan a la circulación de ideas de su tiempo y podríamos enmarcar su trabajo poético en Tambores en la noche (1948) en algunas de esas fases que experimenta la literatura del escritor colonizado que vislumbra Fanon en el potente ensayo Los condenados de la tierra (2011). No se trata de afirmar que Fanon leyó la poesía arteliana ni mucho menos que Artel leyera a Fanon en el momento de la escritura de Tambores en la noche, obra que analizaremos en este capítulo- aunque este haya sido un libro reeditado y aumentado en varias ocasiones-. Lo que sí queremos preguntarnos por la naturaleza de gesto intelectual de Artel al elaborar, poéticamente 136 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista las danzas y los velorios caribeños, los puertos y los palenques, el drummer negro en una sesión de jazz y la pastora argelina y un imaginario mapa de experiencias afrodiaspóricas. Si bien, como lo señala en su ensayo Matilde Eljach y Keibby Romero-Sierra (2020) y lo corrobora la organización de un reciente evento a cargo del Área Cultural del Banco de la República1, ¿se trata de un pensamiento decolonial- a la manera de esta tradición de pensamiento latinoamericanista? O, ¿se alinea mejor con una postura que denominaríamos ampliamente anticolonial? Inclusive, si apartamos estas genealogías teóricas y si asumimos que la poesía es una forma de pensamiento-acción política ¿de qué clase de pensamiento y de acción política nos remite la propuesta poética de Artel en Tambores en la noche (1948)? En este ensayo, me dedicaré en una primera parte a situar el pensamiento fanoniano entre las muy socorridas etiquetas “decolonial”, “poscolonial” o “anticolonial”. Y, luego, en una segunda parte, estableceré un diálogo entre los insumos teóricos ofrecidos en ese primer apartado con el análisis poético, de carácter hermeneútico, del corpus elegido. 1.1 ¿POSCOLONIAL, DECOLONIAL, ANTICOLONIAL? GENEALOGÍAS DE PENSAMIENTO EN TENSIÓN. Las distinciones entre la teoría y la práctica decolonial, poscolonial y anticolonial parecieran ser ya una tarea calificada y aprobada. Pero, no deja de ser inquietante que el uso exacerbado e impreciso de estas filiaciones 1 Agradezco al Área cultural del Banco de la República, en Barranquilla, a los curadores del ciclo de charlas en torno a Jorge Artel y a los investigadores Ariel Castillo Mier y Matilde Eljach, por la invitación a moderar el panel El pensamiento decolonial de Jorge Artel: explorando la figura del intelectual y sus contradicciones. De inquietudes generadas por la lectura previa de Artel durante los estudios de maestría y las notas exploratorias para conducir la conversación surgió este artículo de reflexión que anticipa algunas intuiciones para seguir elaborando en la poesía afrodiaspórica en el Caribe colombiano. 137 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista teóricas, en el presente, tengan, luego, un efecto sobre la aceptación de la obra o del autor al que se adjudica en determinados departamentos de universidades del Norte Global. En una amplia genealogía de conocimientos, y también de rivalidades académicas, los estudios decoloniales surgen en los años 90 como campo de estudios interdisciplinar por investigadores latinoamericanos algunos de ellos contratados poruniversidades norteamericanas. Reunidos en torno a la obra de Aníbal Quijano, surgen como una reacción al textualismo culturalista y a la ausencia de análisis de condiciones materiales-económicas de los fenómenos estudiados por los estudios poscoloniales. Su principal planteamiento, si pudiéramos resumirlo de alguna manera, radica en la concepción de la colonialidad como el sustrato material y epistémico de las relaciones de saber/poder en el mundo occidental desde la Modernidad temprana hasta el presente. En su lugar, los estudios poscoloniales tienen un origen de una naturaleza dispar, aunque se presente de manera frecuente como un cuerpo de investigaciones académicas derivadas de obras seminales como - de Benita Parry, Orientalismo de Edward Said, ¿Puede hablar el subalterno? De Gayatri Spivak o los trabajos del Grupo de Estudios Subalternos de Ranajit Guha. Hay ya claros indicios de una necesidad de estudiar los efectos del colonialismo y sus realizaciones neocoloniales en la realidad americana y caribeña en las miradas de Pablo González Casanova y Roberto Fernández Retamar o Sylvia Wynter, por supuesto, sin que podamos afiliarlos a una u otra corriente académica. Aún más, anteriores a estos las consideraciones de José Martí o José Carlos Mariátegui han sido cimientos claros del pensamiento radical latinoamericano. Otra diferencia entre los posicionamientos poscoloniales y decoloniales radican en los linajes teóricos que les sustentan. Si, por un lado, los primeros dialogan con autores europeos, y mayoritariamente de la izquierda europea o de posiciones progresistas- los segundos se concentran en los desarrollos 138 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista teóricos elaborados desde América, Afroamérica o Abya Yala. En el primer lugar, considero que las elaboraciones teóricas parten de un ejercicio de diálogo y de traducción epistémica, en el segundo, se sustentan en un análisis radical de los contextos de dónde provienen los problemas estudiados. Al lado de estas dos grandes corrientes, los estudios anticoloniales parecen no sucumbir tan rápido a la vorágine de las modas académicas. Tal vez, porque es un conocimiento-acción proveniente de las particulares experiencias de los procesos de colonización y descolonización africanos y asiáticos y, su particularidad, los hace resistentes a la simplificación que los tránsitos conceptuales a veces implican. Voces como las de Samir Amin, Kwame Khrumah, Amílcar Cabral y el martiniqueño Franz Fanon son guías cruciales en esta corriente. En la primera escuela del pensamiento anticolonial, la teoría eurocéntrica es tratada, - según Boaventura de Sousa Santos (2022) - en calidad de herramienta de análisis de naturaleza provincializada y en constante tensión con las perspectivas afrocéntricas. Las revisiones académicas de carácter anticolonial más contemporáneas se concentran en las continuidades entre las temporalidades colonial y poscolonial, el fracaso del estado poscolonial-que en el caso de los países africanos de lengua portuguesa-fue de orientación socialista y en las demandas contra la extracción indiscriminada de recursos naturales y las catástrofes ambientales derivadas de esta situación. Si las investigaciones de corte poscolonial y decolonial se concentran en el discurso colonial, sus permanencias, imbricaciones, histórico políticas, el pensamiento anticolonial elabora la organización de las luchas por la descolonización no desde la posición distanciada de la academia, sino desde el que trabaja y gesta estos espacios de articulación entre las fuerzas que propenden terminar con la situación colonial desde los sectores rurales y barriales, desde las bases-como se diría en su lenguaje. En el pensamiento anticolonial africano, los objetos de cultura en tanto también instrumentos de barbarie, son parte crucial del proyecto descolonial. 139 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista Ya lo escuchamos de parte de Amilcar Cabral, para quien la cultura es “la manifestación vigorosa, a nivel ideológico o idealista, de la realidad material e histórica correspondiente a la sociedad dominada o a dominar. [Entonces, si] la dominación imperialista tiene la necesidad vital de practicar la dominación cultural, la liberación nacional no puede sino ser un acto de cultura” (Cabral, 1979, p. 141-143, en Sousa Santos, 2022). En ese mismo sentido, Franz Fanon (2011) ve en las prácticas culturales un lugar de disputa que trascienda “la racialización del pensamiento” por parte del colonizador al nombrar ciertas expresiones culturales como “negras” y, por extenso, todos los calificativos exotizantes y reductores, sino como actuaciones que reafirman una construcción de la identificación nacional y, aún más, continental. Fanon no está pensado en etiquetas divisorias como las del multiculturalismo del presente, sino en una apuesta que las supere y articule las diferencias. Por eso mismo, Fanon llama a hacer no una “literatura de negros” sino una “africana” y aún más diríamos, afrodiaspórica o transafricana. Para Fanon (2011, p. 188): La cultura nacional no es el folklore donde un populismo abstracto ha creído descubrir la verdad del pueblo. No es esa masa sedimentada de gestos puros, es decir, cada vez menos atribuibles a la realidad presente del pueblo. La cultura nacional es conjunto de esfuerzos hechos por un pueblo en el plano del pensamiento para describir, justificar y cantar la acción a través de la cual el pueblo se ha constituido y mantenido. Pero, llegar a ese momento de consolidación de una cultura y una literatura que desborde las concepciones coloniales, supone el paso por al menos tres estadios, como lo ha indicado Fanon. La primera fase es la de mimesis de las formas europeas, luego vendrá la de la nostalgia surgida del recuerdo de la infancia, de las viejas leyendas y de algún pasado remoto, sin perder - según Fanon - el buen humor y el recurso de la alegoría, hasta 140 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista llegar a la fase de la lucha en la encuentra alguna posibilidad de alianza y diálogo con un pueblo con el que se haya afiliado. La poética, del autor inserto en una situación colonial, es resultante de esos recorridos por distintas filiaciones o escogencias de tradiciones y, por tanto, de formas de resistencia política. 1.2 TAMBORES EN LA NOCHE DE JORGE ARTEL: UNA ANTICIPADA APUESTA POÉTICA ANTICOLONIAL Desde el comienzo de Tambores en la noche, el poeta se desprende de los modelos de escritura que copian la literatura europea. Opta por la musicalidad de un verso libre y opone al panorama de la poesía colombiana de la época, apegada a las formas francesas, el paisaje y las preguntas del sujeto caribeño. El mundo de Artel es el mundo de los puertos ribereños y marítimos, el mundo de los bogas y los marineros, de los que ofrecen una canción por un chelín, de los que tienen el canto y el llanto para vivir. Cuando Fanon nos dice, que el escritor colonial renuncia al trabajo de mímesis y se instala en el recuerdo de un territorio de antaño, apenas recobrado en la escritura, creo que Artel da un paso más adelante: ese terruño añorado, es una orilla, por supuesto, porosa y multiforme, que ya no está en el pasado sino en el presente. Es una fiesta de cumbias y un velorio, un coqueteo y un reclamo. Es decir, en la poesía de Artel, la fase que antecede a la actuación anticolonial atiende a la confluencia de los contrarios para luego sinterizarse en la afirmación étnica y racial en los poemas que abren y cierran el libro Tambores en la noche, “Negro soy” y “Poemas sin odios ni temores”. A los que me referiré más adelante. Pero, para sostener esta hipótesis es necesario una revisión previa a los poemas donde se empieza a manifestar, de una manera ambivalente y multiforme, esa conciencia de afirmación anticolonial. Desde el poema “La voz de los ancestros” encontramosvariados entendimientos de lo que significa 141 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista para la expresión y organización sensitiva de la resistencia política, la relación con la historia y la memoria. Esto se evidencia tanto en los paratextos como en el resto de elementos intratextuales que analizaremos: la voz poética y sus perspectivas y el manejo del tiempo. El título emblemático y simbólico “la voz de los ancestros” resume el tópico de la sobrevivencia de las formas del pasado en el presente. Los ancestros, entidades vivas o muertas, corpóreas o incorpóreas, hablan desde un remoto e impreciso lugar “de una antigua tortura” (Artel, 50) mediante ciertos recursos del paisaje. Pese al trauma, las voces se hacen audibles de una forma clara para el hablante lírico, quien se torna el destinatario de ese galope del viento donde “gritos ancestrales” viajan. Esos ancestros son representados en el poema, por una alusión en la dedicatoria a la tía del poeta: Carmen de Arcos, por los antepasados que superaron la exclusión en la jerarquizada sociedad colonial. Carmen de Arcos hacía, los años 1918, será una de las primeras enfermeras de la ciudad de Cartagena2 y cuya entrega a su labor de cuidado de los más necesitados constituirá una figura inspiradora para el poeta. El poeta, como un cuidador comunitario, se encargará del dolor, de la herida y de la rebelión. La voz de los ancestros A doña Carmen de Arcos Oigo galopar los vientos, bajo la sombra musical del puerto. Los vientos, mil caminos ebrios y sedientos, repujados de gritos ancestrales. 2 Amparo Montalvo y Edna Gómez (2012) la mencionan, junto con otras mujeres que se ocuparon del oficio de enfermeras o comadronas, en su estudio sobre Enfermería en Cartagena 1900-1920. 142 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista se lanzan al mar. Voces en ellos hablan de una antigua tortura, voces claras para el alma turbias de sed y de ebriedad. ¿De qué angustia remota, será el signo fatal que sella en mí este anhelo de claves imprecisas? Oigo galopar los vientos, Sus voces desprendidas De los más hondo del tiempo Me devuelven un eco De tamboriles muertos De quejumbres perdidas En no sé cuál tierra ignota, Donde cesó la luz de las hogueras Con las notas de la última lúbrica canción (...) (Artel. 50) El hablante lírico es una voz autorreferencial en la primera persona del singular que se identifica como Jorge Artel. La correspondencia del yo autoral con el yo poético es un recurso para afirmarse en la realidad ficcional en condición de “galeote de ansia suprema” (p.51). Este hablante que se asume remero forzado funda su trabajo poético sobre el movimiento 143 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista de las aguas, sobre la remoción de las corrientes de “angustia” que han forjado su historia y la historia de sus ancestros. La voz poética se sabe receptora de un rumor, de modo que su perspectiva está condicionada, en principio por la escucha antes que de la visión. Es, después de escuchar que su pensamiento se entrega a la contemplación de las miradas de sus “ancestros” que transparentan la nostalgia, la dulzura y “los temblores de cadena y rebelión” (p. 51). Las emociones evidenciadas por el hablante siguen un movimiento dialéctico: la pena de estar o encontrarse lejos de la tierra natal y de sus vínculos más cercanos se une a la afabilidad que, sin ser completamente opuestos, pareciera que no pudieran confluir. Sin embargo, esta voz poética percibe esas emociones y esa contemplación íntima de lo que trasparentan los rostros ancestrales lo que desemboca en el hablante la autoafirmación como un remero más de esos barcos venidos de tiempos remotos, que rema en las “angustias de la noche”. El manejo del tiempo en el poema también permite configurar el sustrato ideológico al que nos remite la poética de Jorfe Artel. En “La voz de los ancestros” predomina el presente, aunque lo que refieran estas voces esté situado en alejados periodos históricos. Llama la atención de esta construcción temporal que, para el hablante, estas voces o ecos son parte “desprendida” de “lo más hondo del tiempo”- Este es representado como una sustancia material, maleable, con dimensión y profundidad de la que son desprendidos, por la violencia de procesos sociopolíticos y epistémicos que le dan forma, restos o vestigios. Las voces de los ancestros se instalan en el presente para ofrecerle a este hablante-oyente un destino de “claves imprecisas” (50). Todos los verbos en el poema son enunciados en este presente simple indicativo: “Oigo”, “vuela”, “miro”, “contemplo”, salvo en aquellos versos donde se refiere a los eventos marcantes de los que necesita producir una memoria “¡Almas anchurosas y libres/ vigorizaban los pechos y las manos cautivas! / Una doliente humanidad se refugiaba/ en su historia oscura de vibrantes fibras…/ ―Anclados a un dolor anciano/iban cantando por la herida…―” (51). 144 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista De este modo, el tiempo se ratifica como una sustancia maleable que se ajusta a las distintas direcciones hacia donde se mueven los rumores que escucha el hablante. En otros poemas que le siguen a “La voz de los ancestros” se manifiesta la misma elección temporal. En “¡Danza, mulata!”, el hablante se expresa en la forma imperativa y en presente salvo cuando usa el participio pasado para remarcar una experiencia que ha tenido su origen en el pasado pero que, aún, en el momento de su enunciación sigue teniendo efectos importantes. Como cuando desea remarcar la memoria corporal de la danza en el cuerpo de la “mulata”: “En tus piernas veloces y en el son/ que ha empapado tus lúbricas caderas/ doscientos siglos se agazapan” (52). Consideramos que este predominio del presente simple no solo replica un tiempo verbal de uso común en el habla vernácula del Caribe, sino también la necesidad de actualizar los acontecimientos remotos que en este primer momento de su reflexión poética tienen orígenes y claves imprecisas. Un tiempo que marca la fluidez entre estadios o periodos denominados como pasado o presente y que en memoria de la experiencia traumática de la esclavización se confunden. Si Ferrer Ruiz (2010), lo con concibe como un “tiempo impenetrable, mágico, durante el cual se construye otro mundo no racional, espacio de la corporeidad desbocada”, aquí consideramos, en su lugar, que tales cualidades de impenetrabilidad e irracionalidad son características adjudicadas desde una racionalidad colonial. El tiempo de Artel es un tiempo opaco, en el sentido glissantiano, que no es irracional, sino que sigue por principio la organización sensitiva de la rebeldía. Es un tiempo de la memoria, por tanto, su evocación del pasado enunciado en presente se realiza para elaborar la nostalgia de un paisaje y de un origen misturado del que surgieron “sonámbulos dioses nuevos que repican alegría” (55). Tal y como observamos en el poema “La cumbia”: 145 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista “Trota una añoranza de selvas y de hogueras encendidas, que trae de los tiempos muertos un coro de voces vivas . Late un recuerdo aborigen, una africana aspereza, sobre el cuero curtido donde los tamborileros, – sonámbulos dioses nuevos que repican alegría– aprendieron a hacer el trueno con sus manos nudosas, todopoderosas para la algarabía. (Artel, 55). En la lectura fanoniana del mundo del colonizado y de sus luchas por la descolonización, asegurábamos en párrafos anteriores, la necesidad de pasar de una fase mimética de la cultura europea hacia una fase de añoranza y recreación del mundo arrasado o del que ha sido desprendido el sujeto colonizado. Esta reconstrucción se elabora con los fragmentos, con los recuerdos, con los vestigios de lo conocido por sí mismo o por los medios y relatos proporcionadospor el colonizador. En el caso del sujeto transportado y esclavizado en las Américas, el territorio “ancestral” añorado es “África” tejida por la diversas formas materiales y simbólicas que tuvieron los individuos y de sus naciones para resistir en su heterogeneidad sino también, es una “África” mediada por la narrativa de los colonizados, sus imaginarios y sus proyecciones. Por tanto, esa fase nostálgica se va materializar en algunos poetas de la negritud o de la poesía negrista cubana, tradición de la que Artel va a beber, de una forma contradictoria, esencialista, e inclusive, atravesada 146 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista por una mirada colonial y patriarcal. Sin embargo, inclusive en esa repetición de ciertos estereotipos hay un agenciamiento donde elementos como la musicalidad popular de matriz afrodescendiente se insertan en los poemas para producir y acentuar esa filiación con un pasado-presente afrodiaspórico. De hecho, uno de los aspectos más interesantes de la poesía de Arte y que se expone en “La figuración poética de la identidad: lo negro en Tambores en la noche de Jorge Artel”, Cabarcas Ortega (2013) lo resume de esta manera: Artel ofrece a su lector una revaluación de sus propios valores y prejuicios, a la vez que pone en juego un estilo donde variedad de registros poéticos (cotidianos, festivos, fúnebres, extáticos, militantes y nostálgicos) se conjugan. Este estilo plural busca adaptarse perfectamente a las reglas del campo sin dejar de buscar una originalidad expresiva capaz de captar la realidad de lo negro. (75) Esa capacidad de poner en diálogo las reglas del campo literario con un material que había estado excluido de la tradición literaria colombiana (a no ser por ese gesto subversivo e iniciador de Candelario Obeso en el siglo XIX) podemos observarla en poemas como “Argeliana” o “Los Chimichimitos”. En el primero, la imagen de la niña argelina “que suspira por el amuleto perdido” (96), entregada a la contemplación de la muerte, la voz poética la interpela a cambiar la amargura por “alegres collares de música” (96). Pese a que el poema performa una visión estereotipada de las infancias en los territorios africanos, Artel también propone una vuelta a la esperanza y una secreta rebeldía contra el deseo colonial del hombre blanco y como respuesta a ello entrega la delicada y acogedora sombra del paisaje próximo: “No importa si los soldados franceses te desean. / Solo piensas en el sueño nupcial/ que te sugieren los trigales con sus altas espigas, / en la promesa redonda del naranjo.” (96). Esas imágenes de “África”, oscilantes entre la belleza y el reduccionismo identitario, no habrían ingresado a la poesía colombiana de mediados de siglo pasado si no fuese por ese proyecto de 147 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista “captar la realidad de lo negro” (Cabarcas Ortega, 75) con una aspiración más universal. En el poema “Los Chimichimitos”, inspirado en una ronda popular venezolana que trata sobre el espíritu de los niños fallecidos antes de nacer que vuelven de las regiones invisibles para cantar y tocar el tambor. En el poema de Artel, el hablante lírico apela a los prejuicios y las creencias religiosas católicas en pugna con las espiritualidades sincréticas diaspóricas. En la forma de ronda, con su musicalidad característica de la tradición poética negrista, Artel opone el juego al miedo inoculado a la condenación: “Cometas de rabo largo/ los Chimichimitos te quieren traer/ papalotes de azucena/ pajaritas de papel (…) Negrito de Venezuela/ ¿No te vas a bautizar? / Ve que si el duende te lleva/ por siglos de siglos te condenarás” (Artel, 92-93). Mas será, en los poemas “Negro soy” y “Sin odios ni temores”, que abren y cierran el libro Tambores en la noche (1948, 2010), donde esa fase nostálgica encuentre en la afirmación racial su momento culmen: “Negro soy desde hace muchos siglos” (Artel, 49). Sin embargo, no es a la “pureza” racial a la que el hablante apela sino a la pureza de una emoción que se expresa en medios materiales: el grito y el tambor: “Y la emoción que digo ha de ser pura/en el bronco son del grito/ y en el monorrítmico tambor” (Artel, 49). Esta expresión de la afectividad es lo que Fanon ve como un rasgo fundamental en el sujeto colonizado: “En el mundo colonial, la afectividad del colonizado se mantiene a flor de piel como una llaga viva que no puede ser cauterizada” (22). Será esta la que moldee las expresiones rituales comunitarias para transformar el trauma en medios de expresión de la lucha política. De ahí que Fanon vea en la danza y en el trance dos momentos cruciales para entender la experiencia de colonización en sus dimensiones económicas-políticas, pero, sobre todo, simbólicas y ontológicas. El hablante lírico de “Negro soy” se erige como la voz portadora de las antiguas voces, para rebelarse contra la cosificación de la existencia por las industrias contemporáneas de explotación de los cuerpos y de las identidades culturales: 148 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista “La angustia humana que exalto no es decorativa joya para turistas. ¡Yo no canto un dolor de exportación! (Artel, 49). La exaltación final que rompe con el ritmo creado por la particular acentuación del poema acerca al verso libre a las formas propias de la consigna, donde el hablante lírico expone la negativa a que hagan de su emoción un producto más de comercio dentro del mercado de bienes y servicios materiales y simbólicos del capitalismo global. Artel es consciente, en este poema, que la esclavización del pasado tiene ecos y realizaciones en el presente de formas con igual poder de degradación como un día lo tuvieron el grillete o el látigo. Esa “resistencia al lenguaje modernizador, un carácter reivindicatorio y una necesidad emancipadora” (Eljach y Romero, 2020, p. 101) que Eljach y Romero Sierra asocian con la propuesta decolonial de la poesía de Artel, es llevada incluso más lejos de esta formulación y se transforma en una denuncia, en una puesta en acción en la misma escritura del poema, al traer, de la lengua coloquial y de un tipo de discurso y composición (“la consigna”) propio de las organizaciones sociales de base. Entre tanto, en “Poema sin odios y temores” la nostalgia es superada y llevada a una afiliación ya no solo con los negros de los candombles argentinos, de Brasil, de las Antillas o de toda la América hispánica y prehispánica, para ser “innumerables pueblos, islas y continentes” que son “eterno testimonio” de la resistencia. El hablante lírico reclama en su interlocutor ideal, que son todos aquellos que están viviendo distintas etapas del reconocimiento de una ancestralidad y también de su negación, una mirada detenida sobre los signos de su cuerpo, de su historia más íntima que hablan de esa filiación india, negra, 149 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista mestiza. Su poesía no se asume atracción espectacular sino ejercicio de toma de conciencia, “una conciencia de América”: No lleva nuestro verso cascabeles de clown, / ni ―acróbata turístico―/plasma piruetas en el circo/ para solaz de los blancos.” (Artel, 127). Nuevamente, y de muchas maneras, el poema no le teme a la enunciación contundente de la consigna, pero sin diluirse en un mensaje prosaico, para poner de manifiesto su visión de mundo. El mundo al que aspira este hablante lírico es al de reconocimiento de las identidades raciales-culturales en América como resultado de los movimientos migratorios que, aunque dolorosos, traen consigo un profundo acervo que enriquece las culturas materiales y simbólicas con las que encuentran y las que fundan en un sincretismo vibrante, donde inclusive, el antepasado “blanco” exaltado por unos u odiado por otros, tenía también en sí “sangre de África”. Es claro que Artel se refiere a las migraciones que hicieronde la Península Ibérica un laboratorio de mestizajes anteriores a la empresa colonial, sin descontarle la violencia que estos procesos generaron en el encuentro de pueblos, culturas e imperios. Porque solo nuestra sangre es leal a su memoria. Ni se falsifica ni se arredra ante quienes nos denigran o, simplemente, nos niegan . Esos que no se saben indios , o que no desean saberse indios . Esos que no se saben negros , o que no desean saberse negros. Los que viven traicionando su mestizo, 150 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista al mulato que llevan –negreros de sí mismos– proscrito en las entrañas, envilecido por dentro. (…) El pariente español que otros exaltan –conquistador, encomendero, inquisidor, pirata, clérigo– nos trajo con la cruz y el hierro , también sangre de África. Era, en realidad un mestizo, ¡como todos los hombres y las razas! (…) (Artel, 126 ) CONSIDERACIONES FINALES En este capítulo nos hemos aproximado a la poesía de Jorge Artel que, como uno de los intelectuales negros del Caribe colombiano, va a hacer de su propuesta poética un espacio dedicado para pensar las implicaciones de asumirse “negro” en una sociedad cimentada en las lógicas racializantes de los territorios ocupados militar, económica y simbólicamente por antiguos imperios coloniales. Repasamos como el pensamiento anticolonial fanoniano ofrece algunas claves para entender la elaboración poética de Artel. Desde Fanon ([1961] 2011), vemos pues, que el poeta pasa de una fase de exploración y nostalgia en el que ficciona una ancestralidad que le restituye los vínculos rotos con el pasado anterior a la empresa colonial para luego, afirmarse 151 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista (a partir de ese conocimiento y de la elaboración de una memoria histórica en la que participan los cantos, las danzas, las leyendas) como negro y como mestizo, pero sobre todo, como integrante de un pueblo que convierte su dolor y su fiesta en ansias, en proyecto vital: “Nuestro dolor es la fuente/ de nuestras propias ansias./ Nuestra voz está unida, por su esencia, a la voz del pasado…” . Notamos, también, como el hablante lírico de sus poemas performa una enunciación desde un presente simple que evoca y actualiza los eventos traumáticos, así como los escenarios de resistencia comunitaria, por ejemplo: la danza o el velorio. Igualmente recurre, por momentos, al verso que deriva en consigna para trasmitir con claridad el reclamo de justicia en sus poemas. Sin embargo, consideramos que falta considerar otras categorías de análisis en su apuesta poética a fin de evaluar la manera en que su poesía transciende lo que Fanon explicaba como la racialización del pensamiento en los y las autores y artistas africanos y afrodescendientes y deriva en nuevas preguntas y desafíos para las generaciones presentes y futuras. REFERENCIAS ARTEL, J. Tambores en la noche. Bogotá: Ministerio de Cultura, 2010. CABARCAS, M. La figuración poética de la identidad: lo negro en Tambores en la noche de Jorge Artel. Estudios de Literatura Colombiana, N. 32, 2013, pp. 73-86 CABRAL, A. National Liberation and Culture. En Unity and Struggle: speeches and writings, Nueva York: Monthly Review Pres, 1979. ELJACH, M. y ROMERO-SIERRA, K. Expresiones de resistencia Afrocaribe: La mirada decolonial en la obra poética de Jorge Artel. 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Buenos Aires: CLACSO/CES, 2022. 153 RACIONAIS MC’S - “O RAP VAI DIRETAMENTE ATÉ OS QUE MAIS SOFREM”: UMA ANÁLISE DISCURSIVA CRÍTICA NUMA PERSPECTIVA INTERTEXTUAL Alexcina Oliveira Cirne Universidade Católica de Pernambuco/ Unicap Membro da Comissão de Igualdade Racial da OAB-PE Membro do Instituto Ubuntu de Estudos Africanos e Diaspóricos/UNICAP Karl Heinz Efken Universidade Católica de Pernambuco/ Unicap Professor da graduação e do Programa de Pós-graduação em Filosofia/ Unicap Membro da Comissão de Igualdade Racial da OAB-PE 154 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista INTRODUÇÃO As discussões que envolvem a atuação do rap na cultura periférica do Brasil trazem sempre à tona o debate sobre a importância de identificar uma rede intertextual que contribui para a compreensão das narrativas pul- santes, inteligentes e potentes presentes nas estrofes entoadas pelos rappers. O que há de comum entre o rap e realidade brasileira pode ser aprendido ao ouvir com atenção os blocos de realidades históricas, sociais e econômicas movimentados pelas palavras, batidas e sons produzidos em suas músicas. A trajetória do grupo Racionais MC’s incorpora muitos desafios. Trata-se de uma trajetória impressionante, ousada, perigosa, árdua e desmistificadora de padrões estabelecidos na sociedade brasileira. Esses adjetivos mencio- nados descrevem, em parte, a vida de um dos integrantes do grupo, Pedro Paulo Soares Pereira, nascido em São Paulo, em 22 de abril de 1970, conhecido como Mano Brown. Os outros integrantes do grupo, Edi Rock, KL Jay e Ice Blue podem também, sem exageros, ter esses adjetivos como parte da des- crição de suas trajetórias de vida, uma vez que todos eles são sobreviventes de periferias extremamente violentas. Para compreendermos um pouco mais do poder das músicas cantadas pelo grupo, propomos neste artigo uma análise intertextual que visa entender essas músicas como ato político que não hesita em desafiar práticas históricas abusivas, autoritárias, racistas e violadoras de direitos humanos. O presente capítulo está organizado em três seções. A primeira seção, concentra-se numa descrição histórica sobre o grupo Racionais MC’s e o rap brasileiro. Na segunda seção, há uma abordagem sobre intertextualidade; na terceira seção consta a metodologia e análise do corpus. 155 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista 1. OS RACIONAIS MC’S E O CALDEIRÃO DAS DURAS REALIDADES O líder do grupo, Mano Brown, cresceu no bairro do Capão Redondo, na periferia da cidade. O bairro era conhecido por duas características: a pre- sença do rap e a presença da violência. O bairro já foi conhecido como “triângulo da morte”, nos anos 1990. Período em que o Racionais MC’s estão em recente atividade musical. Conforme notícia datada de 30 de janeiro de 1997, no Jornal Folha de São Paulo1, o Capão Redondo foi o bairro mais violento da cidade em 1996. De acordo com essa reportagem, o Distrito Policial responsável pela área, o 47º DP, ocupava o topo da lista das dez delegacias com maior número de homicídios em São Paulo. Outra notícia consta no portal Nexo Jornal2, informando que aquela área foi considerada pela ONU (Organização das Nações Unidas) como o lugar mais violento do planeta, com uma taxa anual de 116,23 assassinatos para cada 100 mil habitantes em 1996. Mano Brown é uma das pessoas mais respeitadas na cena do rap no Brasil, é um dos integrantes fundadores e líder do grupo brasileiro de rap intitulado de Racionais MC’s. Esta pesquisa assume como ponto de par- tida a frase dita por Mano Brown, em 2000, por ocasião de uma entrevista cedida à Revista Teoria em Debate: “O rap vai diretamente até os que mais sofrem”. É possível perceber a força dessa afirmação em diversos momentos deste capítulo. Outra afirmação que serve como guia para esta pesquisa é a de Ramos (2023, p. 187), em seu artigo intitulado Violência racial e o Racionais MC’s: conflito, experiência e horizontes : A produção artística do grupo Racionais MC’s alcança um escopo maior do que a própria música a partir do momento em que entendemos o conjunto de relações 1 Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1997/1/30/cotidiano/14.html Acesso em 22 de maio de 2024. 2 Disponível em https://www.nexojornal.com.br/expresso/2020/08/25/a-influencia-dos- racionais-mcs-no-ativismo-da-periferia Acesso em 31 de maio de 2024. https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1997/1/30/cotidiano/14.html https://www.nexojornal.com.br/expresso/2020/08/25/a-influencia-dos-racionais-mcs-no-ativismo-da-periferia https://www.nexojornal.com.br/expresso/2020/08/25/a-influencia-dos-racionais-mcs-no-ativismo-da-periferia 156 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista sociais que estão retratadas nas canções. As letras deixam de ser um componente da canção para tocar em duas esferas da produção simbólica da vida social: elas são ao mesmo tempo uma análise social e um ato político. O grupo foi fundado em 1988. É importante destacar que nesse mesmo ano foi promulgada a Constituição Cidadã brasileira, em 05 de outubro de 1988, após a saída de um longo período de ditadura3 no país. Isso nos permite situar historicamente a realidade daquela época: um país repleto de medos, atrasos educacionais, altos índices de violência (especialmente relacionados aos moradores das periferias), dificuldades para adquirir alimentos, entre tantos outros difíceis desafios. O grupo lançou diversos discos (nome dado à época para o que hoje chamamos de álbum), mas foi com o disco Sobrevivendo no inferno, no ano de 1997, que o grupo, segundo estudiosos, alcançou mais notoriedade. Os números estatísticos4 em relação ao álbum também corroboram para essa afirmação de maior visibilidade alcançada pelo grupo. Em 2018, foi lançado um livro com o mesmo título do disco de 1997, Racionais MC’s sobrevivendo no inferno, e, na página 27, há um trecho sobre essa obra musical construída pelo grupo: “Sem exageros, podemos dizer que poucas vezes a realidade brasileira foi analisada e representada com um olhar tão complexo, considerando-se inclusive as instâncias discursivas mais consagradas, como a academia e literatura” (Oliveira, 2018, p. 17). Ao longo do tempo, o espaço discursivo de denúncia que Mano Brown e o grupo Racionais MC’s imprimem às músicas, narra a complexa realidade brasileira vivenciada, sobretudo, nas periferias de São Paulo. Neste aspecto, 3 A ditadura no Brasil foi de 1964 a 1985. 4 Os dados sobre o álbum são mencionados no programa Roda Viva de 2007: “[...] o disco “Sobrevivendo no Inferno” os Racionais MC’s venderam mais de quinhentas mil cópias sem uma grande rede de distribuição por trás e ganharam vários prêmios...”. Disponível em https://www. youtube.com/watch?v=IaQWmNkqkSg Acesso em 19 de maio de 2024. https://www.youtube.com/watch?v=IaQWmNkqkSg https://www.youtube.com/watch?v=IaQWmNkqkSg 157 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista destacamos uma afirmação de Oliveira (2018, p. 22) na introdução do livro: “Essa nova maneira de tematizar o cotidiano periférico teria impacto em vários segmentos artísticos, como literatura, o teatro, o cinema e a televisão, tornando o grupo uma espécie de vetor para as mais diversas produções artísticas da periferia”. O que queremos salientar é que a obra musical dos Racionais MC’s mobilizou o sujeito periférico e desenvolveu nele orgulho por sua identi- dade, sua condição e lugar. Esse mesmo sujeito periférico começa a atuar de maneira política a partir dessas questões que têm protagonismo em sua trajetória de vida: a violência, a exclusão, o racismo, os problemas de moradia, a falta de escolas e o desemprego. Grande parte desses sujeitos periféricos no Brasil é composta por pessoas negras e pardas que vivem em situações precárias, nos morros das grandes cidades. O rap é um gênero musical que emerge do movimento hip hop5. Por sua vez, o hip hop foi criado nos Estados Unidos, primordialmente por jovens afro-descendentes e latinos, moradores de regiões periféricas da cidade de Nova Iorque, no final da década de 1970. Esse gênero musical foi se desenvolvendo ao longo dos anos e incorporando as mudanças históricas, políticas, sociais e econômicas nas narrativas articuladas pelas músicas. Há a passagem das letras com temas mais vinculados ao mundo da diversão e ostentação, para as letras com denúncias e “com conteúdo étnico, político e social” (Macedo, 2011, p. 268). Consideramos bem pontual a definição de Vieira e Santos (2023, p. xi), que descrevem o hip hop como “um movimento sociocultural global que se destaca por ser constitutivo e por constituir sujeitos transgressores e narradores de si próprios”. O rap figura, também, como 5 Consideramos importante, para fins de conceituação, a definição dada por Baker (2012, p. 9, tradução nossa): “O componente mais popular da cultura hip-hop é o rap. Embora as palavras hip-hop e rap sejam frequentemente usadas de forma intercambiável, elas não são a mesma coisa. O rap é parte de uma cultura maior, enquanto o hip-hop é a própria cultura”. (The most popular component of hip-hop culture is rap. Even though the words hip-hop and rap are often used interchangeably, they are not the same things. Rap is part of a larger culture, while hip-hop is the culture itself). 158 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista um gênero musical que veio para ficar e com características bem definidas, transpondo as barreiras de classificação de músicas temporárias e sem ganhos comerciais, conforme afirma Keyes (2002, p. 02, tradução nossa)6: A música rap não só provou ser mais do que uma moda passageira, como alguns inicialmente acreditaram, mas tam- bém demonstrou que poderia competir e prosperar eminen- temente numa indústria musical popular que durante tanto tempo baseou o seu sucesso em atos vocais e instrumen- tais. [...] Como resultado, tem sido elogiado pela crítica musi- cal como a mais vital das novas formas de música popular na indústria musical. O impacto e a força do rap conseguem provocar mudanças reais em lugares sociais tradicionalmente abandonados e excluídos, em diversos sentidos. Podemos afirmar que o rap consegue ‘dar gás’ a uma população para seguir em frente e lutar por seus direitos, após perceber que não está no foco das políticas públicas de justiça, equidade, segurança e proteção, entre outros aspectos. O rap torna-se, nesse caldeirão de duras realidades, uma importante forma de denúncia e de construção de discurso que contem- pla propostas recebidas de cidadãos moradores das periferias, que exigem mudanças a partir do que lhes acontece cotidianamente. Em entrevista, concedida ao jornal da USP, o pesquisador Híkaro Queiroz, que defendeu sua dissertação no Programa de Pós-graduação em Estudos Comparados em Literaturas de Língua Portuguesa da USP, em 2023, com o título O rap de formação: uma abordagem do narrador em Mano Brown7, afirmou que o rap é “diferente de outros estilos musicais porque tem a par- 6 “Rap music not only proved to be more than a passing fad, as some first believed, but also de- monstrated that it could compete and eminently thrive in a popular music industry that had so long predicated its sucess on vocal and instrumental acts. [...] As a result,it has been lauded by music critics as the most vital on new popular music forms in the music industry.” 7 Disponível em https://jornal.usp.br/diversidade/rap-contribui-para-a-formacao-social-de-can- tores-e-jovens-da-periferia/ Acesso em 04 de maio de 2024. https://jornal.usp.br/diversidade/rap-contribui-para-a-formacao-social-de-cantores-e-jovens-da-periferia/ https://jornal.usp.br/diversidade/rap-contribui-para-a-formacao-social-de-cantores-e-jovens-da-periferia/ 159 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista ticularidade de trazer um reflexo do que as pessoas estão vivendo e, através desse relato, trazer conselhos. Logo, a partir do rap, há uma troca de apren- dizado entre ambos os sujeitos”. Arthur Rocha, autor do livro Racionais MC’s: Sobrevivendo no inferno, publicado em 2021, afirma que ter tido contato com a obra dos Racionais MC’s representou uma enorme e poderosa revelação. Destacou que as músicas dos Racionais MC’s rompiam com o silêncio intencional do poder público sobre assuntos como racismo, violência e desigualdades. O próprio Mano Brown falou sobre o impacto do rap em sua trajetória e transformação de vida, em entrevista cedida à revista Rap Nacional em 2014, na qual destaca quem seria o Brown sem o rap: Não seria Mano Brown né?! Seria o Pedro Paulo. Não tinha o que comer, tinha dificuldade pra arrumar um emprego, e de me relacionar com o patrão. Várias dificuldades… Através do rap eu comecei a compreender algumas dificuldades que eu tinha na vida, através do rap eu compreendi, sem o rap eu não entenderia, seria um louco, um rebelde sem uma causa justa . Como foi bem colocado por Vieira e Santos (2023, p. xii), o grupo entoa no rap “análises e intervenções em assuntos significativos para o enten- dimento da realidade social e de suas possibilidades de mudança”. O rap expressa o que o povo é, o que os moradores da periferia experienciam, sentem e pensam, por meio de uma música que se torna também o seu lugar de fala. A força do rap e a urgência dos temas sociais envolvidos no contexto brasileiro8 unificaram diversas comunidades periféricas para lutar por uma causa comum: o projeto de sobrevivência. 8 É importante mencionar que na prova do Enem desse ano (2024), teve questões com música dos Racionais MC’s, abordando a música ‘Capítulo 4, versículo 3’. Disponível em https://murbbrasil. com/racionais-mcs-no-enem-a-importancia-do-rap-para-a-sociedade/ Acesso em 04 de nov. de 2024. https://murbbrasil.com/racionais-mcs-no-enem-a-importancia-do-rap-para-a-sociedade/ https://murbbrasil.com/racionais-mcs-no-enem-a-importancia-do-rap-para-a-sociedade/ 160 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista Esse projeto de sobrevivência é um relevante sinalizador dos efeitos do discurso do rap – ele conseguiu unificar. Sobre essa questão, de “unir que- bradas”, Brown fala em uma entrevista concedida ao Le Monde Diplomatique Brasil9, em 2018: “Eu fiz o que era necessário para uma época. Era uma priori- dade de todos, entendeu? Lutar pela raça, e tal, pela quebrada. Era prioridade. Era uma bandeira única, entendeu? Você não podia desviar a discussão para outras coisas pra não dividir. A bandeira era essa: periferia. Bom, depois nós debate outras ideias: quem é corinthiano, quem é palmeirense, quem é santista, sabe? Quem é de touro, quem é de áries, mano. Morô?” O projeto de sobrevivência que os Racionais MC’s abraçam tem como objetivo a produção de músicas com fortes narrativas centradas em ques- tões sociais, de denúncia, de desafios sociais, da violência cotidiana e “seu foco está na construção de uma fraternidade de iguais no interior de uma comunidade periférica que se afirma contra um projeto de nação que a deseja exterminar” (Oliveira, 2018, p. 24). O rap condensa em suas poderosas nar- rativas as consequências de séculos de escravidão no Brasil e das políticas públicas governamentais que, muitas vezes, não dão resultados e, em outras, não têm a intenção de corrigir e reparar um passado marcado por práticas perversas de desrespeito à dignidade humana. No Brasil, nos últimos tempos, percebe-se um aperfeiçoamento e uma sofisticação de políticas de invisibilização da população negra, incorporando estratégias de necropolítica, como a associação da imagem do negro (imagens depreciativas) a elementos de maldade, inferioridade intelectual e cultural (marcados em muitas expressões e ditados populares) e a configuração de uma hierarquização de raças – mantendo, após a abolição da escravidão, o negro como um acessório nos espaços de negócios (compra e venda), num contexto remodelado desses mecanismos econômicos. Aqui, recorremos à passagem de Gomes (2022, p. 526), que descreve sucintamente o pós- 9 Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=U_OsF4y4zuY Acesso em 19 de maio de 2024. https://www.youtube.com/watch?v=U_OsF4y4zuY 161 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista escravidão no Brasil e nos permite um retorno histórico ao que viria a ser o Brasil após 188810: Os ex-escravos seriam convertidos em “trabalhadores rurais”, vivendo em condições muito semelhantes às da época da escravidão. Estariam excluídos de tudo, especialmente da oportunidade de expressar suas opiniões e participar da construção do país. Até 1930, só 5,6% dos brasileiros tinham direito ao voto. O pequeno número de eleitores estava restrito aos homens adultos, em geral brancos, proprietários e alfabetizados. Mulheres estavam excluídas, como também os analfabetos, dos quais a imensa maioria era descendentes de escravos. [...] Privados do acesso à terra, à moradia e à pró- pria cidadania, a população negra e afrodescendentes seria vítima de outra espécie de abandono, que tentaria privá-la de sua própria identidade. A força do rap nos provoca admiração por produzir um sentimento de acolhimento nos jovens moradores dos morros e favelas, com canções que denunciam um mundo de humilhação e escassez de oportunidades vivido por eles, conforme afirmou KL Jay, um dos integrantes do grupo, numa entrevista à Folha de São Paulo 11, em agosto de 2023: “Racionais é como se fosse a voz de quem nunca teve voz. A música é muito agressiva e muito bem feita”. De forma que o ‘projeto sobrevivência’ começa a ‘salvar’ muitos daqueles que estavam socialmente destinados a uma vala qualquer pela mortal engrenagem social que atua(va) nas periferias. Em diversas entrevistas, 10 A fim de termos uma breve noção da resistência política e econômica em relação à liberdade dos escravizados em solo brasileiro, acompanhemos, numa corrente do tempo, a abolição da escravidão em outros países: França (1818 – proíbe tráfico de escravos); Chile (1823 – a escravi- dão é proibida); Bolívia (1826 – abolição da escravidão); Uruguai (1842 – abolição da escravidão); Tunísia (1846 – abolição da escravidão); Colômbia (1851 – proibição da escravidão); Argentina (1853 – fim da escravidão); Venezuela (1854 - fim da escravidão); Peru (1854 - fim da escravidão); Cuba (1886 – abolição da escravidão); Brasil (1888 – fim da escravidão). 11 Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=cMjeuRXYSRI Acesso em 19 de maio de 2024. https://www.youtube.com/watch?v=cMjeuRXYSRI 162 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista KL Jay menciona alguns resultados da atuação crítica, política e cultural do grupo. Citamos duas dessas entrevistas: A primeira delas é uma entrevista concedida por KL Jay à Carta Capital no YouTube12, e ao ser perguntado sobre o que ele achava da influência do grupo na vida das pessoas, ele afirma: “Eu encontro muita gente mais velha, da minha idade, por exemplo, que me encontra em vários lugares e fala: “vocês, a música de vocês me salvou, hoje sou um professor, um advogado, sou empresário, saí das drogas, saí do crime. Tô vivo. Tô bem. Tenho família, pá”. Esse é nosso impacto, né? A música que a gente fez a vinte anos atrás, a trinta anos atrás, influenciouaquela geração que tinha nossa idade, e que hoje tem nossa idade, e sobreviveu”. A segunda entrevista é dada ao canal Ponte Jornalismo 13 no YouTube, em que KL Jay responde: “[...] as pessoas me encontram na rua e falam assim: ‘você salvou a minha vida, mano. A minha vida, do meu irmão, do meu amigo”. Você ouve isso toda hora. Então, você fala assim: ‘tem importância’. Nem por isso, nós vamos ter a polpa de falar que nós somos...nós não vamos vestir o manto da importância, entende? Então, a gente faz parte de uma cultura que salvou muita gente, não só os Racionais. O Racionais faz parte da engrenagem também.” Cabe bem pontuar que as letras das músicas de rap cantadas pelos Racionais MC’s ocuparam, por diversas vezes, a figura do pai ausente, tão comum no cenário da periferia brasileira. Em 2023, conforme pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Economia, da Fundação Getúlio Vargas, o Brasil tinha mais de 11 milhões de mães que criavam os filhos sozinhas14. 12 Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=z3pmPXMxC-0 Acesso em 26 de maio de 2024. 13 Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=h-FxGsExDAk Acesso em 26 de maio de 2024. 14 Disponível em https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2023-08/no-brasil-11-milhoes-de- -mulheres-criam-sozinhas-os-filhos#:~:text=Pesquisa%20do%20Instituto%20Brasileiro%20 de,adequado%20tem%20nome%3A%20abandono%20afetivo. Acesso em 19 de maio de 2024. https://www.youtube.com/watch?v=z3pmPXMxC-0 https://www.youtube.com/watch?v=h-FxGsExDAk https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2023-08/no-brasil-11-milhoes-de-mulheres-criam-sozinhas-os-filhos#:~:text=Pesquisa%20do%20Instituto%20Brasileiro%20de,adequado%20tem%20nome%3A%20abandono%20afetivo. https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2023-08/no-brasil-11-milhoes-de-mulheres-criam-sozinhas-os-filhos#:~:text=Pesquisa%20do%20Instituto%20Brasileiro%20de,adequado%20tem%20nome%3A%20abandono%20afetivo. https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2023-08/no-brasil-11-milhoes-de-mulheres-criam-sozinhas-os-filhos#:~:text=Pesquisa%20do%20Instituto%20Brasileiro%20de,adequado%20tem%20nome%3A%20abandono%20afetivo. 163 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista A grande maioria das mães solo são mulheres negras. A pesquisa mostrou que a maioria, 72,4%, vive só com os filhos e não conta com uma rede de apoio próxima. O rap com os seus sermões e conselhos sobre a vida, sobre com- portamento e escolhas — uma vez que muitas mães solteiras criam e cuidam dos seus filhos sozinhas — simboliza o afeto e o sentimento de cuidado mobi- lizados nas músicas de denúncia, que fortalecem suas identidades e alertam sobre drogas e crimes. O papel atribuído aos Racionais MC’s pelos ouvintes é de um conselheiro seguro e que sabe sobre o que fala. Esse tema acolhe muitas realidades semelhantes e uma delas também é do pesquisador Hikaro Diego Queiroz (2023, p. 6), que afirma, nas primeiras páginas de sua dissertação, que com o rap aprendeu a respeitar pessoas, a pensar de forma crítica e formar humanos e cidadãos: [...] com o RAP aprendemos a conviver na periferia, aprende- mos a respeitar pessoas, a pensar de forma crítica e nos for- mar como humanos e cidadãos. Portanto, meu primeiro salve vai aqui para o próprio RAP e para o grupo Racionais, por me formar, para a minha tia, que introduziu no RAP, e meu irmão, que decidiu com o dinheiro que achou comprar aquela fita naquela manhã que mudaria para sempre a nossa trajetória. A dissertação de mestrado da pesquisadora Ana Raquel Mota de Souza, elaborada na Unicamp, em 2004, é um outro bom exemplo. Ela relata que em visita a um projeto educativo na Bahia ficou surpresa com o interesse dos ado- lescentes pelo grupo Racionais MC’s. Ela conta que : Impressionava-me como eram capazes de cantar letras quilométricas — que, quando transcritas, chegam a mais de cinco páginas — sem tê-las nunca visto escritas. Impressionava-me mais o teor das letras e o impacto que têm naquela população, o que chegou ao auge para mim quando, ao assinar um desenho que fizera, um desses jovens se autonomeou “Mano Brown” (Souza, 2004, p. 02). 164 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista O próprio Mano Brown está nas estatísticas de filhos criados sem a presença do pai. Brown nunca conheceu o pai15 e foi criado pela mãe, Ana. No programa de entrevistas Roda Viva, em 2007, Mano Brown respondeu ao jornalista que o questionou sobre o lugar de mágoa que a figura paterna ocupava na vida do cantor: “Na verdade, eu não tive pai, né? Tive um pai, mas não conheci. Não conheço e também não quero conhecer, certo? Não faço questão. Poucas coisas. Não tenho muitas coisas pra falar sobre pai”.16 Em outra entrevista, 2017, exibida no MTO + Entretenimento do canal de YouTube17, na qual, em dado momento, o assunto do pai de Mano Brown surge, ele diz : Uma vez na escola, Copa do Mundo de 78, França e Itália. Eu nunca vou esquecer. Aí eu fui falar... deixei escapar que meu pai era italiano. Na hora do jogo da Itália com França...mole- ques começaram a dizer “nunca vi italiano de cabelo duro’... ahhhhh. Italiano de cabelo duro...fudeu...por que eu fui falar isso? Nunca mais eu falei isso. É mesmo. Eu sou bem moreno. Sou bem moreno e com esse cabelo aqui num vai dar não, né? Minha mãe fala, faz questão, “seu pai era italiano”, ela faz questão de lembrar. Mas também nunca puder levar essa de italiano, não. Eu vivi que nem preto, morô? Vivi quem nem preto, comi que nem preto. Vivi vida de preto. Né igual de italiano não . A disseminação do rap no Brasil também é possibilitada pelo término da ditadura do Brasil, momento histórico de abertura e novas possibilidades, 15 Ice Blue, um dos membros do grupo, menciona numa entrevista do programa Ensaios, da TV Cultura, em 2003, que o padrinho de casamento de sua mãe, Seu Isaque, que era Pai de Santo do terreiro que sua mãe frequentava, acolheu ele e Mano Brown como filhos: “deu força pra criar a gente, que praticamente a gente não teve pai. Meu pai faleceu quando eu tinha 9 meses e o Brown, o pai dele, abandonou depois que ele nasceu”. Disponível em https://www.youtube.com/ watch?v=Pf0YKPvz6YE Acesso em 19 de maio de 2024. 16 Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=IaQWmNkqkSg Acesso em 19 de maio de 2024. 17 Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=A4mMHHpx1EU Acesso em 22 de maio de 2024. A entrevista foi concedida ao canal Trip TV. https://www.youtube.com/watch?v=Pf0YKPvz6YE https://www.youtube.com/watch?v=Pf0YKPvz6YE https://www.youtube.com/watch?v=IaQWmNkqkSg https://www.youtube.com/watch?v=A4mMHHpx1EU 165 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista e a periferia desejava e precisava ser ouvida. A música e a arte se tornaram condutoras das vozes daqueles que insistiam em “[...] demandas na luta pela educação, moradia, transporte, saneamento básico, entre outros. Alguns jovens estavam à frente destas mobilizações tanto em associações de bairros, como em comunidades eclesiais de base, entre outros” (Moreno, 2005, p. 06). O som dos Racionais MC’s traduz a urgência de mudanças complexas, descreve a realidade dura e difícil da juventude negra, traduz o medo, aponta os inimigos e expõe com clareza um posicionamento crítico diante da ava- lanche de violência que ainda persiste no cotidiano das periferias do Brasil. Nas palavras das organizadoras do livro Racionais MC’s – entre o gatilho e a tempestade, o grupo vem “estruturando, por meio da música rap, “a fúria negra” do Brasil desde a redemocratização. Fúria persistente, que ensina, informa e incomoda” (Vieira; Santos, 2023, p. xv). Podemos perceber na introdução da música Diário de um detento, ainda na parte sem letra, que o som produzido tenta passar a tensão que é perma- nente na vida da população negra e da periferia. É a presença do medo e da onipresente fiscalização insistente, angustiante que penetra os corpos e as mentes. É importantedestacar que tanto a rítmica quanto a narrativa da letra da música, se devem ao fato de ela retratar os acontecimentos do dia 2 de outubro de 1992, o dia do massacre do Carandiru. A letra, composta por Mano Brown e o ex-detento Jocenir, é considerada um rap excepcional, tanto pelo tema quanto pela “qualidade da construção literária da composição” (Zeni, 2004, p. 234). 166 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista 2. A INTERTEXTUALIDADE CONECTANDO OS DESAFIOS HISTÓRICOS NOS ESPAÇOS SOCIAIS Vislumbrar um texto como intertextual é compreender que ele não é um sistema fechado (Still; Worton, 1990). Frow (1990) aponta algumas carac- terísticas da intertextualidade que nos permitem um melhor entendimento sobre porque ele não é um sistema fechado: a) tem uma relação/rede histórica e por isso não é independente e b) é transformado por outras estruturas tex- tuais. A partir desse prisma, pode-se entender que a sociedade é constituída de uma grande teia intertextual, algumas com mais conexões que outras, em que é possível mapear, sobretudo, atualmente, através do uso dos recur- sos da inteligência artificial. Pesquisas mostraram que a realização de um mapeamento intertextual se configura como um excelente recurso para identificar e compreender redes de ações corruptas, intenções escusas quando se trata de projetos empresa- riais no campo dos negócios, a prática de bullying 18 entre outros exemplos. Uma percepção mais aguçada de intertextualidade, conforme Baron (2020, p. 3), possibilita a compreensão de que todos os textos estão “inextricavelmente condicionados — tanto na produção quanto na recepção — por outros textos”. O que acabamos de dizer, leva-nos a afirmar que o mundo dos textos é regido por dinâmicas intertextuais subjacentes. Por esses motivos, é razoável supor que devemos rejeitar a ideia de um ineditismo dos textos, como se um retorno a um ‘ponto zero’ fosse possível — negando a existência de aspectos situacionais, culturais, históricos, geográficos, econômicos e temporais. Neste caso, estamos diante da existência de uma constante e renovada rede textual. Uma leitura na perspectiva da intertextualidade pode contribuir, sobremaneira, para aprofundar a compreensão das construções textuais de determinados grupos e movimentos sociais. 18 Disponível em https://anaisonline.uems.br/index.php/seminarioformacaodocente/article/ view/4822/4812 Acesso em 01 de junho de 2024. https://anaisonline.uems.br/index.php/seminarioformacaodocente/article/view/4822/4812 https://anaisonline.uems.br/index.php/seminarioformacaodocente/article/view/4822/4812 167 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista O prisma aqui empenhado, alinha-se à afirmação de Fairclough ([1992] 2008) de que na intertextualidade ocorre a transformação e reestruturação de convenções existentes — que podem ser exemplificados com a criação e transformação de diversos/novos gêneros textuais. A partir dessa visão, não é possível conjecturarmos o ‘silenciamento’ dos textos, uma vez que, por uma via ou outra, a marca, ou seu DNA, dissemina-se nos múltiplos efeitos nas diversas ordens de discurso (Cf. Fairclough, 2003). O estudo de como um texto se conecta a outro(s) texto(s) ou faz alusão a ele(s), ocupa um protagonismo no processo de compreensão e leitura crítica do mundo. Na perspectiva da Análise Crítica do Discurso é necessária uma análise mais profunda acerca das práticas discursivas que envolvem não apenas o texto, mas toda uma rede contextual e as práticas sociais ligadas aos discursos daqueles que vivenciam determinadas realidades (Cf. Van Dijk, 2018; Cirne, Barros, Efken 2022). No entendimento aqui defendido, a ‘visada intertextual’19 promove o desenvolvimento de uma prática crítica, uma vez que permite e estimula a identificação de motivações históricas, sociais e ideológicas que perpassam a linguagem e o discurso. Nos termos dessa colocação, podemos referenciar Castro (2002, p. 104): [...] para que um discurso surta o efeito desejado, é preciso haver uma ressonância interna, uma identificação entre o que foi falado e o que foi ouvido. E para que essa ressonância aconteça, é preciso conhecer o que faz acontecer – o que é essa intertextualidade. Diante dessa formulação, podemos dar mais um passo na compreensão dessa ressonância de identificações e ramificações, chamada de intertextua- lidade, e oferecer uma maior expansão ao raio de ação da intertextualidade, além da alusão a textos e aos gêneros textuais. Neste sentido, podemos 19 Usamos o termo ‘visada intertextual’ a fim de chamar atenção tanto para a intencionalidade quanto para a reflexividade do ato de leitura da realidade. 168 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista mencionar Carter (2021, p. 4, tradução nossa), para quem o conceito de inter- textualidade incorpora “sua derivação da semiótica e da teoria semiótica da circulação de signos na cultura”. 20 Carter (2021, p. 4) argumenta que o entendimento de Kristeva (1984) em relação à intertextualidade era de um “reconhecimento de um signo, ou conjunto de signos, de uma cultura (ou texto literário) em outro texto”.21 Há uma amplificação na concepção de intertextualidade, que incorpora uma composição de discursos e um sistema de significados em um sentido dinâmico (Carter, 2021), contemplando também as conexões realizadas pelos leitores ao interagir com os textos (Mason, 2019). Quer dizer, as conexões intertextuais podem tomar rumos além dos textos e de sua rede mais per- ceptível, e esses diferentes rumos advêm das diversas variáveis possíveis no conjunto de experiências e conhecimentos do leitor que acessa determi- nado texto (escrito ou oral). Segundo Mason (2019, p. 02, tradução nossa), “a intertextualidade na prática oferece aos leitores um quadro cognitivamente fundamentado para a análise estilística prática de conexões intertextuais, tanto em textos escritos como falados. Explora a forma como os textos e os leitores constroem e respondem às referências intertextuais e por quê”.22 Em se tratando do corpus aqui em questão, por exemplo, é possível estabelecer conexões diversas (históricas, culturais, geográficas, estilísti- cas, econômicas, entre outras) construídas a partir das leituras/interpreta- ções das letras das músicas do rap e das entrevistas dadas pelos membros do grupo. Essas mesmas redes intertextuais apontadas na análise do corpus não limitam ou impedem outras formulações intertextuais, pois não é possível estabelecer apenas uma única rede de interpretação e tampouco é possível 20 [...] overlooks its derivation from semiotics and the semiotic theory of the circulation of signs in culture. 21 recognition of a sign, or set of signs, from one culture (or literary text) in another text. 22 “Intertextuality in practice offers readers a cognitively-grounded framework for hands-on stylistic analysis of intertextual connections, both in written texts and spoken. It explores how texts and readers contruct and respond to intertextual references and why”. 169 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista controlar “os comportamentos de leitores reais em relação à referenciação intertextual, tanto em termos das ligações e associações que fazem por sua própria vontade como do que fazem quando são confrontados com refe- rências num texto”23 (Mason, 2019, p. 9, tradução nossa). Sem dúvida, o lei- tor se sente mais próximo de determinadas conexões intertextuais, partes do tecido discursivo, cores de uma colcha de retalhos, pois parte, na sua leitura e tentativa de compreensão, da sua história de vida, na qual determina- das temáticas, questões e conexões predominaram e se tornaram marcantes, condições da possibilidade da sua sobrevivência no mundo. Ao elaborar essa relação complexa que permite diversas possibilida- des, sobretudo pela leitura realizada pelo leitor, fazendo que o conceito seja entendido como uma redeignore e rejeite este princípio óbvio e caro aos nossos ancestrais. Em seu artigo African Traditional Education: A Tool For Intergerational Communication, Feliz Boateng sustenta que a Educação Tradicional Africana é uma ferramenta fundamental de comunicação intergeracional. Esta comu- nicação tem por objetivo preservar os valores e tradições de uma sociedade de uma geração para outra. Visa inserir, sem conflitos, os jovens no mundo adulto (Boateng, 1990, p. 110). De acordo com Boateng, a Educação Tradicional Africana é realizada por meio da Literatura Oral e das Sociedades Secretas. A Literatura Oral compreende as fábulas, mitos e provérbios. Por sua vez, as Sociedades Secretas têm o papel fundamental e a responsabilidade de supervisionar as cerimônias de iniciação de meninos e meninas com o intuito de prepará-las e prepará-los para as responsabilidades da vida adulta. Para reforçar a importância da responsabilidade dos mais velhos nesse processo de comunicação intergeracional, recorremos ao texto A Educação Tradicional na África, de Amadou Hampâté Bâ : A tradição transmitida oralmente é tão precisa e tão rigo- rosa que se pode, com diversas confirmações, reconstituir os grandes acontecimentos dos séculos passados nos míni- mos detalhes, especialmente a vida dos grandes impérios ou dos grandes homens que ilustraram a história africana. (...) Nas civilizações orais, a palavra compromete o homem, a palavra é o homem. Daí o respeito profundo pelas nar- rativas tradicionais legadas pelo passado, nas quais é per- mitido o ornamento na forma ou na apresentação poética, mas onde a trama permanece imutável através dos séculos, veiculada por uma memória prodigiosa que é a característica própria dos povos de tradição oral. Na civilização moderna, o papel substituiu a palavra. É ele que compromete o homem (Hampâté Bâ, 1997, p. 26). 18 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista Palavras têm poder. Ao substituirmos a palavra pelo papel rejeitamos a cultura africana em detrimento da cultura europeia e perdemos o senso de responsabilidade coletiva. Como diz Hampâté Bâ (1997, p. 27): “Em nos- sos dias, devido à ruptura na transmissão tradicional, quando um desses sábios anciãos desaparece, são todos os seus conhecimentos que são devo- rados com ele pela noite. Eu não desejo isso nem para a África, nem para a humanidade”. A lei 10.639/03 tem mais de duas décadas e nossas crianças e jovens continuam sem um conhecimento mínimo da História e Cultura Afro-brasileira e Africana. Já passou da hora de assumirmos nossa responsabilidade com nossos mais novos. Em outra obra, apresentei os exemplos do pro- fessor Pretextato dos Passos e Silva, da Frente Negra Brasileira, do Teatro Experimental do Negro, de Abdias Nascimento com Quilombismo e de Manoel de Almeida Cruz com a Pedagogia Interétnica. Ao longo de nossa história no Brasil, as gerações mais velhas sempre tiveram consciência de sua res- ponsabilidade em educar as gerações mais novas. No entanto, quase quatrocentos anos de escravidão e mais um século de política de embranquecimento nos introjetou o complexo de inferioridade, pressionando-nos a abandonar nossas raízes, além de destruir nossos pro- cessos de socialização. Perdemos a consciência de que somos uma família. Como bem colocou Asa Hilliard: tentativas sólidas e estratégicas foram feitas no sentido de usar as estruturas educacionais para destruir a “consci- ência crítica”, alienar os africanos da tradição e uns dos outros, ensinar inferioridade africana e superioridade europeia (Hilliard, 2007, p. 6 ). Assim, devemos ter consciência de que esta responsabilidade não deve ser transferida para ninguém. Muito menos a um Estado comprometido his- toricamente com práticas genocidas contra nosso povo. Como disse Jacob Carruthers: 19 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista Devido ao sinistro projeto eurocêntrico de educação para nossa juventude negra, devemos considerar como ques- tão de senso comum a educação afrocentrada. (Rejeitarei sem comentar a absurda noção que um currículo universal é a solução.) Vamos agora deixar o caso um pouco mais claro. A crise endêmica na educação negra é a base do que Bobby Wright chama de “Mentecídio”3. Mentecídio é a fase mais sofisticada da estratégia de guerra dos supremacistas brancos contra a raça negra. Se perdermos esta guerra não haverá mais problemas na educação negra, nem educação negra e nem negros. [...] Se quisermos vencer a guerra contra o supremacismo branco, se quisermos viver, então devemos tirar a educação das mãos de nossos inimigos. Nós devemos construiu a verdadeira educação africana sobre uma base revigorada. Somente uma educação afrocentrada oferece esta base (Carruthers, 1999, p. 260). Diante do exposto, penso ser evidente que somente é possível resolver- mos nosso problema educacional através da recriação de nossos processos de transmissão intergeracional. 3. EDUCAÇÃO QUILOMBISTA (AFROCÊNTRICA)4 Consciente de que o racismo e o genocídio, historicamente, são ele- mentos estruturantes da sociedade brasileira, Abdias Nascimento entendia que a resposta amefricana à guerra desencadeada pelos brancos deveria ser baseada na valorização e criação das instituições embasadas nas tradições e experiências oriundas do mundo africano e afro-brasileiro. 3 As aspas são do original. 4 A argumentação desta seção é inspirada na segunda seção de meu artigo: ‘A Herança Cultural dos Africano-Brasileiros e a Educação Quilombista’ In: Elaine Pedreira Rabinovich; Cinthia Barreto Santos Souza; Júlio Cézar Barbosa; Rita da Cruz Amorim; Carla Verônica Albuquerque Almeida; Sinara Dantas Neves. (Orgs.). Objetos de Família: Vozes e Memórias. 1ed. Curitiba: CRV, 2019, v. 2, p. 165-184. 20 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista Dentre as inúmeras contribuições oferecidas por este gigante da diás- pora africana, o conceito de Quilombismo encontra um lugar proeminente, visto que permite recuperar nossa memória além de oferecer os elementos necessários para continuar a existência do ser africano no Brasil. Vejamos suas palavras: O Quilombismo se estruturava em formas associativas que tanto podiam estar localizadas no seio das florestas de difícil acesso que facilitava sua defesa e sua organização econômico-social própria, como também modelos de organi- zações permitidas ou toleradas, frequentemente com osten- sivas finalidades religiosas (católicas), recreativas, beneficen- tes, esportivas, culturais ou de auxílio mútuo. Não importam as aparências e os objetivos declarados: fundamentalmente todas elas preencheram uma importante função social para a comunidade negra, desempenhando genuínos focos de resistência física e cultural. Objetivamente, terreiros, cen- tros, tendas, afoxés, escolas de samba, gafieiras foram e são os quilombos legalizados pela sociedade dominante; do outro lado da lei se erguem os quilombos revelados que conhe- cemos. Porém tanto os permitidos quanto os “ilegais” for- mam uma unidade, uma única afirmação humana, étnica e cultural, a um tempo integrando uma prática de libertação e assumindo o comando da própria história. A este complexo de significações, a esta práxis afro-brasileira, eu denomino quilombismo (Nascimento, 1980, p. 255). Para Nascimento, essa práxis africano-brasileira, que permitiu aos nos- sos antepassados resistir aos ataques genocidas dos brancos brasileiros e afirmar a dignidade africana, não poderia ser viabilizada de modo efetivo sem a restauração de nossa memória. Recorrendo aos trabalhos de pensa- dores do mundo africano – como a obra de Cheikh Anta Diop, The African Origin of Civilization: Myth or Reality –, Nascimento sustentava que nossa história não começou com a maafa, o holocausto da escravidão. A histó- 21 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista ria dos amefricanos do Brasil é parte da história africana e, dessede conexões internas (relação com os textos – escritos e orais) e externas (provocadas pelas associações do leitor), o leitor constrói toda uma realidade mental que não está explícita no texto, embora fundamental para compreendê-lo. Partindo do que discutimos, até o momento, cabem indagações sobre se determinadas práticas discursivas, intertextualmente conectadas, mantêm ou rompem práticas sociais abusivas, provocadoras de dor e sofrimento, impe- dem ou favorecem uma convivência pacífica e democrática em sociedade. Podemos nos referir a determinados problemas/patologias sociais como exemplos dessas práticas discursivas de abuso de poder: miséria, pobreza, racismo, fome, fascismo e feminicídio. Também é possível inferir que uma alte- ração na estrutura intertextual de determinado discurso acarretará mudanças em sua pertença a uma determinada ordem do discurso, podendo alterar também práticas sociais enraizadas historicamente. Mudanças na sociedade provocam mudanças na sua representação intertextual, assim como a reor- ganização da intertextualidade possibilitará novas formas de compreensão da realidade. 23 [...] the behaviours of real readers in relation to intertextual referencing, both in terms of the links and associations they make of their own volition and what they do when presented with referen- ces in a text. 170 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista 3. METODOLOGIA Esta pesquisa caracteriza-se como qualitativa (Santade, 2014) e inter- pretativista (Ribeiro et al. 2023; Andrade; Castello; Nascimento 2022; Bortoni- Ricardo 2008; Schwandt 2006), pois a pesquisa interpretativista coloca em primeiro plano as investigações sobre as ações humanas e seus discur- sos no contexto específico de sua produção. A coleta de dados classifica-se como documental, concentrando a coleta em livros, artigos científicos, teses, dissertações, websites, entrevistas em diversos canais de YouTube e esse tipo de coleta é “recurso capaz de auxiliar na compreensão de um fenômeno” (Ribeiro et al. 2023, p. 3). Através da metodologia utilizada foi possível abalizar a discussão teórica e realizar uma análise crítica discursiva, numa perspec- tiva intertextual, acerca das questões temáticas em duas músicas do grupo Racionais MC’s. 3.1 ANÁLISE DO CORPUS Aqui estou, mais um dia Sob o olhar sanguinário do vigia Você não sabe como é caminhar com a cabeça na mira de uma HK Metralhadora alemã ou de Israel Estraçalha ladrão que nem papel Na muralha, em pé, mais um cidadão José Servindo o Estado, um PM bom Passa fome, metido a Charles Bronson Ele sabe o que eu desejo Sabe o que eu penso O dia tá chuvoso, o clima tá tenso Vários tentaram fugir, eu também quero Mas de um a cem, a minha chance é zero. O drama da cadeia e favela Túmulo, sangue, sirene, choros e velas Passageiro do Brasil, São Paulo, agonia Que sobrevivem em meio às honras e covardias Periferias, vielas, cortiços Você deve tá pensando O que você tem a ver com isso? Desde o início, por ouro e prata Olha quem morre, então Veja você quem mata Recebe o mérito a farda que pratica o mal Me ver pobre, preso ou morto já é cultural Histórias, registros e escritos Não é conto nem fábula, lenda ou mito Quadro 1 – Música Diário de um detento Quadro 2 – Música Negro Drama 17 1 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista A primeira música foi lançada em 1997 e relata a rotina de um detento, negro e jovem, que está em um presídio do estado de São Paulo (“Aqui estou, mais um dia. Sob o olhar sanguinário do vigia”). O relato do detento na música possibilita a reconstrução de uma rica rede intertextual, que viabiliza críti- cas e denúncias num contexto de uma das maiores populações prisionais do mundo. No mesmo ano em que a música foi lançada, em 1997, a Campanha da Fraternidade, lançada pela Igreja Católica do Brasil, optou pelo tema “A Fraternidade e os Encarcerados” e o lema foi “Cristo liberta de todas as pri- sões”. Naquela ocasião, o Brasil registrava uma população prisional de 129.169 presos, na maioria negros e periféricos. O Brasil em 2014, ou seja, há 10 anos, já contava com a quarta maior população carcerária do mundo. Em 2017, vinte anos após a campanha da fraternidade, tínhamos mais de 650 mil pessoas presas no Brasil com o mesmo perfil: negros e periféricos. Podemos perceber que o “olhar sanguinário do vigia” pode ser estendido à representação dos órgãos de coerção do Estado em seu eficiente olhar direto, seletivo e violento por meio de políticas prisionais, que visam inten- cionalmente à população negra. O negro e a negra são visados(as), a partir de um fundo branco, um fundo que os/as coloca em destaque, não como de preferência, mas de “sujeitos potencialmente perigosos e com necessidade de supervisão e controle”. A população negra é “aceita e incluída”, quando serve para algo, para gerar votos para um candidato, para encher determi- nadas Igrejas e gerar lucros, para aumentar a venda de produtos de beleza, ou quando se trata de mobilizar um certo sentimento de compaixão, quando se abre vagas em empresas ou em universidades, para estudantes ou futuros candidatos à docência. Vale salientar que não há nenhuma unanimidade em relação a essa prática. (“Na muralha, em pé, mais um cidadão José ser- vindo o Estado” e “Túmulo, sangue, sirene, choros e velas”). 172 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista O Anuário Nacional de Segurança Pública de 2020 revelou que para cada não negro preso no Brasil em 2019, dois negros foram presos. Abaixo apresentamos um quadro com dados que apontam estatisticamente a reali- dade de violência no Brasil e, por consequência (como foi mostrado acima), do sistema prisional nacional. O Anuário Nacional de Segurança Pública de 2023 mostra que o perfil das vítimas de mortes violentas intencionais não se altera significativamente de um ano para outro : Figura 1 – Anuário Brasileiro de Segurança Pública, p. 31 Figura 2 – Anuário Brasileiro de Segurança Pública, p. 31 O mesmo Anuário (2023) indica que os jovens negros (pobres e peri- féricos) são alvos preferenciais da letalidade policial e que 1/6 das vítimas de letalidade policial foi morta dentro de casa. Nestes casos, vale lembrar 173 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista o trauma da execução de um membro de família, deixando marcas para a vida toda. Já o Atlas da Violência, publicado em junho de 2024 pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, aponta que, entre 2012 e 2022, os homicídios registrados somaram 609.697, dos quais 445.442 das vítimas eram pretos e pardos, contabilizando 73% do total de pessoas mortas no Brasil. Sem dúvida, estamos falando de um genocídio, de um genocídio da população negra, quer dizer, a história do Brasil não mudou, a matança dos negros e das negras continua. (“Olha quem morre, então veja você quem mata” e “Me ver pobre, preso ou morto já é cultural”). Em 2020, dados da Rede de Observatórios da Segurança (grupo de estudos sobre violência nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia, Ceará e Pernambuco) revelou que os negros (pretos e pardos) representam 75% dos mortos pela polícia. Tais dados dialogam intertextualmente com os trechos das músicas do rap do grupo: “Você não sabe como é caminhar com a cabeça na mira de uma HK” e “Recebe o mérito a farda que pratica o mal ”. Conforme dados do governo federal de 2023, através da Secretaria Nacional de Políticas Penais24, a população prisional do Brasil em celas físi- cas é em média de 644.794 e 190.080 em prisão domiciliar. Uma reportagem da Folha de São Paulo25, datada de 20 de julho de 2023, afirmava que a população prisional no Brasil havia batido novo recorde: 832.295 presos. A saga da população negra e periférica no Brasil em busca de segurança física, oportunidades de vida digna, oportunidades de melhores condições de moradiae educação é sabotada e esses crescentes números traduzem 24 Disponível em https://www.gov.br/senappen/pt-br/assuntos/noticias/senappen-lanca- levantamento-de-informacoes-penitenciarias-referentes-ao-primeiro-semestre-de-2023 Acesso em 09 de junho de 2024. 25 Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2023/07/brasil-tem-832-mil-presos- populacao-carceraria-e-maior-que-a-de-99-dos-municipios-brasileiros.sh Acesso em 09 de junho de 2024. https://www.gov.br/senappen/pt-br/assuntos/noticias/senappen-lanca-levantamento-de-informacoes-penitenciarias-referentes-ao-primeiro-semestre-de-2023 https://www.gov.br/senappen/pt-br/assuntos/noticias/senappen-lanca-levantamento-de-informacoes-penitenciarias-referentes-ao-primeiro-semestre-de-2023 https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2023/07/brasil-tem-832-mil-presos-populacao-carceraria-e-maior-que-a-de-99-dos-municipios-brasileiros.sh https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2023/07/brasil-tem-832-mil-presos-populacao-carceraria-e-maior-que-a-de-99-dos-municipios-brasileiros.sh 174 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista a realidade de uma população permanentemente perseguida e historicamente encarcerada, em referência ao passado recente escravagista do país. De acordo com o CNJ, Conselho Nacional de Justiça, atualmente, o Brasil possui a terceira maior população prisional do mundo em termos absolutos. Dentro dessa assombrosa estatística, há outra estatística, igual- mente assombrosa: 68,2% dessa população carcerária é composta de negros e pardos, de acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Metaforicamente, essas realidades densas podem ser percebidas no trecho da música dos Racionais MC’s: “Vários tentaram fugir, eu também quero, mas de um a cem, a minha chance é zero”. Quando a música ‘Negro Drama’ destaca em uma de suas passagens “o drama da cadeia e favela ”, nivela semelhantemente a experiência de sofri- mento na cadeia e na favela. Os mesmos males sociais são conhecidos e vivenciados nos dois ambientes (violência policial, o permanente ambiente de medo, desesperanças, dificuldades de acesso aos ambientes educacionais, de saúde e de lazer), em diferentes graus. A letra realiza sutis alusões intertex- tuais ao processo histórico do Brasil que, após 388 anos de escravidão negra, por pressões econômicas e política externas, oficializa em documento o fim da escravidão negra no Brasil. Essa oficialização inicia uma jornada de um violento escanteio geográfico rumo à invisibilidade desses corpos e que lan- çou essa enorme população para os morros. Os negros são lançados a sua própria sorte e sem nenhum suporte e políticas públicas que os integrem socialmente. Não houve a oferta de educação, nem de participação política e tampouco de oportunidades econômicas, pois, mais uma vez, tratava-se de ausências, vazios, não-destinatários. (Histórias, registros e escritos. Não é conto nem fábula, lenda ou mito). Muitos estudiosos da história do Brasil e muitos institutos de pesquisa já apontaram que aqueles algozes da escravidão, e que fizerem com ela fortunas, foram eximidos da responsabilidade pela manutenção e sobrevi- 175 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista vência dos recém libertos (Você deve tá pensando o que você tem a ver com isso?). Tal postura é uma realidade até hoje no Brasil que, através da pressão de diversos movimentos sociais, de políticas internas e externas, tenta empla- car e institucionalizar programas de reparação histórica em todos os setores da sociedade. CONSIDERAÇÕES FINAIS Podemos perceber a valiosa contribuição do rap na denúncia aos abu- sos cometidos contra a população periférica brasileira bem como no apoio aos movimentos sociais. O rap mobiliza mensagens de apoio, solidariedade àqueles que sofrem discriminações, denuncia o racismo e o cotidiano de vio- lência da periferia, bem como luta por um espaço social mais justo e seguro. Essa prática social musical, que ganhou mais força no contexto de redemo- cratização do Brasil, levanta bandeiras antirracistas, denuncia o genocídio negro, o abandono por parte do Estado e o violento processo de invisibilização da vida e do modo de ser do morador da periferia. A rua grita suas dores, exige seus direitos e exibe resistência. Direito de viver. Direito de ir e vir. Direito a comer. Direito a prosperar. Direito a envelhecer. Direito a ter direitos. O rap fermenta a contestação social, a formação crítica e política, e agiganta as falas daqueles que sobrevivem cotidianamente nas periferias do Brasil quase como um processo de sorte, dada às possibilidades reais de ser assassinado. O rap alerta e conscientiza a população para a necessidade de lutar por políticas públicas de enfrentamento ao racismo com descrição do que de fato ocorre no cotidiano da população negra periférica. As músicas e letras dos Racionais MC’s representam uma forma peculiar de confrontar os jovens da periferia com as dificuldades que enfrentam 176 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista e vivem, convidam a um mergulho no cotidiano marcado por violência e desi- gualdade social. Mas, além disso, assumem um importante papel na forma- ção social, política, cultural e psicológica. O rap provoca uma transformação no modo de pensar e agir, pois convida os seus ouvintes a uma reflexão crítica sobre a vida, seja ela pessoal, social ou política. Trata-se de uma verdadeira prática social, pois oferece um referencial categórico de análise da reali- dade, um autêntico “Raio X do Brasil”, ao mesmo tempo que mobiliza forças de mudança social e política. A letra é um reflexo da própria vida; é a linguagem da vida da periferia, é uma letra que sofre, que sangra, que é violentada e violenta, que é contestada e contesta, que é transgredida e transgride, que desobedece e faz desobede- cer. É uma verdadeira prática de desobediência civil, de enfrentamento de uma ordem estabelecida e que deve ser enfrentada e transformada. REFERÊNCIAS ANDRADE, M. R. M. de; CASTELLO, A.; NASCIMENTO, G. Identidades de professores/as de inglês na mídia: tendência à homogeneização e possibilidades de contradiscurso. In: SILVA, K. A. da. Línguas estrangeiras/adicionais, educação crítica e cidadania. Brasília: UNB, 2002. ANUÁRIO BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA - Fórum Brasileiro de Segurança Pública. São Paulo: FBSP, 2020. ANUÁRIO BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA - Fórum Brasileiro de Segurança Pública. São Paulo: FBSP, 2023. BARON, S. The birth of intertextuality: the riddle of creativity. London: Routledge, 2020. BAKER, S. The History of Rap and Hip-Hop. 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Kilza Maria de Melo Pascoal Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Autobiografias, Racismos e Antirracismos na Educação (Gepar-UFPE) Integrante do Balé da Cultura Negra do Recife 182 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista INTRODUÇÃO Durante muito tempo, o negro teve sua cultura e história negadas, o que resultou na invisibilização da literatura de autoria negra. Com a valorização dos textos considerados clássicos, qualquer interpretação de mundo que se afastasse daquela legitimada pela cultura eurocêntrica, como os textos de auto- ria negra, seria descartada pela crença na incapacidade de formular conteúdos capazes de reforçar os valores dominantes. Por causa disso, as heranças culturais afrodescendentes e africanas sofreram no campo literário pela marginalização do negro e seus descendentes e pelo desinteresse em uma produção literária que, na maioria das vezes, tinha como base a oralidade. De acordo com Grosfoguel (2016), o racismo e o sexismo epistemológicos são grandes problemas da sociedade contemporânea que privilegia apenas projetos imperiais/patriarcais/coloniais e inferioriza o conhecimento produzido por outros corpos políticos. Uma das formas de conhecimento produzidas por muitas sociedades é a narrativa oral, disseminada através da narração ou “contação” de histórias. Diante do fato de se transmitir o conhecimento de forma oral, algumas autoras e autores adotaram o termo “oralitura” para se referir a essa prática. A “oralitura” foi um termo mencionado pela escritora Ana Maria Gonçalves em uma entrevista concedida ao programa Arte 1 ComTexto: Encontros lite- rários, no ano de 2019, para fazer referência à literatura produzida de forma oral, muito comum em países africanos de territórios rurais, onde as pessoas se valem das narrativas para transmitir seus conhecimentos e ensinamentos. Partindo dessas questões, este capítulo apresenta uma prática peda- gógica realizada em uma escola da rede privada em Recife-PE, envolvendo uma turma do sexto ano do Ensino Fundamental II. O objetivo é discutir a demonização da religiosidade de matriz africana e refletir sobre a impor- 183 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista tância de abordar, no ambiente escolar, temas relacionados à cultura e à história africana e afro-brasileira. Através desta abordagem, buscou-se des- tacar a relevância de uma educação inclusiva e multicultural, que promova a compreensão e o respeito pelas diversas manifestações culturais presentes na sociedade brasileira. A prática adotou como metodologia o reconto de narrativas da religio- sidade afro-brasileira, visando investigar o processo de recepção dos alunos. Considerou-se o fato de que a mitologia de matriz africana está presente na vida das pessoas que vivenciam a diáspora africana no Brasil e que sofrem com a intolerância religiosa, decorrente dos preconceitos historicamente construídos em relação à sua religiosidade. 1 .A MITOLOGIA AFRICANA E AFRO-BRASILEIRA NOS LIVROS DIDÁTICOS O racismo religioso, oriundo da atribuição de características negativas a um determinado grupo étnico, que teve início no período de colonização, persiste até os dias atuais. Ao contrário do que se pensa, ele ainda é visto com normalidade tanto por brancos quanto por não brancos. De acordo com o teórico Antônio Esteves (2010), sempre interpretamos as coisas de acordo com nosso ponto de vista e essa interpretação está relacionada ao tempo em que vivemos e a nossa releitura dos fatos . Nesse sentido, a demonização da literatura que tematiza a religiosidade de matriz africana é construída a partir da proliferação de discursos que infe- riorizam o negro e sua religiosidade, pois, conforme Grosfoguel (2016, p. 36): Ao contrário do que atesta o senso comum contemporâ- neo, o“racismo de cor”não foi o primeiro discurso racista. O “racismo religioso” (“povos com religião” versus “povos sem religião” ou “povos com alma” versus “povos sem alma”) 184 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista foi o primeiro elemento racista do“sistema-mundo patriarcal, eurocêntrico, cristão, moderno e colonialista”. As práticas discriminatórias no ambiente educacional nem sempre se manifestam de forma explícita, sendo frequente a tentativa de obstruir ou dificultar a inserção de temáticas relacionadas à negritude. Antes mesmo da promulgação da Lei 10.639/2003, o pesquisador e historiador Cunha Júnior (1997, p. 67) já destacava que “a ausência da História Africana é uma das lacunas de grande importância nos sistemas educacionais brasileiros”. As convicções de superioridadeem relação à cultura e à religiosidade africana e afro-brasileira revelam uma propagação de inverdades que, na maio- ria das vezes, contribuem para a disseminação do ódio e da intolerância reli- giosa. Cássio (2019) observa que o racismo religioso constitui um dos nichos de violência mais prevalentes em nosso cotidiano, sendo também um dos mais desafiadores de combater. Ele explica que essa violência se fundamenta na recusa da diferença e, muitas vezes, é perpetrada por indivíduos que adotam uma postura salvacionista ao cometer atos de intolerância ou discriminação. Eis que surge a Lei nº 10.639/03, posteriormente alterada pela Lei nº 11.645/08, a qual estabelece a obrigatoriedade do ensino da história e cultura afro-brasileira e africana em todas as escolas do país, sejam elas públicas ou particulares, abrangendo desde o Ensino Fundamental até o Ensino Médio. Essa legislação representa um direcionamento à valorização e ao reconhe- cimento dessas culturas. No entanto, apesar da importância e do potencial transformador da lei em questão, pouca coisa mudou, pois o material didático disponível nas escolas ainda é bastante escasso, o que delega ao professor a responsabilidade de buscar esse material e torná-lo acessível aos alunos . Em uma análise detalhada realizada nos livros literários recebidos pelos alunos do Ensino Fundamental II em uma escola privada, localizada na cidade de Recife-PE, percebeu-se uma grave falha no atendimento às propostas da Lei nº 10.639/2003. Nenhum dos livros fornecidos aos alunos atendia essa 185 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista legislação que exige a inclusão da história e cultura afro-brasileira e africana no currículo escolar. A análise revelou que o acervo literário era composto apenas por obras consideradas clássicas, tais como "A Viuvinha", de José de Alencar, "O Alienista " e "A Mão e a Luva ", ambos de Machado de Assis . Essas obras, embora importantes e de grande valor literário, atendem parcialmente à necessidade de representar e valorizar a diversidade cultu- ral brasileira, em especial a herança afro-brasileira. De acordo com Gomes e Martins (2010, p. 45), a escola é “uma das instituições sociais responsáveis pela construção de representações positivas e de superação de estereóti- pos que recaem sobre certas diferenças”. Isso destaca a importância crucial da escola em abordar temas referentes à negritude. A não inclusão desses temas constitui uma forma de discriminação, pois considera a disseminação dessas temáticas como conteúdo de pouca relevância. Na turma em que ocorreu a prática pedagógica, observou-se que o livro didático dos alunos apresentava alguns elementos visuais limitados e estereotipados referentes à representação do negro, consistindo princi- palmente em personagens do folclore brasileiro, como o Saci-Pererê e a Mula Sem Cabeça. Não havia, por exemplo, fragmentos de textos de autoria negra, nem textos que tratassem diretamente das contribuições dos negros à sociedade brasileira ou suas vivências e perspectivas. Essa lacuna eviden- cia uma falta de representatividade e reconhecimento das narrativas negras no material educacional. Entretanto, no capítulo destinado à apresentação e à caracterização dos gêneros mitos e lendas, além da presença de mitos indígenas, o livro também incluiu o mito de Oxóssi. Essa inclusão foi uma exceção valiosa que permitiu aos educadores a oportunidade de apresentar aos alunos alguns aspectos importantes da mitologia dos orixás. Essa abordagem possibilitou discussões sobre o sincretismo religioso entre os santos da igreja católica e os orixás, uma característica marcante da religiosidade afro-brasileira. Além 186 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista disso, abriu espaço para debates sobre a intolerância religiosa e a importância de respeitar e valorizar todas as crenças. A presença do mito de Oxóssi no material didático também permitiu que se tratasse das diversas contribuições e elementos da africanidade na construção da identidade brasileira. A partir do reconto desse mito, foi pos- sível introduzir os alunos aos estudos sobre a mitologia africana, destacando a importância da oralidade e da tradição cultural dos povos africanos. A prá- tica pedagógica, portanto, revelou-se essencial para promover a valoriza- ção da diversidade cultural e combater preconceitos, tornando a educação um instrumento de transformação social . No manual do professor, o autor evidenciou sua preocupação com a representação da literatura africana e afro-brasileira, a fim de romper com os possíveis preconceitos ao sugerir textos relacionados à prática do candomblé, incluindo o livro Mitologia dos Orixás, do sociólogo Reginaldo Prandi (2000). Entretanto, o acesso a esse material ainda não é democratizado e nem tudo está disponível de forma gratuita na internet. De acordo com Roger Chartier (2018, p. 122), “a comunicação eletrônica é o mundo da superabundância textual, cuja oferta é maior que a capacidade de apropriação dos leitores”. Além da complexidade de abordar a temática nas escolas, enfrenta-se o desafio adicional da vasta disponibilidade de materiais, muitos dos quais carecem de verificação quanto à veracidade de suas fontes. Essa situação coloca o professor imerso em um mar de informações, sem um porto seguro ou um farol que o guie . No final de 2020, o material didático utilizado pela escola em que foi rea- lizada a prática passou por uma reformulação significativa, durante a qual foi notada a remoção da única referência à religiosidade de matriz africana. Essa exclusão levanta questionamentos sobre a possibilidade de ser uma ten- tativa deliberada de apagar ou marginalizar uma literatura que é considerada inferior por alguns segmentos da sociedade. 187 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista A preocupação em valorizar a história, a cultura e a religiosidade dos povos africanos e afro-brasileiros é uma questão relevante para os pro- fessores comprometidos com a implementação efetiva da Lei nº 10.639/2003. No entanto, eles enfrentam desafios consideráveis ao tentar desconstruir o preconceito arraigado e construir um ambiente educacional que promova genuinamente a tolerância religiosa. Além disso, uma seleção de materiais e metodologias adequadas torna-se uma tarefa complexa, especialmente diante da predominância de perspectivas eurocêntricas no conjunto de recur- sos disponíveis. Embora o Brasil tenha oficialmente reconhecido a contribuição cultural dos negros escravizados para a formação e caracterização do país, é inegável que a narrativa dominante continua sendo eurocêntrica. Conforme destacado por Cosson (2020, p. 34), “é preciso entender a literatura para além de um conjunto de obras literárias valorizadas como capital cultural de um país. A literatura deveria ser vista como um sistema composto de tantos outros sistemas”. Dessa forma, faz-se necessária uma revisão abrangente dos conheci- mentos considerados válidos até então, com o intuito de reconhecer e legitimar plenamente a riqueza da literatura africana, frequentemente relegada a um status inferior e marginalizada nos currículos escolares. Esse esforço conjunto é essencial para ampliar o espaço dedicado à diversidade cultural no ambiente educacional e para promover uma educação capaz de refletir a riqueza e a complexidade da sociedade brasileira. 2. HISTÓRIAS DA MITOLOGIA AFRICANA E AFRO-BRASILEIRA NA SALA DE AULA A oralidade é uma marca da identidade de alguns países, como por exem- plo, países africanos da lusofonia, os quais compartilham a mesma língua e sofre- 188 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista ram influência da cultura portuguesa, como Angola, Cabo Verde, Moçambique, dentre outros. Ao contrário do Brasil, onde as narrativas orais não são ampla- mente valorizadas, na cultura de muitos países africanos, a narração de histórias é umaprática social, trata-se de uma forma de perpetuar os costumes e manter viva a memória, a história e a cultura de determinado povo, pois, de acordo com o contador de histórias africano Boniface Ofogo Nkama (2012, p. 247), “a palavra falada faz parte de nossos traços de identidade. Não somos nada sem ela”. Os contadores de histórias, ou griots, são considerados os guardiões da palavra e representam uma figura de alta importância dentro das comuni- dades africanas por narrarem as conquistas e transmitirem os ensinamentos de seus antepassados. De acordo com o escritor e griot malinês Amadou Hampaté Bà, “em África, quando morre um ancião arde uma biblioteca, desaparece uma biblioteca inteira sem que as chamas acabem com o papel” (Hampaté Bà, s.d.). O autor destaca a grande importância que é dada à tra- dição oral no continente africano e à transmissão oral dos conhecimentos. Por estarem mais presentes nas comunidades rurais, as narrativas orais frequentemente são subestimadas em comparação com as formas escritas de expressão. Apesar da existência de documentos oficiais na educação e de abordagens pedagógicas que defendem o uso das narrativas orais no processo de ensino, ainda persiste uma resistência em incorporá-las plenamente à sala de aula, tanto em contextos rurais quanto urbanos. A prática secular de contar histórias é uma parte intrínseca do cotidiano, seja por meio de narrativas fictícias ou relatos baseados em experiências reais. No entanto, no ambiente escolar, as narrativas orais muitas vezes não rece- bem a devida valorização, em parte devido a uma abordagem educacional que tende a ser rigidamente estruturada e influenciada por modelos tradicio- nais de ensino ocidental, que priorizam a escrita e desconsideram a história contada e a origem do narrador. 189 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista A utilização das narrativas orais da mitologia africana e afro-brasi- leira na sala de aula desempenha um papel crucial como uma ponte entre o ensino e a herança cultural desses povos. Além de facilitar a compreensão do passado, essas narrativas contribuem significativamente para a valoriza- ção da história, cultura e religiosidade da comunidade negra, cuja influência foi e continua sendo fundamental para a formação e identidade do Brasil. No entanto, é importante reconhecer que esse processo enfrenta desafios devido ao preconceito arraigado na sociedade, que muitas vezes marginaliza e menospreza essas expressões culturais. Constituídas a partir de um processo coletivo, elas estiveram presentes em todas as civilizações, e mesmo surgindo da tradição de diversos povos, ainda assim compartilham semelhanças entre si, como é o caso da mitolo- gia africana no Brasil, que compartilha realidades específicas e proporciona um enriquecimento cultural. Hall (2006, p. 50) define o multiculturalismo como: O termo multiculturalismo é substantivo. Refere-se às estra- tégias e políticas adotadas para governar ou administrar problemas de diversidade e multiplicidade gerados pelas sociedades multiculturais. É usualmente utilizado no singular, significando a filosofia específica ou a doutrina que sustenta as estratégias multiculturais. O termo multicultural trata de algo abrangente, entretanto, o conceito de Hall (2006) faz referência a uma estratégia que tem um sentido demo- cratizador dentro do ambiente escolar. Ao refletir sobre a oralidade, e consi- derando a variedade de culturas em uma determinada sociedade, Boniface Ofogo Nkama (2012, p. 263) afirma que : Por seu aspecto marcadamente simbólico, por sua capa- cidade de condensar as mensagens e por sua estreita relação com o imaginário dos povos, os contos (especial- mente se nos referimos aos contos tradicionais) constituem 190 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista uma das ferramentas mais eficazes para se trabalhar os valo- res próprios de uma sociedade multicultural, bem como para transmitir outros valores como a paz, a amizade e o respeito aos idosos. Tratar a oralidade de uma forma multicultural é uma maneira de promo- ver a equidade social, reconhecer as diferenças e a individualidade de cada povo, etnia, como também atuar na luta contra as diversas formas de racismo. Para Marcuschi (2008), a oralidade e a escrita estão interligadas, e é dever da escola promover o debate entre as duas modalidades de explicitação da língua. Entretanto, observa-se a marginalização da oralidade, que muitas vezes é compreendida como uma literatura menor, principalmente quando produzida por negros ou sobre negros. Portanto, é dever da escola criar estratégias que ofereçam recursos capazes de promover a equivalência no ato comunicativo. A Base Nacional Comum Curricular – BNCC (2018), que consiste em um documento de caráter normativo com a função de definir o conjunto orgânico e progressivo de aprendizagens indispensáveis a todos os alunos durante as etapas e modalidades da Educação Básica, institui o uso da oralidade: (EF69LP46) Participar de práticas de compartilhamento de leitura/recepção de obras literárias/ manifestações artísticas, como rodas de leitura, clubes de leitura, eventos de contação de histórias, de leituras dramáticas [...] (BNCC, 2018, p. 33). Ainda que seja de competência da escola o desenvolvimento das práti- cas orais, estas permanecem sendo desprezadas ou restritas apenas ao que é oferecido no livro didático, apoiado na ideia de universalismo, baseada no cânone ocidental. Para Cosson (2020, p. 34): 191 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista Aceitar a existência do cânone como herança cultural que precisa ser trabalhada não implica prender-se ao passado em uma atitude sacralizadora das obras literárias. Assim como a adoção de obras contemporâneas não pode levar a perda da historicidade da língua e da cultura. Sabe-se que o privilégio concedido aos homens brancos é real e ainda circula entre aqueles que validam o conhecimento, o que promove um “enges- samento”, consagrando algumas obras que permanecerão sendo lembradas ao longo do tempo. Repensar na reestruturação do cânone ocidental não sig- nifica a exclusão do existente, mas sim a valorização e a inclusão de minorias que sofrem com o apagamento e que recebem o rótulo da invisibilidade. Baseadas na oralidade e com marcas da religiosidade, as narrativas africanas e afro-brasileiras refletem as marcas das experiências ao longo do tempo, preservam ensinamentos acerca da religião e da história. De acordo com Hampaté Bà (2003, p. 174-175): Um mestre contador de histórias africano não se limitava a narrá-las, mas podia também ensinar sobre numerosos outros assuntos (…) O mesmo ancião (…) podia ter conhe- cimentos profundos sobre religião ou história, como também ciências naturais ou humanas de todo tipo (...). E o ensina- mento nunca era sistemático, mas deixado ao sabor das cir- cunstâncias, segundo os momentos favoráveis ou a atenção do auditório. Nesse sentido, o autor reflete acerca do processo de aprendizagem não se limitar apenas aos conhecimentos adquiridos na escola a partir da escrita, sendo esta considerada ainda como a única forma utilizada para registrar os conhecimentos. No entanto, é fundamental reconhecer que a aprendizagem vai além da simples transmissão de informações por meio da escrita. 192 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista Quanto às escolas, estas, em sua maioria, desconsideram que assim como a escrita, narrar histórias é um ato complexo que não se limita apenas a memorizar ou inventar uma história através do reconto. O ato de narrar exige o domínio de certas técnicas e, muitas vezes, por dialogar com outras artes, exige conhecimentos específicos de outros campos. Além disso, a narrativa oral possui um papel central na transmissão de conhecimentos e valores culturais ao longo da história da humanidade. Portanto, faz-se necessário repensar as práticas pedagógicas,a fim de que a escola busque a valorização da cultura oral e o respeito aos saberes ancestrais. Isso porque a história contada não é apenas uma narrativa, mas sim uma representação da identidade e da história de um povo. No continente africano, por exemplo, a história contada é uma verdade possível, um mundo possível. Não se mente quando se conta uma história, pois isso afetaria não apenas a vidado contador, mas toda a energia vital da comunidade. Assim, ao valorizar a cultura oral, a escola não apenas enriquece o pro- cesso educativo, mas também promove o respeito à diversidade cultural e contribui para a construção de uma sociedade justa e igualitária. Afinal, reconhecer e valorizar os saberes ancestrais de um povo é fundamental para o fortalecimento e o empoderamento das comunidades. 3. RECEPÇÃO DOS ALUNOS ÀS NARRATIVAS AFRO-BRASILEIRAS Os mitos africanos e afro-brasileiros não apenas transmitem narrativas ricas em valores como o respeito aos mais velhos, a preservação da natureza e o cultivo de uma relação harmoniosa com o meio ambiente, mas também oferecem uma visão de mundo que contrapõe a perspectiva negativa frequen- temente associada a essas culturas. No entanto, é importante reconhecer que a recepção desses mitos nem sempre é uniformemente positiva, pois a leitura 193 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista é um processo complexo influenciado por uma série de fatores, incluindo os esquemas mentais preexistentes, a época e o contexto cultural do leitor . Como bem observou Navarreti (2011) ao refletir sobre as teorias de Chartier e a literatura, um mesmo texto pode ser interpretado de manei- ras distintas por diferentes leitores, e a significação de uma obra vai além das intenções do autor. Isso significa que a forma como os mitos africanos e afro-brasileiros são recebidos e compreendidos está intrinsecamente ligada à bagagem cultural e às experiências individuais de quem os interpreta. Na educação básica, a disponibilidade de produção literária que aborde essas temáticas ainda é limitada, principalmente na rede privada de ensino. Abordar aspectos culturais da população negra e discutir acerca da religio- sidade africana e afro-brasileira nesse cenário é ter a certeza de que haverá obstáculos a serem enfrentados devido à persistente associação de malig- nidade a tudo que tem origem na contribuição do povo negro. Ao refletir acerca da temática étnico-racial, Jaqueline Almeida (2016, p. 1) afirma que : […] apesar da vasta e promissora produção literária infanto- juvenil que vem chegando às escolas, falar sobre a temática religiosa africana e afro-brasileira ainda significa percorrer um caminho tortuoso. Isso porque a imagem negativa e associação aos “mistérios malignos” estão presentes em diversos meios de expressão. Daí a importância de obras literárias que deem visibilidade e humanizem a experiência religiosa das populações negras . Atender às propostas da Lei 10.639/2003 torna-se um desafio dentro de uma cultura que insiste em invisibilizar as experiências religiosas da popu- lação negra, por considerá-las práticas primitivas e inferiores. Observa-se o reflexo disso na construção do material didático e na seleção das obras que norteiam os fragmentos textuais do material didático da maior parte das editoras do país, que se valem do cânone ocidental. Muitas vezes, esse 194 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista cânone não faz parte do contexto de origem do leitor, o que irá garantir uma pluralidade de interpretações. O leitor não branco certamente não se sentirá representado ao ler obras canônicas, pois estas são marcadas por disparidades sociais onde o negro quase sempre ocupa a posição de subalternidade. Isso pode levar uma criança negra a se sentir inferior por não compartilhar daquilo que é socialmente aceito com naturalidade pela sociedade na qual ela está inserida, ainda que esta seja resultante de uma miscigenação. Com o objetivo de atender às propostas da lei que instaura a obriga- toriedade da inserção de temáticas referentes à história e cultura africana e afro-brasileira no ambiente escolar, assim como abordar questões rela- cionadas à religiosidade de matriz africana nas aulas de língua portuguesa e literatura, realizou-se um trabalho com as narrativas mitológicas com uma turma do sexto ano do Ensino Fundamental II de uma escola da rede privada da cidade do Recife-PE. O trabalho foi iniciado quando a professora da turma em questão tes- temunhou um aluno referindo-se à colega como "macumbeira". Esse acon- tecimento desencadeou uma série de reflexões sobre as percepções e os preconceitos arraigados que permeiam a compreensão dos alunos em rela- ção à religiosidade de matriz africana. Questionado sobre os motivos que o levaram a usar tal termo pejorativo, o aluno explicou que associava o colar de miçangas usado pela colega à prática da "macumba", um termo utilizado de forma pejorativa para se referir às religiões de matriz africana. Ele expres- sou a crença de que tal objeto poderia atrair energias negativas, refletindo a falta de compreensão e respeito pelas crenças e práticas religiosas de outras culturas. Essa situação deixou evidente a necessidade urgente de promover a educação intercultural e o respeito à diversidade religiosa desde os primeiros anos escolares. Foi perceptível que muitos alunos não estavam familiarizados 195 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista com os aspectos das culturas africanas e afro-brasileira, o que contribuiu para a perpetuação de estereótipos e preconceitos. Conforme ressaltado por Jouve (2002), cada indivíduo traz consigo sua bagagem cultural e suas experiências de vida, o que influencia diretamente na forma como percebem e interpretam o mundo ao seu redor . Com o intuito de criar um ambiente de diálogo e tolerância religiosa, a professora decidiu utilizar a música em yorubá Oro mi má como ponto de partida para uma discussão mais ampla sobre as religiões de matriz africana. No entanto, a reação dos alunos variou, desde o interesse genuíno até comentários preconceituosos e risos contidos. Essa diversidade de rea- ções evidenciou a necessidade de abordagens mais inclusivas e sensíveis à diversidade cultural no ambiente escolar. Ao oferecer uma tradução da música e conduzir uma conversa aberta sobre as divindades africanas, a professora procurou desconstruir estereótipos e promover o respeito mútuo entre os alunos. O reconto do mito de Oxóssi, orixá da caça e da fartura, presente no livro didático, foi uma oportunidade para os alunos ampliarem seus horizontes culturais e compreenderem a riqueza das tradições africanas e afro-brasileiras. Durante o reconto do mito, os alunos se mostraram interessados e havia uma expectativa em relação à comparação das características utilizadas na caracterização do orixá com as ações do personagem dentro da narrativa. De acordo com Jauss (1994), o conhecimento prévio é um dos parâmetros que configuram a construção do horizonte de expectativas. Para o autor, o horizonte de expectativas se materializa em dois níveis: o do conhecimento que o leitor já possui e do que surgirá após a leitura. Portanto, a recepção se deu a partir dos conhecimentos prévios obtidos antes do reconto, o que possibilito um contato com a temática. Após o reconto, iniciou-se uma discussão acerca das características do orixá e do significado da oferenda descrita no mito, além de um pequeno 196 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista debate sobre a intolerância religiosa no Brasil. Percebeu-se que o contato com a narrativa da religiosidade de matriz africana provocou uma ruptura com o que os alunos sabiam sobre o tema, possibilitando uma nova percepção, diferente da que os leitores tinham como convicção. De acordo com Lima (2019, p. 176), [...] a interpretação e compreensão da obra literária pelo leitor se realizampelo valor significativo e subjetivo dela, pois nem sempre o texto se mostrará como novidade ou algo prévio, podendo se manifestar como desconhecido, forçando- lhe a entendê-lo, por não abordar aquilo que o receptor já conheça, ou mesmo ser contrária aos valores e normas culturais dele, já que os horizontes de expectativa tanto da obra quanto do leitor se chocam, havendo uma percepção e alargamento de conhecimento do receptor para dentro da obra ou resistência dele, construindo uma nova visão crítica perante o que foi lido e de si mesmo . A partir da prática do reconto e do debate sobre a temática, observou- -se que, para a grande parte dos discentes, a temática mostrou-se como algo desconhecido, apesar de fazer parte da cultura e religiosidade do povo brasileiro. Para eles, tratou-se de um novo conhecimento, que provocou uma ruptura de horizontes de expectativas e foi assimilado a partir de seus conhecimentos prévios. Para aqueles que já possuíam alguma afinidade com a temática, a prática colaborou para expandir seus horizontes de expectativa. De acordo com Lima (2019, p. 178): A obra dialoga com o leitor pelas semelhanças vividas, ou mesmo pela curiosidade despertada pelos assuntos do texto, que ampliam seu repertório e conhecimento histórico, cultural e social, pois ela propicia prazer, fruição estética por meio da leitura. 197 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista Dessa forma, observa-se que a relação entre o leitor e a obra não se restringe apenas ao entendimento dos acontecimentos históricos, mas também é influenciada pelo contexto social e cultural ao qual o leitor está inserido. Isso demonstra a dinamicidade da interpretação ao longo do tempo, pois é natural que novas perspectivas e entendimentos surjam em diferentes momentos e contextos de leitura. Portanto, é importante destacar que o passar do tempo não apenas molda novas interpretações de um texto, mas também reflete as mudanças sociais e a visão de mundo dos leitores. CONSIDERAÇÕES FINAIS A mitologia de matriz africana sempre esteve presente na vida das pes- soas que vivem a diáspora africana no Brasil. Esses povos sempre produziram literatura, entretanto, de forma oral, a “oralitura”. Através dessa tradição oral, transmitiram-se não apenas histórias, mas todo um complexo de valores, sabe- res e crenças que permearam suas vidas e comunidades. No entanto, devido ao apagamento sistemático da cultura, da religiosidade e do conhecimento científico afro-brasileiros ao longo da história do país, os saberes africanos tornaram-se desconhecidos para grande parte da população brasileira. Esse processo de apagamento e marginalização contribuiu para a perpetuação de estereótipos e preconceitos, alimentando um quadro de desigualdade e discriminação. A luta pela decolonização do pensamento ainda segue buscando forças para vencer um critério de seleção que tenta resistir e silenciar vozes. Apesar dos avanços legislativos, como a Lei nº 10.639/03, que torna obrigatório o ensino de temáticas voltadas para a história e a cultura africana e afro-bra- sileira nas escolas públicas e particulares, do Ensino Fundamental ao Ensino Médio, ainda há muitos desafios a enfrentar. O material didático disponível 198 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista é frequentemente insuficiente e pouco diversificado, refletindo uma lacuna na formação inicial e continuada dos professores. Durante a prática, observou-se que a ausência de referências à negritude nos livros didáticos não apenas compromete a equidade social, mas também atua na perpetuação da discriminação racial e religiosa. É fundamental repen- sar as práticas educacionais para que promovam a valorização da oralidade e da diversidade cultural, contribuindo assim para a construção de uma sociedade mais inclusiva e igualitária. Em relação à metodologia do reconto proposto como forma de aplicação da Lei nº 10.639/03, percebeu-se que a recepção das narrativas da oralidade africana e afro-brasileira variou entre os alunos da mesma turma. Isso evidencia a complexidade da interpretação e o papel fundamental do contexto pessoal e cultural na compreensão de textos literários. Um mesmo texto pode susci- tar interpretações diversas e enriquecedoras, especialmente quando se trata de narrativas que carregam consigo camadas de significado cultural e histórico. Por fim, a prática proporcionou aos alunos não apenas o contato com a cultura do outro, mas também a oportunidade de questionar suas próprias concepções sobre espiritualidade, identidade e diversidade. Ao explorar os mitos africanos e afro-brasileiros, os estudantes puderam ampliar seus horizontes e compreender que a espiritualidade é uma dimensão complexa e multifacetada, que se manifesta de maneiras diversas em cada sociedade e indivíduo. 199 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista REFERÊNCIAS ALMEIDA, de Jacqueline. A mitologia africana na sala de aula: como leitores juvenis negociam com as representações dos orixás? Ampedisul, 2016. Disponível em: http:// www.anpedsul2016.ufpr.br/portal/wp-content/uploads/2015/11/eixo16_JACQUELINE- DE-ALMEIDA.pdf. Acesso em: 24 de jul.2021. BÀ, Amadou Hampaté. Biografia de Ahmadou Hampaté Bá. Disponível em: http:// www.casafrica.es/po/detalle-who-is-who.jsp%3FPROID=48819.html. Acesso em: 22 de jul. 2021. 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Arte1 Comtexto: Encontros Literários. Canal Arte, 2019. https://www.youtube.com/watch?v=0hshcSEbZvw GROSFOGUEL, Ramon. A estrutura do conhecimento nas universidades ocidentalizadas: racismo/sexismo e pistêmico e os quatrogenocídios/epistemicídios do longo século XVI. Revista Sociedade e Estado. v.31, n.1, 2016. HALL, Stuart. A questão multicultural. In: SOVIK, Liv (org.). Da diáspora: Identidade e mediações culturais. Belo Horizonte: UFMG, 2006. JAUSS, Hans Robert. A História da Literatura como provocação à Teoria Literária. Tradução de Sérgio Tellaroli. São Paulo: Ática, 1994. JOUVE, Vicent. A leitura. Tradução de Brigitte Hervot. São Paulo: Editora UNESP, 2002. LIMA, Cleane da Silva de; LIMA, Luzimar da Silva de. Estética da recepção: o conhecimento de mundo do leitor para a significação do texto literário. Revista Littera online, São Luís, v.10, n.18, 2019. p.173-187. MARCUSCHI, Luiz Antônio. Produção Textual: análise de gêneros e compreensão. São Paulo. Editorial Parábola, 2008. 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São Paulo: Companhia das Letras, 2000. https://www.youtube.com/watch?v=0hshcSEbZvw 201 EDUCAÇÃO PARA AS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS: RELATO DE EXPERIÊNCIA DOCENTE NO CURSO DE HISTÓRIA DA UNICAP (2024) Leandro Nascimento de Souza Universidade Católica de Pernambuco Professor da graduação e do Programa de Pós-graduação em História/UNICAP Maria do Rosário da Silva Universidade Católica de Pernambuco Professora da graduação e do Programa de Pós-graduação em História/UNICAP 202 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista INTRODUÇÃO As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais, instituídas em 2004, estabelecem orientações para que as escolas, públicas e privadas, promovam uma educação inclusiva e antirracista. A partir da Lei nº 10.639/2003, que introduziu o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, as diretrizes reforçam a importância de desenvolver práticas pedagógicas que valorizem a diversidade e combatam o racismo no ambiente escolar. Essas diretrizes são fundamentais para a construção de uma sociedade mais justa, pois incentivam a valorização das contribuições dos afrodescendentes na formação do Brasil e promovem o respeito às identi- dades étnico-raciais. Ao transformar o espaço educacional, elas ajudam a criar uma base de reconhecimento e respeito que é crucial para a inclusão social e a equidade racial. Essa iniciativa, complementada pela Lei 11.645/2008, que incluiu a história e cultura indígena, visa não só corrigir a invisibilidade his- tórica desses grupos, mas também combater o racismo e promover uma visão pluralista da sociedade brasileira. A importância da educação para as relações étnico-raciais reside em seu papel transformador, fornecendo ferramentas para a construção de uma sociedade mais justa e equitativa, desafiando a colonialidade do saber e promovendo uma maior compreensão das estru- turas raciais que permeiam as instituições sociais. No entanto, apesar dos avanços legislativos e teóricos, a implementa- ção prática dessas políticas enfrenta desafios significativos, pois a docência sobre as relações étnico-raciais envolve lidar com as resistências estrutu- rais e culturais presentes no corpo discente, docente e na própria estru- tura institucional. Este capítulo busca relatar a experiência docente no curso de História da UNICAP no primeiro e segundo semestre de 2024, refletindo sobre os desafios enfrentados e avanços conquistados no processo de forma- ção crítica dos estudantes, especialmente em um contexto em que o debate 203 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista sobre a colonialidade do saber e as epistemologias afro-diaspóricas é fre- quentemente marginalizado. O principal desafio enfrentado na docência para as relações étnico-ra- ciais na UNICAP é o de romper com as concepções eurocêntricas e monocul- turais que dominam o ensino histórico e cultural. Embora o debate acadêmico contemporâneo reconheça a centralidade das questões étnico-raciais na for- mação da nação brasileira, a prática pedagógica ainda enfrenta resistências, tanto dos estudantes quanto das estruturas institucionais que, muitas vezes, reproduzem padrões de exclusão e hierarquias raciais. O enfrentamento des- sas questões exige uma postura crítica e decolonial dos educadores, como sugere a obra organizada por Joaze Bernardino-Costa e Nelson Maldonado- Torres, “Decolonialidade e pensamento afrodiáspórico” (2020), que, através de vários autores, incluindo Nilma Lino Gomes, defende a decolonialidade como uma necessidade urgente para desmantelar a lógica da colonialidade persistente no campo educacional e social . Este texto se fundamenta em uma análise qualitativa baseada em relatos de experiência docente e nas impressões no aprendizado dos alunos, refle- tindo sobre a interação com os estudantes em aulas e atividades extracurri- culares voltadas para o debate racial. As discussões foram enriquecidas pelas contribuições de teóricos como Kabengele Munanga, no livro “Superando o racismo na escola” (2005), que destaca a importância da formação crítica para a superar as barreiras raciais e do racismo estrutural no Brasil, e pelo “Dicionário das relações étnico-raciais contemporâneas” (2023), organizado pela Flávia Rios, Marcio Santos e Alex Ratts, que, em seus verbetes temáticos, reforça a relevância das epistemologias negras e indígenas na redefinição do ensino no país. A metodologia de análise baseou-se na observação parti- cipativa durante os debates, atividades de sala de aula, visitas técnicas e aula de campo, além de projetos de extensão curricular, buscando compreender a receptividade e afinidade dos alunos às temáticas propostas, bem como as dificuldades e resistências enfrentadas. 204 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista A implementação de uma educação antirracista requer, além da sensibi- lização dos discentes, a construção de espaços de diálogo que problematizem os privilégios raciais e questionem as narrativas hegemônicas sobre a história do Brasil. As possíveis resistências encontradas no corpo discente da UNICAP, podem internalizar valores elitistas e eurocêntricos, e revela o quão enraizadas estão as visões que minimizam a importância da contribuição afro-brasileira e indígena para a sociedade. Contudo, essas resistências também servem como catalisadoras de uma reflexão crítica e mais aprofundada, essencial para a formação de uma consciência social e histórica mais inclusiva e plural . Este texto busca, portanto, não apenas relatar a prática docente sobre a temática, mas também propor reflexões sobre os desafios e as possibili- dades de se construir uma educação verdadeiramente comprometida com a equidade racial e a justiça social no contexto do ensino superior. Ao longo das próximas seções, serão discutidos exemplos concretos de atividades rea- lizadas, bem como suas recepções por parte dos alunos, traçando um pano- rama das dificuldades e dos avanços nessa área tão crucial para o futuro da educação brasileira. 1. POR UMA EDUCAÇÃO ÉTNICO-RACIAL: DA LEGISLAÇÃO À PRÁTICA A educação para as relações étnico-raciais é uma resposta necessária às profundas desigualdades raciais que historicamente estruturam a socie- dade brasileira. O país, com suas raízes no sistema escravocrata, perpetuou ao longo dos séculos uma hierarquia racial que marginalizou a população negra e indígena. Desde o período colonial até os dias atuais, as instituições educacionais foram instrumentalizadas para reproduzir essas desigualda- des, promovendo uma visão eurocêntrica da história e da cultura e igno- rando ou minimizando as contribuições das populações afrodescendentes e indígenas. Como aponta Nilma Lino Gomes, uma das maiores defensoras 205 Questões étnico-raciaise os caminhos para uma educação antirracista da educação antirracista no Brasil, “a questão racial permeia o tecido social e educativo de maneira estruturante, sendo crucial que a escola, enquanto espaço de formação crítica, atue ativamente para desmantelar essas opres- sões” (Gomes, 2020, p. 226). A importância da temática das relações étnico-raciais no campo edu- cacional está ligada à sua capacidade de promover a emancipação social. O objetivo não é apenas combater o racismo individual, mas também desafiar as estruturas racistas que persistem nas práticas institucionais e nas men- talidades. Nesse sentido, como afirma Gomes, o combate à colonialidade do saber é central para qualquer projeto educacional que busque equidade e justiça social. Isso se reflete em uma educação que reconhece e valoriza os saberes afro-brasileiros e indígenas, resgatando-os da marginalidade epis- temológica imposta pelo sistema colonial (Gomes, 2020, p. 227-228). O marco legislativo mais significativo na educação para as relações étnico-raciais no Brasil é a Lei 10.639, sancionada em 9 de janeiro de 2003, que tornou obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana nas escolas de educação básica. Essa legislação representou um avanço na luta contra o racismo estrutural, respondendo às demandas históricas dos movimentos negros por uma educação que não reproduzisse a exclusão e o silenciamento das contribuições afrodescendentes. A Lei 10.639/2003, no entanto, não surgiu de maneira espontânea; ela é fruto de décadas de ativismo. Em fins da década de setenta, momento da reor- ganização do movimento negro que havia caído na ilegalidade em virtude do Golpe Militar de 1964, o Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial trouxe, entre as suas reivindicações, a inclusão do Ensino da História da África nos parâmetros curriculares como uma de suas principais ban- deiras. Impulsionada pelas reivindicações dos movimentos sociais, somada a redemocratização do país, sobretudo a partir da Constituição de 1988, algu- mas Universidades Brasileiras incluíram a História da África como disciplina 206 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista eletiva e/ou obrigatória, particularmente aquelas que constituíram Núcleos de Estudos sobre a África e Estudos Afro-brasileiros. E, finalmente, a par- ticipação do Brasil na III Conferência Mundial contra o Racismo, realizada em Durban, na África do Sul, em 2001. Esse contexto internacional foi fun- damental para pressionar o governo brasileiro a implementar políticas mais incisivas no combate ao racismo, tanto na esfera pública quanto na educa- cional. A inclusão de conteúdos relacionados à história africana, à cultura afro-brasileira e à contribuição dos povos negros no currículo educacional representa não apenas uma reparação histórica, mas também um instrumento poderoso na construção de uma identidade nacional mais inclusiva e plural. Esse processo foi fortalecido pela implantação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais, em 2004 (Brasil, 2004). A partir de 2008, com a promulgação da Lei 11.645, essa obrigatoriedade foi ampliada para incluir também a história e cultura indígena, refletindo uma tentativa de abarcar, no currículo escolar, as diversidades étnicas e cultu- rais do Brasil. No entanto, a implementação dessas legislações ainda enfrenta desafios consideráveis. Em muitos casos, os conteúdos relacionados às rela- ções étnico-raciais são abordados de forma superficial ou meramente pontual, sem a profundidade necessária para provocar mudanças de perspectiva nos estudantes. Nilma Lino Gomes enfatiza que a formação de professores é um dos grandes gargalos nesse processo. A falta de preparo adequado do corpo docente para tratar das questões raciais e étnicas resulta em uma aplicação limitada da legislação, restringindo seu potencial transformador (Gomes, 2020, p. 235). A resistência à implementação plena dessas leis reflete, em parte, a herança colonial que continua a influenciar o sistema educacional brasileiro. As epistemologias brancas e eurocêntricas dominam a formação acadêmica, o que dificulta a valorização e a inclusão das perspectivas afrodiaspóricas 207 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista e indígenas no ensino (Faustino, 2023, p. 74). Embora a legislação avance em termos de diretrizes, sua efetividade depende de uma mudança estrutural mais ampla no campo educacional. Na Universidade Católica de Pernambuco, o ensino das relações étnico-raciais tem avançado, especialmente com a adoção de disciplinas específicas voltadas para essa temática. No curso de História, em particular, o debate sobre a história e cultura afro-brasileira e africana ganhou força a partir da implementação de disciplinas eletivas e obrigatórias que buscam abordar essas questões de maneira mais crítica e aprofundada. Tabela 1: implementações de disciplinas com a temática étnico-racial no curso de história da UNICAP. Ano/semestre de implementação Disciplina Obrigatória Disciplina Eletiva 2009.1 História da África Cultura Afro Brasileira Relações entre Portugal, África e Brasil História e Cultura Afro Brasileira e Indígena. 2012.1 História da África Cultura Afro Brasileira História e Cultura dos Povos Indígenas Mundo Atlântico: Relações entre Portugal, África e Brasil História e Cultura Afro Brasileira e Indígena. 2020.1 História da África Cultura Afro Brasileira Educação para as Re- lações Étnico-Raciais Mundo Atlântico: Relações entre Portugal, África e Brasil História e Cultura dos Povos Indígenas História e Cultura Afro Brasileira e Indígena História das Religiões e das Religio- sidades no Brasil 208 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista 2023.1 História da África Cultura Afro Brasileira Educação para as Re- lações Étnico-Raciais Mundo Atlântico: Relações entre Portugal, África e Brasil História e Cultura dos Povos Indígenas História das Religiões e das Religio- sidades no Brasil História e Cultura Afro Brasileira e Indígena Considerando os currículos implementados a partir do ano de 2009, no curso de História da Unicap, observou-se que há um acréscimo grada- tivo de disciplinas obrigatórias como História da África, História e Cultura dos Povos Indígenas e Educação para as Relações Étnico-raciais. Nas disci- plinas eletivas, constata-se o acréscimo de “Mundo Atlântico” na disciplina que anteriormente era intitulada “Relações entre Portugal, África e Brasil”, e a implementação da disciplina História das Religiões e das Religiosidades no Brasil, a partir de 2020. Em relação aos esforços institucionais, é importante mencionar dois momentos: 1) a criação do Núcleo de Estudos Afrobrasileiros e Indígenas – Neabi/Unicap, vinculado à Pró-reitoria Acadêmica, cujo objetivo abarca arti- culação e promoção de atividades de ensino, pesquisa e extensão, de caráter interdisciplinar, tendo em vista a avaliação, a implementação e o acompa- nhamento das Diretrizes Curriculares para a Educação e Relações Étnico- raciais e Ensino de História da África e da Cultura Afrobrasileira e Indígena; 2) Publicação da Portaria 116/2020, que instituiu o Ano da Consciência Negra na Unicap 2020/2021, bem como determinou a introdução de Educação para as Relações Étnico-raciais como componente curricular em todos os cursos de graduação. O curso de História promoveu diversos eventos para atender às exigências da Portaria 116/2020, tais como: aula inaugural 2021.1, intitu- lada “O dever da história antirracista”, ministrada pela professora Ynaê Lopes dos Santos, e o XIII Encontro Regional Nordeste de História Oral: práticas antirracistas e narrativas inclusivas, realizado em 2021.2, com a participação de pesquisadores e pesquisadoras de diversas regiões do Brasil . 209 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista A UNICAP, como instituição de ensino superior,modo, tem origem nas primeiras civilizações humanas como o antigo Egito. Citando o pensador senegalês: o fruto moral da sua civilização está para ser contado entre os bens do mundo negro. Ao invés de se apresentar à história como um devedor insolvente, este mundo negro é o pró- prio iniciador da civilização ocidental ostentada hoje diante de nossos olhos (Diop apud Nascimento, 1980, p. 249). Nascimento didaticamente exemplificou a relevância da perspectiva afrocêntrica para seus irmãos e irmãs amefricanas. Não escapou a Abdias Nascimento o entendimento de que a superação do racismo na sociedade brasileira passava pela melhora da situação política, econômica e social dos afro-brasileiros e esta demandava a criação de instituições africanas independentes. E não apenas isso. Para o pensador Nascimento (1980, p. 275), “o Quilombismo é um movimento político dos negros brasileiros, objetivando a implantação de um Estado Nacional Quilombista, inspirado na República dos Palmares [...] e em outros quilombos que existiram e existem no país”. Não se tratava, então, apenas da melhoria das condições de vida dos afro-brasileiros e sim de uma transformação das estruturas sociais, polí- ticas, econômicas e culturais da sociedade brasileira (Nascimento, 1980, p. 270). Como os africano-brasileiros sempre foram a maioria da população, Nascimento entendia que nada mais natural que o Estado brasileiro fosse orientado pela cultura majoritária. Deste fato decorria, para o pensador quilom- bista, que o poder exercido pelos negros seria, necessariamente, democrático. Como não poderia deixar de ser, dado o exposto até o momento, o processo educacional teria um papel importante na recuperação de nossa memória bem como na construção da sociedade quilombista. Nas palavras de Abdias do Nascimento (1980, p. 276): “a educação e o ensino em todos os graus – elementar, médio e superior – serão completamente gratuitos 22 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista e abertos sem distinção a todos os membros da sociedade quilombista”. Sobre a herança cultura africana, ele afirma que “a história da África, das culturas, das civilizações e artes africanas terão um lugar eminente nos currículos escolares. Criar uma Universidade Afro-Brasileira é uma necessidade dentro do programa quilombista” (Nascimento, 1980, p. 276). Diante destas reflexões, este atrevido autor cunhou o conceito de Educação Quilombista que defini da seguinte forma: [...] um processo de transmissão dos valores, crenças, cos- tumes e conhecimentos para que os afro-brasileiros pos- sam viver de maneira adequada nesta sociedade garantindo, assim, a continuidade do seu povo e de sua cultura. Esta educação deve ser inspirada na experiência dos quilom- bos, visto que estas sociedades permitiram aos africanos existirem nesta terra sem renunciarem a sua africanidade, além de serem abertas aos indígenas e brancos excluídos do sistema colonial. Assim como os quilombos se constitu- íram como espaços de construção da identidade afro-bra- sileira e de resistência à aculturação europeia a educação quilombista, hoje, deve ser concebida como um processo de formação do amefricano do Brasil e de resistência ao his- toricamente constituído modelo eugênico e eurocêntrico de educação com vistas à construção da sociedade inter- cultural quilombista (Benedicto, 2022, p. 2). Este modelo educacional permitirá a criação das condições necessárias para que as amefricanas do Brasil valorizem, preservem e transmitam sua herança cultural, visto que esta educação é inspirada na experiência dos quilombos que permitiram aos africanos existirem nesta terra sem renunciarem a sua africanidade. Assim como os quilombos se constituíram como espaços de construção da identidade africana e de resistência à aculturação europeia, a educação quilombista deve ser concebida como um processo de formação do amefricano do Brasil e de resistência 23 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista ao historicamente constituído modelo eugênico e eurocêntrico de educação com vistas à construção da sociedade intercultural quilombista. Devemos, por fim, ressaltar que a Educação Quilombista permitirá ao conjunto dos brasileiros conhecer de modo adequado a cultura africana e afro-brasileira. Neste sentido, este modelo educacional cumprirá um papel fundamental na superação do eurocentrismo, visto que devolve o saber de origem africana aos seus descendentes. Desse modo, aqueles e aquelas que tiverem interesse em conhecer e/ou aprofundar os estudos sobre as tra- dições amefricanas aprenderão que não devem estudar o que os descenden- tes de europeus pensam sobre os africanos-brasileiros e africanos, mas sim estudar em instituições quilombistas para aprender o que os amefricanos do Brasil têm a dizer sobre suas tradições. 4. CONDIÇÕES PARA O DESENVOLVIMENTO DA EDUCAÇÃO QUILOMBISTA Penso que, para viabilizar o modelo educacional quilombista, é neces- sário desenvolver uma pedagogia e um currículo afrocêntricos bem como preparar os professores para ministrar os conteúdos necessários à formação das nossas crianças e jovens. O texto de Wade Nobles, The Infusion of Africa e African-American Content: A Question of Content and Intent, é uma importante referência sobre o currículo afrocêntrico. Nele, Nobles define o currículo como “um curso de estudo cujo propósito é (1) sistematicamente guiar a transmissão da informação e conhecimento, (2) reforçar o desejo de aprender/conhecer e (3) encorajar a internalização do comportamento e/ou atitudes consistentes com o conhecimento aprendido” (Nobles, 1995, p. 9-10). O pensador utiliza uma metáfora que considero exemplar para a reflexão aqui realizada: cul- tura, portanto, é a dimensão invisível de todo o currículo. Assim, se natureza da água (i.e, salgada, fresca ou poluída) influencia a realidade (i.e. a sobre- vivência) de tipos particulares de peixes, assim diferentes tipos de sistemas 24 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista culturais influenciam a realidade de grupos particulares de pessoas (Nobles, 1995, p. 6). No que diz respeito à grade curricular, o texto do filósofo Renato Noguera, Afrocentricidade e Educação: os princípios gerais de um currículo afrocentrado, oferece-nos um bom ponto de partida para pensar um currículo inspirado nos princípios e valores africanos. Nele podemos ler : Quais seriam os princípios ou parâmetros para um currículo afrocentrado? Asante escreveu uma série sucinta de ele- mentos de organização do currículo denominado Princípios Asante para o currículo afrocentrado, o artigo conta com 10 princípios: 10) Você e sua comunidade; 20) Bem estar e biolo- gia; 30) Tradição e Inovação; 40) Expressão e criação artística; 50) Localização no tempo e no espaço; 60) Produção e distri- buição; 70) Poder e autoridade; 80) Tecnologia e ciência; 90) Escolhas e consequências; 100) Mundo e sociedade. Partir da leitura desses elementos constitutivos de cada princípio e uma articulação com Nguzo Saba torna possível uma explo- ração afrocentrada da área de fundamentos da educação, isto é, podemos analisar os elementos filosóficos, históri- cos, psicológicos e sociológicos numa perspectiva africana para compor o campo multifacetado da educação. Portanto, uma leitura cuidadosa de Nguzo Saba e os Princípios Asante para o currículo afrocentrado não deixa dúvidas, Karenga e Asante concordam que a validade do conhecimento é medida pela sua potencialidade em atender a comunidade, integrar as pessoas e proporcionar uma vida sem oposição com o meio ambiente (Noguera, 2010). Embora Noguera não esteja pensando em instituições quilombistas, seu trabalho apresenta uma valiosa reflexão sobre como o currículo brasileiro pode ser afrocentrado. Sua análise reconhece que o “sistema educacional hegemônico é permeado pelos valores que localizam a natureza como objeto, o conhecimento como arma e propriedade,diferencia-se de outras universidades por sua tradição humanista, que proporciona um ambiente relativamente propício para discussões sobre justiça social e direitos huma- nos. No entanto, mesmo nesse contexto, a introdução de disciplinas voltadas para a educação étnico-racial enfrenta desafios. Quando essas disciplinas são oferecidas como eletivas, nem sempre atraem um número significativo de alunos, evidenciando que ainda há uma resistência ou falta de interesse em aprofundar o conhecimento sobre as questões raciais. Essa situação, contudo, contrasta com os momentos em que o tema é tratado em disciplinas obrigatórias, como no curso de História, onde os debates sobre a colonia- lidade, a escravidão e as heranças culturais afro-brasileiras são integradas ao currículo. No curso de História da UNICAP, o desafio é duplo: por um lado, há a necessidade de fornecer uma formação sólida sobre as questões raciais para futuros historiadores; por outro, mesmo com os avanços, ainda é preciso superar as resistências internas de alguns estudantes e parte da própria estrutura acadêmica, que, em alguns casos, não considera as epistemologias negras e indígenas como centrais no estudo da história. A partir da experi- ência docente, percebe-se que os debates em sala de aula são muitas vezes permeados por preconceitos sutis e por uma visão limitada sobre o impacto das contribuições afrodescendentes na formação da sociedade brasileira. Contudo, à medida que os alunos se envolvem nas discussões e atividades propostas, torna-se evidente a importância desse conteúdo para a construção de uma nova percepção histórica e social . As atividades práticas, como debates, estudos de caso e análises de fon- tes históricas sobre a escravidão e a resistência negra no Brasil, têm desem- penhado um papel fundamental na sensibilização dos estudantes. A partir dessas práticas, observa-se uma mudança gradual na forma como os alunos compreendem o papel dos povos negros e indígenas na construção do país. 210 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista Assim, a disciplina temática aplicada no curso de História da UNICAP não se limita a transmitir conhecimento, mas também busca provocar uma reflexão crítica sobre as estruturas de poder e as narrativas históricas que privilegiam determinados grupos em detrimento de outros . A implementação da educação étnico-racial na UNICAP, assim como em outras instituições, ainda está em processo de consolidação. Embora as diretrizes legais existam, a efetividade de sua aplicação depende da dis- posição institucional e docente para transformar o currículo e as práticas pedagógicas. A experiência docente no curso de História revela que, apesar das dificuldades, há um potencial significativo na abordagem dessas temáti- cas, principalmente quando se estabelecem conexões com a realidade social e política do Brasil contemporâneo. Portanto, a educação para as relações étnico-raciais na UNICAP repre- senta um esforço contínuo para superar barreiras históricas impostas pela colonialidade. À medida que a universidade expande suas ações afirmativas e fortalece o ensino das questões raciais, abre-se espaço para uma formação acadêmica mais crítica e inclusiva, capaz de promover não apenas o conhe- cimento, mas também a transformação social. 2. RELATOS DE EXPERIÊNCIA DOCENTE No contexto da disciplina “Educação para as Relações Étnico-Raciais” (HIS1159) oferecida no curso de História da UNICAP, a experiência docente revela o impacto significativo que um planejamento pedagógico bem estru- turado e as atividades práticas têm sobre os alunos, especialmente no que se refere à conscientização e ao engajamento com as temáticas étnico-raciais. Abaixo, destacam-se os principais elementos dessa experiência, abordando os planos de disciplina, os diálogos em sala de aula, os desafios enfrentados, além das atividades e projetos desenvolvidos pelos estudantes. 211 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista A disciplina HIS1159, oferecida no primeiro semestre de 2024, e minis- trada pelo professor Leandro Nascimento de Souza, foi concebida para inte- grar os principais debates sobre as desigualdades étnico-raciais no Brasil e suas implicações na educação. Com uma carga horária de 75 horas e um enfoque teórico e prático, o curso inclui tanto discussões em sala de aula quanto atividades extensionistas e saídas de campo. A proposta, baseada na percepção “não há história do Brasil sem racismo” (Santos, 2022, p. 16), visa garantir que os alunos compreendam as dimensões históricas e con- temporâneas das relações étnico-raciais, preparando-os para atuar como educadores conscientes das questões sociais e políticas envolvidas. O plano de ensino direciona questões que cobrem desde as Leis 10.639/2003 e 11.645/2008 até a educação quilombola e indígena. Esse pla- nejamento é crucial para a organização das aulas e atividades, oferecendo uma visão ampla das temáticas abordadas ao longo do semestre. Os alu- nos são incentivados a refletir sobre a aplicação prática desses conteúdos, tanto em suas futuras carreiras como professores e historiadores quanto no desenvolvimento de uma consciência crítica sobre as desigualdades raciais no Brasil . As aulas expositivo-dialogadas constituem a espinha dorsal do curso, promovendo um espaço de diálogo contínuo entre os alunos e o professor. Uma das principais estratégias adotadas é a criação de debates a partir de textos de referência, como os trabalhos de Ynaê Lopes sobre o racismo brasileiro e de Nilma Lino Gomes sobre educação antirracista. Na maioria dos casos, fizemos uso da sala de aula invertida, que é um método de aprendi- zado no qual o conteúdo é analisado pelo estudante fora do ambiente escolar, através da leitura do texto de referência e apresentando os pontos analisados em sala, no formato de um debate. Esse método permite que o estudante deixe uma postura passiva de ouvinte e assuma o papel de protagonista do seu aprendizado. Esses diálogos, mediados e complementados pelo professor, 212 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista permitem aos estudantes refletirem sobre suas próprias percepções e pre- conceitos, desafiando-os a reconsiderar as narrativas tradicionais da história brasileira que negligenciam as contribuições das populações afro-brasileiras e indígenas. Por exemplo, no debate sobre o conceito de racismo estrutural, muitos alunos expressaram inicialmente uma compreensão limitada sobre como o racismo permeia as instituições e práticas sociais. Entretanto, à medida que o debate avançava e os conceitos eram aprofundados, foi possível observar uma mudança significativa na percepção dos alunos. Eles pas- saram a reconhecer que o racismo não é apenas uma questão individual, mas uma estrutura de poder que molda oportunidades e limita o acesso de certos grupos a direitos fundamentais, como a educação e o trabalho (Vinuto, 2023, p. 305). A participação dos alunos nas atividades propostas foi variada, refle- tindo tanto o interesse crescente pela temática quanto as resistências iniciais ao conteúdo. Alguns alunos, principalmente aqueles que ainda não haviam tido contato com as questões étnico-raciais de forma crítica, demonstraram certa resistência no início do curso. Isso era visível em suas reações durante os primeiros debates, quando outros traziam argumentos sobre a importância da educação para as relações étnico-raciais, principalmente através de expe- riências pessoais no ensino básico, o que enriqueceu o debate . Contudo, atividades práticas como a aula invertida e a análise de estu- dos de caso proporcionaram oportunidades para que esses alunos pudessem explorar mais profundamente as consequências históricas do racismo. Além disso, inicialmente, a visita ao Núcleo de Estudos Afrobrasileiros e Indígenas (NEABI) da UNICAP foi uma experiência transformadora para muitos, ampliando suas percepções sobre o papele, o ser humano como ser que 25 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista “controla” e exige que tudo gravite ao seu redor” (Noguera, 2010). Desse modo, ele entende que, em uma educação afrocentrada, é preciso alinhavar e articular os Sete Princípios da Ética Africana5 ao longo de toda extensão curricular. Isso significa que o ensino sobre os conhecimentos e tradições africanas não deve ser restrito ao mês de novembro ou a um bimestre espo- rádico. Sobre este tópico, Wade Nobles corretamente afirma que: Cultura não é simplesmente uma compilação de heróis étni- cos e feriados. Cultura também não é simplesmente consci- ência sobre a música e dança dos outros povos”. [...] Nós pen- samos como se cultura na educação significasse que tudo o que temos que fazer é tornar as pessoas “culturalmente sensíveis” para o fato de que os povos negros gostam de dan- çar ou que gostam de música ou que os irmãos têm aquelas grandes caixas profundas ou que a música e a dança são uma parte essencial da estética cultural dos povos negros. Infundir o conteúdo não deve significar que nós, como educadores, devemos estar satisfeitos em simplesmente colocar no cur- rículo heróis afro-americanos e feriados como se nós esti- véssemos temperando comida da alma, ao invés de cuidar da experiência educacional das crianças distintas cultural- mente. Quando fazemos isso nós nos engamos acreditando que tratamos da questão da cultura em termos de prática educacional ou experiência (Nobles, 1995 p. 7). A provocação de Nobles nos leva a pensar sobre o desenvolvimento de uma Pedagogia Afrocentrada. As reflexões desenvolvidas por Agyei Akoto podem ser de grande valia para elaboração da Pedagogia Quilombista. Em seu texto Notes on an Afrikan-Centered Pedagogy, ele escreve: 5 A filosofia Kawaida foi idealizada pelo pensador afro-americano Maulana Ron Karenga. Ela é ins- pirada nos Nguzo Saba, os sete princípios da ética africana, a saber: 1. Centralidade da comuni- dade; 2. Respeito pela tradição; 3. Alto nível de espiritualidade e preocupação ética; 4. Harmonia com a natureza; 5. A sociabilidade do indivíduo; 6. Veneração dos ancestrais e 7. Unidade do ser. 26 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista Uma pedagogia afrocentrada é uma pedagogia derivada da dinâmica contínua da história e cultura africana. É um esforço para estimular e alimentar a consciência crítica e cria- tiva e para inculcar, através da aplicação e estudo, um com- promisso consciente e firme para a reconstrução da verda- deira nacionalidade africana, e a restauração da continuidade da história e cultura africana. Além disso, ela representa um esforço para criar uma personalidade africana dinâmica e liberada. Esta personalidade é realizada pela interação entre mwalimu (professor) e mwanafunzi (aluno) de um modo que reflete suas africanidades fundamentais e simultanea- mente transforma seus ambientes em um modelo de liber- dade e humanismo. O indivíduo que assume o papel de mwalimu (professor) deve não somente estar envolvido no estudo da cultura, mas deve estar envolvido de modo concreto e contínuo com o avanço cultural e ou político dos interesses dos povos africanos. O mwalimu precede os seus/suas estudantes (wanafunzi) como um representante do conjunto da cultura. Aos Walimu (professores) são confiados o objetivo de inculcar os valores essenciais da cultura e, portanto, jogam um papel essencial na garantia de sua continuação. O mwalimu representa, de um lado, as limitações da tradição e da ordem existente enquanto, de outro lado, os estudantes (mwanafunzi) representa a nova ordem ou as potencialidades ilimitadas. O mwalimu como representante da ordem vigente com sua sabedoria acumu- lada da tradição deve procurar comunicá-la de um modo que inspire e abasteça de energia nova e ilimitada o potencial do estudante. O mwanafunzi deve ser motivado para acolher aquela sabedoria como um combustível para a longa jornada e não como um fardo. Se esta sabedoria, tesouro cultural e herança da nação, são percebidos como algo opressivo, então o mwalimu e a nação falharam e a continuidade da cul- tura nacional está em risco. “O mwalimu é o canal essencial e a conexão entre a tradição e o potencial da nação” (Akoto, 1998, p. 325-326). 27 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista Percebemos, pela citação acima, o quão fundamental é o papel do pro- fessor no processo de criação de uma personalidade africana dinâmica, forte e liberada. Personalidade esta que estará, sem sombra de dúvidas, consciente e comprometida com a reconstrução da nacionalidade e continuidade his- tórica africana. As reflexões de Akoto também nos mostram que é urgente transformar em referência para nossos formadores, professores como o maranhense Hemetério José dos Santos (1858-1939), que, no auge da política de embran- quecimento, lecionou na Escola Normal do Distrito Federal, no Colégio Pedro II e no Colégio Militar do Rio de Janeiro; Antonieta de Barros (1901-1952), cata- rinense, professora de Literatura e Português e fundadora do Curso Particular Antonieta de Barros para população carente; o paulista Francisco Lucrécio (1909-2001) – um dos idealizadores da Escola de Alfabetização da Frente Negra Brasileira; e o mineiro Ironides Rodrigues (1923-1987), professor de alfa- betização de adultos no Teatro Experimental do Negro. É preciso, também, enfatizar que nossos walimu devem ter uma sólida formação científica nos conhecimentos africanos. Cheikh Anta Diop nos indica o caminho para essa formação ao fazer a seguinte advertência: “a história dos negros africanos permanecerá suspensa no ar e não poderá ser escrita corretamente até os historiadores ousarem conectá-la com a história do Egito” (Diop, 1974, p. xiv)6. O pensador senegalês continuou enfaticamente: “em particular, o estudo das linguagens, instituições, não pode ser tratado adequa- damente; em uma palavra, será impossível construir humanidades africanas, 6 O Professor Hemetério, no auge da moderna falsificação da história (embranquecimento dos antigos egípcios – como denomina Cheikh Anta Diop –, escreveu o artigo Em Defesa de uma Raça, publicado no jornal O Imparcial de 11 de novembro1913. Nele podemos ler: enveredamo- -nos pelos tempos mais longínquos e, desde 4000 anos antes de Cristo o sempre legendário Nilo nos mostrou a mais antiga civilização egípcia – fomentada por exército regulares de negros, leo- ninamente ínclitos nos combates, fundado com essa coragem indomada, a primeira civilização no Mediterrâneo, fonte da civilização grega, gérmen de todas as civilizações latinas , consolo, tran- quilidade e regalo da vida do planeta – indústria, arte na sua concepção mais elevada e conforto de todo homem de criação. (A adequação ao novo acordo ortográfico foi realizada pelo autor). 28 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista um corpo de ciências africanas, enquanto esta relação não for legitimada” (Diop, 1974, p. xiv). Para encerrar esta seção, vale dizer algumas palavras sobre a importân- cia de controlarmos nossos sistemas educacionais. Para tanto, sabiamente, Jacob Carruthers afirma que “para conseguir o controle da educação africana, precisamos olhar a educação no antigo Egito porque é lá que encontramos dados primários dos próprios africanos” (Carruthers, 1999, p. 257). O con- trole a que nos referimos não diz respeito apenas ao controle da pedagogia, do currículo, da formação de docentes e dos espaços físicos e sua disposição. Temos que recuperar o controle das nossas mentes, porque é lá que a bata- lha está sendo travada. Como diz a nossa mais velha Nah Dove: “A batalha pelo controle da mente é conseqüentemente central nas lutas tanto pela dominação/dominadores quanto libertação/libertadores” (Dove, 1993, p. 8). CONSIDERAÇÕES FINAIS Para finalizar este capítulo, é importante apontar alguns caminhos para a viabilização da Educação Quilombista.O livro da professora Nah Dove, The Afrocentric School: A Blueprint, é uma excelente referência para orientar todos aqueles e aquelas que estão interessadas em desenvolver um modelo educacional inspirado em nossas tradições. Dove nos apresenta, ao longo de sua obra, diversos planos de aula para as diferentes faixas etárias para que os nossos mais jovens cresçam e se tornem africanas e africanos conscientes de quem são, conscientes de quem são sejam seus opressores e do seu papel em nossa família e de nosso processo de libertação. Esta educação é enraizada na comunidade. Nas palavras de Nah Dove : 29 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista No final de cada ano, à medida que cada criança tem um determinado padrão de alfabetização moldado por sua com- preensão e desempenho educacional em cada uma das dis- ciplinas, um certificado especial será concedido para regis- trar a conclusão, a família e os cuidadores serão convidados a comemorar o sucesso da criança. Onde quer que estejamos criando a escola, tomaremos nota e faremos o possível para incluir crianças que podem ser extremamente pobres e / ou não se deslocam facilmente (Dove, 2021, p. 55-56).7 Outro ponto importante a destacar é que, a despeito de nosso enten- dimento de que a escola pública não atende às necessidades dos amefrica- nos e amefricanas do Brasil, não podemos ignorar o fato de que a maioria desses estudantes estuda na rede pública. Além do mais, o modelo quilom- bista aqui proposto não existe. Desse modo, temos que pensar no trabalho que pode ser feito em relação às nossas crianças e jovens que estudam na escola pública, até porque pagamos altos impostos por este péssimo sistema educacional. Sobre este tópico, recomendo os trabalhos da professora da Rede Municipal de Salvador, Taisa de Sousa Ferreira. Esta brilhante intelectual e docente tem contribuído para afrocentrar as experiências educacionais no país. Em seu texto, escrito em conjunto com a professora Jane Rios, lê-se: Salientamos que construir experiências em salas de aula da Educação Básica e da universidade que articulem dife- rentes formas de existir e resistir configura-se como um movi- mento de produção de saberes, o qual mobiliza as demandas insurgentes do cotidiano escolar e fissura propostas epistêmi- cas e metodológicas hegemônicas que atravessam os currícu- los escolares e, consequentemente, seus projetos e práticas pedagógicas (Ferreira; Rios, 2024, p. 34). 7 A tradução é nossa. 30 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista As reflexões de Ferreira e Rios dialogam com a educadora Carol D. Lee. Em seu artigo African Centered Pedagogy: Complexities e Possibilities, a autora avalia as possibilidades da implementação de uma pedagogia afrocentrada nas escolas públicas dos Estados Unidos, de modo a atender satisfatoriamente às necessidades educacionais dos afro-estadunidenses. Lee escreve: Dado tais pré-requisitos é difícil acreditar que a escola pública em um país democrático e diverso etnicamente como os Estados Unidos possa assumir a responsabilidade de libertar qualquer grupo de pessoas. Eu acredito que é possível fazer o que segue nas escolas públicas: 1. Estimular o desenvolvimento das habilidades em leitura e escrita, matemática, humanidades e tecnologias que são necessárias para adquirir autossuficiência econômica na sociedade; 2. Ensinar conhecimentos de cidadania baseados em um entendimento realístico e completo do sistema político, e sustentar estes conhecimentos promovendo habilidades de questionamento, pensamento crítico e ensinando valores democráticos; 3. Apresentar uma visão geral da nação, do continente, e do mundo que represente adequadamente as contribuições de todos os grupos étnicos no armazém do conhecimento humano . Mesmo se as escolas públicas realizassem todas essas coi- sas, as condições necessárias para os afro-estadunidenses adquirir orgulho étnico, autossuficiência, igualdade, riqueza e poder não seriam satisfeitas. Para os africanos nos Estados Unidos obter tais objetivos, uma visão de mundo cultural e política coletiva, embora não monolítica, é necessária. A escola pública não comporta esta visão de mundo (Lee, 1998, p. 308).8 8 A tradução é nossa 31 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista A educadora apresenta temas importantes para nossa reflexão. No entanto, embora fundamentais e exequíveis, não podemos perder de vista que estes objetivos devem estar articulados com nosso objetivo principal. Como bem coloca Carol Lee: “escolas independentes afro-estadunidenses e pesquisadores educacionais afrocentrados representam potencialmente uma aliança ideal para o trabalho colaborativo em direção à transformação da escola pública” (Lee, 1998. p. 308). O objetivo principal é o desenvolvimento de escolas quilombistas independentes. Somente após o seu desenvolvimento e a colaboração dos pesquisadores educacionais afrocentrados poderemos transformar a escola pública em instituições verdadeiramente interculturais. REFERÊNCIAS AKOTO, Agyei. Notes on an Afrikan-Centered Pedagogy. In: Mwalimu Shujaa (org.). Too Much Schooling too little education: a Paradox of Black Life in White Societies. Trenton: Africa World Press, 1998, p. 319-337. ASANTE, Molefi Kete. Afrocentricidade: Notas sobre uma posição disciplinar. In: NASCIMENTO, Elisa L. (org.). Afrocentricidade uma abordagem epistemológica inovadora. São Paulo: Selo Negro, 2009, p. 93-110. BENEDICTO, Ricardo M. A Herança Cultural dos Africano-Brasileiros e a Educação Quilombista. In: RABINOVICH, Elaine Pedreira; SOUZA, Cinthia Barreto Santos; BARBOSA, Júlio Cézar; AMORIM, Rita da Cruz; ALMEIDA, Carla Verônica Albuquerque; NEVES, Sinara Dantas. (orgs.). 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Os brancos europeus escravizaram e quase que aniquilaram a popu- lação indígena brasileira. Com intuito de implementar novos processos produtivos visando a atin- gir o monopólio do comércio do açúcar para a Europa, não havendo indígenas suficientes para dar conta da empreitada e sabendo do grande custo econô- mico para trazer europeus para trabalhar em grandes plantações, elegeu-se o comércio transatlântico de escravizados e a escravização de negros oriun- dos da África como meio de atingir o ousado objetivo. Os indígenas, portanto, não eram considerados como pessoas que teriam o direito de viver a seu modo e nas suas terras. Os negros, tidos como meros insumos da cadeia produtiva, não eram considerados como pessoas, podendo ser comercializados, dessocializados e explorados. Perceptível, desde já, é a constituição de uma falsa hierarquia entre os grupos raciais mencionados. O racismo, ao longo do tempo, apresentou- -se como segregacionista, quando a suposta superioridade estava baseada em diferenças biológicas ou como assimilacionista, quando a alegada superio- ridade estava calcada em diferenças de natureza cultural e comportamental. A tomada das terras, a aniquilação, a comercialização e a escravização do passado estão presentes em nossos dias na forma de racismo, de pre- conceito racial, de estereótipo racial, de viés racial, de discriminação racial e de desigualdade racial. E esses fenômenos raciais influenciam nos julga- mentos e nas tomadas de decisão relativas às pessoas indígenas e às pes- soas negras. Assim, a ideia de casta, ou seja, de permanência de um grupo em posição dominante e de outros em posição de subordinação não se altera 36 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista no ritmo necessário. Daí porque, quando se fala em privilégio branco, não se trata de figura de linguagem no que diz respeito à vida diária no Brasil, pois, de acordo com Eddo-Lodge (2018), ele seria a impossibilidade de conviver com os efeitos negativos do racismo. Uma vez que os grupos raciais referidos convivem no mesmo Estado, havendo subrepresentação de negros e de indígenas nos espaços de poder, não há falta de dados sobre a correspondente falta de efetividade de direitos fundamentais sociais, culturais, políticos e econômicos dos subrepresentados. O antirracismo, em síntese, consiste no enfrentamento tanto do racismo segregacionista quanto do racismo assimilacionista, bem como dos demais fenômenos raciais elencados acima. Ele age diretamente contra a falsa hie- rarquia de raças e culturas e contra os efeitos sociais, políticos, econômicos, culturais e jurídicos decorrentes das discriminações raciais. O antirracismo, faltando poucos meses para findar a década internacio- nal dos afrodescendentes, iniciada em 01.01.2015, ainda está perdendo essa demanda no solo brasileiro. A década supracitada, que tem como pilares o reconhecimento, a justiça e o desenvolvimento, está, na realidade, marcada pela desvalorização, discriminação e desigualdade. Apesar de largamente se assumir que há forte presença do racismo estrutural, não se estabeleceu o antirracismo como uma força estruturada, amplamente disseminada, eficiente e eficaz. Enquanto se entende que as dinâmicas, composições e valores de instituições públicas e privadas perpe- tuam o racismo institucional, o racismo no seio das instituições não parece ser efetivamente combatido. A Constituição brasileira mais do que amparar, impõe o antirracismo porque há objetivos fundamentais republicanos (art. 3º, I, II, III, IV), há nor- mas referentes aos direitos culturais (art. 210, §2º, art. 215, §1º e art. 216, II), há normas referentes à ordem econômica (art. 170, VII) e há normas referentes à salvaguarda de crianças, de adolescentes e de jovens de discriminações 37 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista e de violências (art. 227), bem como normas referentes ao ensino da história (art. 242, §1º). A questão, portanto, não é de previsão normativa; é de efeti- vação de direitos. Nessa linha, é oportuno mencionar que José Bonifácio de Andrada e Silva, em uma representação que apresentaria à dissolvida Assembleia Constituinte de 1823, estipulara a abolição da escravatura negra, acrescida do alcance de terras para os ex-escravizados, como forma de garantir seu sus- tento e enfrentar o problema do latifúndio no Brasil. Ele tomava esse processo como informado pela justiça e pela necessidade de desenvolvimento nacional. Transcorridos mais de dois séculos, ainda é necessário demonstrar que reduzir as desigualdades raciais é um passo indispensável para o desenvolvimento do Brasil . O fato é que a Constituição de 1824 manteve a escravização, e a de 1891, a despeito da proximidade com a abolição, ocorrida em 1888, não previu nenhuma forma de reparação. Grave ainda foi o fato de haver duas consti- tuições, a de 1934 e a de 1937, com grande influência da eugenia. Como sustentou Pontes de Miranda (1945, p. 491), o homem com o qual se lida quando se escreve uma Constituição é um “homem histórico”. Esse homem seria histórico no sentido de que as suas instituições provêm do passado, repletas de preconceitos e de julgamentos de valor . Pontes de Miranda (1945, p. 492) é enfático ao abordar o conceito psi- cológico de igualdade: Se tais enunciados repugnam algumas pessoas, ou se alguns pensam que o Negro não é “homem”, é que todo um edifício de preconceitos, de julgamentos de valor, se interpõe entre elas e as realidades. Para que se declare a igualdade, é pre- ciso, portanto, duplo trabalho: um negativo, o de destruição dos julgamentos negativos; outro, positivo, o de substituição desses julgamentos de valor por outros julgamentos, mais perto dos “fatos”, que assegurem a igualdade. 38 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista Processos de justiça de transição devem ocorrer quando parte da popu- lação de determinado Estado sofre violação de direitos por um longo perí- odo. O primeiro estágio desse processo seria a identificação das pessoas que tiveram seus direitos violados e daquelas que os violaram, reparando os direitos do primeiro grupo e, se possível, punir o segundo. O segundo estágio envolve a análise das instituições, com o intuitode reformá-las ou de extingui-las. O terceiro estágio seria a promoção da reconciliação, podendo esse precedida ou não do pedido de perdão . No Brasil, não houve, e não há indícios de que haverá, um verdadeiro processo de justiça de transição. Ao contrário, a abolição foi seguida pela disseminação da falsa ideia de que o Brasil é um cenário no qual todas as raças viviam em exemplar harmonia. O extremo dessa inverdade se deu quando a Organização das Nações Unidas instituiu a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, constituindo um inédito comitê de monitoramento. Entre 1965 e 1995, o Brasil apresen- tou sucessivos relatórios afirmando não haver desigualdade racial em seu território. Em solo pátrio, predomina a ideia de que a previsão em lei seja bas- tante para que comportamentos considerados como corretos e justos sejam levados a efeito. Nesse sentido, bastaria haver lei que estabeleça o que deve ser feito (mandato), o que não pode ser feito (proibição) ou que estimule algo que se deseja que seja feito (estímulo). Essa crença na força da coerção desconsidera estímulos racionais não são suficientes para garantir que comportamentos sejam colocados em prática ou evitados. Na era da utilização de nudge (ou paternalismo liber- tário), bem com a de políticas baseadas em evidências, essa crença não está alinhada com a realidade. Isso é evidenciado pelo grande número de casos de racismo, com o fato de nenhum artigo do estatuto da igualdade racial ser cumprido, de Estados, Municípios, União e Mantenedoras de estabeleci- 39 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista mentos de ensino privado descumprirem a obrigação de ensinarem as cultu- ras e as histórias afro-brasileiras e indígenas na rede básica de ensino. Além disso, a falta de regulamentação do parágrafo 3º do artigo do 39 do estatuto mencionado, juntamente com a informação de que a adesão ao sistema nacio- nal de promoção de igualdade racial é de aproximadamente 2% dos 5570 municípios brasileiros, impede a implementação de um trabalho baseado na intergovernabilidade e na intersetorialidade. Nesse panorama, segue sendo relevante discutir as relações étnico- -raciais e o antirracismo, bem como sobre a obrigação constitucional de se planejar e de se ter foco na eficiência e na eficácia. Dessarte, traz-se aqui uma experiência vivenciada com o esforço para que uma instituição pública fiscalizasse a implementação da norma prevista no artigo 26-A da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional no âmbito do Estado do Rio Grande do Sul, servindo de referencial para que essa iniciativa seja replicada em outras unidades da Federação. Oportuno destacar que a implementação visada tem forte possibilidade de alterar as produções de subjetividade, uma vez que a escola é o primeiro espaço público no qual se convive, se disputa, se aprende e se ensina, em con- texto diferente dos lares de cada um . 1. CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES Como consequência da Conferência de Durban, em 2003, foi criada a Secretaria de Promoção de Políticas de Igualdade Racial (SEPPIR) e ins- tituído o artigo 26-A da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) por meio da lei 10639/2003. Posteriormente, esse artigo foi alterado pela lei 1.0645/2008. Embora a norma que torna obrigatório o ensino das histórias e das culturas afro-brasileiras e indígenas na educação básica, assim como a edu- 40 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista cação para as relações étnico-raciais, seja extraída de uma normativa ligada à educação, os efeitos de seu cumprimento têm potencial para se estender a outros domínios pelo fato de se estar investindo em novas gerações de bra- sileiros de todas as raças. Se isso não bastasse, a médio ou longo prazo, a educação seria causa direta de transformação em domínios como o do mercado de trabalho, o do sistema de justiça, o do sistema de segurança, o de saúde e o da tecnologia. Pela mesma razão que os fenômenos raciais impactam nos domínios elencados acima, o antirracismo pode incidir e gerar efeitos significativos como já se teve oportunidade de afirmar em artigo sobre cidadania e tecnologia (Silva, 2021, p. 928): Perceptível é que a conectividade entre cidadania, fenômenos raciais e tecnologia toca em questões sensíveis para o corpo social uma vez que implicam debate sobre valores relevantes como dignidade e justiça. Ademais, fica evidente que são urgentes e impositivos posicionamento e comportamentos anticastas, impedindo que, por atualizados meios, grupos raciais sejam mantidos em permanente posição de domina- ção enquanto outros, permanentemente, são desvalorizados, discriminados e limitados no exercício da cidadania possível. Esse atuar anticasta perpassa pelo aprofundamento do estudo jurídico antidiscriminatório, pela ampliação da diversidade no domínio da tecnologia, pela utilização da tecnologia para enfrentar os fenômenos raciais, pela avaliação das consequ- ências do emprego da tecnologia com esteio em evidências e pelo firme respeito aos valores éticos. Nessa quadra, a regu- lação, as diretrizes e as normas relativas à tecnologia precisa- rão ter por força motriz os direitos humanos e fundamentais considerados de forma dinâmica e não meramente concei- tual, bem como a transparência e a articulação com políticas públicas e privadas atinentes a outros domínios. Se a pessoa vive uma situação de desigualdade na educação, isso prejudica a sua formação. Como consequência, ela, possivelmente, será 41 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista empregada na economia formal com baixa remuneração ou obterá ocupação na economia informal; se for assim, isso a conduzirá a morar em zona perifé- rica de uma cidade, sem equipamentos públicos, tendo acesso a deficiente saneamento básico e a transporte público de baixa qualidade, podendo esse quadro impactar na sua saúde . E se, dando sequência às hipóteses lançadas nesse tópico, a pessoa “A” tiver um filho ? Esse filho, pessoa “B”, será criado em área periférica, sem equipamentos públicos, em casa de pessoas com baixa renda e tendo dificuldade para ter alimentação adequada. Esse quadro, percebe-se, tem forte possibilidade de impactar no seu desempenho escolar. As hipóteses mencionadas acima permitem concluir que as desigualdades se acumulam e se transmitem de um domínio para outro, bem como de uma geração para outra. Isso faz com que seja pouco eficaz as iniciativas voltadas a combater os fenômenos raciais em apenas um domínio e sem articulação com outras iniciativas direcionadas a outros domínios. Graficamente, essa transmissão poderia ser representada por vasos comunicantes dentro dos quais um mesmo líquido circulasse. Esses pressupostos devem ser considerados ao avaliar o nível de desi- gualdade em um determinado domínio e ao buscar soluções para essa ques- tão. Eles apontam para a necessidade de haver planejamento, avaliação e monitoramento. Oportuno referir que o planejamento não é uma faculdade, é uma obrigação no âmbito público, assim como também a adequada utili- zação dos meios e o alcance satisfatório dos fins . De bom alvitre sublinhar que formuladores de políticas públicas, em regra, não dedicam atenção à intergeracionalidade, o que conduz à desconsideração de questões relevantes na avaliação e na proposta de políticas públicas, como também nas possibilidades de avanço e de transformação. 42 Questões étnico-raciais e os caminhos para uma educação antirracista Como bem ensina Staub (2003), há uma relação direta entre desva- lorização, discriminação e desigualdade. Grupos que apresentam alguma característica identificada por outros grupos dominantes, são desvaloriza- dos. Nesse quadro, são tratados diferentemente, ou seja, são discriminados. A discriminação dirigida a esses grupos gera desigualdade. Em situação de desigualdade, eles são associados a características tidas como