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A REFORMA DO CÓDIGO PENAL E OS CRIMES ENVOLVENDO A PROSTITUIÇÃO1 Victor Sugamosto Romfeld Categoria: Direito Penal e Criminologia Resumo: o projeto de lei nº 236/2012, conhecido como “reforma do código penal”, é um assunto em voga, que ensejou debates e controvérsias entre juristas. Embora sua função declarada seja a proteção de bens jurídicos, entendemos que a instituição de um novo Código Penal está alinhada a uma ideologia conservadora e também às demandas midiáticas por maior repressão, típicas de movimentos de “lei e ordem”. No que diz respeito aos crimes envolvendo a prostituição, o projeto de reforma apresenta avanços, mas ainda assim, os eventuais méritos do referido projeto não compensam os seus defeitos. Neste contexto, o direito penal mínimo deve ser uma estratégia utilizada para a superação dos problemas do sistema penal brasileiro, facilitando a transição, a longo prazo, para o abolicionismo. Palavras-chave: reforma do código penal; sistemas jurídicos de enquadramento da prostituição; direito penal mínimo. 1. Introdução O novo Anteprojeto do Código Penal foi elaborado por uma comissão de juristas presidida pelo Ministro Gilson Dipp, do STJ, e instituída no âmbito do Senado Federal em atenção ao Requerimento nº 756/2011, do Senador Pedro Taques (PDT/MT). Ademais, o anteprojeto mencionado foi automaticamente convertido no Projeto de Lei nº 236/2012, por iniciativa do Senador José Sarney.2 Ainda que a reforma do Código Penal seja um acontecimento recente, ela ensejou diversos debates entre juristas e operadores do direito. Inclusive, o anteprojeto de reforma foi adjetivado de modo semelhante por renomados penalistas brasileiros: 1 Este artigo foi classificado em 1º lugar no Concurso promovido pelo Centro Acadêmico Hugo Simas (CAHS) em 2014, na categoria “Direito Penal e Criminologia”. Sendo assim, foi publicado na Revista Jurídica Thêmis no referido ano (nº 25). 2 Informações constantes no endereço eletrônico do Senado Federal: <http://www.senado.gov.br/atividade/materia/detalhes.asp?p_cod_mate=106404>. Acesso em: 17/12/2013. http://www.senado.gov.br/atividade/materia/detalhes.asp?p_cod_mate=106404 para Luís Greco, uma “piada de mau gosto”3; para Juarez Cirino dos Santos, um “monstrengo”4; para Paulo Cesar Busato, um “desastre”5; ou ainda, nos termos utilizados pelo ex-relator da parte geral do projeto, um “frankenstein”.6 Existe um setor do Direito Penal brasileiro que, por algum (ou alguns) motivo(s), encontra-se constantemente marginalizado nas discussões. Trata-se dos crimes envolvendo a prostituição, atualmente localizados no Título VI, Capítulo V, do Código Penal. Nosso intuito com o presente artigo é analisar, especificamente, a nova configuração desses crimes, conferida pelo projeto de reforma. Além disso, pretendemos avaliar em que medida ela representa um avanço ou um retrocesso, comparativamente ao modelo do Código Penal vigente. Para tanto, iniciamos com a investigação dos objetivos que embasaram a criação de um novo Código Penal, bem como os seus fundamentos ideológicos, declarados e não-declarados. 2. Projeto de Lei nº 236/2012: uma reforma para que(m)?7 Em meio a tanto sofrimento e descaso, me vejo impossibilitado de ajudar o meu próximo, sentindo fortes dores pelo corpo em uma delegacia superlotada. Em condições muito precárias. Me sinto morto, enterrado vivo. Aqui nesta delegacia, dividindo um espaço que caberia uma criança de 7 anos. Vejo que é impossível um homem retornar ao convívio social pelas condições que vive aqui dentro. Pessoas doentes na alma, doentes no corpo. Por fata de apoio, amor ao próximo. O sistema prisional é um câncer maligno, sem condições de tratamento. Tira-se o pouco que se tem, e deixa o nada. Seres humanos vivendo como bichos no tempo da pré-história. Dentro do sistema falido prisional, tiram de você a liberdade, mas o pior de tudo: tira-se a vida e o tempo. 3 GRECO, Luís. Princípios fundamentais e tipo no novo Projeto de Código Penal (Projeto de Lei 236/2012 do Senado Federal). In: Revista Liberdades – Edição Especial – Reforma do Código Penal, p. 55. 4 CIRINO DOS SANTOS, Juarez. A Ideologia da Reforma Penal. In: Revista da EMERJ, v. 15, n. 60, out-dez 2012, p. 14. 5 Disponível em: <http://g1.globo.com/pi/piaui/noticia/2013/08/texto-da-reforma-do-codigo-penal-e-um- desastre-diz-paulo-cesar-busato.html>. Acesso em: 17/12/2013. 6 O ex-relator é o jurista paranaense René Ariel Dotti, que se afastou da comissão. Disponível em: <http://congressoemfoco.uol.com.br/noticias/rene-dotti-reforma-do-codigo-penal-e-um- %E2%80%9Cfrankenstein%E2%80%9D/>. Acesso em: 17/12/2013. 7 Cumpre destacar que recentemente (17/12/2013), a comissão especial do Senado Federal criada para atualizar o Código Penal brasileiro aprovou o novo Código Penal. Disponível em: <http://veja.abril.com.br/noticia/brasil/comissao-do-senado-aprova-novo-codigo-penal>. Acesso em: 17/12/2013. http://g1.globo.com/pi/piaui/noticia/2013/08/texto-da-reforma-do-codigo-penal-e-um-desastre-diz-paulo-cesar-busato.html http://g1.globo.com/pi/piaui/noticia/2013/08/texto-da-reforma-do-codigo-penal-e-um-desastre-diz-paulo-cesar-busato.html http://congressoemfoco.uol.com.br/noticias/rene-dotti-reforma-do-codigo-penal-e-um-%E2%80%9Cfrankenstein%E2%80%9D/ http://congressoemfoco.uol.com.br/noticias/rene-dotti-reforma-do-codigo-penal-e-um-%E2%80%9Cfrankenstein%E2%80%9D/ http://veja.abril.com.br/noticia/brasil/comissao-do-senado-aprova-novo-codigo-penal As marcas do sofrimento ficam no corpo. Dores que os remédios não conseguem curar.8 Tecer comentários acerca do Projeto de Lei nº 236/2012 certamente significa pontuar, ainda que brevemente, alguns dos significados políticos do Direito Penal, eis que o projeto mencionado tem como mote não apenas uma “reforma”, mas a instituição de um “novo” Código Penal. Sendo assim, parece imprescindível identificarmos o Direito Penal como um ponto estratégico de controle social nas sociedades contemporâneas.9 O surgimento deste setor do ordenamento jurídico não se deu ao acaso, pois está intimamente relacionado ao cumprimento de “(...) funções concretas dentro de e para uma sociedade que concretamente se organizou de determinada maneira”.10 Isto significa que a justiça penal opera em consonância com o modo de produção capitalista, evidenciando funções seletivas e classistas, ao reproduzir as relações sociais e manter a estrutura social hierarquizada em desfavor de classes subalternas. Nas palavras de Baratta: “No que se refere ao direito penal abstrato (isto é, a criminalização primária), isto tem a ver com os conteúdos, mas também com os “não conteúdos” da lei penal. O sistema de valores que neles se exprime reflete, predominantemente, o universo moral próprio de uma cultura burguesa-individualista, dando a máxima ênfase à proteção do patrimônio privado e orientando-se, predominantemente, para atingir as formas de desvio típicas dos grupos socialmente mais débeis e marginalizados. Basta pensar na enorme incidência de delitos contra o patrimônio na massa da criminalidade, tal como resulta estatística judiciária (...)”.11 Na contramão do raciocínio exposto, poderíamos apontar um suposto reducionismo das correntes criminológicas marxistas12, que, ao apostarem em uma 8 Este trecho foi retirado de um documento intitulado “Carta de um presidiário”, que integrava os autos de ação penal analisados pelo autor do artigo, durante o período em que foi estagiário na Defensoria Pública do Estado do Paraná (Maio de 2012 até Fevereiro de 2014). 9 CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Direito Penal – Parte Geral. 4. ed. rev. e ampl. Florianópolis: Conceito Editorial, 2010, p. 6. 10 BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direitopenal brasileiro. 12ª ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Revan, 2011, p. 19. 11 BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do direito penal. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002, p. 176. 12 Sobre a influência do marxismo na criminologia, fundamental destacar as observações de Vera Malaguti Batista: “O direito penal, nessa linha, vai aparecer como um discurso de classe que pretende legitimar a hegemonia do capital. De certa forma, é isso o que dizem Lemert e Schur quando falam de criminalização primária. Apesar das acusações de reducionismos e determinismos econômicos, foi o perspectiva macrossociológica, se distanciariam da realidade, da concretude das relações sociais. No entanto, a análise de estatísticas recentes parece demonstrar justamente o contrário. De acordo com o Sistema de Informações Penitenciárias do Ministério da Justiça (Infopen 2011), a taxa de encarceramento no Brasil triplicou nos últimos 15 anos e a população carcerária já ultrapassa meio milhão de pessoas (513.802) – um universo em que 93% são homens e 48% são pessoas com menos de 30 anos de idade. Ainda segundo os dados do Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN/MJ), os presos são em grande maioria negros ou pardos, analfabetos ou com baixa escolaridade.13 Os criminólogos Massimo Pavarini e Vera Malaguti Batista – no âmbito global e nacional, respectivamente – também denunciam a referida tendência, voltada ao encarceramento em massa: “Em geral, nos países desenvolvidos, a elevação dos índices de encarceramento nos últimos quinze anos é atestada em torno de 45%: nas Américas o fenômeno tem sido mais radical (nos seis países mais populosos, o crescimento tem sido sempre superior a 80%); na Europa, mais contido, apenas metade dos países tem conhecido incrementos superiores a 40%. Mas, se tomamos em consideração os países em via de desenvolvimento (...) devemos registrar crescimento médio que se coloca além de 100%”.14 “Se os Estados Unidos são os maiores carcereiros do mundo, o Brasil passou a ocupar um lugar importante: em 1994 (quando FHC aprofunda o que Collor havia tentado) o Brasil tinha 110.000 prisioneiros. Em 2005, já eram 380.000 e hoje estamos com cerca de 500.000 presos e 600.000 nas penas alternativas”.15 Diante dos dados ora expostos, termos como “seletividade do direito penal” e “função classista da justiça penal” assumem uma importância que não se restringe ao âmbito acadêmico. Para além de abstrações teóricas, entendemos que existe uma marxismo que repolitizou a questão criminal. Os “operadores” do sistema penal seriam intelectuais orgânicos do processo de acumulação do capital. É a partir desse olhar que a criminologia começa a ser lida como ciência do controle social, com a utilização dos conceitos de hegemonia, dominação e, principalmente, de luta de classes”. In: BATISTA, Vera Malaguti. Introdução crítica à criminologia brasileira. Rio de Janeiro: Revan, 2011, p. 80. 13 Dados constantes no relatório publicado pela Associação Nacional dos Defensores Públicos (ANADEP). In: BRASIL, Governo Federal. Defensores Públicos: pelo direito de recomeçar. Brasília, 2013, p. 11. 14 PAVARINI, Massimo. Punir os inimigos: criminalidade, exclusão e insegurança. Curitiba: LedZe Editora, 2012, p. 69. 15 BATISTA, Vera Malaguti. Obra citada, p. 100. correlação entre os acúmulos da criminologia crítica e a realidade catastrófica do sistema penal brasileiro, especialmente quando observamos que nosso país possui a 3ª maior população carcerária do mundo16, e qual é o perfil da “clientela” desse sistema. Considerando as premissas elencadas, podemos retornar à questão que faz parte do título deste tópico: qual é o objetivo da reforma do Código Penal? A quais pessoas (ou grupos) ela se destina? Segundo a justificativa do anteprojeto do novo código, foram observados os seguintes pressupostos: a) necessidade de adequação às normas da Constituição de 1988 e aos tratados e convenções internacionais; b) intervenção penal adequada e conforme entre a conduta e a resposta de natureza penal por parte do Estado; c) seleção dos bens jurídicos imprescindíveis à paz social, em harmonia com a Constituição; d) criminalização de fatos concretamente ofensivos aos bens jurídicos tutelados; e) criminalização da conduta apenas quando os outros ramos do direito não puderem fornecer resposta suficiente; f) relevância social dos tipos penais; g) necessidade e proporcionalidade da pena. Esses são os chamados “objetivos declarados” do Direito Penal, que envolvem basicamente a proteção de bens jurídicos selecionados por critérios político-criminais.17 No entanto, as condições de tramitação do projeto – a “toque de caixa”, diga-se de passagem18 – e as críticas posteriores, realizadas por juristas e operadores do direito19, demonstram muito mais a satisfação de anseios dos movimentos de “lei e ordem” do que a efetiva modernização do Direito Penal brasileiro. Dentre as diversas falhas apontadas, destacamos aquelas que consideramos mais relevantes: i) a falta de ampla discussão popular, tendo em vista a urgência da 16 Segundo pesquisa recente realizada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/portal/noticias/9874-brasil-tem-terceira-maior-populacao-carceraria-do-mundo>. Acesso em: 22/02/2014. 17 CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Obra citada, p. 4-5. 18 Este aspecto foi destacado pelo próprio ex-relator da comissão, René Ariel Dotti: “Com efeito, não se concebe que o parlamento nacional, intensa e extensamente comprometido com a prática do discurso político do crime e sensibilizado com a voz das ruas em período eleitoral, dispusesse de tempo e reflexão suficientes para a concepção e gestação de um novo e aprimorado modelo de Código Penal”. DOTTI, René Ariel. O Projeto Sarney de Código Penal. Revista Brasileira de Ciências Criminais. Editora Revista dos Tribunais. Ano 20, vol. 99, nov-dez 2012, p. 55. 19 Nesse sentido, dois grandes manifestos de oposição podem ser mencionados: um deles elaborado após o XVIII Seminário Internacional de Direito Penal, realizado na cidade de São Paulo, de 28/08/12 a 31/08/12, pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim). Outro movimento de resistência ocorreu durante a realização do Seminário Crítico da Reforma Penal, organizado pela Escola da Magistratura do Rio de Janeiro entre os dias 11/09/12 e 13/09/12. http://www.cnj.jus.br/portal/noticias/9874-brasil-tem-terceira-maior-populacao-carceraria-do-mundo tramitação20; ii) a ausência de um método científico para a sistematização do código21; iii) excesso de artigos22; e iv) o viés punitivista23, em detrimento de penas alternativas à pena privativa de liberdade. Não obstante as finalidades citadas pela comissão de juristas responsáveis pela elaboração do “novo” Código Penal, constata-se o “mais do mesmo”: a crença de que um novo código, com novos tipos penais e penas mais elevadas, será capaz não só de desestimular e/ou evitar a prática de delitos, mas também de conter a “onda de criminalidade”. Com maestria, Maria Lúcia Karam mostra a falibilidade deste argumento: “A história demonstra que a função de prevenção geral negativa nunca funcionou: a ameaça, mediante normas penais, não evita a prática de delitos ou a formação de conflitos; ao contrário, eles se multiplicaram e se sofisticaram. O efeito dissuasório não se comprovou, estando, ao contrário, demonstrado que a aparição do delito não está relacionada com o número de pessoas punidas, ou com a intensidade das penas impostas”.24 Este panorama é sabiamente explorado pela grande mídia, que espalha um clima de pânico geral com o intuitode legitimar sua demanda por mais repressão, devidamente mascarado pela suposta proteção de bens jurídicos. Porém, numa sociedade capitalista, é inegável o caráter de classe da categoria “bem jurídico”, como já destacou, oportunamente, Nilo Batista: “Podemos, assim, ao ouvirmos dizer que a missão do direito penal é a proteção de bens jurídicos, através da cominação, 20 “O intolerável açodamento se traduziu também na urgência da tramitação imposta pelo autor do projeto, que se vale de sua condição de presidente da Casa Legislativa. (...) nenhum projeto de reforma do Código Penal teve tramitação com a urgência-urgentíssima igual a do Projeto Sarney”. DOTTI, René Ariel. Obra citada, p. 56. 21 “Quanto ao mérito, o Projeto Sarney desnuda a ausência de um método científico para o simples traslado de centenas de normas penais das leis extravagantes para a Parte Especial do Código Penal resultando num aglomerado de disposições sistematicamente desordenadas, muitas vezes com a formulação dos tipos penais piorada. Entre seus muitos vícios está a falta de proporcionalidade entre crimes e penas”. DOTTI, René Ariel. Obra citada, p. 57. 22 “Temos 543 artigos, mas que na realidade são muito mais. Na Itália, fizeram um levantamento e constataram que havia 6 mil tipos de crimes. Aqui nós fizemos um estudo que constatou 2,6 mil tipos de crimes e cada um se desdobra em três crimes diferentes e isso vai dar mais do que 6 mil crimes tipificados na Itália”. CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Somos o país que mais pune no mundo. Folha de Londrina. Londrina, 15 de Julho de 2012, p. 3. 23 “Em geral o projeto é punitivo, é mais repressivo que o anterior. É um projeto que acredita na pena como forma de combate à criminalidade, quando ninguém mais em criminologia acredita nisso”. CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Obra citada, p. 3. 24 KARAM, Maria Lúcia. De crimes, penas e fantasias. Niterói: Luam Ed., 1991, p. 175. aplicação e execução da pena, retrucar que numa sociedade dividida em classes o direito penal estará protegendo relações sociais (ou “interesses” ou “estados gerais” ou “valores”) escolhidos pela classe dominante, ainda que aparentem certa universalidade, e contribuindo para a reprodução daquelas relações”.25 Diante do exposto, entendemos que restam evidentes os objetivos reais da reforma do Código Penal: totalmente alinhada com a ideologia punitivista e com a tendência de expansão do direito penal26, o seu escopo consiste em agradar a opinião pública, regida pela máxima “bandido bom é bandido morto”. Não por um acaso que o projeto tramita com prazos extremamente exíguos, na contramão dos próprios limites impostos pelo Estado Democrático de Direito. Em outras palavras, o projeto apresenta objetivos populistas – pois aposta na repressão através da privação de liberdade, em consonância com a ideologia das classes dominantes – acobertados por um viés demagógico – ou seja, a “proteção da sociedade” e de bens jurídicos tidos como fundamentais. Se os objetivos da reforma do Código Penal são esses, então o segundo questionamento – quem são seus destinatários? – já tem uma resposta definida. Conforme os dados do DEPEN e do Ministério da Justiça, já mencionados neste tópico, o sistema penal brasileiro tem uma clientela determinada: pobres (em sua maioria, negros) condenados, majoritariamente, por crimes contra o patrimônio ou por tráfico de drogas. Nas palavras de Juarez Cirino dos Santos: “Assim, através das definições legais de crimes e de penas, o legislador protege interesses e necessidades das classes e categorias sociais hegemônicas da formação social, incriminando condutas lesivas das relações de produção e de circulação da riqueza material, concentradas na criminalidade patrimonial comum, característica das classes e categorias sociais subalternas, privadas de meios materiais de subsistência animal: as definições de crimes fundadas em bens jurídicos 25 BATISTA, Nilo. Obra citada, p. 113. 26 Esse termo é muito bem explicado por Jesus-María Silva Sánchez: “(...) não é nada difícil constatar a existência de uma tendência claramente dominante em todas as legislações no sentido da introdução de novos tipos penais, assim como o agravamento dos já existentes, que se pode encaixar no marco geral da restrição, ou a “reinterpretação” das garantias clássicas do Direito Penal substantivo e do Direito Processual Penal. Criação de novos “bens jurídico-penais”, ampliação dos espaços de riscos jurídico- penalmente relevantes, flexibilização das regras de imputação e relativização dos princípios político- criminais de garantia não seriam mais do que aspectos dessa tendência geral, à qual cabe referir-se com o termo ‘expansão’”. In: SÁNCHEZ, Jesus-Maria Silva. A Expansão do Direito Penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. 2. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, p. 28. próprios das elites econômicas e políticas da formação social garantem os interesses e as condições necessárias à existência e reprodução dessas classes sociais. Em consequência, a proteção penal seletiva de bens jurídicos das classes e grupos sociais hegemônicos pré-seleciona os sujeitos estigmatizáveis pela sanção penal – os indivíduos pertencentes às classes e grupos sociais subalternos, especialmente os contingentes marginalizados pelo mercado de trabalho e do consumo social, como sujeitos privados dos bens jurídicos econômicos e sociais protegidos na lei penal”.27 Nesse contexto de mudanças na legislação penal, é curioso notar que a urgência para concluir um projeto de reforma não é a mesma urgência que deveria ser direcionada a problemas gravíssimos no sistema penal brasileiro, como as condições nas penitenciárias, o número assustador de presos provisórios, a “aberração jurídica” chamada RDD (regime disciplinar diferenciado) e as violações cotidianas de direitos humanos nas prisões, para citar apenas alguns exemplos. Ao invés de propor verdadeiras transformações na realidade do sistema prisional, a reforma do Código Penal representa a “(...) fantasia de uma falsa solução”.28 3. Um breve panorama acerca do enquadramento jurídico da prostituição no Brasil Antes de ingressarmos no mérito do presente artigo, isto é, nos crimes envolvendo a prostituição – referentes ao projeto de reforma já mencionado – algumas considerações preliminares devem ser feitas. Em linhas gerais, existem três possibilidades de enquadramento jurídico da prostituição: sistema proibicionista, sistema abolicionista e sistema regulador, cada um deles permeado por vertentes do pensamento criminológico.29 O sistema proibicionista, em sua forma original, criminaliza praticamente todas as manifestações da prostituição: a prostituta, o “cafetão” e o cliente. Este modelo existe 27 CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Direito Penal – Parte Geral. 4. ed. rev. e ampl. Florianópolis: Conceito Editorial, 2010, p. 11. 28 KARAM, Maria Lúcia. Obra citada, p. 207. 29 ROMFELD, Victor Sugamosto. Uma análise criminológica dos sistemas jurídicos de enquadramento da prostituição feminina. Monografia de Graduação em Direito. Universidade Federal do Paraná, 2013. nos Estados Unidos, na China, em Malta, na Eslovênia e em outros países do Leste Europeu30, defendidos por setores mais conservadores da sociedade. O sistema de descriminalização (também conhecido como sistema abolicionista) é aquele em que a prestação de serviços sexuais não é objeto de sanção pelo direito penal.31 No entanto, pode ser criminalizado o cliente e/ou aquele que vive da prostituição alheia, com o intuito de atacar a demanda existente pelo serviço sexual. Por fim, o sistema de legalização (também chamado de sistema regulador) encara a prostituição como um fenômeno socialnão erradicável; a prostituta, nesta perspectiva, é vista como uma prestadora de serviços. 3.1 As recentes propostas de legalização da prostituição Embora o Brasil tenha como modelo vigente o sistema abolicionista, recentemente, algumas iniciativas de legalização da prostituição merecem destaque. Assumindo uma posição de defesa dos direitos das prostitutas, o deputado federal Fernando Gabeira propôs a aprovação do Projeto de Lei nº 98 de 2003, que dispõe sobre a exigibilidade de pagamento por serviço sexual, além da supressão dos arts. 228, 229 e 231 do Código Penal. No ano de 2004, o deputado Eduardo Valverde propôs o Projeto de Lei nº 4.244/04, que institui a profissão de “trabalhadores da sexualidade”. Para sua atuação, aquele ou aquela trabalhadora do sexo deveria possuir registro expedido pela Delegacia Regional do Trabalho (DRT), revalidado anualmente mediante apresentação da inscrição como segurado do INSS (Instituto Nacional do Seguro Social) e do atestado de saúde sexual, emitido pela autoridade de saúde pública. Entretanto, no ano seguinte, o próprio autor solicitou o arquivamento do projeto de lei mencionado. Na sequência, em outubro de 2007, a Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados rejeitou o projeto de Gabeira, proposto em 2003. Recentemente, no ano de 2012, o deputado federal Jean Wyllys apresentou o Projeto de Lei nº 4.211/12, representando uma nova tentativa de legalização da prestação de serviços sexuais. O projeto – conhecido como Lei Gabriela Leite – além de 30 TAVARES, Manuela. Prostituição: diferentes posicionamentos no movimento feminista. Disponível em: <http://barricadasabremcaminhos.files.wordpress.com/2010/06/prostituicaomantavares.pdf>. Acesso em: 06/12/2013, p. 3. 31 DITMORE, Melissa Hope. Prostitution and sex work. Greenwood Press, 2011, p. 32. http://barricadasabremcaminhos.files.wordpress.com/2010/06/prostituicaomantavares.pdf propor algumas alterações nos tipos legais dos arts. 228, 229, 230, 231 e 231-A do Código Penal, estabelece alguns direitos dessa categoria de profissionais.32 3.2 O sistema abolicionista atualmente vigente Conforme já dissemos, o modelo adotado no Brasil é o sistema abolicionista, localizado no Título VI (Dos crimes contra a dignidade sexual), Capítulo V, do Código Penal. Neste sistema, a prostituta não é criminalizada, mas sim os fenômenos no entorno da prostituição. Discordamos quanto à manutenção desse modelo em nosso país, uma vez que durante anos de vigência, pouco ou nada fez quanto à proteção da dignidade sexual e integridade física das prostitutas, muito menos em relação ao combate daquilo que considera como crime. Não podemos perder de vista que no sistema já mencionado o comportamento da prostituta continua sendo encarado como desviante em relação àquilo que se considera “normal”. Apesar da descriminalização do meretrício, o estigma permanece. Seja qual for o status que o direito confere à prostituição, esta ainda é uma temática delicada, repleta de preconceitos e tabus por parte da sociedade em geral. Neste sentido, a feminista norte-americana Melissa Farley ataca um dos principais fundamentos do sistema abolicionista: Advocates of decriminalization argue that the health of those in prostitution will be improved by decriminalization because otherwise women will not have access to health care. It is assumed that women will seek health care as soon as the stigma of arrest is removed from prostitution. If the stigma is removed, advocates argue, women will then file a complaint whenever they are abused, raped, or assaulted in prostitution. They assume that the complaint will be followed with a police response that treats women in prostitution with dignity and as ordinary citizens. Unfortunately, health care workers and police too often share the same contempt toward those in prostitution than others do.33 32 Sobre o projeto de lei “Gabriela Leite” e a legalização da prostituição, ver: ROMFELD, Victor Sugamosto; TABUCHI, Mariana Garcia. À margem da sociedade, ao centro do capital: o mercado barato de mulheres – apontamentos acerca do Projeto de Lei Gabriela Leite. In: Anais da XV Jornada de Iniciação Científica da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná. 33 FARLEY, Melissa. “Bad for the Body, Bad for the Heart”: Prostitution harms women even if legalize or decriminalized. In: Violence Against Women, vol. 10, n. 10. October, 2004, p. 1093. Outra crítica corresponde à “cifra negra” da criminalidade – temática abordada por diversos pensadores da criminologia crítica34 – que está umbilicalmente ligada aos crimes envolvendo prostituição. No sistema abolicionista brasileiro, são criminalizados, em linhas gerais: a manutenção de casas de prostituição, o rufianismo (atividade de exploração sexual exercida pelo “cafetão”) e o tráfico de pessoas. No entanto, isto não significa que as condutas mencionadas sejam efetivamente punidas. O relatório de gestão do Departamento Penitenciário do Estado do Paraná aponta justamente nesse sentido: em toda população carcerária paranaense, não existe sequer uma pessoa presa pelo crime de casa de prostituição (art. 229, CP) nem pelo crime de rufianismo (art. 230, CP).35 Observa-se, quanto aos crimes referentes à prostituição, somente 2 (duas) pessoas presas por tráfico internacional de pessoas (art. 231, CP) e 1 (uma) pessoa presa por tráfico interno de pessoas (art. 231-A, CP). A mesma tendência é verificada no âmbito nacional. Segundo o relatório estatístico realizado pelo Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN) em Dezembro de 2012, não há pessoas presas e/ou condenadas pelos delitos dos arts. 229 e 230 do Código Penal.36 No que diz respeito ao tráfico de pessoas (interno e internacional), existem somente 38 (trinta e oito) pessoas encarceradas.37 Os dados referentes ao delito de tráfico de pessoas (arts. 231 e 231-A do Código Penal) são, no mínimo, surpreendentes, considerando que as estatísticas oficiais não representam a totalidade de crimes praticados. A pequena quantidade de indivíduos presos é, certamente, um indicativo da “cifra oculta” desse tipo de criminalidade, ainda mais quando observamos que o lucro com o tráfico de seres humanos só perde para o tráfico de drogas e de armas.38 34 RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Otto. Punição e estrutura social. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 270. 35 Disponível em: <http://www.depen.pr.gov.br/arquivos/File/relges20082011.pdf>. Acesso em: 27/02/2014, p. 15. 36 Disponível em: <http://portal.mj.gov.br>. Acesso em: 28/02/2014. 37 É curioso observar que nos relatórios do Departamento Penitenciário do Estado do Paraná e do Departamento Penitenciário Nacional, os crimes envolvendo prostituição estão agrupados, equivocadamente, no grupo “Crimes contra os costumes”. No entanto, desde 2009, essa terminologia foi revogada, com o advento da Lei nº 12.015. Assim, o Título VI do Código Penal brasileiro passou a se chamar “Dos crimes contra a dignidade sexual”. A manutenção da nomenclatura antiga talvez indique a concepção que os órgãos públicos ainda têm sobre a prostituição como um todo. 38 ELUF, Luiza Nagib. Tráfico de Pessoas. In: Folha de S. Paulo. São Paulo, 28 de fevereiro de 2013, Caderno Opinião. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/96072-trafico-de- pessoas.shtml>. Acesso em: 28/02/2014. http://www.depen.pr.gov.br/arquivos/File/relges20082011.pdf http://portal.mj.gov.br/ http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/96072-trafico-de-pessoas.shtml http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/96072-trafico-de-pessoas.shtml Em relação às casas de prostituição e à atividade de “cafetinagem”39, nota-se que existem em nosso país diversos locaiscuja destinação é o “mercado do sexo”, que envolve strip teases e a prestação de outros serviços sexuais. Contudo, seja por conta das “vistas grossas” feitas pela polícia, seja pelo disfarce que assumem40 (com o intuito de escapar da intervenção estatal), as casas noturnas que se encontram no perímetro urbano dificilmente são fechadas. Isto ocorre, possivelmente, pela limitada perseguição desse tipo de criminalidade e pelo prestígio social de que gozam os donos dos referidos estabelecimentos (consequentemente, autores do crime previsto no art. 229 do Código Penal). Não é à toa que as casas de prostituição de luxo das grandes metrópoles continuam funcionando, sem qualquer tipo de óbice, sendo frequentadas por homens solteiros e casados, oriundos das classes dominantes (empresários, políticos, celebridades, entre outros). Por todos os argumentos expostos, que indicam a falência do sistema abolicionista adotado no Brasil, alternativas ao referido sistema devem ser apontadas, com o intuito de proteção dos indivíduos atualmente chamados de “profissionais do sexo”. Partimos da premissa de que a prostituição não é um assunto que merece a tutela do Direito Penal. Seguindo esta tendência, percebe-se que o projeto de lei nº 236/2012 extinguiu o sistema abolicionista, conforme será abordado na sequência. 3.3 As mudanças decorrentes da reforma do Código Penal O projeto de reforma propõe mudanças significativas quanto aos crimes envolvendo a prostituição, as quais são didaticamente expostas pelo penalista Paulo Queiroz: “O projeto propõe, ao meu ver, corretamente, a abolição dos seguintes tipos penais: 1) posse sexual mediante fraude (CP, art. 215); 2) mediação para servir à lascívia de outrem (art. 227); 3) favorecimento da prostituição (art. 228); 4) casa de prostituição (art. 229); rufianismo (art. 230); 6) tráfico internacional e interno de pessoas para fins de exploração sexual (arts. 231 e 231-A) (...). Nalguns casos, houve abolição apenas parcial, porque certos tipos ou sofreram simples reformulação ou migraram para outros tipos penais. Exemplo disso é o tráfico de pessoas (art. 469) que, além de passar a constituir crime contra 39 Tecnicamente, o Código Penal brasileiro denomina essa atividade como rufianismo. 40 Enquanto danceterias, boates, casas de massagem, bares ou casas de shows. os direitos humanos, com o projeto, só configura crime se houver emprego de ameaça, violência, coação, fraude ou abuso”.41 Não obstante o projeto nº 236/2012 seja merecedor de severas críticas, as alterações mencionadas merecem destaque, por diversos motivos. Em primeiro lugar, porque pretendem revogar os crimes do capítulo V (título VI) do Código Penal atual, extinguindo o sistema abolicionista, tendo em vista as suas insuficiências, já elencadas neste artigo. Em segundo lugar, porque propõem deslocar o delito de tráfico de pessoas para o grupo dos crimes contra os direitos humanos. Em relação ao “tráfico de pessoas”, houve um avanço significativo, pois a redação atual dos dispositivos do Código Penal (arts. 231 e 231-A) reforça a associação direta entre o tráfico e a prostituição. Ao que parece, o projeto incorporou dispositivos de tratados internacionais, que separam o “joio do trigo”, ou seja, que distinguem a prostituição (exercida livremente por indivíduos maiores de 18 anos) da exploração sexual.42 Em suma, verifica-se que o projeto tem como proposta a revogação dos tipos penais do sistema abolicionista – atualmente vigente no Código Penal brasileiro –, bem como o deslocamento do crime de tráfico de pessoas para o grupo “dos crimes contra os direitos humanos”. Além disso, o referido delito teve sua redação aprimorada, separando a prostituição do tráfico de pessoas, cuja finalidade é a exploração sexual. Diante disso, descriminalizar as condutas que estão no entorno da prostituição parece ser o caminho mais adequado, com o intuito de “desafogar” o sistema penal, em consonância com a doutrina do “direito penal mínimo”. 41 QUEIROZ, Paulo. Projeto de Reforma do Código Penal: Crimes Contra a Dignidade Sexual (Título IV, Capítulos I e II). In: Revista da Escola da Magistratura do Rio de Janeiro – EMERJ, v. 15, n. 60, out- dez 2012, p. 220-221. 42 Nesse sentido, o Protocolo de Parlermo caracteriza, no seu art. 3º, o que seria exploração sexual. “Para efeitos do presente Protocolo: a) A expressão "tráfico de pessoas" significa o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tem autoridade sobre outra para fins de exploração, A exploração incluirá, no mínimo, a exploração da prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, escravatura ou práticas similares a escravatura, a servidão ou a remoção de órgãos; b) O consentimento dado pela vítima de tráfico de pessoas tendo em vista qualquer tipo de exploração descrito na alínea a) do presente artigo será considerado irrelevante se tiver sido utilizado qualquer um dos meios referidos na alínea a); c) O recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de uma criança para fins de exploração serão considerados "tráfico de pessoas" mesmo que não envolvam nenhum dos meios referidos da alínea a) do presente artigo; d) 0 termo "criança" significa qualquer pessoa com idade inferior a dezoito anos” – grifo nosso. 4. Conclusão: por um direito penal mínimo A realidade do sistema penal brasileiro é catastrófica e incontestável: catastrófica porque a população carcerária cresce num ritmo preocupante, agravando o fenômeno da superlotação e a consequente violação de direitos humanos. Incontestável porque existe um determinado perfil socio-econômico que é alvo do encarceramento: oriundos de classes subalternas, 75% dos indivíduos foram presos ou por crimes contra o patrimônio ou por tráfico de drogas.43 Sendo assim, a lógica do sistema penal não atua aleatoriamente, mas sim de maneira seletiva: aqueles que pertencem a estratos sociais inferiores estão, certamente, muito mais vulneráveis ao controle social realizado pelo Estado penal. Isto significa que o marxismo está “na ordem do dia”, uma vez que há um recorte de classe quando analisamos a questão criminal – mais especificamente, o perfil dos presos – no Brasil.44 A reforma do Código Penal não será capaz de mudar esse contexto, pois reforça a tendência punitivista dos movimentos de “lei e ordem”. A multiplicidade de tipos penais poderá aumentar o número de presos, fazendo com que a situação dos presídios brasileiros fique ainda mais precária. Desse modo, motivos de diversas ordens – devidamente expostos neste artigo – nos conduzem inevitavelmente à rejeição do projeto, conforme argumenta Juarez Cirino dos Santos: “O exame do Projeto de Código Penal (PL 236/2012 do Senado Federal) mostra uma ideologia conservadora e repressiva: conservadora, porque assume os valores dominantes da formação social capitalista globalizada; repressiva, porque acredita na pena criminal como mecanismo de solução de conflitos em sociedades desiguais. (...) Argumentos científicos e razões de política criminal parecem aconselhar a rejeição do Projeto. A natureza e a extensão dos defeitos são maiores do que eventuais méritos, tornando o Projeto imprestável: é impossível emendar, retificar ou corrigir”.45 Quando observamos os crimes envolvendo a prostituição, podemos constatar alguns avanços, principalmente no que diz respeito à extinção do sistema abolicionista.43 Segundo os dados constantes no relatório do Departamento Penitenciário Nacional (Dezembro, 2012). 44 Não somente um recorte de classe, mas também um recorte racial, considerando que, segundo dados do DEPEN, 60% da população carcerária é negra. 45 CIRINO DOS SANTOS, Juarez. A reforma penal: crítica da disciplina legal do crime. Disponível em: <http://www.tribunavirtualibccrim.org.br/artigo/6-A-reforma-penal:-critica-da-disciplina-legal-do- crime>. Acesso em: 16/08/2013. http://www.tribunavirtualibccrim.org.br/artigo/6-A-reforma-penal:-critica-da-disciplina-legal-do-crime http://www.tribunavirtualibccrim.org.br/artigo/6-A-reforma-penal:-critica-da-disciplina-legal-do-crime Este modelo de enquadramento jurídico da prostituição mostra-se totalmente ineficaz para combater aquilo que considera como crime e para proteger a dignidade sexual daquelas e daqueles que se prostituem. O projeto de reforma apresenta um avanço pontual, que poderia muito bem ensejar uma reforma parcial no Código Penal vigente, sem a necessidade de instituir um novo diploma legislativo. Partimos da premissa de que a prostituição não é um assunto a ser tratado pelo Direito Penal, justamente pela diferença que existe entre o meretrício (exercido “livremente” por indivíduos maiores de 18 anos) e as situações de exploração sexual. Isto significa que assumimos uma postura favorável ao direito penal mínimo. Também conhecido como “minimalismo”, esta perspectiva teórica é dotada de profunda heterogeneidade, visando a limitação da violência punitiva com a máxima contração do sistema penal. Diante da diversidade de minimalismos, entendemos que é necessário delimitar qual deles estamos defendendo. Em contraposição ao minimalismo como um fim em si mesmo, apostamos no minimalismo como meio para o abolicionismo. Sobre esta corrente de pensamento, nos valemos da explicação de Vera Andrade: “Os primeiros são os modelos que, partindo da aceitação da deslegitimação do sistema penal concebida como uma crise estrutural irreversível, assumem a razão e a utopia abolicionistas, porque não veem possibilidade de relegitimação do sistema penal, nem no presente nem no futuro. São minimalismos como meio, ou seja, metodologias e táticas de curto e médio prazos, de transição para o abolicionismo.”46 Como a própria criminóloga afirma, o sistema penal encontra-se em uma crise estrutural irreversível: não é possível, segundo o nosso entendimento, melhorá-lo para que, um dia, seja plenamente eficaz e justo. Por isso, para combater esse sistema, elegemos a via do direito penal mínimo, estratégia que passa por medidas de descriminalização e despenalização.47 46 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Pelas mãos da criminologia: o controle penal para além da (des)ilusão. Rio de Janeiro: Revan, 2012, p. 265. 47 “Argumentos humanitários (crítica científica aos inconvenientes da prisão), técnicos (uso de drogas psicoativas) e economicistas (crise fiscal) dos anos 70 explicam o fenômeno como política do Estado de fechamento das prisões, reformatórios e asilos, em um processo de desinstitucionalização caracterizado pela expulsão física dos internos, com a redução geral da população carcerária por cortes orçamentários, reclassificação de detentos, descriminalização, ampliação do poder discricionário do juiz, da polícia, etc. – cujo pressuposto material é a existência de uma infra-estrutura de assistência A superação desse modelo de controle social – responsável por gerar dor e sofrimento – somente ocorrerá com transformações profundas na sociedade capitalista. Para que isto ocorra, como já disse Alessandro Baratta, não precisamos de um direito penal alternativo, mas sim de uma alternativa ao direito penal. 5. Referências Bibliográficas ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Pelas mãos da criminologia: o controle penal para além da (des)ilusão. Rio de Janeiro: Revan, 2012. BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do direito penal. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002. BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 12ª ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Revan, 2011. BATISTA, Vera Malaguti. Introdução crítica à criminologia brasileira. Rio de Janeiro: Revan, 2011. BRASIL, Governo Federal. Defensores Públicos: pelo direito de recomeçar. Brasília, 2013. BRASIL. Relatório de Gestão – 2011 do Departamento Penitenciário do Estado do Paraná (DEPEN). Disponível em: <http://www.depen.pr.gov.br/arquivos/File/relges20082011.pdf>. _______. Relatório Estatístico do Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN). Dezembro de 2012. Disponível em: <http://portal.mj.gov.br>. CIRINO DOS SANTOS, Juarez. A Criminologia Radical. 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