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Brasília-DF. Literatura BrasiLeira – Prosa Elaboração Juliana Carvalho de Araujo de Barros Produção Equipe Técnica de Avaliação, Revisão Linguística e Editoração Sumário APRESENTAÇÃO ................................................................................................................................. 4 ORGANIZAÇÃO DO CADERNO DE ESTUDOS E PESQUISA .................................................................... 5 INTRODUÇÃO.................................................................................................................................... 7 UNIDADE I ROMANTISMO E REALISMO .................................................................................................................... 9 CAPÍTULO 1 ROMANTISMO: CLIMA CULTURAL, INTELECTUAL E POLÍTICO DO ROMANTISMO NO MUNDO E NO CONTEXTO BRASILEIRO ............................................................................................................ 9 CAPÍTULO 2 REALISMO-NATURALISMO: CLIMA CULTURAL, INTELECTUAL E POLÍTICO; ORIGENS E CARACTERÍSTICAS .................................................................................................................. 25 UNIDADE II MODERNISMO, CONTEMPORANEIDADE, TEATRO E NARRATIVAS PARA A TV ........................................... 37 CAPÍTULO 1 MODERNISMO: SEMANA DE ARTE MODERNA; CONTEXTO HISTÓRICO-SOCIAL; ESTÉTICA DO MODERNISMO ....................................................................................................................... 37 CAPÍTULO 2 A PROSA CONTEMPORÂNEA, O TEATRO E AS NARRATIVAS PARA A TV ...................................... 64 PARA (NÃO) FINALIZAR ..................................................................................................................... 84 REFERÊNCIAS .................................................................................................................................. 94 4 Apresentação Caro aluno A proposta editorial deste Caderno de Estudos e Pesquisa reúne elementos que se entendem necessários para o desenvolvimento do estudo com segurança e qualidade. Caracteriza-se pela atualidade, dinâmica e pertinência de seu conteúdo, bem como pela interatividade e modernidade de sua estrutura formal, adequadas à metodologia da Educação a Distância – EaD. Pretende-se, com este material, levá-lo à reflexão e à compreensão da pluralidade dos conhecimentos a serem oferecidos, possibilitando-lhe ampliar conceitos específicos da área e atuar de forma competente e conscienciosa, como convém ao profissional que busca a formação continuada para vencer os desafios que a evolução científico-tecnológica impõe ao mundo contemporâneo. Elaborou-se a presente publicação com a intenção de torná-la subsídio valioso, de modo a facilitar sua caminhada na trajetória a ser percorrida tanto na vida pessoal quanto na profissional. Utilize-a como instrumento para seu sucesso na carreira. Conselho Editorial 5 Organização do Caderno de Estudos e Pesquisa Para facilitar seu estudo, os conteúdos são organizados em unidades, subdivididas em capítulos, de forma didática, objetiva e coerente. Eles serão abordados por meio de textos básicos, com questões para reflexão, entre outros recursos editoriais que visam tornar sua leitura mais agradável. Ao final, serão indicadas, também, fontes de consulta para aprofundar seus estudos com leituras e pesquisas complementares. A seguir, apresentamos uma breve descrição dos ícones utilizados na organização dos Cadernos de Estudos e Pesquisa. Provocação Textos que buscam instigar o aluno a refletir sobre determinado assunto antes mesmo de iniciar sua leitura ou após algum trecho pertinente para o autor conteudista. Para refletir Questões inseridas no decorrer do estudo a fim de que o aluno faça uma pausa e reflita sobre o conteúdo estudado ou temas que o ajudem em seu raciocínio. É importante que ele verifique seus conhecimentos, suas experiências e seus sentimentos. As reflexões são o ponto de partida para a construção de suas conclusões. Sugestão de estudo complementar Sugestões de leituras adicionais, filmes e sites para aprofundamento do estudo, discussões em fóruns ou encontros presenciais quando for o caso. Atenção Chamadas para alertar detalhes/tópicos importantes que contribuam para a síntese/conclusão do assunto abordado. 6 Saiba mais Informações complementares para elucidar a construção das sínteses/conclusões sobre o assunto abordado. Sintetizando Trecho que busca resumir informações relevantes do conteúdo, facilitando o entendimento pelo aluno sobre trechos mais complexos. Para (não) finalizar Texto integrador, ao final do módulo, que motiva o aluno a continuar a aprendizagem ou estimula ponderações complementares sobre o módulo estudado. 7 Introdução O caderno de estudos “Literatura Brasileira – Prosa” foi construído para que o leitor desenvolva um senso crítico e estético cada vez mais latente. Desejamos que as possibilidades de interpretação das obras literárias sejam rizomáticas. Estruturas fixas aprisionam, quero antes o pensamento que se abre, livre, o desejo que se move e produz. “Toda vez que uma multiplicidade se encontra presa numa estrutura, seu crescimento é compensado por uma redução das leis de combinação” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 13). Ao analisar obras e períodos literários, não buscamos o cartesiano, o binarismo, a arte ou a vida, mas ambas, reconciliando-se e se atravessando como riachos que não têm início ou fim. Desejamos que a leitura crie linhas de fuga, isto é, ações de desvio que conduzam a novas perspectivas, a conexões que se multiplicam e se difundem, quebrando o condicionamento diário a que estamos submetidos. O caderno de estudos foi dividido em duas unidades e pretende fazer leitura e análise literária dos prosadores mais representativos da literatura brasileira. A primeira unidade se deterá nos movimentos literários romantismo e realismo, a segunda, modernismo e estéticas contemporâneas. Objetivos » Estudar os prosadores mais representativos da literatura brasileira. » Analisar a prosa dos românticos, dos realistas e dos naturalistas. » Compreender a prosa literária modernista do séc. XX e os prosadores contemporâneos. » Refletir sobre o teatro e as narrativas para a TV. » Trabalhar conteúdos teóricos da linguagem literária. » Conhecer obras literárias significativas. » Analisar obras em prosa e suas características. » Apreciar o estilo de diferentes escritores. » Proporcionar ao aluno, através da leitura e reflexão, a oportunidade de ampliar os horizontes pessoais e culturais, aprofundando a formação crítica e emancipadora. 8 9 UNIDADE IROMANTISMO E REALISMO CAPÍTULO 1 Romantismo: clima cultural, intelectual e político do romantismo no mundo e no contexto brasileiro “Em Formação da literatura brasileira (1959), Candido faz um balanço do romantismo como um todo, tendo em vista a formação do sistema literário, destacando sua relação com a sociedade. Tomando por fio o desejo dos brasileiros de dotarem o Brasil de uma literatura equiparada às europeias, procura traçar a continuidade e as diferenças entre arcadismo e romantismo, mas também entre o universal e particular, observando a poética de cada escritor a partir dos aspectos mais gerais da teoria romântica. Sua reflexão sobre o século 19 não se esgota, entretanto, com aquele livro, acompanhando-o desde então. Nos textos ensaísticos posteriores, encontram-se uma retomada e um aprofundamento da discussão sobre questões mais específicas da teoria romântica. [...] Já desde a Formação da literatura brasileira, nas passagens que abordam a literatura do momento pré-Independência, a constatação da precariedade desse períodoliterário não é suficiente para impedir que o crítico detecte o processo de uma significativa mudança no perfil do letrado da época. De acordo com ela, os intelectuais oriundos da tradição colonial recrutavam-se entre padres e bacharéis, identificando-se com os interesses da Colônia e adotando, diante das ações políticas dos governantes, uma posição passiva e laudatória que lhes proporcionava a permanência em cargos oficiais e a detenção de prebendas. Com a independência virtual gerada pela transferência da Corte, mas também com o aumento considerável de brasileiros que já haviam travado contato com os estudos científicos da Reforma de Pombal, o intelectual muda de perfil. Passa a reivindicar o direito de crítica, adota a razão e o sentimento cívico, o que o impele a procurar se engajar politicamente, desenvolvendo uma ação ora 10 UNIDADE I │ ROMANTISMO E REALISMO diretamente participativa, voltada para a iniciativa de estabelecer as reformas políticas, militando em rebeliões do período, como Natividade Saldanha e Frei Caneca, ora indiretamente, redigindo jornais com artigos de análise política, como a de Hipólito da Costa, no Correio Brasiliense. [...] Em O romantismo no Brasil, todo o período que vai de 1836 a 1870 é visto como um conjunto compacto, heterogêneo e complexo, cujo fio de acompanhamento cronológico é fornecido, mas não só, pelos esforços voltados para criar, via literatura, o sentimento de identidade nacional. Ao lado desse critério e com o mesmo grau de importância, Candido destaca também as diversas e múltiplas contribuições de cada um dos grupos que, apenas traçando programas de nacionalização, realizando-os na prática literária ou mesmo desestabilizando- os, adotaram funções distintas para consolidar os pressupostos temáticos, técnicos e teóricos da estética romântica. Assim tomados em conjunto, esses grupos designam três “veios que se interpenetram: (1) os traços que prolongam o período anterior; (2) os traços heterodoxos; (3) finalmente os que se podem considerar específicos, e são os que em geral o crítico e o historiador isolam do conjunto”. (CUNHA, Cilane. Visões do romantismo. Disponível em: <https://revistacult.uol. com.br/home/visoes-do-romantismo-por-antonio-candido/>. Acessado em: 20 jan. 2019) Por que os indígenas foram escolhidos para serem os heróis nacionais nas narrativas românticas? As propostas do romantismo brasileiro “Abre a cortina do passado/ Tira a mãe preta do cerrado/ Bota o rei congo no congado” (Aquarela do Brasil, de Ary Barroso) Em 7 de setembro de 1822, finalmente o Brasil ficou independente de Portugal e tal fato desencadeou um sentimento patriótico e uma necessidade de se criar uma identidade genuinamente brasileira. Coube ao escritor a tarefa de genealogista: “[...] há um duplo compromisso em jogo nessa literatura que se produz nos decênios de 30 a 70 no Brasil do século XIX: tanto uma sintonia ao panorama cultural internacional de então quanto com um todo-poderoso projeto de individuação nacional. [...] Abrir a cortina do passado, tirar um Brasil-nação de lá” (SUSSEKIND, 1994, p. 455), eis a tarefa do escritor romântico. Era necessário 11 ROMANTISMO E REALISMO │ UNIDADE I forjar, criar, inventar um passado glorioso dos quais os brasileiros pudessem se orgulhar. Sim, os verbos estão no plano da ficção – invenção. Pois o passado histórico não era propriamente motivo de orgulho: fomos invadidos por Portugal, fomos colônia. Houve um esforço para escravizar os indígenas, os negros foram traficados como escravos, as indígenas foram estupradas... Era um passado sangrento, violento, do qual não gostaríamos de lembrar, menos ainda exaltar. Então era necessário descobrir um novo Brasil, capaz de inspirar em seus filhos um sentimento de nacionalidade a partir de cenas fundacionais. O cidadão Gonçalves Dias, em outubro 1856, assumiu o papel de descobridor quando aceitou a chefia da seção de Etnografia de uma comissão científica de exploração das províncias do norte do Império, a fim de estudar os indígenas e coletar, em arquivos, documentos referentes aos locais visitados entre 1859 e 1861. Já ao escritor Gonçalves Dias coube inventar retroativamente a nacionalidade almejada, fundar uma pátria e afirmar que ela já estaria lá antes. Há, no romantismo, um programa estético-ideológico que pauta a produção literária do país visando a um abrasileiramento paisagístico, temático, idiomático. Foi o francês Jean-Ferdinand Denis quem sugeriu a valoração da natureza latino-americana como forma de individualizar o país e fundar uma literatura original nos trópicos: “Se os poetas dessas regiões fitarem a natureza, se se penetrarem da grandeza que ela oferece, dentro de poucos anos serão iguais a nós, talvez nossos mestres” (DENIS apud SUSSEKIND, 1994, p. 455). Já o português Almeida Garret, em sua História da poesia e língua portuguesa (1826), lamenta que os escritores brasileiros se mostrem receosos de se mostrarem americanos, tímidos na ênfase às cores locais e novas cenas da natureza. Elogia Basílio da Gama e seu Uruguai (1769): “frase pura, sem afetação”, “cenas naturais mui bem pintadas, de grande e bela execução descritiva”. (GARRET apud SUSSEKIND, 1994, p. 455). Acrescenta: “Os Brasileiros principalmente lhe devem a melhor coroa de sua poesia, que nele é verdadeiramente nacional, e legítima americana” (GARRET apud SUSSEKIND, 1994, p. 455). Há, então, uma espécie de imaginação geográfica todo-poderosa na escrita dos românticos brasileiros. A literatura deve delimitar, a seu modo, o território do Império, cumprindo, dessa maneira, via ficção, a exigência tão repetida no Brasil do Oitocentos, de “mapas bons e exatos” para que se pudessem conhecer melhor as “cousas da pátria”. Para que, à falta de um sentimento espontâneo de nacionalidade, coisa que as rebeliões provinciais deixavam patente, se fortalecesse cartográfica, 12 UNIDADE I │ ROMANTISMO E REALISMO literária ou paisagisticamente a ideia de uma comunidade imaginária delimitada nacionalmente. (SUSSEKIND, 1994, p. 457) Tal abrasileiramento visava afirmar a autonomia brasileira perante a Portugal, afirmando nossa diversidade e buscando até mesmo uma língua literária brasileira. Sabemos que já havia o emprego de vocábulos indígenas, populares. Basta reler Santa Rita Durão para fazer essa constatação. No entanto, é no século XIX que se começa uma busca consciente por uma forma brasileira de se fazer literatura, buscando-se a valoração do acento do Brasil, o uso de expressões locais e de vocábulos com ritmo e prosódia característicos, a fim de afirmar a variante brasileira da língua portuguesa. Neste período a poesia brasileira, embora balbuciante ainda, ressoa, não já somente nos rumores da brisa e nos ecos da floresta, senão também nas singelas cantigas do povo e nos íntimos serões da família. Onde não se propaga com rapidez a luz da civilização, que de repente cambia a cor local, encontra-se ainda em sua pureza original, sem mescla, esse viver singelo de nossos pais, tradições, costumes e linguagem, com um sainête todo brasileiro. Há, não somente no país, como nas grandes cidades, até mesmo na corte, desses recantos, que guardam intacto, ou quase, o passado. [...] A manga, da primeira vez que a prova, acha- lhe o estrangeiro gosto de terebentina; depois de habituado, regala-se com o sabor delicioso. Assim acontece com os poucos livros realmente brasileiros: o paladar português sente neles um travo; mas se aqui vivem conosco, sob o mesmo clima, atraídos pelos costumes da família e da pátria irmãs, logo ressoam docemente aos ouvidos lusos os nossos idiotismos brasileiros, que dantes lhes destoavam a ponto de os ter em conta desenões. E como não há de ser assim, quando a esposa que lhes balbucia as ternas confidências do amor feliz, e depois os lindos filhinhos que enchem a casa de rumor e alegria, lhes ensinam todos os dias em suas carícias essa linguagem, que, se não é clássica, tersa e castiça, é a linguagem do coração, da felicidade, da terra irmã e hospedeira. É preciso concluir, para que o faciebat não se torne moto-contínuo; e como desejo dar a este proêmio um ar de gravidade que lhe supra a leveza do miolo, terminarei apresentando aos doutores em filologia a seguinte e importantíssima questão, que espero ver magistralmente debatida. 13 ROMANTISMO E REALISMO │ UNIDADE I Estando provado pelas mais sábias e profundas investigações começadas por Jacob Grimm, e ultimamente desenvolvidas por Max Müller, a respeito da apofonia, que a transformação mecânica das línguas se opera pela modificação dos órgãos da fala, pergunto eu, e não se riam, que é mui séria a questão: O povo que chupa o caju, a manga, o cambucá e a jabuticaba, pode falar uma língua com igual pronúncia e o mesmo espírito do povo que sorve o figo, a pêra, o damasco e a nêspera? (ALENCAR, 2006, pp. 1-3) Alencar disserta em seu prefácio sobre seu esforço para afastar alguns aspectos de sua linguagem literária dos padrões portugueses, o que foi bastante criticado na época, por isso ele sentia a necessidade de se justificar nas partes pré e pós-textuais de seus romances. Para saber mais, leia Benção paterna, de José de Alencar. Disponível em: <http:// www.ebooksbrasil.org/eLibris/sonhosdoro.html>. José de Alencar José Martiniano de Alencar estreou no Correio Mercantil, aos 25 anos de idade. Seu intuito era construir uma literatura brasileira diferente da europeia, por isso critica a Confederação dos Tamoios (poema épico, de Gonçalves de Magalhães, publicado em 1856). Sua projeção no mundo literário se deu a partir das cartas que escreveu e publicou no Diário do Rio de Janeiro, gerando a polêmica em torno da Confederação dos tamoios, poema épico, predileto do Imperador, considerado o maior da literatura brasileira. O cerne da crítica era a inadequação do gênero épico, visto por Alencar como inadequado – porque clássico – à expressão latino-americana e à literatura nascente. Em resposta à obra de Magalhães, Alencar, publica, em 1857, O Guarani, a verdadeira narrativa épica do Segundo Império. Para saber mais, leia as Cartas sobre a Confederação dos Tamoyos. Disponível em: <http://www2.senado.leg.br/bdsf/item/id/242822>. Acessado em: 3 fev. 2019. Famoso por consolidar a prosa brasileira, Alencar faz extensos estudos de teoria literária, línguas nativas, povos indígenas, a fim de criar enredos que veiculassem 14 UNIDADE I │ ROMANTISMO E REALISMO informações sobre a natureza, a história, a sociedade, a cultura e os mitos do Brasil. Em sua ficção, há desde o exercício etnográfico da terra brasileira até a análise social e psicológica de heróis, heroínas e vilões. Sua pretensão era fazer um grande painel literário do Brasil, do sertão ao litoral, do urbano ao rural. Os teóricos Ilari e Basso explicam que os escritores românticos brasileiros interpretam o ideário da escola literária a que pertencem em um contexto advindo da independência política. Logo depois da Independência (1822), surgiu no Brasil a questão de saber em que língua deveria expressar-se a literatura brasileira, e muitos intelectuais optaram por denominações como “língua nacional” ou mesmo “língua brasileira” − denominações nas quais Portugal não estava presente. Alguns escritores foram além de uma atitude meramente programática, usando uma linguagem literária em que os “brasileirismos” tinham um papel considerável. José de Alencar foi um desses escritores, e o melhor exemplo desse estilo é a obra Iracema (1860), que, embora se apresentasse como romance, tem todas as características de um longo poema em prosa. Diferentemente de tudo quanto tinha aparecido até então em língua portuguesa, o estilo dessa obra não deixou de provocar reações iradas do outro lado do Atlântico: o filólogo português Pinheiro Chagas fez dele uma avaliação muito depreciativa, à qual Alencar responderia acrescentando à segunda edição de Iracema (1870) um post-scriptum que ficou célebre. (ILARI; BASSO, 2006, p. 214, grifo do autor). Em Iracema, o autor escreve a Carta ao Dr. Jaguaribe, publicada como posfácio à primeira edição. Nela, há explicações acerca da linguagem e do estilo romântico: Gonçalves Dias é o poeta nacional por excelência; ninguém lhe disputa na opulência da imaginação, no fino lavor do verso, no conhecimento da natureza brasileira e dos costumes selvagens. Em suas poesias americanas, aproveitou muitas das mais lindas tradições dos indígenas; em seu poema não concluído d’Os Timbiras, propôs-se a descrever a epopeia brasileira. Entretanto, os selvagens de seu poema falam uma linguagem clássica [...]; eles exprimem ideias próprias do homem civilizado, e que não é verossímil tivessem no estado da natureza. Sem dúvida que o poeta brasileiro tem de traduzir em sua língua as ideias, embora rudes e grosseiras, dos índios; mas nessa tradução está 15 ROMANTISMO E REALISMO │ UNIDADE I a grande dificuldade; é preciso que a língua civilizada se molde quanto possa à singeleza primitiva da língua bárbara; e não represente as imagens e pensamentos indígenas senão por termos e frases que ao leitor pareçam naturais na boca do selvagem. O conhecimento da língua indígena é o melhor critério para a nacionalidade da literatura. Ele nos dá não só o verdadeiro estilo, como as imagens poéticas do selvagem, os modos de seu pensamento, as tendências de seu espírito, e até as menores particularidades de sua vida. É nessa fonte que deve beber o poeta brasileiro; é dela que há de sair o verdadeiro poema nacional, tal como eu imagino. (ALENCAR, 1865) Alencar insere palavras indígenas em seus romances, almejando a criação e valorização de uma língua genuinamente brasileira, afastando-se dos moldes literários portugueses. Ele tem o cuidado didático de, em notas de rodapé, esclarecer o leitor quanto ao significado das palavras nativas, dando a si mesmo a missão de contribuir para a formação da identidade nacional, sendo um dos iniciadores da reflexão acerca do fazer literário e da natureza de uma língua literária brasileira. Em Como e porque sou romancista (1955), deixa claro não ser possível haver independência cultural e literária ao se escrever segundo os moldes portugueses, em desacordo com a nossa própria realidade linguística. A preocupação de tal escritor romântico era criar um estilo brasileiro que refletisse o espírito do povo do Brasil, as peculiaridades sintáticas e vocabulares do nosso falar. É nesse clima de renovação que Alencar enriqueceu seus textos acrescentando-lhes tupinismos e brasileirismos. Iracema, a virgem dos lábios de mel Iracema foi publicada em 1865 e faz parte de uma trilogia indianista de José de Alencar, as outras duas obras que completam essa trilogia são O Guarani e Ubirajara. Iracema seria a história da Lenda do Ceará contada em prosa. Na obra, percebemos característica românticas como a valorização da cor local, do típico e do exótico, percebemos uma intenção patriótica de embelezar e engrandecer a terra natal por meio de metáforas. A personagem Iracema, nome que é anagrama de América, renunciou à sua vida pregressa por amor a Martim, um colonizador branco, unindo-se matrimonialmente a ele e gerando o primeiro brasileiro, filho de uma indígena e de um português. Existe também um argumento de inspiração da lenda de Pindorama: a colonização do 16 UNIDADE I │ ROMANTISMO E REALISMO Ceará, que se deu em 1606.Nela, há a presença de personagens históricos: Martim Soares Moreno, o colonizador português que se aliou aos índios Pitiguaras e Poti, Antônio Felipe Camarão. Iracema é caracterizada como virgem e apaixonada, como analisou Silviano Santiago em seu artigo Iracema, o coração indômito de Pindorama (2001). Segundo Santiago, Iracema também é uma heroína, já que se entrega em nome da sua fé e de seu povo. Alencar quebra o heroísmo de Iracema quando a mostra completamente arrebatada pelo amor ao colonizador. Ainda assim, continua a ser a mulher forte, já que ajuda e salva Martin, e não ele a ela: “Ela guia os dois amigos para fora do território tabajara. Serve de ‘senhora do caminho’” (SANTIAGO, 2001). Ela que é a conhecedora das matas, já que nasceu ali e representa a própria terra brasileira. De A moreninha, de Joaquim Manuel de Macedo, à Senhora, de José de Alencar A literatura de Macedo atravessou todo o romantismo, pois ele escreveu dos anos 1840 aos anos 1870 e, de acordo com Alfredo Bosi (1994), nem por isso sua técnica de escrita progrediu. Seus romances seguem receitas prontas, esquemas novelescos, como um namoro difícil, um amor platônico, uma identidade misteriosa que deve ser desvendada para resolução de uma intriga, um conflito entre dever e amor, situações de humor e burlescas de personagens secundárias, reviravoltas etc. Sua escrita tende ao coloquial nos diálogos, já nas digressões e narrações, preza por um português bastante normativo. Macedo importa o gosto pelo romanesco da literatura europeia, construindo enredos em espaços e costumes brasileiros. Em A moreninha, a personagem principal descrita segue o estereótipo de mulher burguesa da época, com características europeias. Carolina, a protagonista, é descrita como uma mulher que sabe portar-se muito bem em ocasiões sociais das quais procura sempre participar, demonstra-se ávida por arranjar um casamento, mostra-se prendada e não se posiciona criticamente em relação aos problemas sociais. Em contraposição à Carolina, Aurélia Camargo, personagem do romance Senhora, de José de Alencar, era uma mulher pobre até receber uma herança de seu avô. A partir de tal episódio, Aurélia toma as rédeas do próprio destino e passa a dar ordens, saindo da posição de submissão – ideal defendido pela sociedade patriarcal, a mulher deveria ser meiga, dedicada, devotada, recatada – para insubordinar-se, isto é, Aurélia, de submissa, passa a ser transgressora, ela rompe com o ideal romântico de mulher e, 17 ROMANTISMO E REALISMO │ UNIDADE I detentora de poder que é, compra o homem que deseja, seu ex-noivo que a trocara no passado para fazer um casamento mais lucrativo. [...] o normal seria que isto dependesse de um pai, pois, afinal, o casamento, nessa época e nessa classe social, era um negócio entre homens. Em outras sociedades e em tempos diferenciados, segundo a antropologia, cabia também aos homens decidir, entre si, a troca de mulheres. Enfim, às mulheres cabe um bem pequeno papel na articulação do casamento. O habitual era um pai a oferecer um dote – e, com ele, uma filha – e um noivo a aceitar os dois. A noiva só entra na história depois de selado o contrato e como objeto material da transação. (RIBEIRO, 1996, p. 152) Tanto em Senhora quanto em Iracema, Alencar criou mulheres fortes para suas épocas e posições sociais. No entanto, ao fim dos romances, as duas mulheres se submetem aos seus amados, alternando-se do eixo da transgressão para o da submissão (Iracema transgride quando se rebela contra seu povo para juntar-se a Martim por amor a ele). Desse modo, Alencar perpetua o ideário de que a submissão feminina é necessária para o equilíbrio da sociedade regida por valores burgueses, criando, assim, o imaginário de modelo familiar de acordo com o programa identitário romântico. Para saber mais, leia o artigo Transgressão/submissão feminina em Lucíola e Senhora, de José de Alencar, de Greiciellen Rodrigues Moreira e Cláudia de Jesus Maia, disponível em: <http://www.fazendogenero.ufsc.br/9/resources/ anais/1278249594_ARQUIVO_Transgressao-SubmissaofemininaemLuciolaeSen hora,deJosedeAlencar.pdf>. Acessado em: 6 fev. 2019. A escrava Isaura, de Bernardo Guimarães O romance A escrava Isaura foi escrito em 1875 e se tornou muito conhecido no Brasil e no exterior, especialmente por causa da telenovela que a Rede Globo produziu e foi ao ar em 1976, adaptada por Gilberto Braga. O mote principal da história era o drama da escravidão, focalizado na figura de Isaura, escrava de traços brancos, educada e atormentada pela paixão doentia que seu senhor, Leôncio, tinha por ela. Leôncio é um exemplo bem-acabado de um patriarca imperialista, a começar pelo papel social que desempenhava: um senhor de escravos. Nesse contexto, Isaura é subalterna como mulher e como escrava. Em seu artigo A dupla objetificação da mulher em A escrava Isaura: uma amostragem do poder patriarcal, Cristina Heleno Carneiro (2005) afirma: 18 UNIDADE I │ ROMANTISMO E REALISMO A opressão e a repressão que a sociedade colonial recebeu são decorrentes de uma ideologia do sujeito. Segundo Sartre (apud BONNICI, 2000) o ser é constituído como sujeito em relação a um outro, mas dependente de uma reciprocidade, ou seja, em ocasiões diversas, sujeito e objeto tomam o lugar do outro, num movimento dialógico de alteridade. Entretanto, esta não é a forma em que as sociedades imperialistas pautaram suas relações humanas; antes, optaram por se organizar numa hierarquia onde prevalece o dominador (sujeito) sobre o dominado (objeto). A voz do discurso não oscila entre sujeito e objeto, como presume Sartre; a voz é possessão do colonizador. Nesse sentido, é indubitável a naturalidade com que Leôncio e a sociedade escravocrata na qual está inserido, e é ator principal, inferiorizam Isaura – mulher e escrava, logo, duplamente subjugada, objetificada. Ainda que tenha sido criada na casa grande e tenha recebido uma educação refinada, sua ascendência negra é impeditivo para possibilitá-la viver a desejada liberdade. Além disso, sua condição de mulher a aprisiona ao lar e ao marido, ao qual uma mulher deveria servir – e, ainda, desejar o matrimônio como servidão, cuidando do marido, dos afazeres domésticos, dos filhos –, Isaura encontra-se em uma situação social duplamente desfavorecida. Leôncio sente-se senhor absoluto do presente e do futuro de Isaura. O violento e cego amor que Isaura lhe havia inspirado, incitava-o a saltar por cima de todos os obstáculos, a arrostar todas as leis do decoro e da honestidade, a esmagar sem piedade o coração de sua meiga e carinhosa esposa, para obter satisfação de seus frenéticos desejos. Resolveu, pois, cortar o nó, usando de sua prepotência e protelando indefinidamente o cumprimento de seu dever, assentou de afrontar com cínica indiferença e brutal sobranceria as justas exigências e exprobrações de Malvina. (GUIMARÃES, 1988, p. 30) Para Leôncio, nada estava à frente de seus desejos, tudo deveria se curvar a ele, de joelhos: “- Cala-te, escrava insolente! – bradou, cheio de cólera. - Que eu suporte sem irritar-me os teus desdéns e repulsas, ainda vá, mas repreensões!... Com quem pensas tu que falas?” (GUIMARÃES, 1988, p. 35). À Isaura, resta resignar-se e aceitar sua condição triplamente subalterna: origem negra, mulher e escrava, criada no conforto da casa do senhor, mas recebendo a educação reservada ao espírito feminino – aceitação e servidão. 19 ROMANTISMO E REALISMO │ UNIDADE I - Perdão, senhor!... – exclamou Isaura, aterrada e arrependida das palavras que lhe tinham escapado. - E, entretanto, se te mostrasses mais branda comigo... mas não; é muito aviltar-me diante de uma escrava; que necessidade tenho eu de pedir aquilo que dedireito me pertence? Lembra-te, escrava ingrata e rebelde, que em corpo e alma me pertences, a mim só e a mais ninguém. És propriedade minha; um vaso que tenho entre as minhas mãos e que posso usar dele ou despedaçá-la ao meu sabor. - Pode despedaçá-lo, meu senhor; bem o sei; mas por piedade, não queira usar dele para fins impuros e vergonhosos. A escrava também tem coração, e não é dado ao senhor querer governar os seus afectos. - Afectos!... Quem fala aqui em afectos!? Podes acaso dispor deles?... - Não, por certo, meu senhor; o coração é livre; ninguém pode escravizá- lo, nem o próprio dono. - Todo o teu ser é escravo; teu coração obedecerá, e, senão cedes de bom grado, tenho por mim o direito e a força... mas por quê? Para te possuir não vale a pena empregar esses meios extremos. Os instintos do teu coração são rasteiros e abjectos como a tua condição; para te satisfazer, far-te-ei mulher do mais vil, do mais hediondo dos meus negros. (GUIMARÃES, 1988, p. 35) Ainda que para o insensível senhor dos escravos, nem mesmo o coração de Isaura pudesse ser livre, com sua voz branda, Isaura busca sua voz ao explicar para Leôncio que não poderia dar seu coração, deixando seu senhor ainda mais possesso. Apesar da voz feminina, em A escrava Isaura, ainda ser baixa, branda, dócil, ela começa a confrontar o homem que a escraviza, dando início à recuperação da voz do subalterno. Para saber mais, leia A escrava Isaura. Disponível em: <http://www. dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_ obra=1775>. Leia também A dupla objetificação da mulher em A escrava Isaura: uma amostragem do poder patriarcal, de Cristina Heleno Carneiro. Disponível em: <http://www.urutagua.uem.br/007/07carneiro.htm>. Ainda, o livro Pode o subalterno falar?, de Gayatri Chakravorty Spivak, é referência nos estudos sobre subalternidade e resistência. 20 UNIDADE I │ ROMANTISMO E REALISMO A voz afro-brasileira de Maria Firmina dos Reis A maranhense Maria Firmina dos Reis (1825-1917) é conhecida – ainda em um restrito círculo acadêmico – como uma das primeiras escritoras brasileiras; mais precisamente: Úrsula foi o primeiro romance brasileiro de autoria feminina e negra. De acordo com Luiza Lobo (1993), é também o romance inaugural da literatura afro-brasileira, em que o negro deixa de ser objeto do olhar do outro – este branco, escravocrata, elitizado – e passa a ser ele mesmo sujeito da criação, registrando sua própria visão de mundo. Além disso, para reforçar o pioneirismo de Maria Firmina, ela foi a décima primeira mulher brasileira a publicar poesias1. Em sua época, Firmina era mais conhecida como poeta, por publicar frequentemente nos periódicos maranhenses. Atualmente, quando lembrada, é como romancista, pelo ineditismo do romance Úrsula. Publicou romances, contos, crônicas, poesias, charadas, colaborava com a imprensa local, foi compositora, recebeu o título público de mestra-régia; em 1881, fundou a primeira escola gratuita, mista e pública do Maranhão – o que foi um escândalo na época; sua contribuição social é extensa. Toda manhã, [Maria Firmina dos Reis] subia em um carro de bois para dirigir-se a um barracão de propriedade de um senhor de engenho, onde lecionava para as filhas do proprietário. Levava consigo alguns alunos, outros se juntavam. Um empreendimento ousado para época. Uma antiga aluna, em depoimento de 1978, conta que a mestra era enérgica, falava baixo, não aplicava castigos corporais nem ralhava, aconselhava. Era estimada pelos alunos e pela população da vila. Reservada, mas acessível, toda passeata dos moradores de Guimarães parava em sua porta. Davam vivas, e ela agradecia com um discurso improvisado. (TELLES, 1997, pp. 411-2) No entanto, dois anos e meio depois de iniciada tal empreitada, Firmina se viu obrigada a interrompê-la por pressão externa, a escola mista foi considerada um escândalo para os padrões conservadores vigentes. É importante sublinhar o que a atitude consciente e transgressora de Firmina representava, principalmente, para as meninas que ela incluía nas aulas, a possibilidade de participação social, de ter voz, de expandir os limites domésticos, uma vez que, naquele momento, a educação que recebiam se restringia ao bordado, às tarefas do lar, ao piano, já a leitura era restrita a poucas e tinha objetivos religiosos. 1 As primeiras dez poetas brasileiras são: Maria Clemência da Silveira Sampaio (1823), Delfina Benigna da Cunha (1834), Ildefonsa Laura César (1844), Nísia Floresta (1849), Rita Barém de Mello (1855), Beatriz Francisca de Assis Brandão (1856), Rosa Paulina da Fonseca (1865), Adélia Josefina de Castro Fonseca (1866), Júlia Maria da Costa (1867), Clarinda da Costa Siqueira (1868). Dessa forma, vemos que a primeira poeta brasileira que publica seus versos surge apenas no século XIX, 48 anos antes de Maria Firmina publicar seus Cantos à beira-mar (1871). 21 ROMANTISMO E REALISMO │ UNIDADE I A voz de Firmina cantou o desejo de liberdade de grupos subjugados: as mulheres e os negros. Com o romance abolicionista Úrsula, publicado em 1859 – muito antes de “o pai dos escravos”, Castro Alves, lançar seu Navio Negreiro (1869) –, o livro de Firmina tematizou as violências do regime escravocrata sob o ponto de vista do negro. No entanto, mesmo a dona de uma voz tão ativa já no século XIX, foi silenciada e apagada das historiografias literárias brasileiras – estas construídas por homens brancos e para homens brancos – por mais de um século, até José Nascimento Morais Filho redescobri-la e publicar, em 1975, Maria Firmina, fragmentos de uma vida. De acordo com Rafael Zin, em sua dissertação de mestrado sobre a trajetória intelectual de Maria Firmina, Sílvio Romero (1943 [1888]), José Veríssimo (1981 [1916]), Ronald de Carvalho (1920), Nelson Werneck Sodré (1985 [1938]), Afrânio Coutinho (1986 [1959]), Antonio Candido (2000 [1959]) e Alfredo Bosi (1970), por exemplo, ignoram-na completamente. E mesmo um intelectual afrodescendente como Oswaldo de Camargo (1987), em sua coletânea O negro escrito, de suma importância para o resgate de escritores afro-brasileiros, não faz referência alguma a ela. Dentre outros expoentes da historiografia literária nacional, muitos fizeram o mesmo, à exceção de Sacramento Blake (1970 [1883-1902]), que foi contemporâneo da autora; Raimundo de Menezes (1978 [1969]), que soube da existência de Úrsula logo após seu ressurgimento e que acabou incluindo um verbete sobre a escritora na segunda edição de seu Dicionário Literário Brasileiro; e Wilson Martins (2010b [1979]), que no terceiro volume de sua monumental História da Inteligência Brasileira, apenas cita seu nome em uma linha. (ZIN, 2016, p. 28) Com Firmina, testemunhamos a mulher brasileira como um ser político, na contramão do discurso hegemônico. Sua ausência nas historiografias canônicas é mais potente que muitos nomes nelas presentes, uma vez que o silenciamento da voz da escritora revela um projeto político de caráter socioideológico e histórico: a tentativa de manter a todo custo os privilégios de uma elite que buscava uma identidade nacional para o recém independente Brasil, baseada nos padrões e ideais eurocêntricos. O índio figurar como herói nacional nos romances indianistas não era uma ameaça, pois o nativo brasileiro era um exilado em seu próprio país desde a invasão portuguesa às suas terras, em 1500. Já o negro representava um perigo real, o negro estava presente, ele era a classe escravizada, violentada. Portanto, o romance romântico Úrsula (1859) era transgressor, ameaçava a ordem vigente. Uma mulher negra, escritora e abolicionista, acrescente-se a isso o fato de ser pobre, 22 UNIDADE I │ ROMANTISMO E REALISMO professorae nordestina, de fato, era uma voz subversiva e poderia incomodar muitos poderosos, por isso deveria ser silenciada por trazer à tona temáticas perigosas para a conservação do status quo de uma sociedade escravocrata. De acordo com Zahide Muzart (1995, p. 90), em A questão do cânone: A mulher, no século XIX, só entrou para a História da Literatura como objeto. É importante, para reverter o cânone, mostrar o que aconteceu, quando o objeto começou a falar. Para isso, além do resgate, da publicação dos textos, é preciso fazer reviver essas mulheres trazendo seus textos de volta aos leitores, criticando-os, contextualizando-os, comparando-os, entre si ou com os escritores homens, contribuindo para recolocá-las no seu lugar na História. A importância e o pioneirismo de Maria Firmina dos Reis são inegáveis, no entanto, é ainda muito pouco estudada e editada. Questionamos: por que, ainda, no século XXI, continua tão pouco editada? Seu livro Cantos à beira-mar teve três edições apenas: em 1871, em 1976 e em 2017, essa última pela Academia Ludovicense de Letras (ALL). Autodidata, Firmina conquistou sua educação escolar em sua própria casa, como ela mesma nos conta em seu diário Resumo de uma vida: De uma compleição débil e acanhada, eu não podia deixar de ser uma criatura frágil, tímida e, por consequência, melancólica: uma espécie de educação freirática veio dar remate a estas disposições naturais. Encerrada na casa materna, que só conhecia o céu, as estrelas e as flores que minha avó cultivava com esmero; talvez por isso eu tanto amei as flores; foram elas o meu primeiro amor. Minha irmã... minha terna irmã e uma prima querida foram as minhas únicas amigas de infância; e, nos seus seios, eu derramava meus melancólicos e infantis queixumes; por ventura sem causa, mas já bem profundos. (REIS apud MORAIS FILHO, 1975, s.p.) É preciso questionar as regras sociais que silenciaram por mais de cem anos – e ainda a mantêm apagada – uma escritora da importância histórica, social e literária de Maria Firmina dos Reis. Firmina fere preceitos do cânone literário, tais como gênero, raça, classe social, posição política, geografia, por isso ela não foi perdoada. Pobre, mulher, negra, nordestina, abolicionista. Morreu pobre e esquecida. Peito rebelde, ideias e ações perigosas, rompedora de grilhões sociais que confinavam mulheres ao lar e à vontade masculina. 23 ROMANTISMO E REALISMO │ UNIDADE I Questão 1 Tema 1: “O escritor como criador de uma nação: o projeto indianista” “[...] há um duplo compromisso em jogo nessa literatura que se produz nos decênios de 30 a 70 no Brasil do século XIX: tanto uma sintonia ao panorama cultural internacional de então quanto com um todo-poderoso projeto de individuação nacional.”. (SUSSEKIND, Flora. “O escritor como genealogista: a função da literatura e a língua literária no romantismo brasileiro”. In: PIZARRO, Ana. América Latina: Palavra, Literatura e Cultura. São Paulo: Ed. Unicamp, 1994.) “Abre a cortina do passado/ Tira a mãe preta do cerrado/ Bota o rei congo no congado” (Aquarela do Brasil, de Ary Barroso) Tema 2: “Iracema e a alegoria da mãe gentil chamada Brasil: adivinhando uma origem” “Iracema é a sacerdotisa que descerra a cortina do passado para nos mostrar o modelo da fundação das futuras comunidades imaginárias do Novo Mundo. Pretende ser a pedra fundamental do edifício da ‘brasilidade’”. (SANTIAGO, Silviano. Iracema: O coração indômito de Pindorama. In: RIBEIRO, Luis Filipe. Mulheres de Papel: Um estudo do imaginário em José de Alencar e Machado de Assis. Niterói: EDUFF. 1996.) “Iracema, a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a asa da graúna, e mais longos que seu talhe de palmeira. O favo da jati não era doce como seu sorriso; nem a baunilha recendia no bosque como seu hálito perfumado.”. (ALENCAR, José de. Obra Completa (4 volumes). Rio de Janeiro: Editora José Aguilar LTDA, 1959.) PROPOSTA Com base na leitura dos textos motivadores e nos conhecimentos construídos ao longo de sua formação acadêmica, redija um texto dissertativo, em norma culta escrita da língua portuguesa, sobre um dos seguintes temas “O escritor como criador de uma nação: o projeto indianista” ou “Iracema e a alegoria da mãe gentil chamada Brasil: adivinhando uma origem”. Apresente argumentos 24 UNIDADE I │ ROMANTISMO E REALISMO que fundamentem suas afirmações de forma coerente e coesa, levando em consideração o contexto histórico do Romantismo Indianista. Seu texto precisa ter, obrigatoriamente, entre 30 e 40 linhas. Questão 2 Leia os fragmentos abaixo, retirados de Senhora, de José de Alencar. “Quem observasse Aurélia naquele momento, não deixaria de notar a nova fisionomia que tomara o seu belo semblante e que influía em toda a sua pessoa. Era uma expressão fria, pausada, inflexível, que jaspeava sua beleza, dando- lhe quase a gelidez da estátua. Mas no lampejo de seus grandes olhos pardos brilhavam as irradiações da inteligência. Operava-se nela uma revolução. O princípio vital da mulher abandonava seu foco natural, o coração, para concentrar-se no cérebro, onde residem as faculdades especulativas do homem.” Grande foi, pois, a surpresa que produziu a assiduidade de Seixas na repartição. Entrava pontualmente às 9 horas da manhã e saía às 3 da tarde; todo esse tempo dedicava-o ao trabalho; apesar das contínuas tentações dos companheiros, não consumia como costumava outrora a maior parte dele na palestra e no fumatório. — Olha, Seixas, que isto é meio de vida e não de morte! Dizia-lhe um camarada repetindo pela vigésima vez esta banalidade. — Vivi muitos anos à custa do Estado, meu amigo; é justo que também ele viva um tanto à minha custa. Outra mudança notava-se em Seixas. Era a gravidade que sem desvanecer a afabilidade de suas maneiras sempre distintas, imprimia-lhe mais nobreza e elevação. Ainda seus lábios se ornavam de um sorriso frequente; mas esse trazia o reflexo da meditação e não era como dantes um sestro de galanteria. O casamento é geralmente considerado como a iniciação do mancebo na realidade da vida. Ele prepara a família, a maior e mais séria de todas as responsabilidades. Atualmente esse ato solene tem perdido muito de sua importância; indivíduo há que se casa com a mesma consciência e serenidade, com que o viajante aposenta-se em uma hospedaria.” (ALENCAR, José de. Senhora. 2. ed. São Paulo: Martin Claret, 2008.) A partir da leitura e análise de Senhora, disserte sobre como a protagonista alterna-se nos eixos transgressão e submissão e reflita sobre o valor identitário dessa transgressão/submissão dentro da tradição romântica. Para tanto, parta do entendimento da representação feminina de Aurélia e sua relação com o ideal romântico de mulher. Seu texto deve ter entre 10 e 15 linhas. 25 CAPÍTULO 2 Realismo-naturalismo: clima cultural, intelectual e político; origens e características “Entrevista com Alfredo Bosi P: É possível definir o modo de olhar de Machado de Assis? Quais as suas características? R: Definir o modo de olhar de Machado de Assis é uma das maiores dificuldades da crítica, eu até chamei isso de enigma, o modo como Machado olha as suas criaturas. Ele é um escritor realista, ele é um escritor preocupado com as determinações sociais, isto é, as pessoas dentro das suas classes, dos seus estamentos, dos seus grupos. Então, será que o olhar dele é um olhar social, no sentido clássico de determinação dos comportamentos de cada personagem segundo a sua posição de classe? Uma boa parte da crítica literária afirmou isto. Uma outra parte da crítica literária ficou mais preocupada com a chamada intuição psicológica de Machado, isto é, ele observa não sóos comportamentos típicos das personagens, mas também as diferenças e, mais do que isso, ele olha por dentro aquilo que a sociologia olharia por fora. Tudo isso compõe o olhar de Machado. A minha ideia é de que o olhar dele seja circunspecto, essa palavra quer dizer: pessoa que olha para todos os lados, como um círculo. A ideia de circunspecção aqui não quer dizer só de gravidade, de seriedade, mas a capacidade de olhar todas as posições e, dentro dessas posições, então, ele vê aquelas personagens que são de fato típicas e que pertencem ao repertório da literatura realista, naturalista, e ele vai um pouco mais a fundo, verificando como é que outras personagens reagem à própria situação social. E há um ideal diferente, um ideal, vamos dizer, de vida, de uma certa dignidade, um estoicismo muito raro nessas personagens. A visão de Machado em geral é de quem olha a sociedade de baixo para cima, então, ele vê os motivos mesquinhos, as necessidades das personagens, mas isto não é a sua única forma de ver. Eu diria que a riqueza de Machado de Assis está em ver tanto o tipo como a riqueza pessoal, as diferenças que as personagens têm, às vezes dentro da mesma classe. É por isso que o romance dele é difícil. Eu recomendo aos leitores, se são leitores do curso secundário, que leiam sempre três ou quatro vezes um mesmo romance. Uma leitura só, um olhar só sobre o 26 UNIDADE I │ ROMANTISMO E REALISMO Machado de Assis pode criar muitos equívocos, dada esta sutileza na percepção das personagens. [...]” (BOSI, Alfredo. Entrevista. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/seed/ arquivos/pdf/Revisao-T.Machado-Alfredo%20Bosi.pdf>. Acessado em: 20 jan. 2019.) É importante conhecer a vida de um autor para estudar sua obra? Para saber mais, leia o artigo A morte do autor, de Roland Barthes. Realismo no Brasil A poesia abolicionista de Castro Alves, assim como Comte, Taine, Darwin, Spencer e Haeckel povoaram o imaginário dos escritores realistas em torno da filosofia positiva e do evolucionismo, criando um contexto propício aos anseios da classe média citadina, fascinada pelos pensamentos liberais, abolicionistas e republicanos. O espírito realista democrático começara a criar terreno para o surgimento de um partido liberal radical e, em 1870, os progressistas fundaram o Partido Republicano, que advogava pelo fim da escravidão e pela valorização e difusão do trabalho livre. O intelectual brasileiro defendia arduamente a República e a abolição da escravatura, inspirando-se no modelo francês e no norte-americano. No prefácio do livro de Tobias Barreto, Vários escritos, Sílvio Romero (1926, pp. 23-4) percebe com clareza a efervescência daquele momento: O decênio que vai de 1868 a 1878 é o mais notável de quantos no século XIX constituíram nossa vida espiritual. Quem não viveu nesse tempo não conhece por não ter sentido diretamente em si as mais fundas comoções da alma nacional. Até 1868 o catolicismo reinante não tinha sofrido nestas plagas o mais leve abalo; a filosofia espiritualista, católica e eclética, a mais insignificante oposição; a autoridade das instituições monárquicas o menor ataque sério por qualquer classe do povo; a instituição servil e os direitos tradicionais do feudalismo prático dos grandes proprietários a mais indireta opugnação; o romantismo, com seus doces, enganosos e encantadores cismares, a mais apagada desavença reatora. Tudo tinha adormecido à sombra 27 ROMANTISMO E REALISMO │ UNIDADE I do manto do príncipe feliz que havia acabado com o caudilhismo nas províncias da América do Sul e preparado a engrenagem da peça política de centralização mais coesa que já uma vez houve na história de um grande país. De repente, por um movimento subterrâneo que vinha de longe, a instabilidade de todas as coisas se mostrou e o sofisma do império apareceu em toda a sua nudez. A guerra do Paraguai estava ainda a mostrar a todas as vistas os imensos defeitos de nossa organização militar e o acanhado de nossos progressos sociais, desvendando repugnantemente a chaga da escravidão. De acordo com Alfredo Bosi, em História concisa da literatura brasileira, a partir dos anos 1860, existirão apenas duas vertentes ideológicas entre os intelectuais europeus, são elas: o pensamento burguês conservador e o pensamento das classes médias (em raros casos, a consciência de classe dos proletariados), que “assume os matizes de liberalismo republicano e de socialismo” (BOSI, 1997, p. 166). As condições precárias em que viviam Brasil e toda América Latina – áreas de extração colonial – impulsiona as classes médias locais a reivindicações e à luta pela democracia. Assim, a partir dos anos de 1870, o espírito abolicionista toma corpo. Na literatura, se no romantismo o mundo estava repleto de mitos idealizantes – “a natureza-mãe, a natureza-refúgio, o amor-fatalidade, a mulher-diva, o herói-prometeu, sem falar na aura que cingia alguns ídolos como a ‘Nação’, a ‘Pátria’, a ‘Tradição’ etc.” (BOSI, 1997, p. 167). Já o escritor antirromântico tenta escapar do tratamento pessoal das coisas, pessoas, busca a objetividade, influenciado pelos métodos científicos cada vez mais difundidos e prestigiados nas últimas décadas do século. Os mestres de nossos primeiros escritores realistas brasileiros foram mais uma vez os franceses: na ficção, Maupassant, Flaubert, Anatole e Zola; na poesia, os parnasianos; no pensamento e na história, Comte, Renan e Taine. Os portugueses, em segunda instância, também tiveram um papel influente para nós: Antero de Quental, Eça de Queirós e Ramalho Ortigão. Em Coimbra, buscavam estabelecer as bases para as novas estruturas literárias. “No caso excepcional de Machado de Assis, foi a busca de um veio humorístico que pesou sobre a sua eleição de leituras inglesas” (BOSI, 1997, p. 167). Théophile Gautier sintetiza a norma do escritor realista: “sou um homem para quem o mundo exterior existe” (apud BOSI, 1997, p. 167). A busca pela captura do real se desdobra em planos complementares: 28 UNIDADE I │ ROMANTISMO E REALISMO » No nível ideológico, isto é, na esfera de explicação do real, a certeza subjacente de um Fado irreversível cristaliza-se no determinismo (da raça, do meio, do temperamento...). » No nível estético, em que o próprio ato de escrever é o reconhecimento implícito de uma faixa de liberdade, resta ao escritor a religião da forma, a arte pela arte, que daria afinal um sentido e um valor à sua existência cerceada por todos os lados. O supremo cuidado estilístico, a vontade de criar um objeto novo, imperecível, imune às pressões e aos atritos que desfazem o tecido da história humana, originam-se e nutrem-se do mesmo fundo radicalmente pessimista que subjaz à ideologia do determinismo. (BOSI, 1997, p. 168). No romance e no conto, o realismo poderá atingir o patamar de naturalismo. Isso acontecerá quando os personagens se submeterem às “leis naturais”, ao destino pré-determinado pelas condições do meio. Na poesia, o verso será parnasiano à medida que for tecnicamente perfeito. Machado de Assis Antonio Candido, em seu texto Esquema de Machado de Assis, sublinha os diferentes e inúmeros níveis de interpretação que podemos, em uma leitura mais atenta, encontrar em Machado de Assis. Por meio de uma escrita elegante e refinada, Machado proporcionava aos seus leitores medianos uma leitura tranquila, sem grandes problemas. São os olhos mais cítricos que perceberão em sua obra, para além do humor e da ironia, os fenômenos de ambiguidade que permeiam suas histórias. O nosso célebre escritor foi criador de um mundo paradoxal; são caros ao narrador machadiano o elíptico, o fragmentário, o incompleto, deixando para o leitor sentençasem aberto. Os contos e os romances terminam, em geral, sem um fechamento óbvio, deixando como conclusão possibilidades, discussões em aberto. Machado de Assis foi constantemente retratado como branco. No entanto, hoje, a cor de pele do escritor é um tema controverso. Neto de escravos, acredita-se que Machado tenha sofrido um processo de embranquecimento pelos retratistas, mídia e sociedade da época. A polêmica foi reacendida por causa da foto encontrada pelo pesquisador Felipe Rissato. Abaixo, confira os traços africanos do Bruxo de Cosme Velho. 29 ROMANTISMO E REALISMO │ UNIDADE I Figura 1. Fonte: <http://cesupic.pw/Machado-de-Assis-Mais-Thoughts.html>. Machado em dois momentos: em foto de 1893, de Juan Gutierrez (esquerda) e em foto encontrada em uma edição da revista argentina “Caras y Caretas” de 1908. Fonte: O Globo. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/cultura/livros/foto- inedita-de-machado-de-assis-reaquece-polemica-sobre-embranquecimento- do-autor-22860398>. Acessado em: 21 jan. 2019. Leitura do conto O espelho Em O espelho, por exemplo, temos uma nova teoria da alma humana, criada por Jacobina, que afirma que o homem é uma laranja, ou seja, tem duas almas, uma interior e outra exterior. Essas almas se completam, então surge a imagem da laranja. Para confirmar sua teoria, o nosso personagem central narra um episódio que lhe aconteceu há anos. É a história de sua nomeação como alferes da Guarda Nacional. Ao passar dias na casa de sua tia, que vivia elogiando sua nova posição, Jacobina torna sua farda a sua segunda alma, indispensável para o seu reconhecimento como homem. Com a saída repentina de sua tia e dos negros escravizados da fazenda onde todos moravam, o “Senhor Alferes”, por não ser lembrado a todo momento de sua posição social, perde sua identidade, sua alma exterior, pois essa se tornou muito mais importante, suplantando a interior. É somente quando tem a ideia de vestir a farda que sua tia lhe dera de presente e se olhar no espelho que Jacobina deixa de sucumbir à desesperadora perda de identidade, pois vendo seu reflexo no espelho, ele pode confirmar seu próprio eu. 30 UNIDADE I │ ROMANTISMO E REALISMO No entanto, se lermos atentamente o conto, temos uma exemplificação de teoria que, em primeira instância, nega a própria teoria. Se o homem é o casamento das duas metades da laranja, ou seja, das duas almas, como pode Jacobina narrar um episódio que contrarie sua teoria? Ao fim da narrativa do episódio do Alferes, temos uma saída de palco que se dá em dois níveis: em primeiro lugar, a do próprio Jacobina, que, “quando os outros voltaram a si”, já tinha descido as escadas e, em segundo, a do narrador primário, que, junto com Jacobina, deixa seus leitores livres para tirarem suas próprias conclusões, abandonando-os à própria sorte. Em uma segunda leitura cuidadosa desse conto, percebemos que Jacobina conseguiu novamente o equilíbrio entre as almas exterior e interior, já que é ele quem narra, anos depois, sua curiosa história. A obra completa está disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000240.pdf>. Breves considerações acerca do romance Dom Casmurro No romance Dom Casmurro, a ambiguidade do fim da narrativa é ainda maior, já que jamais ficaremos sabendo até que ponto Bentinho dizia a verdade, ou até que ponto seu discurso é motivado pelo ciúme. A pergunta permanecerá sempre: afinal, Bentinho foi ou não traído? Essa relação entre o real e o imaginado é um tema bem frequente na obra machadiana. É interessante notar ainda a imparcialidade com que o narrador machadiano narra. Os fatos são apresentados sem julgamento moral, “fazendo parecer duplamente intensos os casos estranhos” (CANDIDO, 2017, p. 26). As situações mais desconcertantes, mas extremas, são sugeridas brandamente. A sugestão é uma técnica chave em Machado. Aí poderá estar o motivo de sua modernidade. A obra completa está disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/ua000194.pdf>. Breves considerações acerca do conto A causa secreta Em A causa secreta, temos um fechamento, ou melhor, um não fechamento de conto com uma frase que não passa despercebida. “Fortunato, à porta onde 31 ROMANTISMO E REALISMO │ UNIDADE I ficara, saboreou tranquilo essa explosão de dor moral que foi longa, muito longa, deliciosamente longa”. Fortunato, além dos animais que analisa/tortura, tem também como objeto de seu sadismo o próprio homem, representado por seu colega de profissão. No entanto, o sadismo de Fortunato não sofre, em nenhum momento, um julgamento de valor por parte do narrador. Muito pelo contrário, esse é imparcial e mais uma vez sai de cena em um momento crucial do texto, fazendo com que o leitor estranhe o repentino término da história. O leitor de Machado não pode ficar imobilizado, pelo contrário, ele se move à procura de sentidos, ele participa do próprio processo criativo da tomada de sentidos da história narrada, é convidado pelo narrador a penetrar, a participar da narrativa. O narrador brinca com ele, ri dele e deixa as possíveis conclusões e interpretações para o leitor. A obra completa está disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/ download/texto/ua000182.pdf>. Naturalismo no Brasil O naturalismo propunha uma literatura que retratasse o real, a realidade de uma maneira objetiva e desapaixonada. O escritor seria um observador e o objetivo seria científico sobretudo; ele seria, dessa forma, como um médico que disseca cadáveres, tendo uma visão científica e impassível da vida. Assim, vê o homem e o animal em um mesmo patamar, movidos unicamente pelo instinto. Aluísio Azevedo se refere ao homem e à mulher, em O cortiço – romance pilar do Naturalismo brasileiro –, como “aglomeração tumultuosa de machos e fêmeas” que possuiriam um “prazer animal de existir”. Breves considerações acerca do romance O cortiço, de Aluísio Azevedo O homem é, segundo a perspectiva determinista, fruto do meio e da raça. O cortiço tem uma influência determinante na vida de cada morador, ele próprio é um organismo vivo, protagonista do romance, representando, então, a coletividade. É essa a mudança de foco que é uma característica fundamental do naturalismo. “Eram cinco horas da manhã e o cortiço acordava, abrindo, não os olhos, mas a sua infinidade de portas e janelas alinhadas. Um acordar alegre e farto de quem 32 UNIDADE I │ ROMANTISMO E REALISMO dormiu de uma assentada sete horas de chumbo” (AZEVEDO, 1890, p. 5) Tem-se a pretensão de retratar o proletariado, as camadas desfavorecidas da sociedade, as mazelas. Isso foi um choque para a burguesia da época, acostumada com a literatura voltada para si. O cortiço retrata, então, o sistema capitalista incipiente que oprime o povo nativo do Brasil, em um determinismo do qual não se podia escapar. João Romão, o português que viera explorar o Brasil, construiu o cortiço às custas de Bertoleza, escrava que sonhava conseguir sua alforria. Romão, o português que enriqueceu através de sua mina de dinheiro, que é o cortiço e a venda, conseguiu prosperar, diferentemente de Jerônimo, português que se deixou contagiar pelas tentações brasileiras, pois não abdicou do sexo e dos prazeres tropicais. Era preciso não se deixar seduzir pelo meio, pela terra brasileira, que foi, alegoricamente, representada por Rita Baiana, mulher pela qual Jerônimo “perdeu a cabeça” e abandonou a família. Passaram-se semanas. Jerônimo tomava agora, todas as manhãs, uma xícara de café bem grosso, à moda da Ritinha, e tragava dois dedos de parati, “pra cortar a friagem”.Uma transformação lenta e profunda, operava-se nele, dia a dia, hora a hora, reviscerando-lhe o corpo e alando-lhe os sentidos, num trabalho misterioso esurdo de crisálida. A sua energia afrouxava lentamente: fazia-se contemplativo e amoroso. A vida americana e a natureza do Brasil patenteavam-lhe agora aspectos imprevistos e sedutores que o comoviam; esquecia-se de seus primitivos sonhos de ambição, para idealizar felicidades novas, picantes e violentas; tornava-se liberal, imprevidente e franco, mais amigo de gastar do que guardar; adquiria desejos, tomava gosto aos prazeres e volvia-se preguiçoso, resignando-se, vencido, às imposições do sol e do calor… (AZEVEDO, 1890) Azevedo não representa, no romance, apenas o trabalhador, mas aspectos da vida cotidiana que definem a situação do Brasil, que seria a matéria-prima dos planos de Romão. O português possui a astúcia, o brasileiro era a mão de obra, a força bruta, o animal de carga em seus planos. Essa superioridade de raças está explícita no próprio romance, em que Bertoleza e Rita Baiana resolvem “se amigar” com um homem branco como forma de redenção e de ascender na vida. Então, dessa forma, como consequência dessa hierarquia de raças, nada mais natural do que a raça superior dominar, subjugar a inferior. Seria um condicionamento lógico, nesse raciocínio opressor. 33 ROMANTISMO E REALISMO │ UNIDADE I A única vingança que teria o brasileiro contra tal exploração seria seduzir o português-branco-capitalista, fazendo-o passar da posição de dominador para a de dominado pelas tentações tropicais do Brasil. A obra completa está disponível em: <http://objdigital.bn.br/Acervo_Digital/ Livros_eletronicos/cortico.pdf>. 1. “Justamente por essa ocasião vendeu-se também um sobrado que ficava à direita da venda, separado desta apenas por aquelas vinte braças; e de sorte que todo o flanco esquerdo do prédio, coisa de uns vinte e tantos metros, despejava para o terreno do vendeiro as suas nove janelas de peitoril. Comprou-o um tal Miranda, negociante português, estabelecido na rua do Hospício com uma loja de fazendas por atacado.” (AZEVEDO, Aluísio. O Cortiço. 26. ed. São Paulo: Martins, 1974. pp. 23-33.) Com base no fragmento acima e em seus conhecimentos sobre O Cortiço, de Aluísio Azevedo, leia as afirmações a seguir: I. A forma como é descrita a vida no cortiço, feita por uma linguagem metafórica, indica que, na história, esse espaço coletivo adquire uma espécie de vida orgânica, revelando-se um personagem cuja força de crescimento faz nascer o protagonista do romance: o próprio cortiço. II. Apesar da oposição entre o sobrado – que representa o individual – e o cortiço – símbolo do coletivo – em se tratando de aparência física dos ambientes, os habitantes de um e outro espaço não são absolutamente diferentes, uma vez que suas atitudes se assemelham em vários aspectos, como, por exemplo, o esforço que João Romão e Miranda fazem pela atenuação da estratificação que separa os dois universos. III. O cortiço é uma obra marcada pelo determinismo, influenciada pelas correntes cientificistas do século XIX. Romance de tese que é, o indivíduo é analisado a partir do ambiente em que está inserido, que determinará o seu comportamento. Estão corretas apenas as afirmativas: a. I. b. II. 34 UNIDADE I │ ROMANTISMO E REALISMO c. I e III. d. II e III. e. I, II e III. 2. “As crônicas da vila de Itaguaí dizem que em tempos remotos vivera ali um certo médico, o Dr. Simão Bacamarte, filho da nobreza da terra e o maior dos médicos do Brasil, de Portugal e das Espanhas. Estudara em Coimbra e Pádua. Aos trinta e quatro anos regressou ao Brasil, não podendo el-rei alcançar dele que ficasse em Coimbra, regendo a universidade, ou em Lisboa, expedindo os negócios da monarquia. – A ciência, disse ele a Sua Majestade, é o meu emprego único; Itaguaí é o meu universo. Dito isto, meteu-se em Itaguaí, e entregou-se de corpo e alma ao estudo da ciência, alternando as curas com as leituras, e demonstrando os teoremas com cataplasmas. Aos quarenta anos casou com D. Evarista da Costa e Mascarenhas, senhora de vinte e cinco anos, viúva de um juiz de fora, e não bonita nem simpática. Um dos tios dele, caçador de pacas perante o Eterno, e não menos franco, admirou-se de semelhante escolha e disse-lho. Simão Bacamarte explicou-lhe que D. Evarista reunia condições fisiológicas e anatômicas de primeira ordem, digeria com facilidade, dormia regularmente, tinha bom pulso, e excelente vista; estava assim apta para dar-lhe filhos robustos, sãos e inteligentes. Se além dessas prendas – únicas dignas da preocupação de um sábio –, D. Evarista era mal composta de feições, longe de lastimá-lo, agradecia-o a Deus, porquanto não corria o risco de preterir os interesses da ciência na contemplação exclusiva, miúda e vulgar da consorte. D. Evarista mentiu às esperanças do Dr. Bacamarte, não lhe deu filhos robustos nem mofinos. A índole natural da ciência é a longanimidade; o nosso médico esperou três anos, depois quatro, depois cinco. Ao cabo desse tempo fez um estudo profundo da matéria, releu todos os escritores árabes e outros, que trouxera para Itaguaí, enviou consultas às universidades italianas e alemãs, e acabou por aconselhar à mulher um regímen alimentício especial. A ilustre dama, nutrida exclusivamente com a bela carne de porco de Itaguaí, não atendeu às admoestações do 35 ROMANTISMO E REALISMO │ UNIDADE I esposo; e à sua resistência – explicável mas inqualificável –, devemos a total extinção da dinastia dos Bacamartes. Mas a ciência tem o inefável dom de curar todas as mágoas; o nosso médico mergulhou inteiramente no estudo e na prática da medicina. Foi então que um dos recantos desta lhe chamou especialmente a atenção – o recanto psíquico, o exame da patologia cerebral. Não havia na colônia, e ainda no reino, uma só autoridade em semelhante matéria, mal explorada, ou quase inexplorada. Simão Bacamarte compreendeu que a ciência lusitana, e particularmente a brasileira, podia cobrir-se de “louros imarcescíveis” – expressão usada por ele mesmo, mas em um arroubo de intimidade doméstica; exteriormente era modesto, segundo convém aos sabedores.” (ASSIS, Machado de. O alienista. São Paulo: Ática, 1982.) O alienista, publicado entre outubro de 1881 e março de 1882, é considerado um dos mais importantes contos de Machado de Assis. A partir da trajetória de Simão Bacamarte, protagonista da estória, Machado constrói um painel da sociedade brasileira de seu tempo, com seus valores, problemas e impasses. (Leia todo o conto em <http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/ bv000231.pdf>.). Tomando a leitura do conto e suas reflexões sobre ela, assinale a opção que melhor exprime a intenção do autor. a. Valorização da ciência como caminho preferencial para a superação do atraso intelectual do país. Bacamarte mudou-se para Itaguaí por tratar-se de um lugar no Brasil onde ainda não havia nenhuma autoridade na área da patologia cerebral. b. Ironia em relação aos critérios utilizados por Simão Bacamarte na escolha de D. Evarista como sua esposa e genitora de seus filhos. No entanto, frustrou-se. A devoção ao trabalho ajudou Bacamarte a esquecer um projeto frustrado em sua vida. c. Apoio aos postulados do pensamento positivista e da ideologia do progresso defendidos por Simão Bacamarte, que passou a dedicar-se especificamente ao estudo das doenças mentais somente alguns anos depois de seu regresso a Itaguaí. 36 UNIDADE I │ ROMANTISMO E REALISMO d. Crítica aos hábitos culturais da vila de Itaguaí, em especial à alimentação, fator que contribuía para a dificuldade de D. Evarista em engravidar. Ela recusava-se sistematicamente a submeter-se aos tratamentos de fertilidadepropostos pelo marido. e. Exaltação do papel do médico como referência de desenvolvimento de uma sociedade. 37 UNIDADE II MODERNISMO, CONTEMPORANEIDADE, TEATRO E NARRATIVAS PARA A TV CAPÍTULO 1 Modernismo: semana de arte moderna; contexto histórico-social; estética do modernismo “Entrevista com Antonio Candido O Modernismo da década de 1920 contribuiu para a afirmação nacionalista no estudo da literatura brasileira. Para críticos estrangeiros, como Erich Auerbach e Edmund Wilson, o nacionalismo não é um problema a ser pensado. A que o senhor atribui essa necessidade do nacionalismo no Brasil? Não parece ter havido influência demasiada do Modernismo na historiografia brasileira? O nacionalismo dos românticos foi um instrumento de afirmação nacional e sobretudo patriótica, sendo tentativa de demonstrar que a literatura brasileira era diferente da portuguesa, porque tinha temas e sentimentos próprios. Foi uma espécie de compreensível reforço do processo de independência, processo lento que começa com a vinda de Dom João, em 1808, e vai até a última revolta local, em 1849. Foi um ponto de vista historicamente compreensível e válido, marcado pelo patriotismo e a euforia. O que se chama de nacionalismo dos modernistas de 1922 me parece outra coisa. Teve cunho crítico e desmistificador, procurando destacar aspectos considerados negativos pela ideologia tradicional: o negro, o imigrante, o pobre, a fala e a cultura popular etc. Sem falar que substituiu a euforia pela ironia, parecendo, às vezes, um antinacionalismo. Tanto assim, que talvez o retrato mais significativo do Brasil que surgiu, então, foi Macunaíma. O que se poderia aproximar do nacionalismo originário é o verde-amarelismo, 38 UNIDADE II │ MODERNISMO, CONTEMPORANEIDADE, TEATRO E NARRATIVAS PARA A TV derivante secundária que deu no que deu. Quanto aos críticos estrangeiros, é bom lembrar que o nacionalismo romântico foi importante porque o Brasil era um país novo, precisava afirmar sua singularidade e sua valia, começando pela beleza da paisagem e chegando ao índio transfigurado. Fenômeno de adolescência sem sentido nos países velhos.” (CANDIDO, Antonio. Antonio Candido: a literatura é uma transfiguração da realidade. Disponível em: <https://gauchazh.clicrbs.com.br/comportamento/ gente/noticia/2017/05/antonio-candido-a-literatura-e-uma-transfiguracao-da- realidade-9791698.html>. Acessado em: 21 jan. 2019.) “Candido dá prosseguimento, no território da crítica literária, às bases de compreensão histórica que ensejaram a concepção, literária e cultural, em voga com os modernistas, sobretudo paulistas, dos anos 20 e depois. Não é por acaso, então, que coincidem tantas apreciações de Antonio Candido com as do “papa” do Modernismo, Mário de Andrade. Para ficar em um só exemplo, também Mário destaca, em sua conferência O movimento modernista, de 1942, o Romantismo como período literário a ser ressaltado em nossa história. Ali, ele afirma que “tivemos no Brasil um movimento espiritual [.] que foi absolutamente ‘necessário’, o Romantismo”. Assim, coloca o Modernismo em companhia do Romantismo. Mas não se trata de mera coincidência. A convergência entre Mário de Andrade e Antonio Candido a respeito do papel do Romantismo na história literária nacional deriva do fato de eles compartilharem uma mesma concepção de tempo. Assim, da mesma maneira que os modernistas consideravam como sua tarefa a ruptura com o “passadismo”, também Candido privilegia o movimento por tudo aquilo que ele foi capaz de negar. E, mesmo quando não se trata de falar de uma simples negação do passado, este só aparece em função daquelas conquistas modernistas. Em todos os casos, o passado é hierarquizado, colocado em posição inferior ao futuro. Quanto mais adiante no tempo, mais evoluído, para usar a expressão de Candido.” (ANDRADE, Pedro. Disponível em: <http://www.letras.puc-rio.br/ unidades&nucleos/catedra/revista/8Sem_18.html>. Acessado em: 21. Jan. 2019) As vanguardas europeias É preciso examinar mais detidamente as propostas artísticas que eclodiram logo após a Primeira Guerra Mundial. Sem dúvida, foi o surrealismo a mais radical e ambiciosa das Vanguardas Europeias. O programa surrealista consistia em tornar 39 MODERNISMO, CONTEMPORANEIDADE, TEATRO E NARRATIVAS PARA A TV │ UNIDADE II a vida e a sociedade poéticas. Assim, pretendia-se poetizar a vida, revolucionando a vivência, tanto no sentido artístico quanto no mais amplo. Antes das vanguardas europeias, para ser considerado arte, o objeto artístico necessitava ter um caráter de excepcionalidade, isto é, o artista precisava lançar mão de técnicas elaboradas a fim de transformar o ordinário em extraordinário, isto é, criar seu objeto como algo único, raro, original. Com as vanguardas, é o ordinário que está no cerne da obra de arte. É o objeto do cotidiano que vai ocupar o espaço no museu, ainda, sem alteração aparente. A linguagem do cotidiano, coloquial, vai figurar no poema. Estreita-se a relação arte e vida. O artista pós-vanguarda procura frequentar a vida cotidiana, ordinária, como parte dela. Ele perde sua aura (cf. Baudelaire, Benjamin etc.) e acha por bem perdê-la e ser visto “como simples mortal”2. Surgem os artistas, feitos de carne – “igualzinho a você, como vê!” – e de arte, como Marcel Duchamp, que seleciona objetos do cotidiano – quanto mais comuns e seriados, melhores são – e os transforma em arte; no Brasil, Oswald de Andrade, para o qual “A poesia existe nos fatos”3, isto é, a realidade e o cotidiano são matérias-primas do poema, almejando a uma literatura mais próxima à vida. As vanguardas do início do século XX almejavam “o fim da arte” (id., ibid.) nas palavras de Bourriaud. Havia uma urgência de uma estética unitária, o desejo de desaparecimento da arte como uma atividade especializada, intelectualizada4. Karl Marx, em A ideologia alemã, critica a separação entre práxis e poiesis. Na filosofia grega, a práxis é a ação livre, em que o homem busca autotransformar-se, aperfeiçoando-se. Já a poiesis tem o caráter oposto, ela consiste na ação subserviente, utilitária. A poiesis está ligada à noção de produto, submetida às condições materiais, enquanto a práxis tem como resultado da ação um bem. A contribuição de Marx a essa discussão está na aproximação desses dois polos: La praxis pasa constantemente a poiesis, y recíprocamente. No hay nunca libertad efectiva que no sea también una transformación material, que no se inscriba históricamente en la exterioridad, pero tampoco nunca hay trabajo que no sea una transformación del yo. (MARX apud BOURRIAUD, 2016, pp. 52-3) Isso significa que não se pode pensar os produtos sem considerar as condições em que foram produzidos, ou seja, a prática e a produção andam lado a lado. Segundo 2 BAUDELAIRE, Charles. Flores do mal. “A perda da auréola”. 3 ANDRADE, Oswald de. Manifesto da Poesia Pau-Brasil. Disponível em <http://www.ufrgs.br/cdrom/oandrade/oandrade. pdf>. Acessado em 28 set. 2017. 4 Esta ideia será aprofundada no capítulo Vida e arte. 40 UNIDADE II │ MODERNISMO, CONTEMPORANEIDADE, TEATRO E NARRATIVAS PARA A TV Marx, o homem produz a si mesmo por meio de sua ação, produzindo a si mesmo, ele também forja, indiretamente, condições materiais de existência. Producere (do latim) significa “fazer avançar diante de si”. Assim, para o artista moderno, criar não é fabricar objetos, mas “mezclar producción y producto en un dispositivo de existencia. Conectando la praxis y la poiesis, apunta hacia una totalización de la experiencia, totalidad de la que el Hombre es despojado por la civilización industrial” (BOURRIAUD, 2016, p. 53). A arte moderna busca a unidade perdida, almeja o fim da ambivalência práxis e poiesis. “Solamente