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LITERATURA BRASILEIRA E MODERNIDADE LITERATURA BRASILEIRA E MODERNIDADE Copyright © UVA 2019 Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida por qualquer meio sem a prévia autorização desta instituição. Texto de acordo com as normas do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa. AUTORIA DO CONTEúDO Silvana Moreli Vicente Dias REVISãO Ísis Batista Clarissa Penna Theo Cavalcanti Lydianna Lima PROjETO GRáfICO UVA DIAGRAMAçãO UVA D541 Dias, Silvana Moreli Vicente Literatura brasileira e modernidade [livro eletrônico] / Silvana Moreli Vicente Dias. – Rio de Janeiro: UVA, 2020. 1,68 MB : PDF. ISBN 978-65-5700-036-6. 1. Literatura brasileira - História e crítica. 2. Modernismo (Literatura) - Brasil - História e crítica. I. Universidade Veiga de Almeida. II. Título. CDD – B869 Bibliotecária Alexandra Delgado de Campos CRB 7 - 6626. Ficha Catalográfica elaborada pela Biblioteca Central da UVA. SUMáRIO Apresentação Autor 6 8 Tensões brasileiras: tradição e vanguarda 32 • As tendências de ruptura vanguardista brasileira: a Semana de Arte Moderna de 1922 e suas consequências • Vozes altissonantes do Modernismo brasileiro: Mário de Andrade e Oswald de Andrade • A província entre passado e futuro: modernidades alternativas a partir de produções periféricas Unidade 2 9 • Narração, crítica e ironia em Machado de Assis • Cruz e Sousa e dilemas da poesia oitocentista: a originalidade do Sim- bolismo brasileiro • O tempo e seus avessos em Lima Barreto: visões disfóricas da Belle Époque brasileira Primeiros influxos da modernidade: da Belle Époque ao Pré-Modernismo Unidade 1 SUMáRIO Criação, hibridização e reflexão: veredas da narrativa moderna 92 • Graciliano Ramos, José Lins do Rego e o Romance de 1930: história e ficção na modernidade • Clarice Lispector: subjetividade, drama e linguagem • Guimarães Rosa: nas fronteiras dos tempos e dos espaços ficcionais Unidade 4 58 • Manuel Bandeira, lirismo e representação problemática do cotidiano • Carlos Drummond de Andrade: os dilemas de “um eu todo retorcido” • João Cabral de Melo Neto: a invenção racional e a arquitetura do in- conformismo Vertentes poéticas da modernidade Unidade 3 6 A disciplina Literatura Brasileira e Modernidade pretende oferecer elementos a você, estudante de Letras, para que desenvolva estudos críticos atentos às especificidades de temas e formas estéticas representativos da literatura brasileira entre fins do século XIX e primeira metade do século XX. Especificamente, seu conteúdo estará enfocado em autores e obras que entraram no cânone da literatura brasileira, sendo hoje reconhecidos como expressões de estéticas diversas, em estreito diálogo com os movimentos artísticos e literários internacionais. Veja, no quadro abaixo, quais são esses movimentos: Os seguintes autores serão cuidadosamente discutidos no decorrer dos estudos aqui empreendidos: • Machado de Assis (1839-1908). • Cruz e Sousa (1861-1898). • Lima Barreto (1881-1922). • Mário de Andrade (1893-1945). • Oswald de Andrade (1890-1954). APRESENTAçãO Movimentos artísticos e literários Pré-Modernismo Realismo Simbolismo Modernismo 7 • Manuel Bandeira (1886-1968) • Carlos Drummond de Andrade (1902-1987). • João Cabral de Melo Neto (1920-1999). • Graciliano Ramos (1892-1953). • José Lins do Rego (1901-1957). • Clarice Lispector (1920-1977). • Guimarães Rosa (1908-1967). Você vai ver como certo legado do Romantismo continuará a ser revisitado, sobretudo na perspectiva da construção da brasilidade e da identidade nacional. Nesse sentido, serão aprofundadas visadas críticas e reflexivas que descortinam uma relação tensa en- tre literatura e sociedade, de modo que a literatura, como criação estética, possa revelar também um aprofundamento da crítica social, ao lado de perspectivas de sensibilização e humanização do ser como produtor de cultura e de arte. Por fim, pretendemos também oferecer condições para que o futuro professor de Letras conduza análises envolventes e atentas às principais discussões ocorridas no âmbito da produção literária do país, tais como a formação do cânone da literatura brasileira e seus questionamentos; a literatura como resistência aos discursos dominantes; e o processo tensivo de consolidação de estéticas modernas no Brasil, em diálogo com a tradição e os discursos marginais ou periféricos. Com esse trajeto, esperamos desenvolver uma leitura verticalizada do texto literário e, ao mesmo tempo, inseri-la no percurso histórico e em seus desdobramentos, para que, então, possamos captar todo seu potencial estético e crítico. 8 SILVANA MORELI VICENTE DIAS A Prof.ª Dr.ª Silvana Moreli Vicente Dias é licenciada em Português e Inglês pela Universi- dade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – Unesp (1999), mestre (2003) e doutora (2008) pela Universidade de São Paulo – USP. Ganhou o prêmio Capes de Tese 2009, na área de Letras/Linguística. Foi pesquisadora bolsista Nível I da Fundação Biblioteca Nacional – FBN (RJ) (2008). Fez pesquisa de pós-doutorado na Università degli Studi di Roma “La Sapienza” (Itália), com ênfase em “Metodologia e prática de edição crítica de textos modernos e contemporâneos” (2009). Realizou pesquisa de pós-doutorado no Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo – IEB-USP (2010-2012) com bolsa Fapesp e, posteriormente, com Bolsa do Programa do Prêmio Capes de Te- ses, trabalhando com temas como: perspectivas críticas de estudo dos gêneros textuais; formas e funções dos gêneros textuais, em especial do gênero autobiográfico; percursos da epistolografia brasileira do século XX; e as relações comparadas entre o Modernismo brasileiro e o anglo-americano. Em 2015, suspendeu atividades no Brasil para realizar pós-doutorado na Université Sorbonne Nouvelle/Paris 3 (França), com bolsa de pesquisa pós-doutoral no exterior pela Capes, dedicando-se ao estudo de gêneros discursivos hí- bridos e à busca de manuscritos inéditos de escritores brasileiros, bem como a reflexões metodológicas sobre edições crítico-genéticas em formato digital. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em linguística aplicada; humanidades digitais; relações entre o Modernismo brasileiro e a literatura anglo-americana; preparo de edições, crítica gené- tica e crítica textual; edições acadêmicas com aparato crítico; manuscritos de escritores, artistas e intelectuais; crônica, memorialismo, ensaio; curadoria de exposições. É auto- ra de Cartas provincianas: correspondência entre Gilberto Freyre e Manuel Bandeira (edição de cartas e estudo crítico), publicado pela Global Editora em 2017. Tem experiên- cia nos ensinos fundamental, médio e superior, sendo que atualmente é professora na Universidade Veiga de Almeida – UVA (RJ). AUTOR Primeiros influxos da modernidade: da Belle Époque ao Pré-Modernismo UNIDADE 1 10 Na unidade introdutória da disciplina intitulada Literatura Brasileira e Modernidade, vamos analisar especificidades da forma e do conteúdo, texto e contexto — dialeticamente abordados, seguindo princípios defendidos por Antonio Candido —, da ficção e da poesia brasileiras de fins do século XIX e início do século XX, englobando as estéticas do Realismo, do Simbolismo e do Pré-Modernismo brasileiro, a serem criticamente estudadas com baseem autores e obras considerados canônicos, como Machado de Assis (1839-1908), Cruz e Sousa (1861-1898) e Lima Barreto (1881-1922). Embora esses nomes constituam o foco do nosso trabalho, será relevante considerar como tais autores leem a tradição de seu tempo e elaboram um discurso de invenção literária, bem como de questionamento das balizas e das instituições de uma época. Nesse sentido, os autores aqui selecionados permitem, de modo bastante exemplar, realizar o que Alfredo Bosi nomeia como “compreender resistindo” e “resistir compreendendo” (Cf. BOSI, 2002). É, pois, nessa relação dialética que a disciplina pretende estruturar um discurso crítico atento às especificidades da literatura de Machado de Assis, Cruz e Sousa e Lima Barreto. Trata-se de escritores que construíram um percurso de criação aliado a uma leitura atenta das balizas da tradição e das principais estéticas artístico-literárias em curso em seu tempo, que não se furtaram de problemáticas, inclusive contextuais caras à época, como o liberalismo (paradoxal e tristemente) aliado à escravidão ou, ainda, a desfaçatez de classe conectada a um moralismo de superfície. Objetivamos, ao fim, que você se sinta estimulado a ler os textos aqui abordados e faça conexões com o hoje e com a urgência que os tempos incertos exigem, com lucidez, autonomia, reflexão e sensibilidade. Assim, embora citemos nomenclaturas e estilos de época (mesmo porque é fundamental que, como futuros professores, os estudantes dominem as linhas gerais que continuam alimentando perspectivas ligadas ao periodismo e a abordagens panorâmicas da historiografia literária brasileira), no horizonte estará nosso estímulo para que os futuros licenciados se realizem como leitores proficientes, INTRODUçãO 11 atentos às especificidades da escrita literária, e também como futuros formadores de leitores literários, para que, enfim e ao cabo, possam: [...] Formar leitores disponíveis, abertos, sagazes e curiosos para que possam navegar pela infinidade de conteúdos que, pela primeira vez na história, estão disponíveis para, se não em sua totalidade, grande parte da população. Garantir àqueles que, por motivos diversos, estão aquém das práticas “pós-modernas”, o conhecimento e a possibilidade de uso real das ferramentas e suportes. Criar as bases para o exercício da escolha e suas implicações — a ponderação, a pesquisa, a criticidade. Acreditar no sujeito, acreditar em sua capacidade de fazer escolhas. (ALMEIDA; SANTOS; PORTO, 2016) Desse modo, esperamos que esta unidade ofereça estímulos para que você desenvolva o gosto pela leitura e domine as principais vertentes críticas sobre cada autor abordado, ao mesmo tempo em que esteja preparado para atuar como professor e pesquisador. Nesta unidade, você será capaz de: • Analisar especificidades da forma e do conteúdo da ficção e da poesia brasileiras de fins do século XIX e início do século XX, englobando as estéticas do Realismo, do Simbolismo e do Pré-Modernismo brasileiro, estudadas, em perspectiva reflexiva e crítica, com base em autores e obras considerados canônicos, como Machado de Assis (1839-1908), Cruz e Sousa (1861-1898) e Lima Barreto (1881-1922). OBjETIVO 12 Narração, crítica e ironia em Machado de Assis Neste primeiro tópico, você será apresentado a aspectos da trajetória literária do escritor brasileiro Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908). O objetivo principal, neste momento, é oferecer uma interpretação de sua escrita literária que destaque aspectos problematizadores de seu estilo e de seus temas, tais como: • A estruturação perspicaz de uma narrativa irônica. • A construção de personagens dúbios. • Uma visão crítica sobre paradoxos presentes na sociedade brasileira. Sua obra deve ser lida, portanto, no âmbito da estética realista, tendência de observação e análise social que se consolidou na Europa do século XIX, em dialética à visão romântica da arte e da literatura. Entretanto, há especificidades várias — atreladas inclusive à sua recepção nacional e internacional —, as quais precisam ser mencionadas para se ter uma visão ampla da obra do autor. Inclusive, sua trajetória costuma ser dividida entre primeira fase, de linhas evidentemente românticas; e segunda fase, de ironia sutil e sarcasmo, a qual se inicia com a publicação de Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), considerado o primeiro romance realista brasileiro. Machado de Assis. Ilustração. MIDIATECA Acesse a midiateca da Unidade 1 e veja o conteúdo complementar Machado de Assis: um mestre na periferia, um programa da TV Escola. 13 Escritor crítico, irônico e arguto observador do seu tempo, Machado de Assis deixou uma vasta e diversificada produção literária. Exímio contista, colaborou para a definitiva consolidação do gênero no Brasil. Veja, no gráfico a seguir, as obras que se destacam nesse gênero. Embora antes de 1882 já tivesse publicado contos voltados especificamente para o público feminino, é depois da data que mais claramente se nota o domínio dessa forma literária econômica, tensiva e bem encadeada que, inclusive, permite tocar em temas considerados tabus, como a escravidão. Aliás, a despeito do fato de muitos escritores o terem acusado de certo absenteísmo sobre o tema, na trilha do polêmico Hemérito dos Santos, essa imagem vem sendo redefinida recentemente, por exemplo, por meio de estudos mais específicos como os de Selma Vital e de Maílde J. Trípoli, em caminho antes aberto por críticos como Alfredo Bosi, John Gledson, Raimundo Faoro, Roberto Schwarz e Sidney Chalhoub. De qualquer modo, é imperioso afirmar que há um profundo senso construtivo que permeia toda sua obra, como afirma o crítico literário Silviano Santiago: Já é tempo de se começar a compreender a obra de Machado de Assis como um todo coerentemente organizado, percebendo que à medida que seus textos se sucedem cronologicamente certas estruturas primárias e primeiras se desarticulam e se rearticulam sob forma de estruturas diferentes, mais complexas e mais sofisticadas. (SANTIAGO, 2000, p. 27 apud COSTA; COELHO, 2018, p. 202) CONTOS fLUMINENSES (1870) PAPéIS AVULSOS (1882) HISTóRIAS SEM DATA (1884) RELíqUIAS DA CASA VELHA (1906) PáGINAS RECOLHIDAS (1899) VáRIAS HISTóRIAS (1896) 14 Sobre a questão do envolvimento com seu meio social, o próprio escritor ofereceu, no texto Notícia da atual literatura brasileira: instinto de nacionalidade (1873), uma porta de entrada interpretativa bastante arguta: “O que se deve exigir do escritor antes de tudo, é certo sentimento íntimo, que o torne homem do seu tempo e do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no espaço.” Tal sentimento íntimo, em Machado, parece se formalizar por meio de um estilo distanciado, cético e paródico, que coloca em pauta os discursos hegemônicos da época. Com base nesse estilo, são construídos enredos que descortinam as misérias escondidas por trás das fachadas da modernidade e das máscaras embotadas pelo hábito e pela convenção. Com Machado de Assis, a modernidade passa — desse modo — a ser objeto de questionamento firme. Avançando um pouco mais as perspectivas críticas, é fato que há livros que fazem parte das referências formativas de um estudante brasileiro, como Dom Casmurro (1899) e Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881). Contudo, pelos limites deste tópico, será abordado o conto Pai contra mãe. Recomendamos fortemente sua leitura, para que o estudante acompanhe os argumentos a serem levantados nas próximas páginas. MIDIATECA Acesse a midiateca da Unidade 1 e veja o conteúdo complementar Representação e avaliação em Machado de Assis, por João Adolfo Hansen. MIDIATECA Acesse a midiateca da Unidade 1 e veja o conteúdo complementar Ideia de literatura brasileira com propósito cosmopolita: aspectos da recepção de Machado de Assis no Brasil e no mundo, por Abel Barros Batista. 15 No conto Pai contra mãe, que abre Relíquias da casa velha,observa-se como a calculada e econômica trama — sendo que seu lastro está em uma dinâmica dualista que relativiza perdas e ganhos — é conduzida por um narrador distanciado e só aparentemente neutro, cuja perspectiva se choca com visões que amenizam, encobrem ou escamoteiam as arestas do processo histórico brasileiro. O enredo revela um jogo dramático e desigual entre vencedores pragmáticos e vencidos. Aqui, lutam um pai branco e uma mãe negra pelo mesmo objetivo, no início do século XX, como que exemplificando o grotesco das relações escravocratas, contíguo aos dispositivos cruéis como a “máscara de flandres” (enumerados no primeiro parágrafo do conto), em uma sociedade desigual e anômica, apenas de fachada moderna, republicana, liberal e civilizada. A percepção das perversas forças que subjazem ao império do despotismo e da arbitrariedade, à primeira vista, parece se diluir com a violência naturalizada e legitimada pela instituição da escravatura, que deixa marcas indeléveis na formação do Brasil moderno. Essa dinâmica é construída por meio de uma linguagem perspicaz, que articula um enredo equilibrado, conduzido por um narrador aparentemente neutro, e o emoldura engenhosamente com dispositivos grotescos, no início, e uma morte cruel em seu desfecho. Assim, Machado de Assis, uma vez mais, performatiza uma técnica capaz de: […] sugerir as coisas mais tremendas da maneira mais cândida (como os ironistas do século XVIII): ou em estabelecer um contraste entre a nor- malidade social dos fatos e a sua anormalidade essencial; ou em sugerir, sob a aparência do contrário, que o ato excepcional é normal, e anormal seria o ato corriqueiro. (CANDIDO, 1977, p. 23) MIDIATECA Acesse a midiateca da Unidade 1 e veja o conteúdo complementar Machado de Assis: um escritor além de seu tempo e de seu país. 16 Portanto, o conto persegue a linha irônica e distanciada do narrador machadiano, renovando não só pelo equilíbrio formal ao abordar um tema candente na época, mas também por, de algum modo, antecipar uma vertente do realismo cru, dedicado a figuras marginais, longe dos núcleos de sociabilidade supostamente civilizados da classe dominante, a qual iria pouco a pouco se adensar na literatura brasileira do século XX. Com essa breve leitura do conto Pai contra mãe, fica claro que é impossível separar o que é domínio formal e leitura crítica de um contexto social. Nesse sentido, dicotomias do tipo realidade e ficção, história e literatura, cosmopolitismo e provincianismo podem ser vistas como duplos que promovem a expansão dos sentidos, mas não como limitadores do exercício crítico-analítico. Como afirma o crítico literário português Abel de Barros Baptista: “[...] o estrangeiro que se integra no nacional é tão só o que se sujeita às regras que definem o nacional. Não há lugar, nessa distinção, para o estrangeiro que se interessa por Machado, mas não se interessa pelo Brasil.” (BAPTISTA, 2009, p. 86). Ou seja, se a crítica estiver atenta à complexidade da obra, sempre deverá implicar todas as faces do múltiplo Machado de Assis. A fim de realizar projetos de leitura literária na escola, um possível caminho a ser explorado é desenvolver estratégias que dialoguem com o universo cultural dos alunos para, então, aprofundar sua competência literária. Nesse sentido, é possível apresentar recursos audiovisuais como estímulo à formação do leitor ou, ainda, desenvolver análises atentas ao diálogo interartes estabelecido por distintas produções simbólicas, como um romance e um filme. Para refletir Uma das capas do livro Dom Casmurro. Fonte: www.amazon.com.br. Capitu, na minissérie. Fonte: memoriaglobo.globo.com. https://www.amazon.com.br/Dom-Casmurro-Machado-Assis/dp/8572322647 http://memoriaglobo.globo.com/programas/entretenimento/minisseries/capitu.htm 17 Para observar possibilidades, recomendamos a leitura do seguinte artigo científico, que discute a adaptação do livro canônico Dom Casmurro, de Machado de Assis, para a minissérie Capitu, de 2008, dirigida por Luiz Fernando Carvalho e exibida pela TV Globo em 2008: VIEIRA, A. F.; NEVIANI, M. R. S. De Dom Casmurro à Capitu: um estudo sobre a adaptação literária. Revista Língua & Literatura. Frederico Westphalen, v. 19, n. 34, p. 229-251, jul./dez. 2017. Disponível em: http://www.revistas.fw.uri.br/ index.php/revistalinguaeliteratura/article/view/2673/2595. Acesso em: 28 jan. 2019. http://www.revistas.fw.uri.br/index.php/revistalinguaeliteratura/article/view/2673/2595 http://www.revistas.fw.uri.br/index.php/revistalinguaeliteratura/article/view/2673/2595 18 Cruz e Sousa e dilemas da poesia oitocentis- ta: a originalidade do Simbolismo brasileiro No tópico 2, pretendemos oferecer a você uma leitura atenta às especificidades do Simbolismo no Brasil, o qual, com o escritor João da Cruz e Sousa (1861-1898), moldou uma voz lírica própria, distinta — apesar do estreito diálogo estético entre eles — dos mestres franceses, como Charles Baudelaire (1821-1867), Arthur Rimbaud (1854-1891), Stéphane Mallarmé (1842-1898) e Paul Verlaine (1844- 1896). Esses, para relembrar as premissas que marcaram a estética da segunda metade do século XIX, perseguiram a forma bem acabada, a beleza absoluta da verdadeira arte, por meio de técnicas como a musicalidade dos versos e procedimentos de singularização, na trilha do que o escritor, poeta e crítico literário francês Théophile Gautier (1811-1872) defendeu como “arte pela arte”, a qual se colocava contra o utilitarismo, a mercantilização e o moralismo de vertentes explicitamente conservadoras, herdadas do Romantismo. É nesse contexto que precisamos inserir a obra de Cruz e Sousa, escrita na periferia, muito consciente sobre sua condição problemática, mas também atenta e bem informada sobre os movimentos artístico-literários do grande epicentro europeu da Belle Époque, Paris. Aliás, sobre o amadurecimento intelectual paulatino do escritor, afirma Souza: Como a maioria dos escritores da sua idade, Cruz e Sousa iniciou a sua vida literária, ainda no final dos anos 1870, tentando reproduzir os cânones do romantismo. Sua adesão às propostas realistas, naturalistas e parnasianas, bem como a sua crítica antirromântica, só ocorreu gradualmente ao longo da primeira metade da década de 1880 e se confundiu, em grande parte, com o seu processo pessoal de construção de uma identidade abolicionista e republicana. A indissociabilidade entre sensibilidade estética, experimentação artística, perspectiva ideológica e militância política é um dos aspectos definidores da experiência histórica de muitos intelectuais da chamada “geração de 1870” e constitui um ponto importante na relação entre Cruz e Sousa e a cultura política do seu tempo. (SOUZA, 2017, p. 134) Cruz e Sousa 19 MIDIATECA Acesse a midiateca da Unidade 1 e veja o conteúdo complementar Os desclassificados do destino: Cruz e Sousa e os primeiros simbolistas (Rio de Janeiro, 1888-1898). Cruz e Sousa é considerado, hoje, um dos maiores nomes da poesia brasileira da segunda metade do século XIX. A história da crítica no país, porém, ao se debruçar sobre sua obra, demonstra que sua reputação nunca foi unânime ou homogênea. Em vida, publicou dois livros: Missal, poemas em prosa, e Broqueis, poemas, ambos no ano de 1893. Filho de escravos alforriados, foi abolicionista comprometido e atuou fortemente na imprensa no início de sua trajetória, primeiro em Florianópolis, depois no Rio de Janeiro, para onde seguira definitivamente em 1890. Conquanto as tensões da realidade social não sejam claramente perceptíveis em um primeiro olhar sobre sua obra, é fato que sua poesia se edifica em imagens profundamente dissonantes, tensivas e contraditórias, situadas em um terreno limiar que beira o irracional, o que permite afirmar ter sido Cruz e Sousa um lírico moderno por excelência. Sua morte prematura interrompe uma trajetória poética promissora, de um artista conhecedor das principais vertentes da produçãoliterária norte-americana e europeia, sobretudo francesa. Os livros póstumos Evocações (poemas em prosa, 1898), Farois (poemas, 1900) e Últimos sonetos (1905) foram todos publicados graças ao empenho pessoal do escritor e crítico literário Nestor Vítor (1868-1932). Infelizmente, muitos foram os estigmas — como o fato de ser negro filho de escravos alforriados — que barraram uma avaliação literária atenta aos problemas colocados pela forma artística plasmada originalmente em território nacional. MIDIATECA Acesse a midiateca da Unidade 1 e veja o conteúdo complementar 119 da morte de Cruz e Sousa. 20 Nesse sentido, em sua fortuna crítica, alguns estudos podem ser mencionados como clássicos. Na década de 1940, Roger Bastide foi um dos primeiros a se dedicar a uma leitura atenta aos procedimentos literários do poeta, defendendo uma qualidade que o alçava junto aos principais escritores simbolistas europeus, como Mallarmé e Stefan George. Porém, em Quatro estudos sobre Cruz e Sousa, defendeu que a preferência ao branco por parte do poeta conformaria uma manifestação de resistência, uma tentativa de ultrapassar a condição limitadora de ser negro em um Brasil de herança escravocrata (lembre-se: a Abolição da Escravatura deu-se em 13 de maio de 1888, e Cruz e Sousa foi um fervoroso abolicionista). Na contramão, Massaud Moisés, em Três estudos sobre Cruz e Sousa, procura ler o branco como parte da convenção simbolista — os trabalhos de Bastide e de Massaud Moisés encontram-se na fortuna crítica dedicada a Cruz e Sousa, organizada por Afrânio Coutinho (1979). Mais recentemente, no ensaio Sob o signo de Cam, Alfredo Bosi (1992) destaca o esforço de resistência do poeta às teorias pseudocientíficas da época. Em outra direção, Ivone Daré Rabello empenha-se em uma leitura imanente, muito bem lograda, de poemas em Entre o inefável e o infando (1999). Jefferson Agostini Mello, por sua vez, procura combinar imanência e leitura crítica da realidade em estudos sobre poemas em prosa de Cruz e Sousa, publicados sob o título Um poeta simbolista na República Velha (2008), apontando como o poeta marginalizado cria espaços ambivalentes experimentais que refratam uma realidade social precária. MIDIATECA Acesse a midiateca da Unidade 1 e veja o conteúdo complementar João da Cruz e Sousa: de lá pra cá. 21 Leia-se o poema a seguir, Cavador do infinito, que veio a público no livro Últimos sonetos (1905), publicação póstuma de 1905, para observar as contradições pulsantes e a intensa musicalidade do texto lírico: Com a lâmpada do Sonho desce aflito E sobre aos mundos mais imponderáveis, Vai abafando as queixas implacáveis, Da alma o profundo e soluçado grito. Ânsias, Desejos, tudo o fogo escrito Sente, em redor, nos astros inefáveis. Cava nas fundas eras insondáveis O cavador do trágico infinito. E quanto mais pelo Infinito cava Mais o Infinito se transforma em lava E o cavador se perde nas distâncias... Alto levanta a lâmpada do Sonho E com seu vulto pálido e tristonho Cava os abismos das eternas ânsias! Fonte: https://www.literaturabrasileira.ufsc.br/. Obviamente essa rápida leitura da fortuna crítica dedicada a Cruz e Sousa apenas permite situá-lo na esfera da produção literária e da recepção crítica, abrindo caminho para leituras interpretativas atentas a alguns dos problemas que sua obra literária comporta. Esperamos que você busque conhecer um pouco a poesia e a prosa poética de Cruz e Sousa, que continua a figurar, nos dias de hoje, como das grandes produções da literatura brasileira da época moderna. https://www.literaturabrasileira.ufsc.br/_documents/ultimos_sonetos-cruz.htm#cavador 22 O tempo e seus avessos em Lima Barreto: visões disfóricas da Belle Époque brasileira Este tópico conclui a Unidade 1 da disciplina Literatura Brasileira e Modernidade examinando cuidadosamente alguns temas presentes na literatura de Afonso Henriques de Lima Barreto (1881-1922), escritor carioca que construiu uma obra literária forte, contundente e perspicaz o suficiente para figurar entre as principais do século XX. Como escritor que presenciou as idas e vindas de uma modernização problemática na periferia do capitalismo, sem cair nos encantos superficiais bem presentes em muitos escritores da Belle Époque brasileira, Lima Barreto moldou visões críticas da modernidade ainda muito significativas nos tempos de hoje. Por exemplo, os interesses mesquinhos da imprensa e a falta de interesse da elite em tocar nas estruturas da desigualdade e do preconceito étnico-social no país ainda estão fortemente presentes, um século depois de escrita sua obra mais conhecida. Na segunda coletânea de Carlos Drummond de Andrade, Brejo das almas (1934), o autor dá forma literária à aporia dos caminhos para os quais convergem as múltiplas constituições simbólicas da nacionalidade. “O Brasil não nos quer! Está farto de nós! / Nenhum Brasil existe. E acaso existirão os brasileiros?” (ANDRADE, 1967, p. 89). Denuncia, assim, com uma linguagem desataviada, coloquial e irônica, em pleno período de rotinização das conquistas modernistas, a deriva e a incongruência de qualquer imagem Lima Barreto MIDIATECA Acesse a midiateca da Unidade 1 e veja o conteúdo complementar Lima Barreto: um grito brasileiro. 23 estabilizada da nação. Em retrospecto, refrata a complexa teia de discursos e sensos comuns que contribuíram para forjar uma ideia problemática de caráter nacional. Nesse contexto, Drummond percorre um caminho de desconfiança e recusa que foi aos poucos sedimentado por obras produzidas durante a Belle Époque, como Triste fim de Policarpo Quaresma, de 1911, de Lima Barreto (1881-1922), e pelo Modernismo, sendo um exemplo emblemático de radical desestabilização da ideia de éthos da nacionalidade a obra Macunaíma (o herói sem nenhum caráter), de 1928, de autoria de Mário de Andrade (1893-1945). Colocar lado a lado duas obras-primas da literatura brasileira que retomam e questionam, em perspectiva diferenciada, o território acidentado de construção da brasilidade pode oferecer uma profícua perspectiva de análise e interpretação, o que tentaremos esboçar neste breve ensaio. O romance Triste fim de Policarpo Quaresma foi publicado inicialmente em folhetim, no ano de 1911, do Jornal do Commercio. Em 1916, saiu a primeira versão em livro. Considerado por muitos críticos o livro de ficção mais importante do período que ante- cede ao Modernismo brasileiro, nele Lima Barreto conseguiu dar forma a uma narrativa inquietante, em terceira pessoa, que colocou em plano antinômico as expectativas do personagem principal, o utópico Policarpo Quaresma, que encarna a ética inabalável, em confronto com um mundo exterior arredio, desafiador e ameaçador, habitado por toda sorte de homens inconsequentes, hipócritas e individualistas. Como afirma o nar- rador na caracterização do personagem: “Errava quem quisesse encontrar nele qual- quer regionalismo; Quaresma era antes de tudo brasileiro.” (BARRETO, 1998, p. 19). MIDIATECA Acesse a midiateca da Unidade 1 e veja o conteúdo complementar O visionário Lima Barreto – Parte 1, com Lilia Moritz Schwarcz. 24 O livro, com uma linguagem objetiva, direta e sem adornos típicos dos contemporâneos de Lima Barreto, estrutura-se em três partes, as quais apresentam desilusões progressivas que abalam o mundo ético do personagem principal, até sua derradeira ruína, em linha que lembra o “romantismo da desilusão” abordado por Georg Lukács em A teoria do romance (2000). Resumidamente: Como brasileiro cheio de ideais, Quaresma é o avesso da pluralidade indeterminada do inconstante Macunaíma. Mas, como sugeriu Beatriz Resende no título de seu ensaio Triste fim de Policarpo Quaresma: a exclusão do herói cheio de caráter, o “fim” que se encontra no título já crava “a impossibilidade mesma do heroísmo cheio de caráter de Policarpo Quaresma, tese que se verá definitivamente confirmada quando Mário de Andrade cria o antropofágico Macunaíma” (ROCHA,2003, p. 613). A autora não avança em uma leitura da rapsódia fragmentária e vanguardista que agrega lendas e mitos nacionais, entretanto é evidente o diálogo entre um e outro texto com seus respectivos desfechos aporéticos, desiludidos ou simplesmente desencantados. Policarpo Quaresma objetifica uma contundente crítica aos ideais em voga no contexto da Belle Époque brasileira, período retratado como envolto em disputas e arranjos casuísticos de poder, imitação acrítica de elementos estrangeiros, excessiva valorização do capital e descompromisso generalizado com a cultura popular e o pensamento crítico sobre o país. PRIMEIRO O nacionalista inveterado e estudioso metódico Policarpo Quaresma, “doce, bom e modesto”, defende a oficialização da língua tupi e é considerado louco. SEGUNDO Como produtor rural comprometido com um pensamento progressista sobre o trabalho no campo, enfrenta a politicagem local e as devastadoras saúvas. TERCEIRO Luta ao lado do marechal Floriano Peixoto na Revolta da Arma, denuncia as atrocidades que se seguem à vitória e é fuzilado. O mito se esfacela pouco a pouco. 25 MIDIATECA Acesse a midiateca da Unidade 1 e veja o conteúdo complementar Lima Barreto: a loucura e a urgência da escrita. Nesse sentido, inclusive, a própria República recém-proclamada mostra sua face mais horrenda e autoritária em Triste fim, ao fuzilar o bom e dedicado Quaresma. “Essa atitude cosmopolita desvairada adentra por quase todo esse período”, como constatou Nicolau Sevcenko em Literatura como missão (2003, p. 51), e Quaresma é um autêntico personagem de resistência aos valores dominantes, embora a escrita não assuma a desintegração em sua condição imanente (BOSI, 2002). Entretanto, apesar da distopia que comporta o discurso romanesco, importa dizer que o fim do visionário Quaresma antecipa, contraditoriamente, o movimento modernista que tomaria forma no mesmo ano de sua morte, em 1922. NA PRáTICA Na prática, nosso objetivo é fazer com que o estudante desenvolva competências específicas como leitor de ficção e de poesia e como intérprete de obras literárias inseridas em determinados tempos e espaços. Além disso, nosso intuito é estimular que o aluno forme um repertório consistente de obras literárias, de modo que faça conexões entre reflexão epistemológica e reflexão crítica na abordagem de conteúdos específicos dos estudos de literatura brasileira. Nesse sentido, o estudante deverá compreender não só a historicidade e os desdobramentos da recepção de obras e de autores no espaço e no tempo, mas também a dinâmica estética do texto literário. Para tanto, é essencial conhecer os 26 fundamentos da poética dos autores trabalhados, o que deve ser combinado com uma análise detida da linguagem do texto. A poesia de Cruz e Sousa é exemplar nesse sentido. Abordá-lo adequadamente em sala de aula de literatura brasileira implica conhecê-lo a fundo, bem como selecionar um conjunto de leituras críticas prévias reconhecidamente relevantes. Observe as considerações de Norma Goldstein sobre o poema Braços, de Cruz e Sousa, citadas por Silvana Oliveira no livro Análise de textos literários: poesia (2017): No soneto Braços, de Cruz e Sousa, aparecem várias aliterações. O texto corresponde ao que o título anuncia: a descrição de membros superiores femininos. Observe as aliterações em destaque e procure verificar em que medida elas sugerem a visão da parte do corpo que está sendo descrita. As consoantes BR da palavra-título vão levar a sonoridade dessa palavra-chave para outras, produzindo um tipo de aliteração. Note também as outras aliterações destacadas no texto. (GOLDSTEIN, 2007, p. 74 apud OLIVEIRA, 2017, p. 117) Em seguida, a própria autora vai arrematar a análise procurando relacionar o plano da expressão (a estrutura do poema) ao plano do conteúdo (sua significação, seu sentido global), demonstrando conhecer a fundo as implicações da estética defendida pela produção lírica representativa da poesia brasileira: Como é possível perceber, ao verificar a ocorrência de aliteração em um texto poético, o desafio de leitura é estabelecer um sentido para o seu efeito sonoro e relacioná- lo ao sentido global do poema. Para concluir a análise, podemos apontar que a descrição de uma parte do corpo feminino, o braço, pode ser associada aos sentimentos contraditórios da atração e medo que a entrega amorosa provoca. A sonoridade repetitiva que evoca a imagem obsessiva dos braços dá a dimensão do desejo 27 recorrente que eles — e, por extensão, a mulher — provocam. Esse desejo é contraditório, pois a sua realização está associada à morte e ao amor, simultaneamente, evocando prazer e dor a um só tempo. (OLIVEIRA, 2017, p. 119) No futuro, na condição de egresso, o graduado em Letras poderá exercer autonomia intelectual para mediar o conhecimento pedagógico de conteúdos relevantes para a formação crítica e cidadã dos alunos do ensino básico. Também, o futuro professor poderá — no exercício de sua profissão — estimular o diálogo e as interações no processo de ensino e aprendizagem, visando ao protagonismo dos sujeitos ao lidar com múltiplas linguagens e com as novas tecnologias da informação e da comunicação. Assim, na condição de mestres do amanhã, os estudantes deverão estar atentos para o fato de que: As pesquisas atuais em didática da literatura, fundadas no estudo muito preciso de transcrições de curso, mostram que é a atenção dada ao aluno, enquanto sujeito, a sua fala e a seu pensamento construído na e pela escrita que favorece seu investimento na leitura. A importância do clima estabelecido no interior da comunidade interpretativa (a classe, o professor) é enfatizada: um contexto onde reinam a confiança, o respeito e a escuta mútuos é propício ao encontro com os textos literários — e é mesmo determinante. [...] E é sobre a emoção e a intelecção que se constroem a relação estética e a literatura. Pela leitura sensível da literatura, o sujeito leitor se constrói e constrói sua humanidade. (ROUXEL, 2013, p. 32-33) Por fim, de modo sempre presente, pretendemos que você, nosso estudante, possa envolver-se efetivamente em atividades de formação continuada voltadas para o ensino da literatura, identificando as demandas da sociedade e formulando permanentemente perspectivas comprometidas com os enfrentamentos dos deveres e dos dilemas éticos da profissão. 28 Resumo da Unidade 1 Nesta unidade da disciplina Literatura Brasileira e Modernidade, abordamos especifici- dades da relação entre forma e conteúdo ou, ainda, texto e contexto da ficção e da poesia brasileiras de fins do século XIX e início do século XX, englobando as estéticas do Realis- mo, do Simbolismo e do Pré-Modernismo brasileiros. Os autores aqui abordados foram Machado de Assis (1839-1908), Cruz e Sousa (1861-1898) e Lima Barreto (1881-1922). Es- critores hoje considerados canônicos, sua assimilação ao que se poderia chamar de “pai- deuma” de uma época, na expressão de Ezra Pound, aconteceu graças ao trabalho sis- temático de grandes intérpretes de suas obras. Vozes originais, cada qual ao seu modo, interagiram com o sistema literário brasileiro. Como resultado, Machado de Assis, Cruz e Sousa e Lima Barreto — todos afrodescendentes em um espaço ainda bastante hostil à raça negra e seus descendentes — construíram vozes ficcionais ou líricas — em meio a uma diversidade de gêneros aos quais se dedicaram, como crônicas, epistolografias e ensaios — insubmissas, irônicas e heroicas, que comunicaram ao passado e continuam a comunicar hoje, com contundência, às gerações do presente e do futuro. Esta disciplina oferece perspectivas críticas sobre autores e obras considerados re- presentativos dos fins do século XIX à primeira metade do século XX. Os seguintes autores, conceitos e processos histórico-literários foram abordados e relacionados, em perspectiva crítica, na Unidade 1: formação do cânone da literatura brasileira; Rea- lismo; Simbolismo;Pré-Modernismo; Modernismo; Machado de Assis; literatura da Belle Époque brasileira; Machado de Assis; Cruz e Sousa; Lima Barreto. CONCEITO 29 Referências ALMEIDA, R.; SANTOS, M. F.; PORTO, J. C. Leitura de textos ficcionais e a abordagem escolar da literatura: contribuições para uma pedagogia da escolha. Revista Interameri- cana de Investigación, Educación y Pedagogía. Bogotá, v. 9, n. 1, 2016. Disponível em: https://revistas.usantotomas.edu.co/index.php/riiep/article/view/3601/3871. Acesso em: 30 jan. 2019. ANDRADE, C. D. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1967. BACICH, L.; TANZI NETO, A.; TREVISANI, F. M. (org.). Ensino híbrido: personalização e tecnologia na educação. São Paulo: Penso, 2015. Minha Biblioteca. BAPTISTA, A. B. 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Esperamos que você, estudante, esteja preparado, do ponto de vista da sensibilidade estética e do rigor intelectual, a interpretar o sentido e o alcance das inovações formais e temáticas introduzidas sob diversos prismas e matizes do movimento modernista brasileiro e de seus autores fundamentais, como Mário de Andrade (1893-1945) e Oswald de Andrade (1890-1954), observando tensões e contradições nos discursos produzidos concomitantemente a grandes movimentos internacionais. Nesse processo, esteja atento para dinamizar leituras inter, multi e transdisciplinares, relacionando a literatura aqui apresentada à produção artística da época. Também observe como os autores apresentam, como um dos grandes desafios, a aproximação do erudito ao popular. A brasilidade desenhada desde a literatura romântica aqui se moderniza, propondo-se, inclusive, a abordar o avesso da literatura até então reconhecida como merecedora de estudo e de circulação em rodas de sociabilidade literária, na imprensa e na academia. Nesse ponto, pode-se afirmar: o Modernismo impulsionou uma verdadeira revolução estética e crítica, com diversas facetas, que não apenas queria modernizar a técnica, mas também desejava construir uma literatura nacional autêntica, que fosse às raízes da constituição de nossa brasilidade. Entretanto, não foi uma voz unívoca nem reputada como o único elemento catalizador de importantes mudanças. Nesse sentido, também daremos espaço a questionamentos, rupturas e vozes dissonantes que possam tornar mais complexa a leitura crítica do período que será debatido nesta unidade. INTRODUçãO 34 OBjETIVO Nesta unidade, você será capaz de: • Interpretar o sentido e o alcance das inovações formais e temáticas introduzidas sob os prismas do movimento modernista brasileiro e de seus autores funda- mentais, como Mário de Andrade (1893-1945) e Oswald de Andrade (1890-1954), observando tensões e contradições nos discursos produzidos concomitante- mente a grandes movimentos internacionais. 35 As tendências de ruptura vanguardista bra- sileira: a Semana de Arte Moderna de 1922 e suas consequências Figura 1: Cartaz da Semana de Arte Moderna. Brasil, cidade de São Paulo, 1922. Fonte: wikipedia.org O que a Semana de Arte Moderna de 1922 significou para o panorama literário brasileiro ao longo do século XX? Em que direção vão os estudos acadêmicos hoje para que possamos compreender o alcance e o enraiza- mento de suas propostas para as décadas subsequentes? https://pt.wikipedia.org/wiki/Semana_de_Arte_Moderna#/media/File:Arte-moderna-8.jpg https://pt.wikipedia.org/wiki/Semana_de_Arte_Moderna#/media/File:Arte-moderna-8.jpg36 O país — que se modernizava, como sabemos, a passos lentos, com muitos parado- xos que ainda hoje permanecem — apresentou configurações estéticas e ideológi- cas bastante diversas da experimentação levada a cabo, por exemplo, pelos mo- vimentos vanguardistas europeus da época. A Semana de Arte Moderna de 1922, realizada entre 11 e 18 de fevereiro de 1922, foi, em geral, celebrada como um marco. Nessa data, entretanto, vemos uma série de estudos e reavaliações que procuram ofere- cer novas perspectivas para velhas questões. Nesse sentido, podemos apontar críticos que retomam o marco modernista para ba- lanço, como Silviano Santiago. Não há, assim, avaliações unívocas sobre a importância desse marco temporal, ora visto como essencial, ora visto como incidental, no panorama da historiografia literária brasileira. Sobre como o evento ganha as páginas da imprensa, sendo divulgado na arena pública, leiam-se as palavras do jornalista Marcos Augusto Gonçalves, autor de 1922: a semana que não terminou (2012): Na madrugada de 27 de janeiro de 1922, a cidade de São Paulo foi acor- dada com um tremor. Janelas trepidaram, frascos de remédios pularam das prateleiras, ornamentos caíram de fachadas e animais entraram em alvoroço. [...] O tremor, é claro, virou o assunto da cidade. [...] No domingo, dois dias depois do terremoto, o Correio Paulistano noti- ciava que “diversos intelectuais de São Paulo e do Rio, devido à iniciati- va do escritor Graça Aranha”, pretendiam apresentar no Municipal uma demonstração do que haveria “rigorosamente atual” no mundo artístico, da escultura à literatura, passando pela música, pela arquitetura e pela pintura. (GONÇALVES, 2012, p. 16) O movimento, de fato, causaria abalo artístico-cultural paralelo ao terremoto acontecido poucos dias antes. Publicada 90 anos depois do evento, a obra 1922 apresenta um pano- rama amplo dos antecedentes, além de fatos e movimentos posteriores ao evento. Situa o papel de expoentes, como o de Graça Aranha, que morava no Rio de Janeiro, e nomes que viviam na própria capital paulista, como Guilherme de Almeida (1890-1969), Victor Brecheret (1894-1955), Anita Malfatti (1889-1964), Tarsila do Amaral (1886-1973), Menotti del Picchia (1892-1988), Oswald de Andrade (1890-1954) e Mário de Andrade (1893-1945), entre outros. 37 Vejamos como críticos de renome avaliam a Semana de Arte Moderna. Antonio Candi- do — com sua criteriosa leitura de textos de modernistas, avaliados com a lupa de quem domina um repertório amplo de autores do cânone moderno europeu — assim analisa o movimento: A Semana da Arte Moderna (São Paulo, 1922) foi realmente o catalisador da nova literatura, coordenando, graças ao seu dinamismo e à ousadia de alguns protagonistas, as tendências mais vivas capazes de renovação, na poesia, no ensaio, na música, nas artes plásticas. Integram o movi- mento alguns escritores intimistas como Manuel Bandeira, Guilherme de Almeida; outros, mais conservadores, como Ronald de Carvalho, Menotti del Picchia, Cassiano Ricardo; e alguns novos que estrearam com livre e por vezes desbragada fantasia: Mário de Andrade, Oswald de Andrade, na poesia e na ficção; Sérgio Milliet, Sérgio Buarque de Holanda, Prudente de Moraes, neto, no ensaio. Dirigindo aparentemente por um momento, e por muito tempo proclamando e divulgando, um escritor famoso da geração passada: Graça Aranha. (CANDIDO, 2006, p. 124) Silviano Santiago, por seu turno, anos depois e por outra chave, procuraria situar o movi- mento como expressão de um entre-lugar, demarcando a necessidade de superar a crítica literária de viés modernista para lançar-se no que se pode denominar pós-modernidade: Entre o sacrifício e o jogo, entre a prisão e a transgressão, entre a submis- são ao código e a agressão, entre a obediência e a expressão — ali, nesse lugar aparentemente vazio, seu templo e seu lugar de clandestinidade, ali se realiza o ritual antropófago da literatura latino-americana. (SANTIAGO, 2013, p. 30) De qualquer modo, é o caso de reconhecer, logo de partida, que podemos reler critica- mente as proposições estéticas introduzidas por participantes da Semana de Arte Mo- derna de 1922, mas é fato que suas consequências para o panorama da literatura e da arte brasileiras no século XX foram e continuam sendo duradouras, sobretudo porque inseriram, nas artes e na cultura, um vivo desejo de revitalizar-se e de lutar contra um passado patriarcal e fundamentalmente baseado nas relações pessoais, matizado por uma máscara de republicanismo apenas de fachada: A combinação de uma nova perspectiva histórica, o novo espaço-tempo da cidade grande de pós-guerra, com uma bateria de estímulos artísticos 38 europeus, tornou possível, historicamente, a Semana de Arte Moderna de 1922. Como a tônica do grupo foi a modernização da linguagem, o segundo fator, estético, tem aparecido sempre como sobre determinante. A Semana pretendeu ser a abolição da República Velha das Letras. (BOSI, 2003, p. 210) Importa ainda apontar para perspectivas críticas abertas por pesquisas recentes desen- volvidas nos campos da literatura e da cultura brasileiras. A produção dos escritores mo- dernistas (ou simplesmente modernos, sobretudo quando as propostas estão em campo crítico com relação a certo cosmopolitismo de natureza estetizante) é exemplar de uma produção ao rés do chão e de caráter mais informal se compararmos com a geração amadurecida nas décadas anteriores, por volta de 1900. Tal como foi apontado por Júlio Castañon Guimarães em Contrapontos: notas sobre correspondência no modernismo (2004), ao falar da importância da escrita epistolográfica para a geração modernista, é praticamente impossível não mencionar uma sociabilidade peculiar dessa geração, que troca impressões e se fortalece por meio de documentos que percorrem a vida privada, e não só por obras que circulam no mercado de bens simbólicos, ainda incipiente no país. Para Guimarães: “Em termos amplos, pode-se falar, em relação à carta, da ‘instabilidade de suas formas’, ‘dessa forma sempre em movimento’, do ‘caráter essencialmente híbrido do gênero’ e de ‘gênero de fronteira’.” (GUIMARÃES, 2004, p. 11). Desse modo, uma leitura atenta da correspondência e de outros documentos inéditos de arquivos de escritores ligados à modernização no Brasil permitiria delimitar o contex- to em que se forma uma narrativa solta, aparentemente despropositada, comprometida com a comunicabilidade, oferecendo suporte para se avaliar a importância de autores diversos, com perspectivas e anseios diferenciados. A obra efetivamente publicada pode, então, ganhar novos destaques e balizas. 39 Sobre as possibilidades abertas com estudos sobre a epistolografia de escritores brasileiros (e outros documentos de arquivos pessoais, por ex- tensão), é esclarecedora a afirmação do pesqui- sador e professor universitário Marcos Antonio de Moraes: A correspondência de escritores, artistas plásticos e músicos, documentação de caráter privado que vem suscitando grande interesse editorial no Brasil, abre-se para pelo menos três fecun- das perspectivas de estudo. Pode-se, inicialmente, recuperar na carta a expressão testemunhal que define um perfil biográfico. Confidências e impressões espalhadas pela correspondência de um artista contam a trajetória de uma vida, delineando uma psicologia singular que ajuda a compreender os meandros da criação da obra. A segunda possibilidade de exploração do gêne- ro epistolar procura apreender a movimentação nos bastidores da vida artística de um determinado período. Nesse sentido, as estratégias de divulgação de um projeto estético, as dissensões nos grupos e os comentários acerca da produção contemporâ- nea aos diálogos contribuem para que se possa compreender que a cena artística (livros e periódicos, exposições, audições, al- tercações públicas) tem raízes profundas nos “bastidores”, onde, muitas vezes, situam-se as linhas de força do movimento. Um terceiro viés interpretativovê o gênero epistolar como “arquivo da criação”, espaço onde se encontram fixadas a gênese e as diversas etapas de elaboração de uma obra artística, desde o embrião do projeto até o debate sobre a recepção crítica favore- cendo a sua eventual reelaboração. A carta, nesse sentido, ocu- pa o estatuto de crônica da obra de arte. A crítica genética, ao considerar a epistolografia um “canteiro de obras” ou um “ateliê”, busca descortinar a trama da invenção, o desenho de um ideal estético, quando examina as faces dos processos da criação. (MORAES, 2007, p. 30) Saiba mais 40 Por fim, vale dizer que discursos de fronteira como cartas, anotações, diários, crônicas etc. podem oferecer uma base precisa para o desenvolvimento de novos e originais es- tudos, atentos para movimentos públicos e de bastidores, para declarações abertas e para reflexões íntimas, para o manifesto e o sub-reptício, de modo a flagrar a literatura — sempre em movimento — como um terreno de manifestação da complexidade humana. Elas colaborarão para dinamizar os estudos acadêmicos sobre o período, abrindo novas sendas de leitura e interpretação. Leia-se, nesse sentido, a apreciação crítica realizada a partir de leituras das cartas de Mário de Andrade enviadas a Henrique Lisboa, quando a estudiosa Eneida Maria de Souza tece considerações precisas sobre a relação complexa de Mário de Andrade com o nacionalismo: O projeto estético de Mário de Andrade, amadurecido e divulgado não apenas pela sua obra como pelas discussões em artigos, livros e cartas, persistiu até a sua morte, como pode-se comprovar por uma das car- tas endereçadas a Henriqueta, em 1944. Na realidade, o nacionalismo que presidia esse projeto não impedia o olhar para fora, ao contrário, se construía a partir da articulação entre os dois polos. Por ocasião da guer- ra, ao projeto estético se acrescenta a ideologia política, o que irá tornar o intelectual mais empenhado na defesa de uma literatura de combate. (SOUZA, 2000, p. 303) Portanto, convém sempre ler nas linhas e nas entrelinhas como as trajetórias moder- nas se constroem ao longo do tempo, inclusive como releem sua atuação. A apreciação crítica de Eneida Maria de Souza joga luz para o fato de que o compromisso estético e ideológico não é uma via de mão única; de outro modo, delineia-se, às vezes, no calor da hora, conforme os projetos se articulam e espaços são abertos, em diálogo com a tradi- ção e com as perspectivas inovadoras que se abrem em contato com um mundo cada vez mais interligado, conectado, globalizado. MIDIATECA Acesse a midiateca da Unidade 2 e veja o conteúdo complementar indicado pelo professor nas Mídias 1 e 2. 41 Vozes altissonantes do Modernismo brasi- leiro: Mário de Andrade e Oswald de Andrade Nomes consagrados no panteão de escritores modernistas, Mário de Andrade (1893- 1945) e Oswald de Andrade (1890-1954) foram amigos durante os anos mais combativos da década de 1920. Participaram ativamente do movimento modernista, tendo formado com outros modernistas — como o chamado Grupo dos Cinco, composto por Tarsila do Amaral (1886-1973), Anita Malfatti (1889-1964), Menotti del Picchia (1892-1988) e os próprios Oswald e Mário — um laço de profunda amizade e de trabalho. Entretanto, diver- gências em princípio pessoais — mas que guardam nítidas discordâncias no campo da criação literária, como ficaria visível nos anos subsequentes — os afastariam. Oswald de Andrade caminha para um estilo mais experimental, ao passo que Mário de Andrade se nacionaliza, com uma voz própria, cada vez mais atenta à diversidade brasileira. Os nomes elencados apontam as linhas gerais da atualização estética em voga na dé- cada de 1920 no Brasil. Nesse contexto, as obras de Mário de Andrade e de Oswald de Andrade produzidas em finais da década de 1920 tornam-se paradigmáticas do nosso Modernismo, de modo que, retomadas, estudos críticos e releituras continuariam a ser realizados subsequentemente. Figura 2: Mário de Andrade. Fonte: www.cartaeducacao.com.br http://www.cartaeducacao.com.br/aulas/medio/o-poeta-mario-de-andrade/ http://www.cartaeducacao.com.br/aulas/medio/o-poeta-mario-de-andrade/ 42 Mário de Andrade normalmente é apontado como o grande nome da Semana de Arte Moderna. Curioso e inquieto, em 1922 já tinha se lançado como poeta quando funcionou como uma espécie de elemento aglutinador modernista. Saiu em defesa da amiga Ani- ta Malfatti quando esta foi publicamente criticada por Monteiro Lobato. Segundo João César de Castro Rocha (2011), Monteiro Lobato teria relativamente acertado ao desferir uma crítica àqueles que preferiam emular as escolas estrangeiras em vez de retratar o Brasil “bem brasileiro”. O criador do Jeca Tatu começava assim seu texto mais conhecido desferido contra a jovem pintora Anita Malfatti, apontando “duas espécies de artistas”: Uma é composta dos que veem normalmente as coisas e em consequên- cia fazem arte pura [...]. A outra espécie é formada dos que veem anor- malmente a natureza e a interpretam à luz de teorias efêmeras, sob a su- gestão de escolas rebeldes, surgidas lá e cá como furúnculos da cultura excessiva. São produtos de cansaço e do sadismo de todos os períodos de decadência: são frutos de fins de estação, bichados ao nascedouro. (LOBATO, 1917) Uma das reações a essa crítica lobatiana foi unir os amigos modernistas em defesa de Anita. A crítica teria agido como um catalisador do movimento, a fim de se defender dos ataques e buscar solidificar perspectivas modernas a partir do Brasil. Muitos foram os acontecimentos, eventos e obras que vieram a reboque. A técnica se fortalecia, enquan- to o movimento criativo percorria novas sendas, como as pesquisas empreendidas por Mário de Andrade — sobretudo após meados da década — para estudar a cultura e a arte popular brasileiras. Desse seu interesse e de sua perspicácia, nasce o belo Macunaíma, publicado em 1928. Figura 3: Capa da primeira edição de Macunaíma. Fonte: wikipedia.org https://pt.wikipedia.org/wiki/Macuna%C3%ADma#/media/File:Capa_de_Macuna%C3%ADma_2.jpg https://pt.wikipedia.org/wiki/Macuna%C3%ADma#/media/File:Capa_de_Macuna%C3%ADma_2.jpg 43 Segundo Alfredo Bosi, Macunaíma combina dois projetos (BOSI, 2003, p. 188): • Um motivado pela narração, que é “lúdica e estética”. • Outro motivado pela interpretação, “que é histórica e ideológica”. Para esse crítico literário brasileiro e professor: “Há em Macunaíma um tratamento nar- rativo da matéria e uma estilização da linguagem que nasceram de certas opções artís- ticas impensáveis sem a referência direta às poéticas de vanguarda modernista.” (BOSI, 2003, p. 189). O subtítulo do livro, “sem nenhum caráter”, aliás, seria explicado pelo pró- prio autor em texto de prefácio fixado, em 1972, pela pesquisadora e professora Marta Rossetti Batista: O brasileiro não tem caráter porque não possui nem civilização própria nem consciência tradicional. Os franceses têm caráter e assim os joru- bas e os mexicanos. Seja porque civilização própria, perigo iminente, ou consciência de séculos tenha auxiliado, o certo é que esses uns têm ca- ráter. Brasileiro (não). Está que nem o rapaz de vinte anos: a gente mais ou menos pode perceber tendências gerais, mas ainda não é tempo de afirmar coisa nenhuma. (ANDRADE, 2016, p. 250) Mário de Andrade propõe-se a captar a alma do trickster, “frequente arquétipo mitológico, encontrado em diversas culturas, que surge como um mediador, para resolver contra- dições” (BARRETO, 2016, p. 202). No entanto, como afirma Barreto, o personagem não consegue realizar o ciclo completo do trickster, que migra do princípio do prazer para o princípio da realidade. Assim o é quando é derrotado por Vei, a Sol: Dizem que um professor naturalmente alemão andou falando por aí por causa da perna só da Ursa Maior que ela é o saci... Não é não! Saci inda para neste mundo espalhando fogueira e trançando crina de bagual... A Ursa Maior é Macunaíma. É mesmo o herói capenga que, de tantopenar na terra sem saúde e com muita saúva, se aborreceu de tudo, foi-se em- bora e banza solitário no campo vasto do céu. (ANDRADE, 2016, p. 243) 44 Figura 4: Oswald de Andrade. Fonte: wikipedia.org No mesmo ano da publicação de Macunaíma, em 1928, Oswald de Andrade, na Revista de Antropofagia, lançaria o Manifesto antropófago, em que propõe a fusão entre passa- do e presente, entre o culto e o popular, as referências consideradas nobres e as profanas. Não há, como podemos perceber, uma ênfase à razão e à cronologia; o manifesto propõe, outrossim, a subversão, uma assimilação cultural que recusa estabelecer dualidades e se sintonizar com uma ideia ilustrada de modernização: [...] Antes dos portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto a felicidade. Contra o índio de tocheiro. O índio filho de Maria, afilhado de Catarina de Médicis e genro de D. Antônio de Mariz. A alegria é a prova dos nove. No matriarcado de Pindorama. Contra a Memória fonte do costume. A experiência pessoal renovada. Somos concretistas. As ideias tomam conta, reagem, queimam gente nas praças públicas. Suprimamos as ideias e as outras paralisias. Pelos rotei- ros. Acreditar nos sinais, acreditar nos instrumentos e nas estrelas. (AN- DRADE, 1928) https://pt.wikipedia.org/wiki/Oswald_de_Andrade#/media/File:Oswald_de_andrade_1920.jpg https://pt.wikipedia.org/wiki/Oswald_de_Andrade#/media/File:Oswald_de_andrade_1920.jpg 45 Sua obra adensa-se e, muito embora tenha passado por relativo ocaso nas décadas de 1930 e 1950, passa a ser relida, com inteligência, por artistas e intelectuais sobretudo após 1950, como é o caso dos concretistas — faziam parte do movimento concretista os irmãos Campos, Augusto (1931) e Haroldo (1929-2003), e Décio Pignatari (1927- 2012) — e da Tropicália, movimento cultural brasileiro multidimensional levado a cabo por artistas e intelectuais como Caetano Veloso (1942), Gilberto Gil (1942), Hélio Oiticica (1937-1980), Glauber Rocha (1939-1981), José Celso Martinez Corrêa (1937) e Torqua- to Neto (1944-1972). Contudo, em meio a intelectuais, artistas e escritores que passaram a ser conhecidos em território nacional, como Mário de Andrade e Oswald de Andrade, há outros que também surgiram como pontas de lança do movimento de renovação artística e cultural no Brasil das décadas de 1920 e 1930. Esse é o caso do sociólogo, antropólogo e ensaísta Gilber- to Freyre, que proporcionou outro sentido (e alternativa, como veremos a seguir) para a experiência moderna brasileira. Agora, vamos refletir sobre a seguinte questão: houve outros projetos de modernização, concomitantes àqueles do eixo Rio de Janeiro-São Paulo, circulando pelo Brasil da primeira metade do século XX? Quais teriam sido suas características, suas ideias principais e suas consequências mais visíveis? Destacar problemáticas estéticas e ideológicas presentes em obras produzidas fora do eixo Rio de Janeiro-São Paulo — o qual concentrou os influxos da modernidade vanguar- dista no Brasil — é nosso objetivo neste momento. Um conceito que pode colaborar com o nosso mapeamento é o de modernidades alternativas. Portanto, será mister aprofundar uma dinâmica de leitura inter e transdisciplinar, visto que a literatura — em especial fora do mercado de produtos simbólicos de paulistas e cariocas — se mistura com os outros campos artísticos e intelectuais, como artes plásticas, planejamento urbano, arquitetura, música popular, história, política etc. Desenvolveremos algumas reflexões nesse sentido no próximo tópico, recordando que será fundamental, a partir de agora, sedimentar um discurso que se liberte do texto pro- priamente verbal, procurando flagrar possibilidades, conexões e leituras que agreguem formas, propostas e possibilidades elaboradas para além das fronteiras disciplinares. As- sim, o próprio modelo de sala de aula física como ambiente colaborativo pode reverberar o que buscamos no espaço virtual, estimulando a busca por informações a fim de que se transformem em conhecimento: 46 Esse compartilhamento constante entre os professores passa a ser com- preendido pelos estudantes como uma forma mais ampla de acesso aos conhecimentos. A perspectiva interdisciplinar busca quebrar o paradig- ma de que as disciplinas devem ser apresentadas separadamente, como se não tivessem relações entre si. (GONÇALVES; SILVA, 2018) Nessa direção, caminhamos para o entendimento de que, para compreender a multiplici- dade que as produções estéticas modernistas nos colocam, é fundamental buscar pers- pectivas interdisciplinares a fim de quebrar paradigmas redutores em prol do protagonis- mo dos estudantes. Tal postura de compartilhamento de saberes, abertura e empatia, sem dúvida, é crucial nos dias de hoje, quando o desempenho profissional exige a inte- gração, a convivência e o aprofundamento compartilhado de saberes. Nesse sentido, as leituras literárias podem colaborar para o desenvolvimento de habilidades, competências e saberes. MIDIATECA Acesse a midiateca da Unidade 2 e veja o conteúdo complementar indicado pelo professor nas Mídias 3 e 4. 47 A província entre passado e futuro: moder- nidades alternativas a partir de produções periféricas Neste tópico, daremos destaques ao que denominamos como modernidades alternati- vas, ou seja, aos discursos sobre a modernidade brasileira que acrescentam elementos diferentes àqueles sedimentados no esteio das obras produzidas por Mário de Andrade ou Oswald de Andrade. No diálogo da literatura com outros campos do saber, até mesmo a culinária é fonte de pro- postas modernizadoras que seriam digeridas ao longo das décadas posteriores no Brasil do século XX. Esse fato nos permite chegar a uma leitura mais complexa sobre o processo modernizador brasileiro: ele não foi um movimento de uma única direção, mas se caracteri- zou por uma diversidade de propostas, de leituras, de posturas estéticas e ideológicas, por buscas formais e críticas que fossem diferentes daquelas que chegavam sob a roupagem dos movimentos vanguardistas internacionais — como o Futurismo, o Surrealismo, o Da- daísmo, o Cubismo e outras propostas estéticas em voga naquele momento. Figura 5: Gilberto Freyre. Fonte: wikipedia.org https://pt.wikipedia.org/wiki/Gilberto_Freyre#/media/File:Gilberto_Freyre1.jpg https://pt.wikipedia.org/wiki/Gilberto_Freyre#/media/File:Gilberto_Freyre1.jpg 48 Nesse sentido, afirma, de modo esclarecedor, o crítico literário e professor universitário Antonio Dimas sobre a obra do ensaísta pernambucano Gilberto Freyre, que se moldou como uma das vozes mais proeminentes no questionamento da ânsia modernizadora superficial que teria se apossado do Brasil na década de 1920: Na particularização a que desce, Gilberto se compraz em esmiuçar fun- ções consideradas menos nobres que o exercício do intelecto. Dessa for- ma, ao esquadrinhar a diversificada culinária regional brasileira, sua inquie- tude renovadora não apregoa, como de costume, a erradicação de hábitos europeus consolidados, que funcionam como verniz superficial sobre nos- sa efusiva indigência mental e cultural, mas apregoa, sim, um mergulho no nosso próprio ethos. Em resumo, o que Gilberto propõe é que nos des- vencilhemos de um passado europeizado recente que, eventualmente, nos descaracteriza. Sua proposta vai mais fundo, porque busca num passado mais distante os elementos coloniais que concorreram para constituir nos- sa então incipiente nacionalidade. Nostálgico do campo, seu comporta- mento metodológico leva-o para junto de muitos daqueles historiadores ingleses como Raymond Williams ou Keith Thomas, que nunca despre- zaram e nem omitiram o envolvimento pessoal confesso na restauração intelectual do passado nacional. (DIMAS, 2004, p. 22-23) Como afirma o próprio Antonio Dimas (2004), a provocação maior de Gilberto Freyre — autor da obra-prima de interpretação do Brasil Casa-grande & senzala (1933) — não era propriamente dirigida ao intelecto. Diferentemente, seus estímulos — apesarde uma atuação bastante ligada à produção escrita muito atuante na vida pública por meio da imprensa periódica — seriam sensoriais, atuando nas experiências relacionadas ao coti- diano, à vida comezinha, aos processos de amadurecimento subjetivo fortemente ligados à atuação social, ao ser em interação com seu meio — homens, animais, plantas, comi- das, sons da infância e da vida popular, festas, manifestações religiosas autênticas etc. O burburinho da rua entra, portanto, no espaço doméstico sem que seja possível separar o que é público e o que é privado; o que é rural e o que é urbano; o que é tradição e o que é vanguarda. Desse modo, é fato que, em torno do sociólogo formado nos Estados Unidos, reuniu-se um conjunto de intelectuais fortemente engajados em compor leituras historicamente sensíveis de espaços múltiplos, reverberando de espaços como Recife e outros, de modo a combinar originalmente estética e história — como bem afirma João Alexandre Barbosa no texto Gilberto Freyre e a literatura: alguns conceitos (Cf. BARBO- SA, 2004), em movimento pendular, compreensivo, agregador, reflexivo e crítico: 49 Se, por um lado, São Paulo prega uma renovação essencialmente literá- ria, por outro, Pernambuco acrescenta a História no centro do debate, de modo que Estética e História passam a ser, uma para a outra, o ponto de tensão que garantiria o exercício, bem logrado, de leituras modernas do passado e da cultura popular do país. [...] O aspecto provinciano, pois, en- fatizaria o primeiro lado da tensão, mas, se observarmos que o conceito dava abertura para a vanguarda cosmopolita em seu interior, o próprio termo “provinciano” estaria, em movimento pendular entre Estética e His- tória, procurando o justo e sempre problemático equilíbrio entre ambos os paradigmas. (DIAS, 2017, p. 322) Diante do exposto, pergunta-se: o que significam modernidades alterna- tivas? Estaríamos diante de configurações alternativas de modernidade quando discorremos sobre autores que se dedicaram a problemas regio- nais ou brasileiros em contraposição à tendência cosmopolita em voga? O conceito, correntemente empregado na área de estudos de sociedades, culturas e his- tória, destaca que pode haver projetos de modernização em disputa no globo — segundo concepção presente no livro organizado por Daniel Aarão Reis e Denis Rolland (2008) — desde pelo menos o século XVII, quando os primeiros movimentos liberais começavam a tomar forma sobretudo em território europeu, como Inglaterra e França. Tomando em- prestado o termo para a seara da análise literária, é possível observarem-se diferentes lei- turas e apropriações do conceito de modernidade, o que nos permitiria compreender que, no Brasil daquele período, já era possível antever a natureza heteróclita das proposições modernas, em diálogo permanente entre si, apesar da diversidade de posturas estéticas e de visões éticas: por exemplo, enquanto a modernidade centrada em São Paulo era mais ligada à direção apontada pelas vanguardas estéticas internacionais, que questionavam fortemente as convenções literárias tradicionais, ocorriam outras visões de modernidade abertas a conciliar vertentes mais ligadas à tradição, sem rupturas substanciais. Nesse sentido, o conceito de identidades múltiplas, trabalhado pelas autoras Mariza Ve- loso e Angélica Madeira (1999), pode render leituras renovadas da obra de Gilberto Freyre, como afirma Sérgio Paulo Rouanet em prefácio ao livro Leituras brasileiras, das autoras supracitadas: Enfim, o conceito de identidades múltiplas é indiretamente introduzido por uma citação de Gilberto Freyre, destinada a ilustrar o perspectivismo metodológico do autor, sua capacidade de assumir, por empatia, diferen- 50 tes pontos de vista. Ele se coloca do ponto de vista “do homem, do adulto, do branco, mas também do menino, da mulher, do indígena, do negro, do afeminado e do escravo”. É quase o interacionismo de George Herbert Mead, que supõe a capacidade de role-taking, de assumir a perspectiva de vários Outros, até que o processo se consume com a internalização do ponto de vista do generalized Other, o ponto de vista do gênero humano como um todo. Pode-se imaginar que em nosso mundo globalizado, em que o sujeito cartesiano se desfaz em mil estilhaços, a experiência das identidades múltiplas venha a rotinizar-se, e que o pluriperspectivismo de Gilberto se transforme no protótipo de uma subjetividade pós-moderna, congruente com os processos globais de internacionalização e fragmen- tação. (ROUANET, 1999, p. 24) Para Ricardo Benzaquen de Araújo, sem dúvida, ao focarmos a obra de Gilberto Freyre, estamos “lidando com uma modernidade alternativa, polifônica e nada estetizante, capaz de aliar a degustação de iguarias estrangeiras com o consumo da comida regional, o en- volvimento pessoal com a distância acadêmica, a ciência, enfim, com a boemia” (ARAÚ- JO, 1994, p. 197). Esse viés alternativo de Gilberto Freyre acaba por reverberar em outros autores. Um gran- de exemplo da junção de perspectivas cosmopolitas e provincianas em nossa literatura é a poesia de Manuel Bandeira (1886-1968). A trajetória do poeta pernambucano — que será, inclusive, objeto de reflexões mais detidas em outro momento — percorre uma pau- latina aproximação de elementos do cotidiano popular por meio das memórias da infân- cia, que se refletem e refratam (por meio da forma literária esteticamente trabalhada) a riqueza do meio social em transformação, que busca uma voz brasileira e um espaço autenticamente nacional. Nesse sentido, não é surpreendente notar que os modernistas brasileiros — entre eles, o próprio Manuel Bandeira, que via com ressalvas esse rótulo, embora fosse um moderno da primeira fila — tenham tido uma enorme sensibilidade crítica ao discorrer sobre as especificidades da língua portuguesa do Brasil. Em outras palavras, há um contorno nítido a uma crítica que procura destacar as características próprias do português brasileiro, afeito à oralidade, de ritmo próprio, mais maleável em sua multiplicidade de contatos com outras vertentes além da portuguesa europeia, como as línguas africanas e as indígenas: 51 A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros Vinha da boca do povo na língua errada do povo Língua certa do povo Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil Ao passo que nós O que fazemos É macaquear A sintaxe lusíada A vida com uma porção de coisas que eu não entendia bem Terras que não sabia onde ficavam. (BANDEIRA, 2017, p. 259) No poema de Manuel Bandeira, é visível como a voz lírica busca a coloquialidade e o co- tidiano. Em outras palavras, a voz do homem simples, à margem do processo de moder- nização excludente, ganha contornos próprios, que permitiriam observar a realidade por perspectivas diferentes. No poema, a métrica é livre, há inúmeras imagens evocativas e a narratividade flui a partir de elementos do cotidiano — que se mostram à rua — por meio de versos longos que se alternam com versos curtos, de sintaxe entrecortada. Ao longo de 80 versos, o olhar percorre retratos e paisagens heterogêneas (vendedores de rua, logradouros, os contornos da mulher brasileira, comidas etc.), e a perspectiva subje- tiva multiplica-se ao se abrir para o que ocorre à sua volta com empatia e aceitação do diferente. Como afirmamos em outra ocasião, é como se, em um poema como Evocação do Reci- fe, pudéssemos constatar dois grandes movimentos tensivos da modernidade brasileira em ação: a região e a tradição de Freyre e o aspecto estético do modernismo paulista, presentificados, por exemplo, na cadência entrecortada do verso livre e no recurso à co- lagem (DIAS, 2017, p. 322). O éthos da nacionalidade, assim, passa a ganhar contornos a partir de um encontro entre o eu e o outro, o subjetivo e o objetivo, a voz lírica e a história, processo este que deixaria marcas profundas na literatura do período e depois. Se essa vertente seria uma a mais ao longo da década de 1920, ganha contornos