Buscar

Complexo de Bode Expiatório

Prévia do material em texto

\)111 • llltl rnbr da ulpa 
1l ia BI inton 'Perera 
o nno bode expiatorio e aplicado a indivfduos ou grupos de in­
i ~ a ntado como causadores de infortUnio. Apontar urn bode 
pial no slgnifica encontrar aqueles que podem ser identificados com 0 
mal, acusados de te-Io causado e expulsos do clrculo da familia ou da 
omunidade. de modo a deixar os membros restantes com 0 sentimento de 
e estAo livres de culpa. 
Psicologicamente, a acusa~ao serve para que 0 individuo negue a 
sombra, projetando-a em outra pessoa. A sombra estci relacionada com 
atitudes, comportamentos e emo~oes que nao estAo de acordo com os 
ideais do ego, ou com uma suposta perfei~ao e bondade de Deus. Essas 
inst.3.Jlcias nao sao reconhecidas como componentes da propria condi~ao 
humana e como fazendo parte da inteireza de Deus; elas sao reprimidas, 
negadas e lan~adas para 0 inconsciente. 
Quando individuos se identificam com 0 bode expiat6rio - i to e, 
quando assumem responsabilidade pessoal pelas qualidades da ombra 
que outros rejeitaram -, elas poderno lomar-se presas de urn padrao distor­
cido de auto-rejeiyao e de urn comportamento motivado pela culpa ou peJa 
vergonha. 
o Comp/exo de Bode Expiatorio e urn livro que exam ina os muitos 
aspectos da psicologia do bode expiat6rio segundo suas manife la~(kS em 
homens e mulheres do mundo modemo, com uma riqueza de exemplos 
extraidos da pratica analitica da autora que aborda 0 tema como urn pa­
drao arquetipico subjacente na mitologia e na tradiyao judeu-cristA. 
EDITORA CULTRIX 
o COMPLEXO DE BODE EXPIATORIO 
Rumo a uma Mitologia da Sombra e da Culpa 
• 
Titulo do original: 
The Scapegoat Complex 
TO'tWrd a Mythology of Shadow and Guilt 
Copyright © 1986 by Sylvia Brinton Perera. 
COLEC;AO ESTUDOS DE PSICOLOGlA 
JUNGUlANA POR ANALISTAS JUNGUlANOS 
1 · 2 ·3·' · ~·8 · f·.· e-IO 
Direitos de tradu~o para a lingua portuguesa 
adquiridos com exclusividade pel~ 
EDITORA CULTRlX LTD A 
Rua Dr. Mario Vicente , 374 ·04270· sao Paulo , SP - Fone: 272·1399 
que se reserva a propriedade literuia desta tradu~o. 
Impressa I'UlS oficiTtlls grdjicas do Eduora PenJllmento. 
Se fosse assim ta'o simples! Se 0 problema se resumisse a existen­
cia de pessoas ruins cometendo atos malignos, insidiosamente, em al­
guma parte, bastando apenas afasta-Ias de n6s e destru {-las ! Entretan­
to, a linha divis6ria entre 0 bern e 0 mal perpassa 0 cora9ao de cada ser 
humano. E quem estara disposto a destruir uma parte do seu pr6prio 
cor~ao? 
Alexander Solzhenitsyn, 0 Arquipelago Gulag 
# 
SUMARIO 
Pr'e facio. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . 9 
Introdu<yao . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 11 
1. A Expiafao do Mal e da Culpa. . . . . . . . . . . . . . . . . .. 15 
A ovelha negra .............................. , 20 
o ritual hebraico da expiac;ao ................. " 22 
2. A Estrutura do Complexo de Bode Expiatorio . . . . .. 24 
Azazel, 0 acusador. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 25 
o bode imolado ............................ " 29 
o bode erran te . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 3 I 
o sacerdote e 0 ego-persona. . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 32 
3. o Exilio no Deserto . .............. . ........... 35 
4. 0 Bode Expiatorio na Familia. . . . . . . . . . . . . . . . . .. 41 
5. 0 Complexo de Bode Expiatorio ea Estrutura do Ego.. 47 
Distorc;oes da percepc;ao . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 48 
Transferencia e contratransferencia. . . . . . . . . . . . . .. 57 
Experiencia dolorosa continente e duradoura . . . . . .. 61 
A vitima escolhida. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 69 
Pro blemas de auto-afirmac;ao. . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 74 
Satisfac;ao de carencias . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 91 
6. A Image", do Bode Expialorio-Messias . . . . . . . . . . .. 104 
7. DClIses Femi1lillos e A nUllis . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 110 
8. A Cura do Complexo de Bode Expiatorio . . . . . . . . .. 118 
Azazel, 0 deus-bode. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 126 
o sacerdote de Jeov3 .......................... 136 
9. 0 Sentido do Arquetipo do Bode Expiat6rio . . . . . .. 139 
Notas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 157 
Glossario de tennos junguianos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 162 
l?ibliografia selecionada. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 165 
Indice remissivo ................................. , 169 
PREFACIO 
o material abordado neste livro deve muito a algumas 
pessoas. Diversos amigos contribuiram com seu apoio pes­
soal. Entre eles, Jerome Bernstein, Edward Edinger, Patricia 
Finley, Yoram Kaufmann, Katherine North, Barbara Sand, 
Nathan Schwartz-Salant, Charles Taylor e Gertrude Ujhely. 
Apesar dos insights sobre 0 material serem de minha auto­
ria, seus estiinulantes pontos de vista foram de grande ajuda. 
Sou particularmente grata a E. Christopher Whitmont 
pelas muitas conversas em que exploramos o . mito do bode 
expiatario e suas ramificayoes. A relevancia clinica do mi­
to me interessou sobremaneira. Seu importante livro Return 
of the Goddess (0 Retorno da Deusa) aborda as implicayoes 
culturals mais amplas da imagem do bode expiatorio, assim 
como- Eric Neumann em Depth l!sycho[ogy 'and a New Ethic 
(Psicologia Profunda e uma Nova Etica). 
Os trabalhos' de D. W. Winnicott e Harry Guntrip, com 
suas poderosas descriyoes clinicas, foram os primeiros a des­
pertar meu interesse na psicologia da personalidade esqui­
zaide, levando-me a consideni-la em termos dos padroes mi­
ticos subjacentes. 
Quero expressar minha gratidao a falecida Annelie~ Au­
mueller, e a Edward Edinger e Rachel Zahn" pelo auxilio te­
rapeutico no sentido de trabalhar meus proprios grilhoes em 
relayao ao complexo de bode expiat6rio. 
9 
Sou grata. acima de tudo , aos colegas, amigos, alunos 
e analisandos que compaI1ilharalll suas experiencias comi­
go. Sua experi ;ncia. ao lado de minha propria, iluminou 0 
penoso I1l1Cle 0 em to rno do qual este livro se desenvolveu. 
Emhora scm abordar as problemas mais amplos de pro­
je~jo da so mbra. que resultam ern guerras e estao na base 
da paseglli\<lo aos "inimigos" portadores da sombra, espe­
ro que meu trabalho , baseado em profunda analise indivi­
duaL IOssa estimular a outros no sentido de abordar as im­
plica~6es sociais do arquetipo do bode expiatorio. Minhas 
descri~oes de seus efeitos e sua cura terapeutica sao apenas 
urn passo rumo a cura necessaria da patologia do bode ex­
piatorio. q ue amea~a a sobrevivencia da nossa terra. 
10 
INTRODUr;A O 
o tenno "bode expiatorio" e usado, atualmente, com 
grande facilidade nas discussoes sobre moral coletiva. 13 nos 
habituamos a identificar 0 fenomeno na psicologia social, 
havendo diversos estudosdo padrao do bode expiatorio em 
pequenos grupos, na familia e nas poIiticas etnicas e nacionais. 
o tenno e aplicado a individuos e grupos apontados 
como causadores de infortunio. A acusa~ao serve para ali­
viar os outros, os acusadores, de suas responsabilidades, bern 
como para fortalecer-Ihes 0 sentido de poder e integridade. 
Nessa acep'tao corrente, a busca do bode expiatorio alivia-nos, 
tambem, quanto ao nosso relacionamento com a dimensao 
transpessoal da vida, posta que na epoca atual chegamos a 
trabalhar com uma forma pervert ida do arquetipo, que ig­
nora os deuses, enquanto acusamos 0 bode expiatorio e 0 
demonic pelos males da vida. 
Esquecemo-nos de que 0 bode expiat6rio era, origina­
riamente, uma vitima humana, ou animal, escolhida para 0 
sacrificio ao deus do mundo subterraneo, a fim de aplacar 
a ira da divindade e purificar a comunidade. 0 bode expia­
t6rio era urn pharmakon, ou agente de cura. Nos rituais, 0 
bode expiat6rio era dedicado e identificado com a divinda­
de. Sua fun<;ao era a de levar a dimensao transpessoal a a~­
xiliar e renovara comunidade, uma vez que esta reconhecla 
estar envolta e depender das for~as transpessoais. 0 ritual 
1 1 
do bode expiatorio , tal como os outros, era promovido "pa­
ra enriquccer 0 sentido ou chamar a atenc;ao para outros nf­
veis de exist0ncia... l Lie] incorpora[ va] 0 mal e a morte a 
vida e a bencvolcncia, num Illodclo unico, amplo e unifica­
dor".l 
Ainda CrCllh)S. atualmcnte, na efic,lcia da a~ao magi­
ca ritual. Normalmcnte, porcm, estamos inconscientes do 
"Ill0dclo ampl0 c unificador", a Jnatriz transpessoal que en­
volve nossas a\ocs. Percebemos apenas a estrutura material 
e secular das a<;6es, ignorando a diJnensao espiritual a qual 
elas. originahnente, visavanl coligar-nos. Assim, segundo urn 
psicologo nloderno: 
[Existe] uma cren9a ocidental generalizada de que uma catas­
trofe possa ser evitada atraves da profUaxia adequada, seja ela 
o batismo ou a amamenta~ao. Gostariamos de acreditar nu­
rna receita... capaz de vacinar-nos ... contra 0 infortunio e 
o fracasso futuros.2 
Este desejo de evitar catastrofes e mundial e forma a 
base do ritual religioso e magico. Na era moderna, entretan­
to, 0 ritual do bode expiat6rio perdeu-se por ter sido bana­
lizado. Seu significado mais profundo e inconsciente. Temos 
a tendencia de sentir que a humanidade e/ou 0 demonio acar­
retam 0 mal sobre 0 mundo, considerando que Deus seja ape­
nas bondade. Isso, porem, significa que a hunlanidade tam­
bem e considerada quase onipotente, capaz de evitar 0 mal 
sem recorrer aq uelas fo[(;as do destino em Il1uito superiores 
a vontade hUJnana. 
o fen6meno do bode expiat6rio, em sua manifesta~ao 
usual, consiste em encontrar-se 0 individuo, ou individuos, 
capazes de serem identificados com algum Inal ou delito, 
responsabiliza-Ios por isso e expulsa-los da comunidade a 
fim de proporcionar, aos membros reInanescentes, um sen­
timento de inculpabilidade e de reconcilia~ao com os padroes 
coletivos de comportamento. Ao mesmo tempo em que 10-
caliza a culpa, ele tambem '"previne contra futuros males 
12 
e faltas", pela expulsao da suposta causa de infortunio. Pro­
porciona a ilusITo de que podcrnos ser "pcrfeitos, como 0 
Pai que esta nos cells", 3 se tomarrnos as medidas profiIati­
cas adequadas; se agirmos de modo adcquado. 
Em termos junguianos, 0 bode expiatorio e urn recur­
so de ncga~ao . da sombra, tanto do homem como de Deus. 
Aquilo que e pcrccbido como irnproprio a conformar-se ao 
ego ideal ou a perfeita benignidade de Deus, e reprimido e 
negado, ou desmantelado e tornado inconsciente. E taxado 
como demoniaco. Nao confessamos conscientemente nos­
sos defeitos e impulsos caprichosos sobre a cabe~a de urn 
bode, a f1Ill de reconciliar-nos com a dimensao espiritual, 
como 0 faziam os antigos hebreus. Nem sempre chegamos 
sequer a perceber que eles fazem parte da nossa constitui­
~ao psicologica. Temos, porem, uma aguda percep~ao de sua 
pertinencia aos outros, os bodes expiatorios. Percebemos, 
nitidamente, a sombra em proje9ao. E 0 acusador sente-se 
aliviado e mais leve, sem aquele fardo que seria inaceitavel 
ao seu ego ideal; sem a sombra. Os que sao identificados com 
o bode expiatorio, em contrapartida, identificam-se com as 
inaceitaveis qualidades da sombra. Sentem-se inferiores, re­
jeitados e culpados. Sentem-se responsaveis por a1go alem 
de sua parcela individual de sombra. Contudo, tanto 0 per­
seguidor como 0 perseguido sentem-se no controle do amal­
gama de bondade e maldade que pertence a propria realidade. 
A perversao medieval e moderna do arquetipo produ­
ziu uma patologia amplamente disseminada. sao muitos os 
bodes expiatorios entre nos; individuos identificados com 
o arquetipo e presos ao padnlo distorcido em que ele atual­
mente opera. Pretendo explorar, nas paginas seguintes, algu­
mas ramifica90es do arquetipo do bode expiatorio na feno­
menologia c1inica dos individuos com ele identificados. A 
imagem do bode expiatorio fornece diretrizes de compre­
ensao capazes de iluminar 0 reverse de urn in-comodo sen­
tido por muitos de nos. Assim, segundo as palavras de C. G. 
Jung, eia pennite "[que] a inconsciencia ... de a luz a cons­
cH:!ncia".4 Acompanhando os estratos do complexo em sua 
13 
forma pato16gica atual, e chcganoo ate as estruturas da ima­
gem arq uctiph:a ori!dnal ) encontramos algumas chaves pa­
ra a cura dos inuivitiuos atingidos pclo complexo de bode 
expiat orio. 
o IcHor dcvera avan<;ar lcntamente, Icmbrando-se de 
que, embora nosso ma tcrial scja, nccessariamente, apresen­
t3do aq ui sob forma linear, seu foco reside na gestalt como 
um to<.1o - a estrutura imeoiata e complcta da imagem ar­
quetipica. Os diversos fatores descritos tern uma existencia 
simultanea no padrao atemporal e denso da pr6pria imagem. 
Minha interpreta~ao baseia-se na minha propria viven­
cia do complexo, no material fornecido por amigos e no tra­
balho clinico realizado com analisandos. 0 complexo de bo­
de expiatorio esta presente em toda parte. Ate certo ponto, 
todos nos partilhamos de seus tra~os mais marcantes, em­
bora estes sejam mais claramente identificaveis em determi­
nados casos. A diferen~a reside no grau de identifica«3o com 
o arquetipo e, portanto, no grau de enfraquecimento do ego. 
A estrutura do complexo permanece a mesma. 
14 
1 
A EXPIAC;AO DO MAL E DA CULPA 
o sacrificio hebreu do bode expiatorio, descrito na Bi­
blia (Levitico, 16), constituia parte central no ritual do Yom 
Kippur, 0 Dia do Perdao. Cerimonias semelhantes de recon­
cilia<rao e expia<rao do mal, em outras culturas, foram des­
critas por James George Frazer e por diversos antropologos.S 
Todas elas representam urn veiculo de renova<rao do conta­
to com 0 espirito que rege 0 povo. Representam, tambem, 
uma tentativa de expulsar os males que afligem a humani­
dade, sejam estes a morte, a enfermidade, a violencia, 0 80-
frimento fisico e psiquico ou 0 sentimento de culpa e peca­
do que acompanha a consciencia de transgressao ao c6digo 
moral. Tais afli<roes sempre amea~am lan<rar-nos na escuri­
dao e na desordem que encontramos fora e dentro de nos. 
No decorrer da historia, a humanidade procurou livrar-se 
dessa escuridao atraves dos ritos de aversao e expurgo, na 
esperan<ra de evitar seus amedrontadores sofrimentos e cul­
pas. 
Nas cerimonias expiatorias, 0 mal e magicamente trans­
ferido para ~utros individuos, animais, plantas ou ol?jetos 
inanimados. E tratado concretamente, como uma enfermi­
dade transmissivel, capaz de ser transferida para urn objeto 
material que, desse modo, torna-se - no nivel concreto e 
literal da consciencia rnagica6 
- urna polui~ao concreta, pas­
sivel de ser eliminada. 
15 
o ritual do Yom Kippur guarda, ainda, urn claro senti­
do do aspecto de confi ssJo do pccado e expia~ao de .culpa. 
A palavra hebraica para expiayao, kipper, esta r~laclonada 
com ki/'purim , proccdimentos climinatorios. EXlstem pa­
ralclos ctimol()gicos nos idiomas babilonico e anlbico. Urn 
rito habilonico rcalizado no quin to dia do festival de Ano­
Novo , com dura~(10 de dez dias, era conhccido como kuppuru 
e envolvia a purga~;Io, a purificac;ao, a confissao de pecados 
e U111 sacrificio humano.' 0 scntido original do termo ba­
bi10nico e '"purgar ou expulsar", sugerindo que 0 sacrificio 
de sangue remove a macula dos pecados. Dutra deriva<;ao, 
baseada num paralelo anlbico, sugere 0 significado "cobrir", 
indicando 0 acobertamento da culpa individual, ocultando-a 
dos olhos da divindade of end ida por meio da reparayao. . 
Jung definiu a culpa como a emo<;ao experimentada 
quando sentimos que nos desviamos da condi<;ao de totali­
dade, estando afastados de Deus, ou, em tennos psicologi­
cos, do Self, 0 centro regulador da psique.! Quando 0 Self 
e projetado sabre uma coletividade ou sobre os pais, a cul­
pa sera sentida pelo desvio a seus padroes estabelecidos de 
comportamento. A culpa, enquanto "perene... componen­
te do individuo",9 manifesta-se com especial agudeza quan­
do nos sentimos inaceitaveis perante nos mesmos, emaranha­
dos em conflitosde dever que nos dividem, for~ando-nos a 
participar de crimes de omissao ou de comissao. Nao pode­
mos evitar nem tolerar esses crimes. Podemos isso sim ser , , 
restituidos a urn sentido de totalidade, assumindo 0 confli­
to e trazendo os opostos polarizados a consciencia, ativan­
do, dessa forma, aquilo que Jung denominou de "funyao 
transcendente" .10 
Na epoca em que 0 ritual hebraico assumiu sua forma 
bfblica, 0 ego individual encontrava-se ainda imerso no co-, , 
letivo, enquanto os costumes coletivos (a Lei) estavam ape­
nas em processo de codifica<;ao. Essa Lei, mais do que a cons­
ciencia individual, representava a fonte dos ditames restri­
tivos. Era considerada a dadiva sagrada de urn Deus unico 
e patriarcal, definido como born e identificado com a uni-
16 
dade e a perfei\:10 de Sell Povo Escolhido . Nes)(J s condicoes 
a rest,llu:a\,10 de \1m sentido de totalidadc, a re staura<;a~ d~ 
u~n sentH\o de cOllgrucl\cia entre 0 homcm e Deus, depcn­
dla de uma separa~[io ritual capaz de promovcr a conscien­
cia do mal atraves de lIllla confissao colctiva e do sacriffcio . 
o rit ual do bode expiat6rio foi, assim, adaptado de ritos mai s 
antigos: UIll , destinado a exorcizar enfermidadcs oferecen­
do-se UIll sacrificio ao deus-bode dos pastores semitas; ou­
tro , a anual morte cerimonial de um ser humano, sacrifica­
do para purificar e renovar a comunidade. 0 ritual hebrai­
co tornou-se urn meio de purgar 0 mal e ensinar a sensibi­
lidade etica. Fazia parte das festividades do Ano-Novo. 
a aspecto expiat6rio do ritual do Ano-Novo foi redefi­
nido pelos hebreus. Atingiu urn contraste marcante em reIa­
~ao aos festivais de renascimento das culturas politeistas viz i­
nhas, em que os rituais de sacrificio cerimonial ciclico do 
Rei-bode expiat6rio, do prazer orgiaco e casamentos sagra­
dos, reunificavam os reinos humano e divino, restituindo , 
aos membros' da comunidade, urn sentido de totalidade, atra­
yeS da participation mystique; urn estado de identidade in­
consciente com a divindade. l1 0 Deus de Abraao e Moises 
opunha-se a essas forrnas de renova~ao que empregavam a 
licenciosidade e a prima materia do caos via uniao extati­
ca. 12 J eova reclamava a expia~ao ordenada dos elementos 
negativos. Atribuindo esses elementos ao bode expiat6rio, 
o sentimento de culpa pelo desvio do estado de unicidade 
com 0 coletivo, e seus valores comuns e sagrados, era pur­
gado. Os membros da comunidade podiam colocar-se nova­
mente como purificados e unidos entre si, sentindo-se aben­
~oados por Deus. 0 sistema simb6lico de pureza e totalida­
de necessario a sobrevivencia grupal era restaurado. 
Todas estas cerimbnias expiat6rias, entretanto, funda­
mentam-se na expulsao daquilo que e percebido como urn 
elemento estranho. Erich Neumann, ao tra~ar uma analogia 
entre 0 desenvolvimento infantil e a hist6ria cultural, rela­
ciona os ritos de expia~ao a rejei~ao anal. Considera amBo­
ga a rejei~ao das fezes a repressao necessaria da sombra pa-
17 
ra a consolida<;ao do cgo. 13 Terllos af urn indfcio da comple­
xidade do lema. Aquila qtlc e rejeitado e, em primeira ins­
tancia, aceit:\vcl ~i cri:lll<;a e a seU responsavel. 0 excremen­
to e parte daquilo qtle jil foi "Jilllcnto necessario a subsisten­
cia, 0 inevil3vcl s\lhprod uta da vida e da saude do corpo e 
do ego, orgulhosamcntc expclido pcla crian<;a como expres­
~10 da capacidadc criativa em formar a vida material. AJgu­
mas cult uras consiucram as fezes um valioso fertiJizante, en­
quanto para outras e um purificador ritual. Entretanto, 0 
excremento atravessa os limites do corpo, podendo ser con­
sidef3do estranho e sujo. Como sugere Mary Doug]as, a su­
jeu-a e 0 "elemento discordante" num "sistema simb61ico 
de pureza",.4 E "aquilo que nao deve ser incluido quando 
se pretende manter urn padraO"lS pois ela desafia 0 status 
quo. Torna-se, assim, ritualisticamente estigmatizada como 
poluente ; carrega a ideia de ameaya. 
Alguns bodes expiatorios humanos identificados com 
o elemento estigmatizado e estranho eram pecadores e cri­
minosos condenados, que se tornavam merecedores de per­
dao, aceitando esse papel para a comunidade. Eram trans­
gressores do codigo moral. Outros eram sacerdotes, imunes 
ao contagio do mal, enquanto outros ainda eram atores que 
encenavam 0 drama ritual por dinheiro. Porem, mesmo 0 
individuo que nao se adequava a norma vigente por razoes 
positivas, estava sujeito a ser apontado, estigmatizado nega­
tivamente e execrado. 16 
Frazer descreveu os bodes expiatorios humanos, esco­
lhidos por serem feios, deformados ou "dados a veneta", 
enquanto outros eram escolhidos pela sua for<;a descomu­
na1. 17 Em Roma, urn homem representando 0 ferreiro, Ma­
murius Veturius, era 0 bode expiatorio. 18 Originalmente, 
ainda, ° rei, que se colo cava a parte da ordem cultural por 
estar, ao mesmo tempo, em posi<;ao central e, enquanto go­
vernante, acima dela, era 0 bode expiatorio da comunida­
de. 19 Era sacralizado ritualisticamente atraves de sua iden­
tifica~ao com 0 Deus Anual, 0 consorte da Deusa. Seu sa­
crificio assegurava as bases de urn ano-novo ventufOSO. 
18 
No mundo o~idt:ntal. t:S. t: papt:1 de bode expiatorio fre­
qilentemente foi atrihuido aos judt:lI s e outras minorias. Po­
dt: t:1mb~ m ~e r atrihufdo a tlWninfl s. as'i im como as muUle­
res ~1l1 qut: elas se transfo rlll:tm . Tai s grupos norm a lmente 
carregam valores nt:cess:irios a sociedade como urn todo ;20 va­
k res. entrdanto, que a clIlt lira prefc re manter na o mhra . 
Quando esses valores s:To de squalificados e o s individuo iden­
tificam-se com 0 papd de bode expiat6 rio , estes podem 
completar sua idcntifica~rro atraves da auto-rejei <;30 e do 
comportamento motivado por , ou encobrindo , culpa e ver­
gonha. 
Todas as escolhas de bode expiat6rio apresent am. ex­
pressas, as duas principais formas pelas quais a cult ura de­
fine 0 que seja inaceitavel, devendo ser expulso ou reprimi­
do. A priIneira e mais racional, despertando , no transgres­
sor, culpa e vergonha em rela~ao ao superego (definido por 
lung como 0 "repertorio conscientemente adquirido de cos­
tumes tradicionais").21 A segunda e menos racional , desper­
tando a vergonha em relayao a padroes menos conscientes, 
porem habituais, em niveis culturais, emocionais e esteticos. 
Determinados comportamentos, considerados discordan­
tes da pratica comportamental e psicologica , sao definidos 
negativamente pela lei e pelo costume. Assim definidos , sao 
reprimidos na sombra de cada individuo desse grupo. Ali per­
manecem, ind6mitos e, em geral, inconscientes ate certo pon­
to. Contudo, quando 0 ego e atingido por urn influxo desse 
material sombrio, ou observa-o nos outros, a experiencia fre­
quentemente mescla-se a culpa, a ansiedade e a identifica­
~ao reprimida. Alem do fascinio, pois essas atitudes e com­
portamentos representam elementos necessarios a vida , ex­
pulsos pelo coletivo - muito freqUentemente projetando-os 
em estranhos ou em membros especiahnente escolhidos do 
grupo - a fiIn de manter um sentido de ordem e pureza. Es­
ses comportamentos sao tidos como con~nlrios a co~ente 
de evolu~ao coletiva do momento. Todavla , a comumdade 
nao pode purga-Ios ou 'reprimi-los totalmente, e nem. ~od.e 
passar sem eles. Procura adapta-los aos modelos aceltavelS 
19 
ao grupo (por excmplo , tolerando 0 homicidio em batalha, 
mas n~lo na tribo). 
Os elementos considerados estranhos variam de acor­
do com 0 grupo . Para os primeiros hebreus, elcs residiam 
nas infra\oes abertas ,1s leis biblicas. Quando 0 predomfnio 
e de unl costtllne cristao, os comportamentos legalmente 
proibidos entrehl\anl-se nUIna rede de motivac;oes e inten­
~6es analogJlnente negativas. A repressao se intensifica, atin­
gindo nao apenas as a<;6es hOlnicidas ou adulteras, como ate 
meSI110 as elno<;6es de ira e lascivia. Especialmente na cultu­
ra judaico-crista, isto levou a uma desqualificac;ao de mui­
tos comportanlentos (normalmente rotulados como perver­
tidos, egoistas ou fracos); auma desqualificac;ao de atitudes 
e fun«oes nao desenvolvidas pelo coletivo (especialmente 
os sentimentos introvertidos e a intui«ao ),22 bern como a 
uma desqualifica«ao dos apetites e afetos instintivos, da sen­
sibilidade e dos ritmos pessoais, que os costumes grupais pre­
dominantes mI0 podem tolerar. 
Os valores culturais, entretanto, nao sao definidos ape­
nas por costumes codificaveis. Existem, tambem , habitos 
emocionais e esteticos que criam modelos de forma e sen­
timento. Os membros da comunidade que, por urn capri­
cho da natureza, representam uma varia«ao desses modelos, 
sao normalmente rotulados por nenhuma a«(}o particular 
de sua parte. Sao rejeitados, como patinhos feios , por sua 
transgressao a uma norma estetica. Nao correspondem ao 
padrao aceitavel comum. 
A Ovelha Negra 
A situa9ao dos individuos considerados inaceitaveis a 
comunidade por raZQCS estetico-emocionais e analoga, na 
psicologia pessoal, a da crian~a diferente, a "ovelha negra" 
da familia?3 A crian~a sente-se anormal, segregada e estig­
matizada. Tal a1iena~ao parecc ocorrer num nivel primal de 
experimenta~ao do mundo, tanto no sentido cronol6gico 
20 
____________________ ~ __ ~'N'4~4~~~~_' _________ __ ----------
como em tennos do nivel de consclencia magico-matriarcal 
que opera enLl0, e que persiste como profundo substrato 
da psique. A crian<;a sofre, como resultado de sua alienayao 
da figura lllaterna, aquilo que Neumann ciassifica de "sen­
tinlento de culpa primordial". 
Um dos sintomas centrais de urn relacionamento fun­
damental perturbado e 0 sentimento de culpa primordial. Ele 
e caracteristico da dcsordcm ps{quica do homem ocidental ... 
Esse tipo de sentimento de culpa aparece numa fase inicial 
e e arcaico; nao deve ser confundido com e, principalmente, 
nao deve ser derivado dos sentimentos de culpa posteriores, 
ligados a separa~ao dos Pais do Mundo e manifestados no com­
plexo de Edipo ... 0 sentimento de culpa primordial remon­
ta a fase pre-egoica ... [e] leva a crian~a a associar a perturba­
~ao de sua rela~ao fundamental a sua propria culpa primor­
dial ou pecado original?4 
Os individuos identificados com 0 arquetipo do bode 
expiatorio sentem-se portadores de conlportamentos e ati­
tudes vergonhosamente perniciosos e que rompem rela<;oes 
- que perturbam a figura parental. No nivel magico-ma triar­
cal, em que a parte e tomada pelo todo, eles se identificam 
com tudo aquilo que e taxado de "errado", de "feio" ou 
de "ruim". A rejei<;ao, com grande freqi.iencia, e inconscien­
te ou racionalizada em terrnos do superego (tanto pelos pais 
como pelo bode expiatorio), mas suas raizes vao mais a fun­
do. Nao e a atitude da crian<;a que acarreta a rejei<;ao, mas 
sim 0 que a crian<;a e em rela<;ao aos pais. A crian<;a e con­
siderada diferente e, portanto, arnea<;adora e execnivel. 
A rejei<;ao e experilnentada pelo individuo como Ulna 
puni<;ao pela sua existencia. Sentilnentos de culpa, ansieda­
de e urn nucleo sempre presente de ansiedade existencial -
pela ausencia de conexao com 0 to do maior - constituem 
o fardo do individuo. Trata-se de uma culpa sublilninar em 
rela<;ao ao Self e projetada em dire<;ao ao continente fami­
liar que rejeita a crian<;a. Sentinlento verbalizado por urn 
21 
Jovenl rapaz: "Que culpa eu tenho se eles deixaram de me 
amar? Sinto-me como sc fosse 0 responsavel pela divida pu­
blica. "25 
Os que s,10 iucntificauos com 0 arquetipo do bode ex­
piatorio carregam, tambcm , urna culpa individual, que com­
pensa sua intla~fio com 0 arquctipo; urn senso de incomo­
da fraudulCnda. Esse fcn6meno pode ser percebido como 
uma culpa eIll rcla~ao ao Self de cada urn, por viverem com­
puisoriamente agrilhoados a urn papel coletivo, a fun de se­
renl restaurados na cornunidade redimida e redentora. 0 gri­
lhao, que originariarhente visava a preserva~ao da vida, tor­
na-se habitual - algo do qual nao conseguem livrar-se nem 
mesmo sacrificando sua propria auto-afirma~ao e bem-estar 
na tentativa de aplacar ou de modificar 0 coletivo 0 suficien­
te para tomar possivel 0 seu retorno. Pennanecem, dessa for­
ma, presos ao Self projetado no coletivo; nao conseguem 
encontrar sua propria a~toridade interior ou a integridade 
de sua consciencia individual. 
A cornbina~ao desses tres niveis de culpa em rela<;ao 
ao superego, ao nivel rnatriarcal e ao Self - irr!pede a exis­
tencia de urn sentido coerente de identidade. E 0 que for­
ma 0 substrato do profundo sentimento de "inseguran~a on­
tologica" (termo de R. Laing)26 experimentado pelos indi­
viduos esquizoides, cronicarnente regredidos ou identifica­
dos com urn bode expiatorio. 
o Ritual Hebraico da Expiat;30 
Ha, no rito original hebraico, dois bodes e duas fon;as 
transpessoais. I-hi, tarnbem, 0 sumo sacerdote de Jeova, que 
representa unl agente telnporarialllente consagrado do co­
letivo, mediador entre os mundos divino e humano. 0 ritual 
preliminar, no qual 0 sacerdote resgata a si proprio e a sua 
familia, distingue-o nitidarnente de sua posi~ao comum, em­
bora sacerdotal, permitindo-Ihe apresentar-se perante Jeo­
va em seguran~a, a fim de conduzir 0 ritual do Yom Kippur. 
22 
So entao ele procede, a servi<;o de Deus e em beneficio da comu­
nidade, a fadada (pcla sorte) distin~ao e oferenda dos bodes. 
lJl1l dos bodes e of cree ida a Jeova para que Ele perdoe Is­
rael. E sacrificaJo como luna oferenda peJos peeados, de modo 
que seu sangue possa purificar e saeralizar 0 santuario, 0 taber­
naculo e 0 altar~ 0 tenlenos ritual. Seu sangue aplacara 0 deus 
irado , expiundo "a impureza dos fHhos de Israel por todas as 
suas transgressocs e pccados" .27 Os restos desse bode sao trata­
dos C0l110 Inateria inl pura e cremados do lado de fora do acarn­
pall1ento. 0 outro bode, 0 bode expulso ou evadido, e dedicado 
a Azazel, Uln deus ctonico, posteriorrnente considerado urn anjo 
decaido pelos hebreus.28 Com as maos sobre a cabeya do bode, 
o sumo sacerdote confessa "todas as faltas dos filhos de Israel; 
todas as suas transgressoes e pecados, depositanda-os no bo­
de".29 Esse bode vivo e, entao, retirado do acampamento e 
mandado para 0 deserto - "e levara 0 bode, consigo, todas as 
culpas dos israelitas para uma regiao deserta". ~ 
o sangue da vitima imolada redime e purifica. Repre­
senta a libido que e dedicada e liberada, atraves do sacrifi­
cia, para expiar ° pecado e aplacar 0 Deus ultrajado. E a ener­
gia dos instintos sacralizada, a fim de conquistar-se urn novo 
vinculo com 0 espirito; a fim de reconciliar a cornunidade 
arrependida com 0 seu Deus e com os ideais sagrados que 
criaram e mantiverarn a cultura hebraica. 0 errante bode exi­
lado remove a n6doa da culpa. Enquanto portador do pe­
cado, ele carrega os males confessados sabre sua cabe~a para 
longe do espa~o da consciencia coletiva. Ele representa a li­
bido relacionada com aquilo que e ao mesrno tempo neces­
sario e causador de culpa, sendo, portanto, "afastado para 
o local identificado com ele" - ou seja, restituido ritualis­
ticamente ao seu local de origem no inconsciente. 31 Ele re­
presenta tudo aquilo que acarreta culpa, sendo, portanto, 
rejeitado e reprimido pelo c6digo hebraico: as en~rgias e ne­
cessidades instintivas que amea~am 0 desenvolvlmento hu­
mano aos olhos de Deus; a energia dos impulsos descontro­
lados, particularmente a sexualidade, a rebeldia, a agressao 
e a cobi~a - atributos projetados sabre Azazel. 
23 
2 
A ESTRUTURA DO COMPLEXO DE 
BODE EXPIATORIO 
Considero, atualmente, a psicologia dos individuos iden­
tificados com 0 complexo de bode expiat6rio em nossos dias 
como a manifesta~ao de uma distor~ao patol6gica da estru­
tura arquetipica do ritual hebraico. 
Sao os dois fatores subjacentes a essa distoryao. Em pri­
meiro lugar, confonne assinalamos na introdu~ao, houve uma 
seculariza~ao da figura arquetipica, originalmente vital, resul­
tando numa perda de conexao consciente com a matriz sa­
grada de onde provem 0 fluxo curativo e renovador. Em se­
gundo lugar, houve uma m udan~a radical na concep~aode 
Azazel, adulterando-a de modo a levar a libido a ele dedica­
da a uma rigida dissocia~ao da consciencia, em vez de sim­
plesmente suprimi-la. Essa mudan~a tambem ocasionou rup­
turas entre as partes originalmente unidas do padrao arque­
!ipico. 
Ambos os fatores detenninaram uma cisao na estrutu­
ra , fundamentalmente transpessoal, da esfera arquetipica. 
Dessa fonna, as energias simbolizadas pclas imagcns nao po­
dem conectar-se entre si. Conforme W. B. Yeats em A Segtm­
do. Vinda : 
24 
Tu~o se desagrega; 0 centro nITo se sllsh!1ll; 
A sImples anarquia se perde munelo afora, 
~ 
1 
Espalha-se a mare escura de sangue e, por toda parte, 
A cerim6nia da inocencia nuufraga. * 31 
No complexo de bode expiatorio atual, 0 campo energe­
tico foi rauicalmente desrncmbrado. Pretendo anaJisar adian-, 
te. as formas particulares, as combinac,:ocs e os modos de ope-
rar dos aspectos deslllcmbrados ua imagem. Enquanto os con­
tornos dos aspectos oa imagcm nao se deIineiam com a ne­
cessaria clareza , enl cada caso individual, ter em mente a gestalt 
completa, e suas distoryoes e rupturas modernas, ajuda na 
orienta9ao do terapeuta. Isso e importante, considerando 
que boa parte do processo se situa num nivel pre-egoico e 
Inagico, envolvendo campos energeticos e reayoes indiferen­
ciadas, embora caracteristicamente dissociadas, que atrapa­
lharn tanto 0 paciente como 0 terapeuta e que resist em a 
consciencia. 
Azazel, 0 Acusador 
Originalmente, Azazel era urn deus-bode dos pastores 
pre-hebraicos. Mesmo no ritual biblico, ele mIo representa 
urn opositor de Jeov«l, mas sim urn estagio na repressao de 
uma divindade da natureza anterior a Jeova. Estava relacio­
nado com a beleza feminina e sensual, bern como com as 
religi6es naturais. Segundo as ultimos patriarcas hebreus, 
ele levava as mulheres ao pecado, ensinando-as a elaborar 
cosmeticos, e aos homens a guerra, ensinando-Ihes a cria­
yaO e 0 manejo de armas. 33 Estava relacionado, portanto, 
com os instintos er6ticos e agressivos. 
o nome Azazel foi traduzido por "bode que parte", 
"rocha dura" ou "0 forte de Deus".34 Em urn paragrafo do 
• Things/all apart; the centre cannot hold; 
Mere anarchy is loosed upon the world, 
The blood·dimmed tide is loosed, and everywhere 
The ceremony of innocence is drowned. 
25 
Midrash le-se: "Os pecados sao enviados a Azazel para que 
os leve consigo." 3S Sem duvida, nenhum portador humane 
e capaz de tal feito. E e esta a imagem correspondente ao 
proposito original do ritual bfblico em que a libido, causa­
dora de culpa , era relnetida a sua fonte transpessoal. Os he­
breus eram suficientemente cientes de seus impulsos instin­
tivos a ponto de conseguirem impor uma supressao respon­
savel. Assim, eIes enviavam, ao deus ctonico, no ritual, cons­
cientemente, e em reverencia, aqueles pecados com as quais 
o homem nao poderia arcar. 36 
Progressivamente , contudo, Azazel passou a carregar 
a projevao de uma face de Jeova. Do ponto de vista histo­
rico , isso permitiu que a imagem de Jeova come~asse a di­
fer~.mciar-se daqueles deuses primitiv~s da natureza, de pu­
ra forya e criatividade: 
Jeova era 'capaz, por urn lado, de urna fUria destruido­
ra, mas, tambem, de compaixao e fidelidade. Era, portanto, 
em certo sentido, urn simbolo em transi~a-o, entre as imagens 
dos deuses selvagens do hornem primitivo e aquela do "deus 
amoroso" que seria fOIjada nos seculos seguintes.37 
Progressivamente, Azazel passou a carre gar 0 exagero 
defensivo da propria reayao de J eova contra 0 mundo do 
feminino e dos deuses pre-hebraicos da natureza. Tornou-se, 
ele proprio, 0 bode expiat6rio de Jeova, sendo redefinido 
como urn anjo rebelde, simplificado, colocado como opo­
sitor e negativ~, a fim de expungir a sombra de Jeova. 0 an­
tigo deus foi transformado em demonio. 
A imagem de Azazel modificou-se a medida que a rup­
tura entre 0 born Deus e 0 demonio tornou-se mais profun­
da. Ginzberg relata a lcnda judaica segundo a qual AzazeL 
o demonic ao qual 0 bode expulso era enviado, fora, no pas­
sado, urn anjo que acusou Israel pcrante DCllS: 
26 
"Por que Vos Apiedais deles quando eles Vos provo­
cam? Deverieis, antes, destru{.los." E Deus respondeu: "Se 
estivesses entre elcs , tambcm pecarias." Foi entao que Aza· 
zel pediu para ser tcstado e descer para viver entre os homens. 
Um imputso m:lligno dominou-o ... 
e de rcndeu-se a luxuria . Como puniyao , [oi ohrigaoo a VI­
ver afastado de Deus e dos homens, no dcserto, " a fim de 
silenciar os acusadores, pais estes saberao de se u destine e 
ficarao calados". 38 
Assim, Azazel passou a ocupar, psicologicamente , 0 
lugar do juiz arrogantemente puro, conoenador e hipercri­
tico , que mantem 0 homem preso a urn padrao de compor­
tamento impossivel de ser alcanc;ado, uma vez que as for~as 
instintivas irrompem em sua fnigH disciplina. E urn padnIo 
que nao leva em conta os fatos da vida e 0 envolvimento do 
homem pela natureza. Implica, de forma insolente , que , so­
mente pela arrogancia e pela vontade pode-se resistir as pro­
vac;oes da vida. 
Azazel torna-se, aqui, semelhante a Sata, 0 antagonis­
tao Enquanto acusador do homem, representa a Justiya di­
vina dissociada da Piedade divina, 0 que Gershom Scholem, 
escrevendo sobre a Cabala, denomina "aquele que e radical­
men te ruim". 39 Representa 0 mal de uma parcialidade e uma 
ruptura diab61icas, de ser arrastado por um padrao de com­
portamento unico.40 Transforma-se no portador do mal da 
ira divina. 
A medida que a imagem hebraica do bode expiatorio 
foi distorcida, Azazel passou a operar a partir dessa perspec­
tiva distorcida. Tornou-se 0 acusador arrogante e condena­
dor, defensor de uma moral de imperativos dogmaticos e 
perfeccionistas, 0 ,diab6Hco destruidor dos que transgridem 
a Lei de J eova. E esta distoryao, exageradamente parcial e 
sadica da divindade ctonica, original, que transforma Azazel , 
num acusador; urn perseguidor de bodes expiatorios, na psi-
cologia de homens e mulheres da atualidade; 0 antilibidinoso 
superego em sua forma sadica: 0 puro desprezo. 
Nos individuos identificados com 0 complexo de bo­
de expiatorio, este acusador e constelado pela rejei~ao na 
27 
, . a re'eit;ao se origina nos julgamentos morais da rn-
famIlIa, E.ss ] J ~I'onadoS · assim como no Azazel hebraico ae 
do pal re a(;: ". - ' corn OU ' as coisas devenam ser e nao como elas -
modo como 'A' 'd 'f' sao, 
OJ' consClencHl se I entl 1ca com a parcela d 
Quail 0 ad' d' 'd 0 
X
istente no acusa or, 0 In 1Vl uo passa a a 
~OIl1plexo e ' f' d 'd cu-(;: t s exercendo uln tra ICO e vrrtu es e prObl'd 
sar os ouro, 'A ' 'd 'f' ,a-~ , es Quando a consClCnCIa 1 entl lca-se tanto C 
de superIor . , ' om , , COlll0 com 0 perseguldor demonlaco, esse aCusad a VltIrna . . Or 
dernoniaco constantemente reJelta, enculpa e ~esqua1ifica 
t
'tudes e a<;oes do outro que, por sua vez, acelta, de for-
as a I Q d . A • ma rnasoquista, a rcjei<;ao. uan 0 a conSClenCla se identi-
fica tanto com 0 acusador como com 0 ego-persona aliena­
do , ' 0 acusador sustenta os r6tu10s e imperativos coletivos 
aos quais 0 individuo luta por corresponder, enquanto igno­
ra suas necessidades pessoais - exceto as necessidades de ser 
correto, de vencer ou de ser bern sucedido, a fim de se en-
caixar; a fim de pertencer. 
Em cada urn dos casos, 0 acusador do bode expiat6rio 
e experimentado como uma moral elevada, mas ultra-sim­
plificada, que representa virtudes coletivas e, portanto, opoe-se 
a vida instintiva, possuindq, todavia, a for<;a impessoal e com­
puIsiva de urn instinto. E percebido como urn escamio ou 
acusa<;ao automaticos; urn julgamento maniqueista, uma ava­
liayao anterior a propria observa<;ao dos fatos. Funciona. 
portanto, como uma fun<;ao pervertida, coletivizada e rigi­
da do sentimento, mIo temperada por dados de realidade 
fornecidos .pelas sensa<;oes ou pela intui<;ao. Em cada caso. 
o acusador demoniaco funciona com a arrogancia de pod~r 
e a autoridade do Self, enquanto a pessoa identificada como arqudipo do bode expiat6rio apega-se a este, ao Illt'SlllO 
tern po que se sente aterrorizada por elc e pe10s indiv iJuoS 
nos quais 0 arquctipo e projetado. Segundo as palavr:.l~ de 
uma mulher' HI; , ' . . "ui-, ~ u sena UIll horror sen1 0 J UIZ' Sl~ rHl prt'~ 
~O~a egoista rn» . I ' , "1,\05 ,'. . , esqUlJ1 Ja e voraz, COlneteria os sde pt: l
'" 
capitalS, " 
. , Este. saoico su pcrcgo 
dlVlduo loentifl"'a ,lo . 
v u com 
t 
' . 1 '1'·\ do iw cs a prescnte na PSlCO og' 
o bode cxpiat6rio, meslllO quan-
28 
do este conscientemente se idcntifica com 0 ego-persona ou 
com 0 ego-vftima alicnados. 
o Bode hnolado 
Alenl do a~usador, telllos tamb6rn 0 "bode imolado" sim­
bolizando, originarialnente, a libido sacrificada ao inju~jado 
Jeova. No ritual hcbraico, elc consistia em energia apaziguadora 
de Deus, pennitindo ulna purificac;ao e renova~ao coletivas 
atraves do contato reconciliador com 0 transpessoal. No com­
plexo atuaI, entretanto, esse bode corresponde ao pre-ego ou ao 
ego-vitinla, oculto e desamparado, que sofreu e se identifica 
conl a rejei9ao. Representa a libido que foi simplesmente 
confinada, dispersada ou escondida, em vez de sacralizada. 
A incapacidade do ego-vitima para viver segundo ideais 
coletivos, sendo portanto indigno de perdao, leva-o a sentir-se 
indigno de viver. Experimenta 0 "sentimento primordial de 
culpa". Em vez de conectar-se a outras pessoas, ou ao trans­
pessoal, esse ego-vitima rejeitado subsiste num estado de mor­
te e regressao cronicas, num estado dissociado ou fragmen­
tario. Apega-se a urn anseio secreto de reconciliac;ao, de reno­
vac;ao e renascimento. Representa, porem, 0 fracasso da re­
novac;ao, pois a conexao consciente com a fonte transfor­
madora foi perdida ha tanto tempo que nao pode ser reen­
contrada sem ajuda. Al6m disso, reconciliac;ao significa ape­
nas: aIcanyar os ideais coletivos atraves da destruic;ao de tu­
do 0 que Ihes seja inferior. Vln individuo expressou assim 
esse aspecto da seguinte forma: 
Minha agonia e isolamento, meu senso de total incapa­
cidade, meu anseio de purifica~[o atraves do suicidio - e uma 
sede de renova~[o, de sol tar as pe~as deste meu velho corpo. 
Uma medida desespcrada; fico preso a destrui9ao inuefinida­
mente ' arruinando todos os mcus projetos e relavoes, porque , . 
nenhuma semente pode brotar, em raz[o de eu nunca ter st-
do born 0 bastante; n[o ha chao no qual eu possa confiar. 
29 
.' . 
, ' oculto sente-se inadequado perante as e ' 
O 0 Vltlma - d Xl-eg - I'd de uma vez que nao po e proclamar ne 
, da rea 1 a , , f d m 
genClaS , des de dependencta e ne~ a or<;a essa realida_ 
as necess1da 11 culpa. Vive, aSSlm, como uma cria 'ncorrer el , nya 
de scm 1, N trabalho corn paclentes, essa crianra f 
, t da vIda. 0 "d" " y re-dIan e , d 3scrita como tortura a, mortalmente en-
qiient~,me~,te e '~el" ou "ulna coisa totalmente perdida" 
~ rrna unpassl , ,. d t' . 
e ' d na paciente em lllCIO e erapia mostrava_ o sonho e UI b b'" " f' a u. cama de neve para 0 seu e e, a 1m de man 
f~zendo I
ma 
110 gelo". Outra mulher relatou urn sonho em-
te-Io a sa vo . ' 
, fonnada sobre uma cnanc;a mUlto pequena tran-
que era In 0 b b'" t 
cafiada num cofre de chumbo. e e es ava exaurido e 0 
do sonho nao tinha a chave do cofre e nem 0 menor de-
ego . , f ' t 
' 0 de ten tar livra-Ia de seu so nmen o. 
se] b 'd . Nota-se, nos pacientes su met! os a terapla, uma aver-
sao inicial em lidar com a crianc;a oculta, desamparada e vi­
tim ada que existe dentro deles, pois se identificam tanto com 
o desamparo quanto com 0 superego, que e rejeitado e des­
prezado, Sofrem" assim, de uma paralisante fragmenta~ao 
da consciencia. E, contudo, essa parte totalmente passiva, 
inconsciente e perdida, que mantem a semente da renova­
~ao espiritual a ser encontrada e resgatada pela . terapia. 0 
relacionamento terapeutico pode proporcionar urn recipiente 
nutritivo e organico no qual essa renova~ao tern condi~oes 
de brotar com seguranc;a - brotar no sentido de encontrar-se 
uma imagem aceitavel do Self, assim como urna rela~ao via­
vel e renovada para com a vida inicialrnente na transfen!n-. , 
CIa e, posteriormente, no transpessoal. 
Considerando que essa imagern do Self e inicialmen­
te , p~ojetada no terapeuta, a energia de transferencia kva 
o paClente a cair num jogo de arnor e odio carentes. no mo­
mento em que css 't" dOt 'fa-. '. e ego-vi Ima e finalnlente toea o. t; 
peuta e VlstO C·o d' 1 e fa-. mo 0 redentor da crian\a tao per It a 
millta
f
. ~ue se sente pcrpctuaIl1ente inc'lp'~citada de reccbCf 
o su lClente s'- , '( I , ,, hos 
de b ' . .. ao COlnuns as lInagcns eln sonhos e <. t;SCll , 
uracos negros 'd .' vora-zes ed' A no espa<;o de aniInais dcvora ort;~, , 
, e Incomooos d" . . , d de acel-nlen 19O5 de rua. A posslblhda e 
30 
ta~ao em terapia pcrmitc que 0 pre-cgo scja conhecido, em­
bora as incvit~iveis frustra<;oes COIll os rituais terapeuticos, 
somaJas aos limites hUlllanos e a personalidade do terapeu­
ta , pos~am, cutucar antigas fcrilias, dando origem a raiva e 
ao odio. E fundamental que 0 terapeuta aceite tanto esse 
alllor intense e carente como a raiva, pois estes sao os afe­
tos iniciais e basicos do ego-v{tima mantidos vida afora . 
o Bode Errante 
Temos tam bern 0 bode errante, 0 portador escolhido 
e sobrecarregado pela culpa coletiva. Ele e anaiogo a libido 
dos impulsos que, originalmente, amea~avam ou desafiavam 
os ideais do status quo, sendo considerados pecaminosos. 
Essa libido acarretava culpa, sendo, pois, banida. Conforme 
discutimos acima, era dedicada ao ctonico Azazel e devol­
vida a seu lugar de origem no inconsciente atraves da respon­
sabilidade etica consciente promovida no ritual hebraico. 
No complexo moderno, Azazel e urn juiz que conde­
na e nao uma fonte ou mensageiro divino. Vma vez que re­
presenta urn espirito negativizado que nao aceita e nem re­
conhece nenhuma impulsividade obstinada, 0 bode erran­
te torna-se urn sim bolo das energias dissociadas, portanto 
demoniacas, que perderam sua conexao com uma fonte de 
libido transpessoal e neutra. Essas energias nao conseguem 
encontrar a matriz na qual podem ser aceitas, e nem pode­
nIo ser admitidas, em absoluto, na consciencia , enquanto 
o acusador estiver no controle do que seja aceitavel. 
Essas energias sao as necessidades decompostas, ag~es­
sivas sexuais e de dependencia que irrompem, de forma lJ~­
pulsi~a e compulsiva, no individuo esquizoide e que ~o ~l­
venciadas com assombro e culpa temerosos, qu~ndo nao s:o 
completamente negadas. Vma vez que esses unpulsos nao 
podem encontrar seu lugar no transpessoal, pen~laJ~e~em pre­
sos ao individuo identificado com 0 bode eX~13tono como 
urn fard~ pessoal seu. Eles forc;am 0 desenvolvunento de um 
31 
ego pessoal precoce e gran~ioso que. se sente ~a obriga~ao 
de carrega-Ios. Isso proporclOna urn certo senhdo de iden­
tidade positiva e uma for~a d~ enorrnes prOp?r~5es, compen­
sando a fragilidade e 0 masoqulsrno do ego-vlhrna. Ser 0 "For­
te de Deus" e entendido corno 0 papel do individuo identi­
ficado com 0 bode expiatorio. 
Na ausencia de outr~ responsavel, esse ego pessoal aIie­
nado e precocemente dominado pelo sentido de dever, ser­
ve de defesa ao ego-vitima. Ele garante que a fnigil vitima 
seja mantida a salvo "no gelo", com uma determina~ao que 
assegura sua sobrevivencia, ainda que em esconderijo. 
o Sacerdote e 0 Ego-Persona 
A seculariza~ao e a distor~ao da potencia divina levou 
a supressao da figura do sacerdote enquanto reverente cons­
ciencia coletiva. Ele se tomou 0 representante, nao da voz 
de urn Deus injuriado mas misericordioso, mas da voz de urn 
coletivo secular que perdeu seu vinculo com 0 mundo inte­
rior e com 0 espirito. 
Em toda parte, e mIo apenas no temenos ritual purifi­
cado, a voz sacerdotal anuncia 0 que e considerado positi­
YO, com a autoridade outrora conferida pelo transpessoal. 
E serve, sem consagra~ao especial alguma, de modelo do que 
seja coletivamente aceitavel. Assim, no complexode bode 
expiatorio, 0 falso sacerdote conspira com 0 acusador a fun 
de forc;ar uma quaIidade de adaptac;ao da persona alienada do 
mundo interior, funcionando apenas com as nuiscaras ext~r­
na, necessariamente dissociadas. 0 sacerdote e amilogo as 
~ozes parentais e coletivas que dcfincrn 0 que scja bom au 
Id eal. Estes tomam-se os tu tores e Inoddos do t>go-pt'I'Sona 
a1ie~ado com 0 qual 0 illdividliO idcntificado COIll 0 bod~ 
eX~l~torio procura ocuItar 0 material da sOlllbra COIll 0 qual 
esta ldentjfjcado e que ele 6 Hescolhido" p'lra c'lrrcgar. o . . ' ,( do eITl 
e~o-persona ahenado uprcnde a a tuar no Jl\U ~ _ 
graus vanados de exito, aoaptando-sc ,is cin; llllst~illl:lllS eX 
32 
ternas. Busca sua idcntidade fora de si pr6prio, esperando 
encontrar 0 Sclf, em projc«ao nos OutfOS, e a aceitac;ao ine­
vitavclmcnte impossibilitada por esse papel de portador do 
pccado e da sombra. 
Na vcrdadc, 0 ego portador da sombra, alienado e er­
rante, aI1scia de tal tllodo por ser accito pelo coletivo que 
acaba adotando qualqucr persona. Eic ira conciliar, insinuar, 
banl'-3r 0 palha~o, tornar-se inuispensavelmenle competen­
te , vender sua alma , pertenccr a quaisquer coletividades va­
lorizadas - mesmo ao pre<;o de resignar-se a ser urn margi­
nal seln 0 direito de protestar diretamente contra essa con­
di\-'.3o. Ele percorre, condenado, 0 deserto de AzazeI, enco­
brindo seu peso de negatividade com um estoicismo passi­
vo e sobranceiro, normalmente acompanhado de urn senso 
de probo martirio. Sente 0 seu fardo especial e poluido con­
vencido de que ninguem podeni aceita-Io caso nao desempe­
nhe seu papel de modo aprazivel e satisfatorio. 
o ego-persona nao pode confiar nem encontrar urn sis­
tema de valores superior aquele do acusador que 0 conde­
na. Oculta 0 material da sombra coletiva, com 0 qual se iden­
tifica, por baixo de seus multiplos papeis e fachadas, vagan­
do precariamente, habituado a rejeic;ao e ansiando por liber­
tar-se. Porem, teme igualmente a aceitac;ao, pois isso signi­
ficaria abandonar 0 peso sobre 0 qual esta assentada a sua 
identidade. Exilado dos limites da comunidade original, vi­
ve em continentes coletivos artificiais, mediadores das for­
yas transpessoais, e que impedem que 0 individuo mergulhe 
diretamente no terror e na riqueza do inconsciente. Isso por­
que, ao contrario do psicotico, 0 individuo identificado com 
o bode expiatorio relaciona-se com a realidade atraves do 
seu ego-persona: podendo, inclusive, adaptar-se a papeis com 
exito, embora num impulso foryado de competencia. 
Geralmente, esse ego portador da sombra, alienado e 
desprovido de qualquer apoio alem da persona, e confron­
tado logo no inicio do processo terapeutico. Urn dos pro­
blemas nesse estagio e tolerar sua presen<;a necessaria, en­
quanta unico mediador no relacionamento, e, ao mesmo tem-
33 
, d' sua tentativa de forjar algum artifieio aprazivel 
po, Impf~ .If} contra 0 eontinente analitieo. Segundo as pala­
e super lela 
vras de um pacicnte: 
Estou sempre amlando a cena para agradar a plattHa. 
Pensei que voce gostaria se eu representasse urn tipo intelec­
tual e poetico. Meus terapeutas anteriores gostavam. Achei 
que po de ria manipular voce. Agora, nao . sei ° que fazer. Isso 
e urn alivio, mas e tambem humilhante e assustador - como 
estar numa terra de ninguem, exposto e vulnenivel. 
A mistura de desejo de aceitac;ao e urn incomodo sen­
timento de poder em relac;ao ao terapeuta mostra-se clara­
mente aqui. Bern como 0 valor das personae artificiais em 
sua func;ao protetora e cautelar, levando 0 individuo a lidar 
com 0 desamparo do ego-vitima face a condenac;ao, ja espe­
rada, pelo superego. Enquanto 0 vinculo terapeutico nao 
ad quire confianc;a e enquanto os sonhos nao sugerem ao pa­
ciente que ele e capaz de suportar urn confronto, tais per­
sonae deverao · ser admitidas. Confrontos e interpretac;5es 
prematuras podem destruir urn processo de conquista da con­
fian9a e cristalizar 0 ego-vitima numa adaptac;ao e coopera-
930 aparentes que nao passam de mais uma defesa. 
34 
3 
• o EXILIO NO DESERTO 
Vagar pelo deserto foi sernpre uma imagem aterrado­
ra~ esse exilio, entretanto, e fundamental para 0 rnito do ho­
rnern ocidental a partir da Queda, essa ruptura de urn vincu­
lo e de urna harmonia iniciais, amHoga a perda do paraiso e 
ao nascirnento para as dificeis separa~es e lutas terrenas. 
o exilio constitui uma imagem arq uetipica do estirn ulo do-
10roso que forya os individuos a procurarern urn retorno e 
uma reconcilia~ao com 0 transpessoal. 
Para a rnaioria das pessoas, 0 deserto e uma regiao si­
tuada alern das forma~6es culturais aceitas, repleta de "po­
tencial de desordem ... em contato com 0 perigo ... na fon­
te do poder".41 No deserto, 0 individuo defronta-se com 0 
transpessoal, com o . desconhecido. Quando penetrado cons­
ciente e voluntariamente por urn xama-curador ou profe­
ta, a experiencia do deserto pode transrnitir uma vitalidade 
especial, alem de poderes e de u~a autoridade especiais; es­
ses poderes, por sua vez, aliados a consciencia adquirida na 
fonte transpessoal, poderao ser devolvidos no sentido de en­
riquecer 0 coletivo.41 Quando penetrado involuntariarnen­
te, na condi<;ao de urn estrangeiro condenado, como Cairn, 
como Ismael ou como 0 bode expiatorio, 0 deserto consti­
tui-se numa rnaldi<;ao. 
Para os individuos identificados com 0 bode expiato­
rio, 0 deserto representa uma iInagem expressa de sua expe-
35 
· riencia existencial de profunda alienac;ao e exilio. E 0 ma-
terial de sua propria realidade percebida a rodea-Ios, pois 
se senteln an6malos, excluidos dos limites coletivos e ina­
ceitaveis. Nao podendo contar com alguma figura interior 
de apoio, veem-se deserdados do sustento transpessoal e co­
letivo , a menos que sejam, temporariamente, identificados 
com urn papel aceitavel da persona. 0 deserto parece, assim, uma 
aridez imensa, avassaladora; UIll lugar de of usc ante confusao 
e penliria. 0 terrivel dOlninio de Azazel. 
Psicologicalnente, 0 deserto, para esses individuos, e 
analogo ao seu senso paralisante de apatia, de ausencia de 
sentido, de abandono e panico. Reflete a dor do seu pere­
ne nao-pertencer; da sua carencia de urn porto seguro; de 
seu viver as escondidas. Eles se sentcrn descobertos quando 
isto e interpretado corno urn sentido de viver num inferno 
ou mundo subternineo por toda a sua existencia, pois nao 
experirnentaranl satisfac;ao interior algurna e nem, tampou­
co, apoio exterior algurn. Paradoxalmente, 0 deserto e, tam­
bern, a regiao de seu eventual encontro com 0 Self individual 
oculto. Porem, como carecem da validac;ao maternal e cole­
tiva que poderia criar urn foco individual de consciencia e 
vontade, apenas conseguem habitar, inicialrnente, urn caos 
desfocado, incapazes de contactar as potencialidades origi­
nais, a nao · ser por intermedio do terror ou da identificac;ao 
onipotente. 
Por se sentirern radicalmente inaceitaveis, seu anseio frus­
trado possui urn sabor arquetipico imediato. Seu exilio e nlar­
cado par uma intensa sede de ligac;ao com 0 Outro, tanto 
em nivel pessoal como eln nivel ~ranspessoal, e nleSI110 por 
urn apetite palpavel pelo divino. E marcado, tan1benl, entre­
tanto, por urn medo profundo de qualquer tipo de liga\Jo, 
o que mantem esse apetite intensa e torturantcmente vivo. 
Eles estao rcpletos de un} anscio por pcrtencer~tn a Ulna r~a­
lidade estaveI, previsivel e continente, na qual ccrto controle 
e invulnerabilidadc do ego podcriam protcger Slla fragilida­
de dos massacres das cncrgias transpessoais imcdiatas. EIn 
vez disso, vivem com um scntido onipresellte de perigo e unla 
36 
consclencia da sombra que os demais, a sc u redor, nao de­
scjalll cnxergar. Podem , inclusive, allsiar peb marte , como 
um fim ao se ll se llso de ex flio , au possuir urn fortc sentimen­
to de que jamais (kverialll ter ntlscido . 
Esse cstado roi expresso por ullla jovem em analise. Ao 
ver-se in~apaz de atuar por interrncdio de sua competente 
masfdgil personll de cicntista , afastou-se do trabalho e caiu 
de cama. JOS gritos de que nada jamais fizera sentioo, que 
odiava a vida e qllcria ser cllidada , pois tinha de ser a "sal­
vadora" de sua desafortunada familia; que era uma "medo­
nha boneca de bebe marta, cujos olhos haviam caido cabe­
~ adentro". Sentia-se caoticamente fragmentada , identifi­
cando-se, ao mesmo tempo, com diversas partes do comple­
xo: 0 ego-vitima, 0 redentor, 0 acusador e a persona-bone­
ca. Tornou-se incapaz, durante algum tempo, de perceber 
ou agir, senao pela perspectiva do complexo. 
Vma outra mulher identificada com 0 bode expiat6-
rio passou a sofrer de ins6nia depois do inicio do processo 
analitico, sintoma que a surpreendeu pois, inicialmente, ela 
apreciava 0 sono, que the proporcionava sonhos proveito­
sas para 0 trabalho analitico. Preocupada com seu recente 
problema, sonhou que iria passar por urn exame a fim de 
purificar seu organismo. 0 exame envolvia a imersao em de­
terminado liquido, ate que ela perdesse a consciencia. Viu-se , 
depois, despertando num mundo governado por urn lobiso­
mem chamado Ricardo Terceiro. Estava claro que ela expe­
rimentara a prova iniciatica que permite a mudanya da cons­
ciencia (0 sono, a terapia e 0 exame) como a purificayao que 
a devolveu a temida aridez do submundo em que habitara 
durant"e a maior parte da sua vida. Seu governante era uln 
poderoso monstro tiranico, enquanto sua atitude habitual 
era de terror e submissao masoquista a esse poder perfeccio­
nista. Ela percebeu que a alterayao em seu estado de sana 
significava 0 retorno, via uma distorcida dhHise, aquele mun­
do sufocant6-. Vendo suns defesas usuais e sua competencia 
compulsiva abrandadas pela terapia, ela agora temia ser no­
vamente capturada pelo governante distorcido e diab6lico 
37 
de seu cruel superego famiIia~. J.a come~ava,. tambem a pro­
'etar esse imperativo perfecclOntsta na analIse, procurando 
~ompactuar com a terapeuta, no intuito de se mostrar uma 
paciente boa e interessante. .. 
Quando passou a urn confronto malS conSClente com 
a forya dessas ima?ens ~~ seu passado e no p~esente, a sin­
tomatica insonia 1l1tenslflcou-se . . Sonhou, entao, com urn 
alia do cuja mao eIa segurava ao atravessar urn bueiro seco, 
A aguada inconsciencia havia secado, e ela agora possuia uma 
figura interior, com a' ajuda da qual podia penetrar e atraves­
sar 0 deserto. A aceitayao de seu proprio perfeccionismo e 
tirania ainda nao estavam, obviamente, em pauta; alem dis­
so, uma interpretayao nessa linha seria prematura entao, pois 
seu ego ainda nao estava suficientemente fortalecido a pon­
to de arcar com a responsabilidade dessas energias da som­
bra. Bastava, nesse estagio, apontar 0 modo como eia fora 
vitimada. 
Onipresente, no deserto encontra-se 0 acusador do bo­
de expiatorio. Ele rejeita 0 que quer que se apresente, de 
qualquer dire~ao, acusando 0 individuo de fraqueza por es­
te buscar ajuda, de ser incapaz de utilizar qualquer ajuda , 
de ser diferente e incapaz de mudar. 0 individuo teme, des­
sa forma, a dor da rejeiyao em toda parte. 0 terapeuta tern 
de tidar cautelosamente com esse medo, a fim de promover 
a confianya, estimulando a consciencia e a forya do ego. Num 
primeiro estagio, isso significa aliar-se ao sentido fragmen­
tado de identidade do paciente contra AzazeI, 0 diab6lico 
acusador, orientando 0 ataque, por vezes, adotando ate um 
pape] protetor ou assertivo, ate que as habilidades autopro­
tetoras possam ser apreendidas atraves de modelos. lsso sig­
nifica aceitar a paran6ia e as dcfcsas a fim de torn~l-las cons­
cient,e~. Em muitos casos, envolve tambem ullla pcnetrJ~'~lo 
empatlca no descrto e, por vezes, ullla alllplial,;ao do senti­
do de desamparo do pacicnte atravcs de cll)lllCntos que ex­
press:~ uma pcnuria scmclhante. Essa alllplia\,[io scrve pa­
ra mltlg.a~ a total solid:To do pacicnte, ofcrcccndo lIlll espe­
lho suflcJCntclIlcnt e impcssoal para n~io alllCiI\,ar sua iliell-
38 
tidade, assentada eln sua condiyao de "solitario". Ocasional­
mente, entretanto, essa ampliaC;clo podera assustar 0 pacien­
te , eOlno nos casos em que e tornada por urna identificac;ao 
do terapcuta COil} 0 acusauor interno, refor~ando a ideia de 
que tal pentlria canst it ui , de fato , a rcal condic;ao do mundo. 
~1esmo UIlla simples ohscrvac;Jo descritiva podera ser 
distorcida de 1110do a parccer uma conivencia com 0 sadico 
acusador. Ulna vez que a rcaliuade maior do paciente e 0 
julganlento negativo e 0 autodesprezo habituais, mesmo uma 
observa~ao objctiva podeni ser distorcida no sentido de rom­
per a alian~a terapcutica e repetir a compulsao do paciente 
em pennanecer eln seu exilio familiar, embora penoso. In­
versamente, a empatia do terapeuta pode Ievar 0 paciente a 
ver 0 terapeuta apenas como mais urn bode expiatorio e uma 
vitima, dernasiadamente lesado, fraco ou estranho para ser 
urn born analista. As rupturas no complexo acarretam, ini­
cialmente, uma diston;ao de muitas interpretac;6es, fazendo 
com que 0 desprezo do acusador, alia do ao medo da vitima, 
ameacem constantemente frustrar 0 potencial do relaciona­
mento analitico. Certa mulher percebeu, finaImente , que 
desejava que 0 analista contradissesse sua melanc6liea ladai­
nha, de modo que pudesse rejeitar a postura do analista co­
mo exageradamente positiva e pueril. 
As interpretac;6es devem ser cuidadosamente pesadas 
o tempo todo, pois 0 impulso de polarizac;ao do complexo 
nao apenas e contraproducente como contribui para 0 iso­
lamento do paciente. Como a realidade do ext1io "infernal" 
e negada pelo coletivo, que nao deseja ver a propria sombra, 
o terapeuta sera constantemente testado na sua capacidade 
de permanecer cOIn 0 paciente em situac;6es que pareeem 
terrlveis e, ainda assim, de nao polarizar-se contra a peno­
sa realidade e nem de mergulhar nela ao lado do paciente. 
o terapeuta e testado em sua habilidade de "sobrevivencia". 
o deserto e a expressao do isolamento em sua impli­
cac;ao de aridez. 0 deserto apenas pode proporciona~ ~m 
relacionamento distorcido, se tanto, com 0 fluxo cnatIvo 
interior. Aquele que sofre do cOlnplexo de bode expiatorio 
39 
Portar 0 isolamento necessario ao traba}L 
- consegue su 'I t" 110 nao , 'al porque 0 ISO amen 0 lmphca no c 
' t' e ongIn , " aso 
cna IVO 1 mento ou perturhadora ahena9ao, A ne ' , pIes deso a - Ces. 
SInl Ilecer e a auto-aeusa930 eompulsivas eVI't 'd de de con am 
Sl a _ i3 Gestalt de tudo 0 que possa ser original 0 
formavao l, b d " , 's ~ "d 'dentificados COIn 0 0 e eXPlatono nao est;-llld1VI uos 1 , ' r t '. t' , ao 
d eIll sua propna 1011 e en,} Iva, mas stm no serv' 
centra os ' I ' . ' " 1· 
"'0 de defesa dos ideals co e~lvo~ e eln sua propna mcapaci. 
\ d:> reJ'eitabilidade, No arnblto do cOInplexo, portanto 
da e e , , t' " , 'ct ' 
o acessO do individuo ao un,age ICO so e permttt 0 nUm si-
gilo solipsista ou n~m~ furtI~Ta seguran<;a, Por nunca expo­
rem seus esfor\os cnatlVos, flcanl a salvo dos ataques ja es­
perados, Rouban~o elel11~~t~s de terceiros, a fim de of ere­
cer a p]ateia aqullo que Ja e ~provado, permanecem seguros 
e guardados do escarnio do acusador projetadp na assisten­
cia~ 0 perfeceionismo do acusador interno do bode expia-
·t6rio bloqueia 0 espetaculo improvisado, necessario a des­
coberta da tonalidade propria do individuo, Porem, enquan­
to seus elevados padroes poderao contribuir na aquisi\ao 
de habitos disciplinados de trabalho, podendo ajudar 0 in­
dividuo a cumprir tarefas padronizadas ou prescritas, sao 
contraproducentes . no que tange as tarefas que exigem cria­
tividade, a expressao da originalidade do Self individual. 
Quando os canais criativos se abrem, e sinal de que os 
grilh6es do complexo foraIn afrouxados. Encontrar esses 
canais criativos e necessario aqueles que estao identificados 
com energias demoniacas, como os individuos portadores 
do estigma do bode expiat6rio. A fonna criativa proporcio­
na urn receptaculo para acolher e dOlninar essas energiJs. 
404 
o BODE EXPlATORIO NA FAMILIA 
Existe, atualrnente, uma considenivel literatura clfni­
ca relacionando 0 papel do bode expiatorio no contexte fa­
miliar com as patologias graves.43 A identificayao com 0 pa­
pel de bode expiatorio acarreta a inibi~ao de determinados 
aspectos do desenvolvimento egoico na fase oral. Posterior­
mente, os arquetipos do desenvolvimento egoico sao desvia­
dos em dire9ao a vitima alienada, fragmentaria e passiva, bern 
como aos papeis compensatorios do servo sofredor e do sal­
vador. As energias instintivas nao sao dominadas e nem tam­
POllCO integradas; permanecem dissociadas, explosivas e ame­
drontadoras. A inabilidade do bode expiatorio adulto em 
desenvolver uma identidade e uma autoconfian9a proprias 
deve-se ao fato de ter sido sobrecarregado, desde muito ce­
do, com aqueles elementos desvalorizados, negativos, repri­
midos e dissociados pelos pais, que, em primeira instancia, 
representam 0 coletivo. 
Desde que mIo existe uma forma consciente de purga­
yao - exceto acusando os outros, especialmente as minorias 
raciais e etnicas - nossa moderna cultura secular oferece pou­
ca ajuda ao trato com a material da sombra. Assim, 0 pro­
blenla passou para a inconsciencia. A sombra e projetada, 
atuando par intermedio dos complexos inconscientes. 
A familia do individuo identificado com 0 bode expia­
torio geralmente se preocupa bastante com os aspectos ex-
41 
1 t
· a a ponto de necessitar purgar-se c 
ral cO e IV , . b A' ' 0-
ternos da mo mbros estivessem ~a lncum enCla de defen_ 
rno se sells , m; 0 ancestral oU social em ser born ou, ao me­
der algllm esfo ~ bom Eles nao conseguem processar aquilo 
m parecer· t d' t' . noS, e ~. am negativo e neln, ampouco, IS lngulf entre 
que consIder a 'oes Os pais, ou outros, que escolhem um bo-
o atof ~ s,~~~ ~essa' f01111a moderna e inconsciente, sao tam­
d: . eXplat~ te vitimas do nlesrno complexo. A identida_ 
beIll obvlamen , . t t' . 
, 0 porem freqUentemen e es a mats proxima 
de de seu eg " 1 . f . 
daquelas partes do complexo que 1 c asst dIqUe! como ? acu-
d dernoniaco e 0 sacerdote. E es ten em a possun mo-
d
sa lor muito fortes de superego e nonnalrnente lutarn par 
e os . d . d d Ii . 
desempenhar fun~oes de pilares a SOCIe a e: re gIOSOS, me-
dicos, professores, politicos e psic610gos. Eles tern urn in­
teresse agressivo, travestido numa imagem da persona adequa­
da aos padroes coletivos de virtude e boas maneiras, po is sua 
identidade depende, em ultima analise, da aprova¢o cole­
tiva e externa. Mas mostram-se capazes de angariar 0 suficien­
te dessa aprovayao para continuarem inconscientes em re­
lac;ao aos aspectos de si mesmos que nao mereceriarn a mes­
rna aprovayao. Sua negayao da sornbra pessoal dissocia-os 
das proprias profundezas instintivas e da sua individualida­
de , tornando-os frageis e defensivos. Outros, incluindo seus 
filhos, conseguem detectar sua fragilidade e sua sombra re­
negada , podendo reagir com urn excesso de proteyao ou ata­
cando sua hipocrisia. 
Geralmente, os pais dos individuos identificados com 
o b?de expiatorio transrnitiram aos filhos, que eles - os pais 
~ tern medo e sao incapazes de confrontar Ulna realidade erno­
c,lOnal e simb6Iica. Adotarrl papeis; praticidades e impera­
tlVO S - elementos ilnpessoais _ conlO escudos entre eles e 
o ~ , outros. 0 deeoro e 0 dever suplantan1 0 scntilllento pe~­
soal e ~ :esponsabi lidade nos relacionanlentos. Etes telllelll 
a e>;?os J ~ao e a nudez do contato emocio nal dirdO . (Para 
a IlIac de um P' " , . , ,ilClentc, ansleJade era sinal de fatta de SOIlO , 
para os paiS d ~ t ' . t' r ' -do" . " t; au ro pac)(;nte, um ca ioroso u(l1Ultv 0 )flg,l 
SlgI1l f) Ca va . p' , , \ l . 1 ) a enas que 0 prcsente havia sido n.~ce Ht o. 
42 
A compctencia passa a ter um valor primordial, enquanto 
as em090es que cxpressam dar e merlo sao dirninuidas ou 
ignoradas. 
Os perscguidores parecclll possuir urn mcrlo profundo 
de confrontar sell pr6prio dcsamparo fundamental peran­
te a vida. Defendem-se desse desamparo ativando um aspec­
to de concre~~to, como se para cada problema houvesse uma 
soIu<;ao pratica. No anlbito do complcxo, fixam-se, em re­
la<;30 a crian9a tomada como bode expiat6rio, num pensa­
lllento . 11l.igico e concreto. A realidade psiquica nao e admi­
tida. E dissociada. Tendem, assim, a ler as mensagens emo­
cionais COll10 sinais concretos, coletivos e pniticos, interpre­
tando, erroneamente, 0 sentimento da crian9a como urn fa­
to fisico, uma solicita9ao concreta ou uma afirma9ao gene­
rica. Essas concretiza90es e generaliza90es exacerbam os sen­
timentos de desamparo que os perseguidores, com seus fni­
geis egos-persona, nao podem suportar. A partir dai, sao Ian-
9ados em ciclos mais profundos de rejei9ao a crian9a, aparen­
temente muito mais forte. 
Nos casos em que a realidade emocional e admitida pelos 
pais perseguidores, ela s6 e considerada aceitavel sob determi­
nadas formas de expressao coletivamente sancionadas. "Quan­
do fahivamos de nossos sentimentos de forma madura, inde­
finidamente, 'de modo que eia os acolhesse, podiamos contar 
que estavamos com raiva ou tristes", disse uma jovenl mu­
Iher sobre 0 estilo exigente e psicologizante de sua mae. Na 
maior parte dos casos, 0 pai ou mae perseguidor recebe a ex­
pressao dos impulsos da crian<;a de maneira tao defensiva 
e impessoal que esta percebe 0 perigo que esses irnpulsos re­
presentam para 0 adulto - e, portanto, para ela nlesma tan1-
bern. 0 material da sombra nao pode, em tais circunstancias, 
ter uma media9ao humana. 
Alem disso, os impulsos da sombra dos pais, negados 
sob a persona coletivizada, freqiientemente irrompern, de 
modo irresponsavel, na "seguran9a" do Iar. De modo alter­
nativo, ou identico, esses impulsos podem ser percebidos 
em proje9ao e, entao, atacados com desprezo. UIn hornelll 
43 
bode expiat6rio, comeyando a tamar Cons­
identificado com ,0 leo esquiz6ide , relatou a seguinte quadro' 
• ciencia de seU Due . 
's ora igtlOravam 0 que consideravam negativo Meus pal -
. . d . s violentas discussOes -, ora procuravam destrui-l Ulc1ulll 0 sua " 0 
t Pelo escamio. Eu scntia que a malor parte de rnirn abertamcn e . 
cebida encontrando-se ern pengo, de modo que apren nao era per, ., . 
- le arriscar a revelar mmhas motlva~Oes pessoais Ser ill a nao n . . 
amado significava apresentar aquilo que fosse aprovado e se. 
gura. Meu verdadeiro eu vivia oculto. 
A antrop61oga Mary Douglas coloca as considerac;oes 
desse indivfduo numa perspectiva mais ampla: 
Ha muitas formas de se tratar anomalias. Pela via negativa, 
podemos ignoni-las; simplesmente nao percebe-Ias, ou, se as per­
cebemos, podemos condeml-las. Pela via positiva, podemos deli. 
beradamente confrontar a anomalia e procurar criar urn novo 
padrao de realidade no qual eia tenha lugar.44 
Essa eonfrontac;ao positiva com aquilo que aparente­
mente esta destoando - 0 material da som bra - e muito rara 
ern nossa cultura, sendo impossIvel aos perseguidores, que te­
rnem amp liar 0 padrao de sua realidade alem do limite em 
que possam sentir a aprovac;ao coletiva. Os pais perseguidores 
sao, eles proprios, invariavelmente, os fiIhos frageis e magoados 
de pais exigentes e probos, e nao tern mais sen so de Self a va­
lidar su a totalidade do que seus filhos, bodes expiat6rios, po­
deriam possuir. 
r 0 Jado som brio - 0 rna terial carregado de culpa, impos­
~Jvel de ser su portado pclos pais -- e dcixado, assim. como 
urna pot · t . ~ d . . i " en e rcgJao 0 ambwlltc inconsciente. 0 adulto H en-
tlfic£Jdo com 0 b j . . . tu-
o • 0 < e expl at6no, normaltnente, e por na 
reza, espcclalm ente sens{yel {IS tendencias ocultas inconscicn-
tcs e ~m oc j o n i.t j s, freq ucnternente cnvolviJo BUlna profiss;Io 
prestatlva fO I" ~I cr'J"' r "1 ' mbra 
. . ' u " l ~ i.t que a ;sorvcu e arcou com a sO 
famJIJar Nonn 'llm ' t . . par-. (. en C, eXIste urn vinculo inco llSClcnte, 
44 
ticuIanncntc forte, corn 0 pai ou a mae que persegue, por 
vezes vcrha,1i zadocomo U',.l sentirncnto de que esse pai ou 
mac lleCeS,sltavam au descJilvam a ay!n<;ao da crianc;a. Parte 
desse se ntll11ent~ poue scr luna proJcc;ao da pr()pria carencia 
fru,st~ada da cn ~lll<; .a , mas parte representa uma pcrcepc;ao 
obJdlva das carCllCJaS frustradas uos pais. Tais v{nculos di­
ficultarn as exprcssoes de hostilidaue, nao apenas em fun­
<;30 do perigo de uma retaliac;ao defensiva abrupta, como 
tambcm em razao da sombra dcpendente dos pais ter esta­
do e continuar presente, em muitos casas de forma paIpa­
vel , no adulto/ crianc;a. "Eu nao poderia agredi-Ia; ela ja 
estava arrasada, muito ... Sou exatamente como ela - uma 
tirana, falsa, venal e desregrada", disse uma mulher a res­
peito de sua mae, verbalizando sua recente consciencia das 
rupturas ocasionadas pelo complexo e do fato de tanto ela 
como a mae sofrerem do complexo, embora sob angulos 
diferentes. 
Esse vinculo tam bern constitui urn ind!cio de partici­
pation mystique, 0 campo sim bi6tico no qual 0 bode expiat6-
rio e 0 perseguidor tern sua existencia no n!vel magico da 
consciencia. No ambito deste campo, a contaminat;ao ps!­
quica (ou "identificac;ao projetiva") constitui urn fato. lung 
escreveu sobre a possibiIidade em adquirir-se ate mesmo uma 
rna consciencia em razao da natureza psic6ide do arqueti­
pO.4S Os indivfduos identificados com 0 papel de bode ex­
piat6rio sao aquelcs que habitualmente adquiriram esta rna 
consciencia, perceberam a sombra negada e sentiram-se res­
ponsaveis por ela. Tornaram-se hipersenslveis as questOes 
eticas e emocionais, aceitando 0 papel de pessoas dedicadas, 
com empatia e atenc;ao, alimentando as qualidades sombrias 
nos outros. 
Por vezes, 0 bode expiat6rio e designado para 0 papel 
de membro enfermo da familia. De modo aIternativo, quan­
do as pais tam bern reprimem as necessidades de dependen.c~a, 
os filhos poderao ser encarados como o. element~ f~n:lhar 
mais invcjado e responsavel, cujas necessldades e lIldlvldua­
lidades sao relegadas - e mesmo pilhadas. Em am bas os ca-
45 
46 
sos, 0 indiv(duo chega a terapia corn a auto-im 
criminoso, de um invdJido , de urn p~iria, de u a~ern <.Ie ulU 
de um ser esquisito. Fundamental nisso tUdo e ~ :pr~so ou 
isolamento e culpa - uma te~r{vcl antccipa~ao de enhdo de 
Jidade assentada sobre a condlc;ao do rejeitado d pe~sona. 
, 0 eXl1ad o. 
5 
o CO~IPLEXO DE BODE EXPIATORIO 
E A ESTRUTURA DO EGO 
No campo da psicologia, a satisfac;ao das necessidades 
esta relacionada com a oralidade, enquan to a afirma<;ao vo­
luntaria do material emocional formado e associada ao anal.46 
As hist6rias pessoais deixam claro que os golpes na oralidade 
nao ocorrem, necessariamente, apenas num estagio primor­
dial. Vista simbolicamente como a necessidade de agarrar, de 
ingerir e possuir, esse conjunto de comportamentos pode so­
frer golpes nao apenas pelos conflitos e privac;Oes relativas 
a alimenta<;ao, recebimento de afeto e aten<;ao referencial 
adequados, como tambem por qualquer golpe, ou tabu, con­
tra 0 egoismo e possessividade proprios dessa fase, mesmo 
se sofrido ate, digamos, os cinco ou sete anos de idade. Essas 
feridas acarretam urn sentimento de priva<;ao, bern como 
urn senso existencial de ser indigno de receber. 0 sentimento 
de indignidade pode advir, tam bern, da assimila<;ao, por con­
tamina<;ao psfquica, e do sentimento de incapacidade, no 
adulto, em doar-se fisica ou emocionalmente. Da mesma 
forma, qualquer proibi<;ao indevida, envolvendo elimina­
<;ao ou agressao, pode criar uma marca no que tange a au­
to-afinna<;ao. 
o complexo de bode expiat6rio afeta: 1) a percep<;ao 
e a consciencia, Oll seja, 0 modo como 0 individuo per­
cebe e forma a experiencia; 2) a habilidade em conter e 
em suportar 0 sofrimento; 3) a capacidade de auto-afir-
47 
macrao do individuo; e 4) a capacidade de satisfazer ca­
rencias. 
Estas quatro modaIidades de acrao talvez possam ser 
relacionadas com as fases bcisicas de desenvolvimento, po­
rem em n{vel sim b6lico e nilo psicossexual. Os indivlduos 
identificados com bode expiatorio possuem diferentes ti­
pos de expericncia em cada modalidade, dependendo das 
combina-;oes entre 0 complexo e seus pr6prios talentos e 
sensibilidades. 
Distor~oes da Percep~ao 
o estabelecimento das bases dos padrOes perceptivos 
da-se logo ao despertar dos sentidos e atraves de experien­
cias que os estimulem, num ambiente de razoavel conforto. 
Os individuos excessivamente estimulados por carencias pa­
rentais, ou especialmente sensfveis por natureza, poderao 
perceber intensamente tanto a dor como 0 prazer. No en­
tanto , em razao de ' essas experiencias naoterem side huma­
namente mediadas; 0 individuo tende a permanecer preso 
aos niveis de percep~ao e intensidade magicos iniciais. 
Esses individuos podem, facilmente, parecer anormais 
perante os outros integrantes d.e seu ambiente. Com gran­
de freqilencia, sao tidos pelos pais perseguidores como pe­
rigosos observadores de uma sombra material que e melhor 
permanecer oculta. Tal como a crian~a que percebeu que a 
foupa nova do rei era imaginaria, sua visao normalmente pe­
netra atraves da persona, po is esta sintonizada com os estra­
tos mais profundos da psique. Em virtude de despertarem 
urn desconforto inconscicnte, suas percep~Ces poderao ser 
desconsideradas ou negadas, enquanto elas pr6prias sao re­
preendidas e fejeitadas, 0 que as leva a sentir \.1111 in-comodo 
comparavel aque]e dcspcrtado nas pessoas atraves das quais 
elas parecem enxergar. Este quadro pode se dar. t :llnbeIll , 
quando 0 pai ou a mile sofrem 0 mcdo de seretn descober­
tos. Segundo as pa]avras de uma pacien te: 
48 
Minha mac evitava 0 meu olhar ou 0 seu pr6prio olhar. 
Ela ate hojc nflo tolera seT obscrvada pOl mim, pois pensa que 
enxcrgo atraves dcla. NUo sci SC ClI se mpre agi assim, mas eIa con­
ta que isso comc~()u quando ell (linda era urn bebe. Minha exis­
tenda a amC:l\'3Va; fon;ava-a a cllxcrgar sua pr6pria deficiencia. 
Aqu i, . 0 aspecto telT lvel do Self (0 "o/ho de Deus") e pro­
jet ado na crian\u, temida como portadora de ideais inalcan­
\,3veis. No alnbito do complcxo, 0 Self e encarado como Azazel , 
o acusador, pela nHie que se sente imperfeita. Essa .mae nao 
pode, dessa forma, suportar uma rela<;ao intima com a crianc;a, 
pois 0 olhar desta exacerba a pr6pria vitima, 0 bode expiat6-
rio do pr6prio adulto. Assim, os complexos dos pais sao pas­
sados adiante, no minimo pelas proverbiais sete gerac;oes, on­
de 0 arquetipo que existe por tras do complexo permanece 
tao inconsciente e vigoroso em nossa cultura. 
o efeito dessa sensibilidade, aparentemente tao mediada, 
na crianc;a e na projec;ao dos pais absorvida por ela, [oi ex­
presso de maneira pungente por urn individuo identificado 
com 0 papel de bode expiat6rio: 
Sin to-me culpado por enxergar 0 que existe de errado, 
porque ninguem mais 0 enxerga. Entao, ou fico maluco ou me 
sinto mal por enxergar alguem como sendo ruim, quando to­
dos dizem que 0 fulano e born. . . E como urn castigo ao pr6-
prio fato de perceber. .. Quando garoto, eu perturbava - sim­
plesmente por saber ver e falar - qualquer adulto que eu po­
deria realmente valorizar caso adrnitisse sua pr6pria hurnani­
dade; que nao fosse hip6crita. E eles me repreendiam, odian­
do-me por eu perceber isso. Qu, entao, e1es me ignoravam, ne­
gando que fosse capaz de tal fa~anha ... Algumas vezes nao 
tenho a menor confian~a em rninhas percep~oes . 
Ocorre uma confusao sernelhante como resultado de urn 
vinculo empatico com 0 pai au com a mae. abusivos rna.s .tam­
bern amados. 0 mal, enloIo, mio e percebldo com suflclente 
objetividade, e os indiv{duos identificados com 0 bode ex-
49 
_ d ssa forma, ter de encarar situa~oes int 
piat6riO poderao, ,~ preparados, au como se estivessem prO-
. In estarelJ1 . d 'I P d ' 0-lerave1s se , genuidade am a puen, 0 em, mclusiv 
'd or uma III ,l'( . e, teg} os p . tes essas sltua<;Ves e serem compelidos 
'J af fascIllan db' b a conSI cr inten<;ao de esco nr 0 om pai au a

Mais conteúdos dessa disciplina