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Integração ao Conhecimento Jurídico Aula dia 06.05.2022 A questão da autonomia da mulher para fazer suas escolhas e do poder de disposição sobre o corpo • A pessoa é sujeito de direito. É parte de uma relação jurídica capaz de adquirir, modificar e extinguir direitos. Neste sentido, o Direito Privado é marcado pela preponderância das regras que interessam aos particulares e tem como um de seus princípios estruturantes a autonomia da vontade. Assim, a pessoa pode, se quiser, estabelecer negócios jurídicos que serão regulamentados pela lei ou por cláusulas estabelecidas pela parte, como acontece com o testamento - negócio jurídico unilateral - , ou por ela e por outrem, como no contrato de locação, por exemplo - negócio jurídico bilateral. • Esta ideia inicial, por conseguinte, é pertinente quando se trata de contrato, cujo objeto é bem móvel ou imóvel. Mas como ficaria a situação na hipótese de o objeto do negócio ser o próprio corpo da pessoa? Seria isto possível, uma vez que o corpo integra o rol dos bens protegido pelos direitos de personalidade? Teria a pessoa o direito de dispor dele? Em outras palavras: teria a pessoa o direito de fazer o que quiser com o seu corpo, simplesmente por ele ser seu? • O ser humano, como pessoa natural, adquire personalidade jurídica, isto é, passa a ser capaz de ser titular de direitos e obrigações - capacidade de direito ou de gozo-, a partir de seu nascimento com vida, conforme previsto no art. 2° da lei civil vigente. A lei, no entanto, ressalva os direitos do nascituro desde a concepção. Por sua vez, com a morte termina a existência da pessoa natural (CC, art. 6º). Para ser pessoa, portanto, basta que ela nasça com vida, que exista (DINIZ, 2011, p. 131), que esteja viva. • Tem-se, portanto, que a pessoa é e sempre será considerada um ser único, autônomo, dotado de características marcantes, próprias, e que a diferenciará de outras pessoas, como ela é, “com todos os predicados que integram a sua individualidade.” (GONÇALVES, 2011, p. 100). Neste sentido, aliás, importante a lição de Paulo Otero, ao afirmar que “cada ser humano é dotado de uma individualidade biológica própria que lhe confere uma dimensão física e psíquica exclusiva, única, irrepetível, distinta de todos os demais.” (2009, p. 362). Ensinando ainda sobre a individualidade, ele assevera que esta é “uma realidade inata, inalienável e insuscetível de se reconduzir ou transformar em objeto ou coisa.” (2009, p. 364). • Assim, o ser que nasce com vida torna-se pessoa distinta de qualquer outra, com seus próprios atributos e com sua própria personalidade jurídica. Por fim, vale notar que a personalidade jurídica não se confunde nem com a capacidade, nem com os chamados direitos da personalidade. • O conceito de personalidade pode variar conforme o enfoque de estudo nas grandes áreas das ciências. O dicionário define personalidade como: “1. Caráter ou qualidade do que é pessoal. 2. O que determina a individualidade de uma pessoa moral; o que a distingue de outra.” (FERREIRA, 2000, p. 530). • Percebe-se que a ideia de individualidade está intrinsecamente ligada ao conceito de personalidade, que se “resume no conjunto de caracteres do próprio indivíduo” (SZANIAWSKI, 2005, p. 70), de onde emanam bens jurídicos que precisam ser protegidos. A tutela da personalidade, pois, interessa ao Direito. • Os direitos da personalidade, portanto, são aqueles inerentes à pessoa, como a vida, a imagem, o corpo, o nome, entre outros, e que merecem a proteção estatal. Não é à toa que eles são considerados, desde a época do Direito Romano, como sendo ius in se ipsum. Em outras palavras isto significa que a pessoa teria um direito sobre o seu próprio corpo, o que acabou dando margem a uma grande discussão, fazendo inclusive com que Friedrich Carl von Savigny, fundador da Escola Histórica, não reconhecesse esses direitos, por acreditar que eles poderiam justificar o suicídio. (CAPELO DE SOUSA, 1995, p. 81) • No que diz respeito ao ordenamento jurídico brasileiro, o Código Civil de 1916 não fez qualquer menção aos direitos da personalidade . Pela primeira vez, o atual Código Civil dedicou um capítulo para o assunto (arts. 11 a 21). • A Constituição da República de 1988, vale lembrar, também positivou a inviolabilidade de alguns direitos da personalidade, bem como consagrou o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III) de cujo tronco irradia uma gama de direitos. “A lógica fundante dos direitos da personalidade é a tutela da dignidade da pessoa humana.” (TEPEDINO, 2002. p. XXIX). • Assim, após os registros históricos da utilização do corpo como meio de se chegar a fins ilícitos (como nos casos de escravidão, tortura, genocídio etc.), surgiram nos ordenamentos, normas capazes de assegurar proteção à integridade física e psíquica do ser humano, buscando impedir ofensas por parte do Estado e dos próprios particulares, principalmente em relação ao corpo alheio. O CORPO COMO DIREITO DE PERSONALIDADE • Dentre os direitos da personalidade está o direito ao corpo, nele incluídos os seus tecidos, órgãos e partes separáveis, bem como a proteção ao cadáver. O corpo pertence à pessoa que nasce e representa sua expressão física de individualização na sociedade. • O tratamento jurídico ao corpo humano sofreu, ao longo da história, profunda influência do pensamento religioso, pois era visto como uma dádiva divina, intocável, mas que, ao longo do tempo o pensamento moderno rompeu com essa perspectiva, recolocando gradativamente a integridade corporal no campo da autonomia do sujeito. Fato é que a própria legislação civil (arts. 13-15) trata do assunto como a liberdade do indivíduo dispor ou não do próprio corpo. • Os Tratados Internacionais de Direitos Humanos ratificados pelo Brasil, bem como vários dispositivos constitucionais, como é o caso, da inviolabilidade do direito à vida (art. 5º, caput), e da proibição à pena de morte (salvo em caso de guerra declarada), de caráter perpétuo, de trabalho forçado e cruel (art. 5º, XLVII), o Código Civil (arts. 13 e 14), e a lei de transplante de órgãos (Lei 9.434/97), são provas da proteção ao corpo da pessoa como direito da personalidade. • Os direitos fundamentais, consagrados na Constituição de 1988, representam a proteção legal dos direitos do homem e asseguram uma série de direitos, entre eles, os direitos da personalidade. Note-se, desde já, que todo direito de personalidade é direito fundamental, mas o contrário não se pode afirmar. Muitos dos direitos fundamentais são direitos de personalidade, mas nem todos os direitos fundamentais são direitos de personalidade. • O direito à proteção e incolumidade do corpo é direito fundamental e de personalidade, concomitantemente. Não se deve esquecer, primeiramente, que a vida humana é um bem jurídico fundamental, inviolável, do qual decorrem os demais direitos da pessoa humana. • O PRINCÍPIO DA AUTONOMIA DA VONTADE • É indissociável a relação entre liberdade e vontade. Por meio do exercício da liberdade o ser humano coloca em prática sua autonomia da vontade e é capaz de exercer toda a gama de direitos - inclusive os de personalidade -, que integram sua esfera jurídica. • José Afonso da Silva aduz que “o conceito de liberdade humana deve ser expresso no sentido de um poder de atuação do homem em busca de sua realização pessoal, de sua felicidade.” • Portanto, liberdade e autonomia andam de mãos dadas. A autonomia da vontade representa um dos princípios mais importante do sistema normativo privado. Em síntese, está ligada à faculdade do indivíduo de poder decidir conforme o seu querer, embora isto venha a ser limitado pelas regras supremas do ordenamento jurídico. • Assim, com base na liberdade, a pessoa é capaz de tomar decisões a respeito da sua própria vida, determinando seu destino, inclusive sobre seu corpo, de forma livre, de acordo com suas convicções. • O médico, como profissional responsável pelo tratamento da pessoa enferma, deve exercer seus deveres nos termos do ordenamento vigente, dentreelas o Código de Ética Médica (Resolução CFM nº 1.931/2009); contudo ele deverá respeitar a vontade e, consequentemente, as decisões que vierem a ser tomadas pelo paciente. • Da mesma forma, no campo da Bioética, a ciência que estuda a ética e a vida, e que se traduz num verdadeiro compromisso social do Direito e da Medicina, também se verifica o respeito à autonomia da vontade do paciente pelo médico, por meio de um dos quatro grandes princípios éticos norteadores da experimentação com o corpo do homem (os outros princípios são o da beneficência, da não maleficência e o da justiça) • O médico, portanto, deve respeitar a vontade do paciente, informando-lhe sobre seu diagnóstico bem como sobre as opções de tratamentos ou experimentações disponíveis. Com os devidos esclarecimentos dos riscos e das “questões que envolvem seu corpo e sua vida” o paciente poderá de maneira voluntária fornecer ao médico o consentimento informado. • Por fim, conciliando o princípio da autonomia da vontade com a legislação civil a respeito do corpo, percebe-se que o Código Civil limitou-se a regulamentar somente os atos de disposição do corpo humano . • LIMITAÇÕES À DISPOSIÇÃO DO CORPO • A atuação e o avanço da ciência sobre o corpo humano aliados à autonomia da vontade da pessoa, pode trazer sérias consequências causadoras de um descontrole social da biotecnologia, motivo pelo qual Medicina e Direito devem estar juntas na defesa de seus respectivos interesses. • A pessoa, portanto, não pode ser vista como coisa, como uma mercadoria. Há uma unidade entre o ser humano e o seu corpo, sendo certo que a utilização deste último deverá encontrar limites na legislação. A intervenção no corpo humano pode ser causada pelo próprio sujeito, por meio de suas próprias mãos - hipótese de autolesão - ou de um terceiro devidamente autorizado, habilitado ou não profissionalmente. • O fato é que a pessoa tem autonomia para poder determinar o caminho que deseja traçar a respeito da disposição do seu próprio corpo, sem esquecer que a vida humana guarda especial proteção constitucional. Em razão disto, o ordenamento jurídico coíbe a prática de atos que possam vir a comprometer o bem maior que é o direito à vida. Isto acontece basicamente por meio dos bons costumes e da lei, procurando regulamentar os limites possíveis de disposição do corpo humano, contra todo e qualquer comportamento em sentido contrário, como sua destruição ou a violação de sua integridade • O titular do direito ao corpo pode dele se utilizar conforme lhe aprouver, vedando-se o uso atentatório à vida ou à saúde física ou mental, pois estes últimos são valores mais significativos. • Algumas limitações legais quanto à disposição do corpo: • A) Autolesão: é a situação em que a pessoa provoca danos físicos em seu próprio corpo. Não há impedimento legal quanto à autolesão do corpo (como por exemplo, nos casos de tatuagem, cortes, piercing, inserção de silicone etc.). Autolesão pode ser considerada “mutilação voluntária” afirmando que terá efeitos no mundo jurídico “quando em conexão com objetivo não permitido pelo ordenamento.” • Em outras palavras, se a pessoa se automutila para obter benefícios da previdência, tem-se um caso de ato ilícito, que precisa ser reprimido pelo ordenamento, tendo em vista que o objetivo a ser alcançado é fraudulento. A autolesão com objetivo de fraudar a lei para fins de recebimento de benefício de seguro também deve ser coibida. • A lesão é punível se afetar direitos ou patrimônio de terceiros, como no caso do Estado ou doseguro, por exemplo, referidos acima. A violência contra si próprio, porém, é fato não passível de punição. A autonomia da vontade, desse modo, não encontra óbice algum nessas hipóteses. • B) Inalienabilidade do corpo: o corpo não é passível de ser objeto de negócio jurídico patrimonial. Deste modo, a disposição de partes do corpo, tecidos e órgãos para efeitos detransplante é sempre gratuita, conforme previsto no art. 199, § 4º da Constituição Federal e arts. 1º e 9º da Lei 9434/97. • • D) Direito às partes separadas do corpo: a remoção de partes do corpo vivo encontra limites legais quando puder causar prejuízo à saúde. Quando, no entanto, tratar-se de extração por exigência médica, ela está autorizada, desde que não implique mutilação, e não haja intuito lucrativo. • O art. 13 do Código Civil proíbe o ato de disposição do corpo, exceto por exigência médica, quando importar diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons costumes. • A Lei de Transplantes (Lei n° 9.434/97) permite a doação gratuita de órgãos como fígado, medula óssea, pâncreas, rim e pulmão, órgãos duplos e regenerativos, nos limites mencionados no art. 9º, § 3º da referida lei. • D) Disposição post mortem: após a morte, o corpo passa a ter a denominação de cadáver, não havendo vedação legal quanto à sua utilização. Tanto é que o art. 14 do Código Civil prevê ser “válida com o objetivo científico, ou altruístico, a disposição gratuita do próprio corpo, no todo ou em parte, para depois da morte”, podendo o “ato de disposição ser revogado a qualquer tempo”, conforme previsto no parágrafo único do citado artigo de lei. • A morte encefálica devidamente comprovada é possível a doação de órgãos segundo a vontade manifestada em vida pelo indivíduo ou, após sua morte, caso não haja óbice por parte da família (art. 4º da Lei n° 9.434/97). • E) Tratamento médico e intervenção cirúrgica em caso de risco de vida: em qualquer de tratamento médico é imprescindível a autorização do paciente, conforme art. 15 do Código Civil. É dever do médico prestar todas as informações necessárias e de forma adequada a respeito do diagnóstico do paciente, para que este tome a decisão que achar conveniente sobre os aspectos relacionados à sua saúde. E, assim, o médico não pode desrespeitar sua decisão, exceto em caso de perigo iminente, conforme previsto no art. 31 do Código de Ética Médica. • A DISPOSIÇÃO DO CORPO COMO DIREITO FUNDAMENTAL E A PRESERVAÇÃO DA AUTONOMIA DA VONTADE - Débora Gozzo e Deyse dos Santos Moinhos Liberdade Individual Dia 13.05.2022 Liberdade individual A concepção dos direitos individuais reflete condicionamentos históricos, políticos e filosóficos, que se tornam responsáveis por aproximações ou afastamentos das formas concretas de organização política. A liberdade no mundo antigo não desfrutou do mesmo alcance da liberdade no mundo moderno. Tornou-se famosa a apresentação antitética das duas concepções, de acordo com a posição ocupada pelo homem diante do poder. A liberdade no mundo antigo é concebida como participação no poder do Estado, enquanto a liberdade no mundo moderno se avalia na medida em que o indivíduo se afirma em face do poder do Estado. Na primeira versão, o homem goza de instantes ou de momentos de liberdade, que se confundem com as decisões adotadas nos comícios ou nos órgãos de deliberação coletiva. É a liberdade em função da comunidade, dotada de valor transpersonalista. Na segunda concepção, a liberdade se põe em relação com uma decisão individual sem compromisso prévio com o poder. Ao contrário, ela se opõe ao poder e edifica a ordem individualista. A concepção de liberdade do mundo antigo, com o indivíduo se dissolvendo no Estado, acaba se projetando no mundo moderno, através de doutrinas comunitárias que afirmam a primazia (preferência) de valores coletivos sobre os individuais. O exercício do poder político revela que o conflito entre as duas concepções não se encerrou, e ele se renova nos fundamentos ideológicos do Estado moderno. A fixação dos direitos individuais foi obra de séculos, que demandou a lenta maturação do pensamento filosófico; a superação da ideia medieval dos direitos corporativos; o declínio do Estado monárquico absolutista. • A ideia se localiza no próprio alvorecer do pensamento humano, que procura afirmar-se por intermédio da liberdade criadora do espírito. A consagração formal, técnica e jurídica dos direitos individuais é mais recente no tempo, coincidindo coma organização constitucional do Estado. A Constituição surgiu para realizar a dupla tarefa originária: organizar os poderes do Estado, dentro de pauta de competências fixadas previamente, e declarar os direitos naturais, imprescritíveis e inalienáveis do homem. A Constituição se identificaria nessa matéria específica, e onde não houvesse texto organizatório para tal conteúdo, deixaria de existir a Constituição. A definição material de Constituição, que se encontra consubstanciada no artigo 16 da Declaração francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão, correspondia a uma exigência da lógica política do século XVIII. • A Liberdade interna (chamada também liberdade subjetivo, liberdade psicológica ou moral e especialmente liberdade de indiferença) é o livre-arbítrio, como simples manifestação da vontade no mundo interior do homem. Por isso é chamada igualmente liberdade do querer. Significa que a decisão entre duas possibilidades opostas pertence, exclusivamente, à vontade do indivíduo; vale dizer, é poder de escolha, de opção, entre fins contrários. E daí outro nome que se lhe dá: liberdade dos contrários. • Toda gente sabe que, internamente, é bem possível escolher entre alternativas contrárias, se se tiver conhecimento objetivo e correto de ambas. A questão fundamental, contudo, é saber se, feita a escolha, é possível determinar-se em função dela. Isto é, se se têm condições objetivas para atuar no sentido da escolha feita, e, aí, se põe a questão da liberdade externa. • Esta, que é também denominada liberdade objetiva, consiste na expressão externa do querer individual, e implica o afastamento de obstáculo ou de coações, de modo que o homem possa agir livremente. Por isso é que também se fala em liberdade de fazer, "poder de fazer tudo o que se quer. Mas um tal poder (como observa R-M. Mossé-Bastide] se não tiver freio, importará no esmagamento dos fracos pelos fortes e na ausência de toda liberdade dos primeiros". É nesse sentido que se fala em liberdades no plural, liberdades públicas (sentido estrito) e liberdades políticas. • A liberdade da pessoa física (também impropriamente chamada liberdade individual, já que todas o são) constitui a primeira forma de liberdade que o homem teve que conquistar. Ela se opõe ao estado de escravidão e de prisão. A revolta de Espártaco tinha por objetivo a conquista dessa liberdade elementar do ser humano. A Guerra dos Palmares durante cem anos foi a mais expressiva batalha dos negros brasileiros contra o seu cativeiro. • Resta, porém, a outra forma de oposição à liberdade da pessoa física, que é a detenção, a prisão ou qualquer impedimento à locomoção da pessoa, inclusive a doença. • Assim, podemos oferecer a seguinte noção de liberdade da pessoa física (excluindo-se as hipóteses de doenças, causas naturais): é a possibilidade jurídica que se reconhece a todas as pessoas de serem senhora de sua própria vontade e de locomoverem-se desembaraçadamente dentro do território nacional. Inclui, outrossim, no conceito, a possibilidade de sair e entrar no território nacional. • Os franceses indicam, como conteúdo dessa liberdade, três prerrogativas: (a) liberdade de ir e vir; (b) segurança individual; (c) liberdade de intimidade. No ordenamento jurídico brasileiro as formas de expressão da liberdade da pessoa física se revelam apenas na liberdade de locomoção e na liberdade de circulação, não sendo esta, aliás, mais do que manifestação especial daquela, que consideraremos separadamente tão-só para destacar peculiaridades. Há igualmente o problema da segurança, não como forma de liberdade da pessoa física em si, mas como forma de garantir a efetividade destas. • Sistemas de restrições das liberdades individuais • Embora as liberdades individuais devam ser protegidas, elas não são absolutas. Quando a ação ou até mesmo a omissão de um indivíduo possa causar um dano irreparável à coletividade, ela pode ser limitada pelo Estado. • A característica de normas de eficácia contida (aquelas que possuem aplicabilidade imediata, direta, mas não integral, uma vez que podem ter o seu alcance reduzido por atos do Poder Público supervenientes) tem extrema importância, porque é daí que vêm os sistemas de restrições das liberdades públicas. O legislador ordinário, quando expressamente autorizado pela Constituição, intervém para regular o direito de liberdade conferido. Algumas normas constitucionais, conferidoras de liberdades e garantias individuais, mencionam uma lei limitadora (art. 5°, VI, VII, XIII,XV, XVIII). • Outras limitações podem provir da incidência de normas constitucionais (p. ex., art. 5°, XVI: reunir-se pacificamente, sem armas; XVII: fins lícitos e vedação de caráter paramilitar, para as associações, são conceitos limitadores; arts. 136, S 1º, e 139: restrições decorrentes de estado de defesa e estado de sítio).Tudo isso constitui modos de restrições das liberdades, que, no entanto, esbarram no princípio de que é a liberdade, o direito, que deve prevalecer, não podendo ser extirpado por via da atuação do Poder Legislativo nem do poder de polícia. Este é, sem dúvida, um sistema importante de limitação de direitos individuais, mas só tem cabimento na extensão requerida pelo bem-estar social. Fora daí é arbítrio. Restrição e garantia dos direitos fundamentais em tempos de Covid-19 • o art. 3º da Lei Federal nº. 13.979, de 06 de fevereiro de 2020, com a redação da Medida Provisória nº. 926, de 2020, estabelece que: "Para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, dentre outras, as seguintes medidas: I - isolamento; II - quarentena; III - determinação de realização compulsória de: a) exames médicos; b) testes laboratoriais; c) coleta de amostras clínicas; d) vacinação e outras medidas profiláticas; (...) VI - restrição excepcional e temporária, conforme recomendação técnica e fundamentada da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, por rodovias, portos ou aeroportos de: a) entrada e saída do País; e b) locomoção interestadual e intermunicipal (...) § 1º As medidas previstas neste artigo somente poderão ser determinadas com base em evidências científicas e em análises sobre as informações estratégicas em saúde e deverão ser limitadas no tempo e no espaço ao mínimo indispensável à promoção e à preservação da saúde pública.“ Integração do Conhecimento Jurídico Dia 20.05.2022 Separação de poderes • A Constituição Federal, visando, principalmente, evitar o arbítrio e o desrespeito aos direitos fundamentais do homem, previu a existência dos Poderes do Estado e da Instituição do Ministério Público, independentes e harmônicos entre si, repartindo entre eles as funções estatais e prevendo prerrogativas e imunidades para que bem pudessem exercê-las, bem como criando mecanismos de controles recíprocos, sempre como garantia da perpetuidade do Estado democrático de Direito. O poder emana do povo e por isso é Uno. • A divisão segundo o critério funcional é a célebre “separação de Poderes”, que consiste em distinguir três funções estatais, quais sejam, legislação, administração e jurisdição, que devem ser atribuídas a três órgãos autônomos entre si, que as exercerão com exclusividade, foi esboçada pela primeira vez por Aristóteles, na obra “Política”, detalhada, posteriormente, por John Locke, no Segundo tratado do governo civil, que também reconheceu três funções distintas, entre elas a executiva, consistente em aplicar a força pública no interno, para assegurar a ordem e o direito, e a federativa, consistente em manter relações com outros Estados, especialmente por meio de alianças. E, finalmente, consagrada na obra de Montesquieu O espírito das leis, a quem devemos a divisão e distribuição clássicas, tornando-se princípio fundamental da organização política liberal e transformando-se em dogma pelo art. 16 da Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, e é prevista no art. 2º da nossa Constituição Federal. “ Art.2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.” • Esse é um princípio geral do Direito Constitucional que a Constituição inscreve como um dos princípios fundamentais que ela adota. Consta de seu art. 2° que são poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. Poder Legislativo, Poder Executivo e Poder Judiciário são expressões com duplo sentido. Exprimem, a um tempo, as funções legislativa, executiva e jurisdicional e indicam os respectivos órgãos, conforme descrição e discriminação estabelecidas no título da organização dos poderes (respectivamente, nos arts. 44 a 75, 76 a 91 e 92 a 135). A separação dos poderes é cláusula pétrea (art. 60, §4º da CF). • O objetivo colimado pela Constituição Federal, ao estabelecer diversas funções, imunidades e garantias aos detentores das funções soberanas do Estado, Poderes Legislativo, Executivo, Judiciário e a Instituição do Ministério Público, é a defesa do regime democrático, dos direitos fundamentais e da própria Separação de Poderes, legitimando, pois, o tratamento diferenciado fixado a seus membros, em face do princípio da igualdade. Assim, estas eventuais diferenciações são compatíveis com a cláusula igualitária por existência de um vínculo de correlação lógica entre o tópico diferencial acolhido por residente no objeto, e a desigualdade de tratamento em função dela conferida, pois compatível com interesses prestigiados na constituição. • Uma interpretação valorativa dos direitos fundamentais, bem como de proteção dos instrumentos e mecanismos previstos constitucionalmente para sua aplicabilidade integral e eficaz, entre eles as previsões de garantias e imunidades, vai ao encontro da dupla finalidade apontada por Mauro Cappelletti, ao dissertar sobre o nascimento da denominada justiça constitucional das liberdades: evitar os regimes ditatoriais e garantir independência e liberdade à função criativa do Judiciário, na efetividade dos referidos direitos fundamentais. • Como salientava Montesquieu, o verdadeiro espírito da igualdade está longe da extrema igualdade, tanto quanto o Céu da Terra. O espírito de igualdade não consiste em fazer que todo mundo mande, ou que ninguém seja mandado; consiste em mandar e obedecer a seus iguais. Não procura não ter chefe; mas só ter como chefes seus iguais. No estado natural, os homens nascem bem na igualdade; mas não poderiam permanecer assim. A sociedade os faz perdê-la, e eles não se tornam de novo iguais senão por meio das leis. Tal é a diferença entre a democracia regrada e aquela que o não é: nesta, só se é igual como cidadão; na outra, também se é igual como magistrado, como senador, como juiz, como pai, como marido, como senhor. • Ao prelecionar sobre a divisão dos poderes, Montesquieu mostrava o necessário para o equilíbrio dos Poderes, dizendo que para formar-se um governo moderado, “precisa-se combinar os Poderes, regrá-los, temperá-los, fazê-los agir; dar a um Poder, por assim dizer, um lastro, para pô- lo em condições de resistir a um outro. É uma obra-prima de legislação, que raramente o acaso produz, e raramente se deixa a prudência produzir... Sendo o seu corpo legislativo composto de duas partes, uma acorrentada a outra pela mútua faculdade de impedir. Ambas serão amarradas pelo Poder Executivo, o qual o será, por seu turno, pelo Legislativo. Esses três Poderes deveriam originar um impasse, uma inação. Mas como, pelo movimento necessário das coisas, são compelidos a caminhar, eles haverão de caminhar em concerto”. • Não há, pois, qualquer dúvida da estreita interligação constitucional entre a defesa da separação de poderes e dos direitos fundamentais como requisito sine qua non para a existência de um Estado democrático de direito. Nesta esteira, o legislador constituinte previu diversas imunidades e garantias para os exercentes de funções estatais relacionadas com a defesa dos direitos fundamentais e gerência dos negócios do Estado, definindo-as nos capítulos respectivos dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário e, também, da Instituição do Ministério Público. • Note-se que nos referimos às garantias dos Poderes Legislativo, Executivo, Judiciário e da Instituição do Ministério Público, uma vez que se assemelham em virtude da autonomia, independência e finalidades constitucionais. Além disto, exercem todos funções únicas do Estado, dentro de uma visão mais contemporânea das funções estatais, que reconhece que o Estado constitucional de direito assenta-se na ideia de unidade, pois o poder soberano é uno, indivisível, existindo órgãos estatais, cujos agentes políticos têm a missão precípua de exercerem atos de soberania. Aliás, bem o disse Rousseau, o poder soberano é uno. Não pode sofrer divisão. Assim, o que a doutrina liberal clássica pretende chamar de separação dos poderes, o constitucionalismo moderno determina divisão de tarefas estatais, de atividades entre distintos órgãos autônomos. • Lembremo-nos que o objetivo inicial da clássica separação das funções do Estado e distribuição entre órgãos autônomos e independentes tinha como finalidade a proteção da liberdade individual contra o arbítrio de um governante onipotente. • O Direito Constitucional contemporâneo, apesar de permanecer na tradicional linha da ideia de Tripartição de Poderes, já entende que esta fórmula, se interpretada com rigidez, tornou-se inadequada para um Estado que assumiu a missão de fornecer a todo o seu povo o bem-estar, devendo, pois, separar as funções estatais, dentro de um mecanismo de controles recíprocos, denominado “freios e contrapesos” (checks and balances). • Assim, a Constituição Federal de 1988 atribuiu as funções estatais de soberania aos três tradicionais Poderes de Estado: Legislativo, Executivo e Judiciário, que, entre várias outras importantes funções, deve zelar pelo equilíbrio entre os Poderes, fiscalizando-os, e pelo respeito aos direitos fundamentais. • A estes órgãos, a Constituição Federal confiou parcela da autoridade soberana do Estado, garantindo-lhes autonomia e independência. • Esta opção do legislador constituinte em elevar o Ministério Público a defensor dos direitos fundamentais e fiscal dos Poderes Públicos, alterando substancialmente a estrutura da própria Instituição e da clássica teoria da Tripartição de Poderes, não pode ser ignorada pelo intérprete, pois se trata de um dos princípios sustentadores da teoria dos freios e contrapesos de nossa atual Constituição Federal. • Ex. de Sistema de Freios e Contrapesos: O Legislativo faz as leis, mas depende do Executivo para sancionar, e se ela for inconstitucional o Judiciário irá julgá-la. • Não existirá, pois, um Estado democrático de direito, sem que haja Poderes de Estado e Instituições, independentes e harmônicos entre si, bem como previsão de direitos fundamentais e instrumentos que possibilitem a fiscalização e a perpetuidade desses requisitos. Todos estes temas são de tal modo ligados que a derrocada de um, fatalmente, acarretará a supressão dos demais, com o retorno do arbítrio e da ditadura. • O legislador constituinte, no intuito de preservar este mecanismo recíproco de controle e a perpetuidade do Estado democrático, previu, para o bom exercício das funções estatais, pelos Poderes Legislativo, Executivo, Judiciário e a Instituição do Ministério Público, diversas prerrogativas, imunidades e garantias a seus agentes políticos, que serão oportunamente analisadas. • A divisão de poderes fundamenta-se, pois, em dois elementos: (a) especialização funcional, significando que cada órgão é especializado no exercício de uma função; assim, às assembleias (Congresso, Câmaras, Parlamento) se atribui a função Legislativa; ao Executivo, a função executiva; ao Judiciário, a função jurisdicional; (b) independência orgânica, significando que, além da especialização funcional, é necessário que cada órgão seja efetivamente independente dos outros, o que postula ausência de meios de subordinação. Trata-se, pois, comose vê, de uma forma de organização jurídica das manifestações do Poder. PODER LEGISLATIVO • A Constituição Federal consagrou em seu art. 2º a tradicional tripartição de Poderes, ao afirmar que são Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. Com base nessa proclamação solene, o próprio legislador constituinte atribuiu diversas funções a todos os Poderes, sem, contudo, caracterizá-la com a exclusividade absoluta. Assim, cada um dos Poderes possui uma função predominante, que o caracteriza como detentor de parcela da soberania estatal, além de outras funções previstas no texto constitucional. São as chamadas funções típicas e atípicas. • As funções típicas do Poder Legislativo são legislar e fiscalizar, tendo ambas o mesmo grau de importância e merecedoras de maior detalhamento. Dessa forma, se por um lado a Constituição prevê regras de processo legislativo, para que o Congresso Nacional elabore as normas jurídicas, de outro, determina que a ele compete a fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial do Poder Executivo (CF, art. 70). • As funções atípicas constituem-se em administrar e julgar. A primeira ocorre, exemplificativamente, quando o Legislativo dispõe sobre sua organização e operacionalidade interna, provimento de cargos, promoções de seus servidores; enquanto a segunda ocorrerá, por exemplo, no processo e julgamento do Presidente da República por crime de responsabilidade. • No exercício de suas funções, os membros do Poder Legislativo estão resguardados por um protetivo rol de prerrogativas e imunidades; bem como por algumas incompatibilidades, como se analisará a seguir. PODER EXECUTIVO • Nossa tradição presidencialista iniciou-se com a primeira Constituição da República dos Estados Unidos do Brazil, promulgada em 24 de fevereiro de 1891 (“art. 41. Exerce o Poder Executivo o Presidente da República dos Estados Unidos do Brazil, como chefe electivo da nação”), e manteve-se nas constituições seguintes, de 16 de julho de 1934 (“art. 51. O Poder Executivo é exercido pelo Presidente da República”), de 10 de novembro de 1937 (“art. 73. O Presidente da República, autoridade suprema do Estado, coordena a atividade dos órgãos representativos, de grau superior, dirige a política interna e externa, promove ou orienta a política legislativa de interesse nacional, e superintende a administração do país”), de 18 de setembro de 1946 (“art. 78. O Poder Executivo é exercido pelo Presidente da República”), de 24 de janeiro de 1967 (“art. 74. O Poder Executivo é exercido pelo Presidente da República, auxiliado pelos Ministros de Estado”), inclusive com a redação dada pela EC nº 01, de 17 de outubro de 1969 (“art. 73. O Poder Executivo é exercido pelo Presidente da República auxiliado pelos Ministros de Estado”); e, finalmente, pela atual Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 5 de outubro de 1988 (“art. 76. O Poder Executivo é exercido pelo Presidente da República auxiliado pelos Ministros de Estado”). • O Poder Executivo constitui órgão constitucional cuja função precípua é a prática dos atos de chefia de estado, de governo e de administração. • A Chefia do Poder Executivo foi confiada pela Constituição Federal ao Presidente da República, a quem compete seu exercício, auxiliado pelos Ministros de Estado, compreendendo, ainda, o braço civil da administração (burocracia) e o militar (Forças Armadas), consagrado mais uma vez o presidencialismo, concentrando na figura de uma única pessoa a chefia dos negócios do Estado e do Governo. • Apesar de a clássica separação dos Poderes ter sido adotada pelo constituinte de 1988, no art. 2º, ao afirmar que são Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário, foram consagradas pela Constituição Federal, em relação a todos os Poderes de Estado, funções típicas e atípicas, inexistindo, pois, exclusividade absoluta, no exercício dos misteres constitucionais. PODER JUDICIÁRIO • O Poder Judiciário é um dos três poderes clássicos previstos pela doutrina e consagrado como poder autônomo e independente de importância crescente no Estado de Direito, pois, como afirma Sanches Viamonte, sua função não consiste somente em administrar a Justiça, sendo mais, pois seu mister é ser o verdadeiro guardião da Constituição, com a finalidade de preservar, basicamente, os princípios da legalidade e igualdade, sem os quais os demais tornar-se-iam vazios. Esta concepção resultou da consolidação de grandes princípios de organização política, incorporados pelas necessidades jurídicas na solução de conflitos. • Não se consegue conceituar um verdadeiro Estado democrático de direito sem a existência de um Poder Judiciário autônomo e independente para que exerça sua função de guardião das leis, pois, como afirmou Zaffaroni, “a chave do poder do judiciário se acha no conceito de independência”. • Daí as garantias de que goza, algumas das quais asseguradas pela própria Constituição Federal, sendo as principais a vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de vencimentos. Na proteção destas garantias devemos atentar na recomendação de Montesquieu, de que as leis e expedientes administrativos tendentes a intimidar os juízes contravêm o instituto das garantias judiciais; impedindo a prestação jurisdicional, que há de ser necessariamente independente; e afetando, desta forma, a separação dos poderes e a própria estrutura governamental. Na defesa da necessária independência do Judiciário, Carl Schmitt afirma que a utilização da legislação pode ser facilmente direcionada para atingir os predicamentos da magistratura, afetando a independência do Poder Judiciário. Como autoproteção, o próprio Judiciário poderá garantir sua posição constitucional, por meio do controle judicial destes atos, de onde concluímos a ampla possibilidade de controle de constitucionalidade das leis ou atos normativos que desrespeitem o livre exercício deste Poder. • Bandrés afirma que a independência judicial constitui um direito fundamental dos cidadãos, inclusive o direito à tutela judicial e o direito ao processo e julgamento por um Tribunal independente e imparcial. MINISTÉRIO PÚBLICO • Determinados autores procuram a origem do Ministério Público já no antigo Egito, há cerca de quatro mil anos, no funcionário real do Egito Magiai,687 que possuía funções de castigar os rebeldes, reprimir os violentos e proteger os cidadãos pacíficos. • Há quem veja nos Éforos de Esparta um Ministério Público embrionário, pois tinham por função, embora juízes, contrabalançar o poder real e o poder senatorial, exercendo o ius accusationis, ou, ainda, nos thesmotetis ou tesmãtetas gregos, forma rudimentar de acusador público. • Outros lembram em Roma os advocatus fisci e os procuratores caesaris, encarregados de vigiar a administração de bens do Imperador. • O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis (art. 127 da Constituição Federal, art. 1º da Lei nº 8.625/93, art. 1º da Lei Complementar Federal nº 75/93 e art. 1º da Lei Complementar/SP nº 734/93). • O ingresso na carreira do Ministério Público far-se-á mediante concurso público de provas e títulos, assegurada a participação da Ordem dos Advogados do Brasil em sua realização, exigindo-se do bacharel em direito, no mínimo, três anos de atividade jurídica e observando-se, nas nomeações, a ordem de classificação. • O Conselho Nacional do Ministério Público editou a Resolução nº 4, de 20 de fevereiro de 2006, definindo como atividade jurídica, desempenhada exclusivamente após a obtenção do grau de bacharel em direito, aquela exercida por ocupante de cargo, emprego ou função, inclusive de magistério superior, nos quais prepondere a interpretação e aplicação de normas jurídicas. Integração do Conhecimento Jurídico Aula dia 27.05.2022 Tensões daJustiça Constitucional • Pode-se dizer que a história das Cortes constitucionais teve início em 1920, com a criação da Corte Constitucional da Tchecoslováquia (Constituição de 29-02-1920) e a da Alta Corte Constitucional da Áustria (Constituição de 1-10-1920). Segundo Favoreu, Kelsen foi imprescindível para a criação do modelo europeu de Tribunal Constitucional, tendo sido seu o projeto da Constituição da Áustria de 1920. • Também foi o primeiro relator permanente da Corte, após ser nomeado em 1921. O movimento de criação de Tribunais Constitucionais europeus inicia-se em 1920, na Áustria e na República Tcheca. A segunda onda criadora surge após a Segunda Guerra Mundial, em 1945, na Alemanha, na Turquia, na Iugoslávia e na França e, em terceiro período esparso, a partir de 1970, em Portugal, Espanha, Grécia, Bélgica, Polônia, Hungria, Romênia, Bulgária, Albânia, Lituânia, Rússia, Armênia. • Diga-se que, entre os ordenamentos jurídicos dos países citados, apenas em Portugal, há a ação de inconstitucionalidade por omissão. Alguns países, como Grécia, Dinamarca, Suécia e Noruega, adotaram modelo de sistema de justiça constitucional próximo ao estadunidense (unidade de jurisdição, sem separação de contenciosos) que, aparentemente, é menos atentatório aos direitos do parlamento, sem confronto direto e aberto com o legislador (mas não deixa de ser preocupante um governo de juízes). • ORIGEM E FINALIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS: A Segunda Guerra Mundial deixou marcas profundas na humanidade. Atrocidades de todos os tipos foram cometidas de forma tão ampla como nunca antes se havia visto, quase sempre em nome de determinadas ideologias. • O totalitarismo teve uma força avassaladora e deixou evidente que somente a lei, formada a partir da ideia de uma vontade geral, foi insuficiente para proteger os mais básicos Direitos Humanos. Em suma, o Estado de Direito, enquanto fundado somente na garantia das leis dadas por maiorias, falhou. As Constituições, por sua vez, como meros documentos políticos e retóricos, não se prestaram tampouco para a defesa mínima da dignidade humana. • Por conta disso, surgiu a necessidade de repensar o Constitucionalismo na segunda metade do Século XX. O pós-guerra, na leitura do constitucionalista português e professor da Universidade de Lisboa, Jorge Reis Novais, foi, por isso, um momento de “balanço” e “refundação”. • Surge a ideia de força normativa da Constituição (Konrad Hesse, 1959). Surge, também, a ideia de Direitos Fundamentais como garantias constitucionais, como normas jurídicas essenciais postas em uma Constituição. • Com a assunção desse caráter jurídico pelos Direitos Fundamentais, passou a ser possível distingui-los dos Direitos Humanos, justamente porque aqueles se tornaram positivados nos ordenamentos nacionais, ganhando, assim, uma diferenciada força normativa e vinculante. • Nesta origem e nesta transformação, encontra-se também a expressão de sua finalidade: surgiram para garantir os direitos de todos, inclusive frente o Estado e a lei, mesmo e principalmente os direitos das minorias ante as maiorias eventuais formadas nas democracias. E nisso a força inovadora de tais direitos e o seu caráter de relevantes garantias de peso para os indivíduos e, depois, para a sociedade, no tocante a busca pela consolidação e preservação de determinados valores essenciais à manutenção de uma vida gregária digna e dignificante. • CONSEQUÊNCIAS DA INSTITUCIONALIZAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS: JUSTIÇA CONSTITUCIONAL E TENSÃO ENTRE CONSTITUCIONALISMO E DEMOCRACIA: • A origem dos Direitos Fundamentais e a sua complexa natureza geraram consequências importantes para os Estados Democráticos e de Direito do pós-guerra, que se refletem até hoje. • A primeira consequência evidente foi a necessidade de criação de uma Justiça Constitucional. Tribunais Constitucionais ou Cortes Superiores com função de fiscalização da constitucionalidade das leis se fizeram necessários justamente para dar efetividade aos direitos fundamentais. Foram e são instrumentos essenciais para assegurar que as garantias fundamentais se realizem na prática, isto é, para que as Constituições deixassem de ser retóricas e passassem a ser normativas e protetivas de direitos essenciais nas democracias. • Da mesma forma, conforme o desenvolvimento histórico dos modelos de controle de constitucionalidade e dos sistemas específicos concebidos pelos distintos ordenamentos jurídicos, não só órgãos colegiados de segundo grau ou de instâncias superiores receberam funções desta especial natureza. • O controle ou fiscalização da constitucionalidade das leis acabou sendo, por muitas vezes, uma competência também dos julgadores monocráticos, em primeira instância – mesmo que a atribuição do magistrado possa se reduzir aí, como no Brasil, a um poder-dever de negar aplicação à lei inconstitucional (e não propriamente constituir-se na possibilidade de uma declaração de inconstitucionalidade da norma propriamente dita). • De qualquer sorte, foi através da assunção da necessidade de atribuir-se essa função de fiscalização da constitucionalidade das leis aos tribunais, em sentido lato, que se operou a busca pela efetividade dos direitos fundamentais. • Desta busca pela garantia institucionalizada da efetividade dos Direitos Fundamentais, nasceu uma segunda consequência problemática: a tensão entre o constitucionalismo e a democracia. • Para compreender melhor este problema, considere-se, primeiro, que a noção de Estado Constitucional está associada à necessidade de “preservação dos direitos do homem e sua garantia enquanto direitos fundamentais”. E se, para tanto, a Constituição é forte a ponto de conter normas de Direitos Fundamentais que possam se sobrepor na vida prática às leis, então ela tem um forte sentido contramajoritário. • De outro lado, se na democracia as matérias de interesse coletivo devem ser decididas a partir de votações realizadas pelos representantes do povo, como expressão da noção essencial de busca pela vontade geral na solução dos problemas da sociedade, tem-se que está ela claramente baseada no princípio da maioria. • Assim, partindo do dogma, institucionalizado (e constitucionalizado), de que “todo o poder emana do povo e em seu nome será exercido”, de onde as leis extraem sua fonte de legitimidade em regimes democráticos, como justificar que o princípio majoritário (inserido na lei) deva ceder em favor da atuação contramajoritária de um tribunal com funções constitucionais (cujos juízes, por vezes, sequer são eleitos pelo povo)? • Ainda que as origens históricas, que impuseram a criação dos direitos fundamentais como normas jurídicas com efeitos vinculantes, se prestem para apontar a necessidade de sua existência e efetivação prática, continua sendo tarefa difícil explicar a legitimidade da atuação forte daquelas garantias contra a vontade das maiorias eleitas para legislar. • Nestes termos é que se pode falar de uma tensão entre direitos fundamentais (ou constitucionalismo) e princípio democrático, como consequência da institucionalização daqueles direitos, e que se põe a discussão sobre a legitimidade e a necessidade de uma Justiça Constitucional, bem como nasce a discussão também acerca da necessidade de seu controle adequado. • JUSTIÇA CONSTITUCIONAL: NECESSIDADE DE SUA EXISTÊNCIA E CONTROLE: Como se pode perceber do exposto, principalmente do referido quanto à contraposição entre garantias contramajoritárias e regras da maioria, a existência de uma Justiça Constitucional forte (isto é, apta a atuar de modo efetivo na realidade até contra a lei) não é um dado inquestionável em democracias. • Mesmo hoje, após todas as experiências históricas negativas, há forte questionamento sobre a necessidade e a possibilidade de que o Judiciário diga até onde pode ir o legislador. Compreensível que assim seja também quando se considera que a Justiça Constitucional tenha assumido um papel de efetiva relevância somente no pós-guerra (inicialmente na Alemanha e na Itália), à exceçãoda experiência americana, e que em países, como Portugal e Brasil, a sua efetiva atuação tenha se dado somente a partir do surgimento das últimas Constituições democráticas, respectivamente, em 1976 e 1988. • Todavia, não parece razoável supor que, para experiências como as do Brasil e de Portugal, se possa prescindir (dispensar) da existência de Cortes com atribuições constitucionais – e mesmo de juízes que estejam habilitados e autorizados a fazer juízos sobre inconstitucionalidades identificadas em casos concretos, deixando de aplicar normas violadoras dos direitos fundamentais ou da Constituição propriamente dita. • Nestas situações, as leis elaboradas podem ser violadoras de direitos fundamentais corporificados na Constituição. E nesses casos não haverá outro modo de se superar essas reduções ilegítimas de direitos fundamentais senão através da intervenção de uma Justiça Constitucional forte. • A alternativa de não haver Justiça Constitucional poderia provocar, pois, efeitos piores do que as importantes tensões institucionais já referidas, porque resultaria no esvaziamento do conteúdo protetivo da Constituição ou até mesmo crises capazes de porem em risco a própria democracia. Isso parece suficiente para demonstrar que, mesmo que os membros da Justiça Constitucional, em sentido lato, não sejam eleitos pelo povo, extraem legitimidade da prestação de um serviço de interesse da democracia e que também devem atender aos anseios populares cristalizados pelo legislador constituinte. • Há que se compreender, porém, que todo esse debate revela outro problema de grande importância, consistente na discussão de como controlar (juridicamente) a atuação destes juízes dotados de competência constitucional, no sentido de que suas intervenções se restrinjam a realizar este papel legítimo esperado e deferido pelo sistema democrático e pelo ordenamento jurídico vigente, mas, ao mesmo tempo, realizem-no da forma mais adequada e efetiva possível. • E assim deve ser justamente porque nem os tribunais podem dizer o que bem entendem acerca do que significa uma norma constitucional, alterando seu sentido sem limitações e se sobrepondo a vontade do legislador, nem o legislador pode se escudar no princípio da maioria para ignorar o conteúdo dos direitos fundamentais e vilipendiar, por exemplo, as garantias postas na Constituição Laboral. • Esse é o ponto-chave, então, para que se compreenda a necessidade da existência da justiça constitucional, em sentido amplo, em regimes democráticos e para que se revele a necessidade de melhor estudar sobre como se deve proceder para efetivar, na medida devida, os direitos fundamentais (incluídos aí os direitos fundamentais sociais trabalhistas) nos casos concretos que se põem à solução hoje na realidade brasileira. • TEORIAS SOBRE AS RESTRIÇÕES DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS: Para que a tensão entre o princípio contramajoritário (o judiciário, cujos membros, diversamente do que ocorre nos Poderes Legislativo e Executivo, não são eleitos pelo povo, pode sobrepor a sua razão à dos tradicionais representantes da política majoratária) e o princípio da maioria se resolva em favor da própria democracia, no final das contas, é preciso que todos os envolvidos com a criação e aplicação das leis e dos Direitos Fundamentais atuem de forma comprometida com as normas básicas que regem um Estado Democrático de Direito. • Isso significa que administrador, legislador e juiz devem atuar com autocontenção dentro de suas competências. Entretanto, quando não o fazem (e seguidamente não o fazem), esta sua atuação deve sofrer a devida correção por meio do instrumental técnico-jurídico previamente previsto para tanto, para que as “regras do jogo” em curso no âmbito deste Estado Democrático de Direito, sejam seguidas. No caso da correta aplicação dos direitos fundamentais na prática, é que se põe a questão quase paradoxal (ou aparentemente contraditória, em uma primeira vista) da possibilidade de restrição a direitos fundamentais. • Há inúmeras situações em que se discute sobre os limites das garantias fundamentais e até mesmo quando elas devem ceder frente a um interesse ou bem jurídico maior. Nesse ponto é que entra a técnica jurídica, extraída do estudo doutrinário, para atuar como instrumento que garanta a adequada aplicação prática destas garantias. • Além disso, é o uso destas técnicas de análise jurídica dos casos concretos que permitirá verificar quando o governo, o parlamento ou o judiciário não agiu bem na criação ou aplicação da lei ou das garantias constitucionais. As teorias e técnicas utilizadas pelos juristas nestas situações permitem, portanto, o controle público e crítico da atuação destes atores institucionais. Garantem, outrossim, que cada um vá somente até onde lhe é dado ir pelo ordenamento jurídico e impõem que, em caso de omissão, sejam obrigados a avançar até o ponto devido previsto neste mesmo ordenamento. • Finalmente, permitem o ajustamento da tensão constitucionalismo-democracia e o bom funcionamento do sistema. Por isso é que as teorias dos limites e restrições a Direitos Fundamentais têm que ter lugar especial no estudo destas garantias e da própria legitimidade da Justiça Constitucional. O Tribunal Constitucional em crise: • Em alguns aspectos, o Tribunal Constitucional pode ser provocador ou criador de novos focos de tensões, numa relação conflituosa entre jurisdição ordinária e constitucional. Por exemplo, o Tribunal Constitucional espanhol acaba por gerar desgastes das relações de poderes, quando é chamado a manifestar-se sobre possíveis violações do princípio da igualdade pelo Tribunal Supremo, exigindo-se desse último coerência na adoção dos critérios interpretativos. Deve-se atentar para que a separação orgânica entre a jurisdição constitucional e a ordinária possa transformar uma divergência judicial interna num conflito de poderes: o que, antes, era uma divergência judicial ganha contornos de conflito de poderes. No modelo de Tribunal Constitucional, o tensionamento com os demais poderes agravou-se, pois a decisão deixa de ser intra partes, e sua participação é requerida quase imediatamente, a partir do momento da votação da lei ou de sua publicação, ou seja, no calor dos fatos. • Existem outras críticas impingidas ao modelo de Corte Constitucional. Na Alemanha, na Itália e na Espanha, o Tribunal Constitucional é considerado uma “super corte de cassação”, e a abrangência dos recursos constitucionais teria propiciado o seu uso transverso como 3º ou 4º grau de jurisdição. Na Itália, a remessa de processos pelo juízo a quo faz que o Tribunal Constitucional julgue mais causas cíveis, administrativas e penais. • Outro ponto que merece atenção é que os juízes estão dedicando-se a um controle de microconstitucionalidade: passou-se do controle de constitucionalidade para o controle de aplicação de leis, com desvio da função originária. Em razão do número excessivo de recursos apresentados em número crescente a cada ano, foram criadas metodologias de “filtragem”. Assim, criou-se o problema de acesso ao Tribunal Constitucional, pois a grande maioria das causas deixa de ser julgada na forma exigida ao julgamento constitucional para dar espaço à sua substituição por comissão de três juízes com formações específicas, mediante procedimento sumário. A conseqüência direta da previsão de procedimento de julgamento sumário por comissão é a perda das vantagens do modelo de Tribunal Constitucional e do acesso direto e indireto dos indivíduos às Cortes Constitucionais. • O americano Frederick Schauer, professor do curso de Direito da Universidade de Harvard, um dos grandes nomes do pensamento jurídico contemporâneo com atuação nas áreas de Direito Constitucional, liberdade de expressão e filosofia das leis, destacou a importância do cumprimento das regras. Para ele, as pessoas deveriam considerar as leis com maior seriedade e cumpri-las à risca, mesmo que isso causasse pequenas injustiças, pois, assim, acredita ele, o sistema funcionaria melhor. Com isso, oemérito professor e jurista chama atenção para um problema de ordem jurídico-constitucional que se apresenta hodiernamente e mostra uma face da crise do modelo de controle de constitucionalidade americano (a crise não é apenas do modelo europeu): nos Estados Unidos, quando um juiz se defronta com um caso para julgar, normalmente, considera as leis mais como sugestão do que como norma obrigatória. • Constata-se, claramente, que ambos os modelos de controle de constitucionalidade enfrentam críticas. De outra parte, embora a metodologia de filtragem constitucional seja uma reação do Tribunal Constitucional como forma de canalizar a onda crescente de recursos, a problemática de fazer que as causas mais importantes sejam julgadas em prazos razoáveis e com as garantias necessárias fica relegada a segundo plano. Isso é agravado pela tendência de “abertura maior” aos recursos, para torna-los “mais democráticos” • Os Tribunais Constitucionais exercem, atualmente, função mais ampla do que a meramente técnico-jurídica, pois guardam traços de exercício de função jurisdicional, política e legislativa, ora negativa, ora positiva. A mistura de funções diversas, como a política e a técnica, podem comprometer a eqüidistância dos fatos exigida do órgão constitucional para a manutenção da ordem jurídicoconstitucional e ocasionar, indevidamente, um déficit democrático. Para conter isso, é recomendável prudente juízo de avaliação do verdadeiro papel de um Tribunal Constitucional, fundamental na guarda da Constituição e na pacificação dos conflitos institucionais e entre os poderes. • A verdadeira posição desempenhada pelo Tribunal Constitucional na estrutura dos poderes é a preservação da ordem jurídica, propagando o imperativo da ordem constitucional, devendo, pois, a Corte assumir posição de imparcialidade no controle de constitucionalidade das leis, afastada dos interesses e dos arranjos políticos que ditam regras, procedimentos e condutas, às vezes, incompatíveis com a boa ordem jurídica, comprometedora da imparcialidade. A livre interpretação de normas constitucionais é o objetivo primordial de interesse público desempenhado pela Corte Constitucional, que, embora tenha legitimidade para o exercício de função política, derivada do modo de escolha de seus membros, tem o exercício restrito à preservação da sociedade e à promoção do bem comum, nos exatos termos postos pela Carta Magna Integração ao conhecimento Jurídico Dia 03.06.2022 Possíveis interferências do Poder Judiciário na liberdade de conformação do Poder Legislativo e o Ativismo Judicial • A judicialização da política pode ser estudada sob diversos aspectos. É possível afirmar que a própria ideia de constitucionalismo e de previsão de questões políticas na Constituição permitiriam que o Judiciário acabasse enfrentando qualquer questão política como sendo uma questão constitucional. Apesar de ser aparentemente contra os interesses do Parlamento, é possível afirmar que há um consenso no sentido de que a assunção de novos papéis pelo Judiciário, incluindo as decisões sobre questões políticas, morais, religiosas, centrais, tanto por parte da sociedade quanto por parte dos próprios atores políticos, vem sendo aceita pela sociedade, uma vez que os próprios atores políticos veem o Judiciário como um fórum apropriado para enfrentar essas questões. • Werneck Vianna afirma que o "boom da litigação" é um fenômeno mundial que vem ocorrendo nas democracias contemporâneas, especialmente por conta da distância existente entre representantes e representados, o que, em consequência, leva os políticos a estimularem os canais de representação por via da legislação (Vianna; Burgos; Salles, 2007, p. 41). • Não obstante ser um fenômeno atual, o discurso muitas vezes confunde a ideia de judicialização da política com a ideia genérica de ativismo judicial, tanto que se tem utilizado o termo de judicialização de megapolítica (ou de macropolítica) para distingui-lo da judicialização da política genérica. • Ran Hirschl vai apresentar três categorias de judicialização: (i) a expansão do discurso legal, jargões, regras e procedimentos para a esfera política e para os fóruns de decisões políticas; (ii) judicialização das políticas públicas por meio do controle de constitucionalidade ou das revisões dos atos administrativos; (iii) judicialização da política pura ou da política macro, que seria a transferência às Cortes de questões de natureza política e de grande importância para a sociedade, incluindo questões sobre legitimidade do regime político e sobre identidade coletiva que definem (ou dividem) toda a política (Hirschl, 2006, p. 723). • Em relação à primeira categoria, o autor afirma que a judicialização é inerente à captura das relações sociais e culturais pelas leis, o que se deve ao aumento da complexidade e diversidade das modernas sociedades, bem como da expansão de Estados modernos de bem-estar social, com suas inúmeras agências regulatórias (Hirschl, 2006, p.724-725). • No âmbito supranacional também se verifica esse fenômeno, na medida em que se torna necessário adotar normas-padrão (universais) numa era de globalização econômica. Outro aspecto da judicialização da política é o aumento da responsabilidade do Judiciário em decidir sobre políticas públicas, especialmente sobre questões de direitos garantidos constitucionalmente, o que acaba por redefinir os próprios limites dos demais poderes políticos. • Em relação à judicialização da política pura, ou da macropolítica, pode-se entender a competência dos tribunais para decidir a respeito de questões morais ou de questões políticas críticas centrais para a sociedade. Ou seja, muitos dilemas morais e políticos acabam sendo transferidos das esferas políticas ao Judiciário. • Nesse sentido é possível pensar na judicialização da política como relacionada ao "novo estatuto dos direitos fundamentais e à superação do modelo de separação dos poderes do Estado, o que provoca uma ampliação dos poderes de intervenção dos tribunais na arena política" (Verbicaro, 2008, p. 391), especialmente por meio da participação nos processos de formulação ou implementação de políticas públicas. Na tentativa de garantir à comunidade seus direitos fundamentais elencados na Constituição Federal, a política se judicializa. • Débora Maciel e Andrei Koerner explicam que a judicialização da política "requer que operadores da lei prefiram participar da policy-making a deixá-la ao critério de políticos e administradores e, em sua dinâmica, ela própria implicaria um papel político mais positivo da decisão judicial do que aquele envolvido em uma não decisão" (Maciel; Koerner, 2002, p. 114). • No Brasil, o processo de redemocratização acabou por produzir enorme impacto no Poder Judiciário. Arantes explica que: "de um lado, a demanda por justiça, em grande parte represada nos anos de autoritarismo, inundou o Poder Judiciário com o fim dos constrangimentos impostos pelo regime militar ao seu livre funcionamento". Por outro lado, a adoção de um Estado Democrático de Direito gerou a "necessidade de juízes e árbitros legítimos" virem a decidir sobre conflitos entre sociedade e governo e entre os poderes do próprio Estado. Esse papel, segundo o autor, foi atribuído em grande medida ao Poder Judiciário (Arantes, 1999, p. 83). • Loiane Prado Verbicaro aponta algumas condições como facilitadoras do processo de judicialização da política ocorrido no Brasil, dentre as quais, destacam-se especialmente: (i) a promulgação da Constituição de 1988; (ii) a universalização do acesso à justiça; (iii) a existência de uma Constituição com textura aberta; (iv) a decodificação do direito, a crise do formalismo e do positivismo jurídico; (v) a ampliação do espaço reservado ao STF; (vi) a hipertrofia (crescimento excessivo) legislativa; e (vii) a crise do Parlamento brasileiro (Verbicaro, 2008, p. 390). • Veja-se que a abertura das normas de direitos fundamentais exigem um novo papel do Poder Judiciário, um papel que se assemelha ao que esse Poder tem nossistemas de tradição do common law, no qual é através do seu papel criador, de judge-made-law, que se densifica e se concretiza as normas previstas na Constituição. • O caráter aberto e abstrato das normas constitucionais modifica o paradigma positivista de uma suposta previsão da norma a ser adotada ao caso concreto, passando os países que adotaram o constitucionalismo como forma de proteção dos direitos fundamentais contra as arbitrariedades estatais a se aproximar do common law, especialmente no que diz respeito à jurisdição constitucional. • Como não há possibilidade de se apontar previamente qual o direito aplicado ao caso, caberá ao Judiciário densificar e dar significado a esses direitos, de acordo com o contexto histórico, social, político, moral e jurídico da sociedade naquele determinado momento. A norma, portanto, não existe no texto, mas apenas no caso concreto. • Esse novo papel dos Tribunais Constitucionais, especialmente com a possibilidade de dar conteúdo aos direitos humanos, reflete em grande expansão de sua autoridade, o que se dará por meio do judicial review. • Além disso, é possível constatar-se que, no Brasil, a Justiça se aproximou da população por meio de Juizados de Pequenas Causas, nos quais o acesso independe de representação por advogado. Legislações especiais de proteção de minorias, como Código de Defesa do Consumidor, Estatuto da Criança e do Adolescente, Estatuto do Idoso, Lei Maria da Penha, levaram a um processo de substituição do Estado pelo Judiciário, tornando o juiz protagonista nas decisões sobre questões sociais, inclusive as que envolvem políticas públicas (Vianna; Burgos; Salles, 2007, p. 41). • Aliado a isso, o sistema de controle de constitucionalidade misto tem no controle difuso a possibilidade de minorias políticas exercitarem seu poder de veto contra leis e atos administrativos editados pelos Poderes Legislativo e Executivo, invocando a Constituição de 1988, podendo-se afirmar que o controle de constitucionalidade é um dos maiores recursos disponíveis para as minorias políticas contra as decisões políticas majoritárias (Arantes, 2006, p. 241). Em sentido contrário, Antonio Moreira Maués e Anelice Belém Leitão (2004, p. 48), ao analisarem as ADIs dos Partidos Políticos no Supremo Tribunal Federal, concluem que estas "são mais bem interpretadas como ações em defesa da Constituição" do que efetivamente tentativas de desrespeito à regra da maioria, ou seja, levam à Jurisdição Constitucional a possibilidade de limitar possíveis violações da Constituição cometidas pela maioria política. • Tal afirmativa encontra respaldo em Ernani Rodrigues de Carvalho (2004), ao constatar que "os grupos de interesse passam a considerar e/ou utilizar a possibilidade de veto dos tribunais na realização de seus objetivos". • Por outro lado, pode-se verificar decisões do Supremo Tribunal Federal sobre questões políticas no que diz respeito à fidelização partidária, políticas públicas de saúde, desarmamento, pesquisa em células-tronco, mensalão, etc. Algumas dessas questões chegaram ao Supremo por meio de ações perpetradas por partidos políticos e outras por associações representativas de direitos de minorias, além daquelas que foram impetradas individualmente para garantia de direitos sociais. • Esse aumento de deferência do Legislativo para o Judiciário aconteceu em várias nações ao redor do mundo, transformando as Supremas Cortes no mais importante corpo de tomada de decisão política. • Em decorrência desse movimento, o Judiciário brasileiro tem sofrido severas críticas, assim como sofreu a Suprema Corte americana no início do século XX, no sentido de que não é órgão competente para tratar de questões políticas por não ser eleito pelo povo e, portanto, não teria legitimidade democrática para manifestar-se sobre tais questões. • (HC 124306, Relator(a): MARCO AURÉLIO, Relator(a) p/ Acórdão: ROBERTO BARROSO, Primeira Turma, julgado em 09/08/2016, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-052 DIVULG 16-03-2017 PUBLIC 17-03-2017 • Ementa: Direito processual penal. Habeas corpus. Prisão preventiva. Ausência dos requisitos para sua decretação. inconstitucionalidade da incidência do tipo penal do aborto no caso de interrupção voluntária da gestação no primeiro trimestre. Ordem concedida de ofício. • 1. O habeas corpus não é cabível na hipótese. Todavia, é o caso de concessão da ordem de ofício, para o fim de desconstituir a prisão preventiva, com base em duas ordens de fundamentos. 2. Em primeiro lugar, não estão presentes os requisitos que legitimam a prisão cautelar, a saber: risco para a ordem pública, a ordem econômica, a instrução criminal ou a aplicação da lei penal (CPP, art. 312). Os acusados são primários e com bons antecedentes, têm trabalho e residência fixa, têm comparecido aos atos de instrução e cumprirão pena em regime aberto, na hipótese de condenação. • 3. Em segundo lugar, é preciso conferir interpretação conforme a Constituição aos próprios arts. 124 a 126 do Código Penal – que tipificam o crime de aborto – para excluir do seu âmbito de incidência a interrupção voluntária da gestação efetivada no primeiro trimestre. A criminalização, nessa hipótese, viola diversos direitos fundamentais da mulher, bem como o princípio da proporcionalidade. 4. A criminalização é incompatível com os seguintes direitos fundamentais: os direitos sexuais e reprodutivos da mulher, que não pode ser obrigada pelo Estado a manter uma gestação indesejada; a autonomia da mulher, que deve conservar o direito de fazer suas escolhas existenciais; a integridade física e psíquica da gestante, que é quem sofre, no seu corpo e no seu psiquismo, os efeitos da gravidez; e a igualdade da mulher, já que homens não engravidam e, portanto, a equiparação plena de gênero depende de se respeitar a vontade da mulher nessa matéria. • 5. A tudo isto se acrescenta o impacto da criminalização sobre as mulheres pobres. É que o tratamento como crime, dado pela lei penal brasileira, impede que estas mulheres, que não têm acesso a médicos e clínicas privadas, recorram ao sistema público de saúde para se submeterem aos procedimentos cabíveis. Como consequência, multiplicam-se os casos de automutilação, lesões graves e óbitos. • 6. A tipificação penal viola, também, o princípio da proporcionalidade por motivos que se cumulam: (i) ela constitui medida de duvidosa adequação para proteger o bem jurídico que pretende tutelar (vida do nascituro), por não produzir impacto relevante sobre o número de abortos praticados no país, apenas impedindo que sejam feitos de modo seguro; (ii) é possível que o Estado evite a ocorrência de abortos por meios mais eficazes e menos lesivos do que a criminalização, tais como educação sexual, distribuição de contraceptivos e amparo à mulher que deseja ter o filho, mas se encontra em condições adversas; (iii) a medida é desproporcional em sentido estrito, por gerar custos sociais (problemas de saúde pública e mortes) superiores aos seus benefícios. • 7. Anote-se, por derradeiro, que praticamente nenhum país democrático e desenvolvido do mundo trata a interrupção da gestação durante o primeiro trimestre como crime, aí incluídos Estados Unidos, Alemanha, Reino Unido, Canadá, França, Itália, Espanha, Portugal, Holanda e Austrália. 8. Deferimento da ordem de ofício, para afastar a prisão preventiva dos pacientes, estendendo-se a decisão aos corréus.