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UFRJ O CIDADÃO POLIDO e o SELVAGEM BRUTO A EDUCAÇÃO DOS MENINOS DESVALIDOS NA AMAZÔNIA IMPERIAL Irma Rizzini Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Social, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em História. Orientador: Marcos Luiz Bretas da Fonseca Livros Grátis http://www.livrosgratis.com.br Milhares de livros grátis para download. Rio de Janeiro, março de 2004 O cidadão polido e o selvagem bruto A educação dos meninos desvalidos na Amazônia Imperial Irma Rizzini Orientador: Marcos Luiz Bretas da Fonseca Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em História Social, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em História. Aprovada por: _______________________________ Presidente, Prof. Marcos Luiz Bretas da Fonseca _______________________________ Prof. Aldrin Moura Figueiredo _______________________________ Prof. João Luís Ribeiro Fragoso _______________________________ Prof. Luiz Cavalieri Bazílio _______________________________ Prof. Mary Del Priore Rio de Janeiro, março de 2004. Rizzini, Irma. O cidadão polido e o selvagem bruto: a educação dos meninos desvalidos na Amazônia Imperial / Irma Rizzini. – Rio de Janeiro: UFRJ/IFCS/PPGHIS, 2004. x, 444 f.: il.; 29,7 cm. Orientador: Marcos Luiz Bretas da Fonseca Tese (doutorado) – UFRJ/ /IFCS/ Programa de Pós-Graduação em História Social, 2004. Referências Bibliográficas/Fontes: f. 391-405. 1. História da educação. 2. Meninos desvalidos. 2. Meninos indígenas. 3. Instituições educacionais. 4. Amazônia. 5. Pará. 6. Amazonas. I. Rizzini, Irma. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Pós-Graduação em História Social. III. O cidadão polido e o selvagem bruto: a educação dos meninos desvalidos na Amazônia Imperial. Agradecimentos A elaboração de uma tese, ao longo de seus quatro anos, permite a construção de todo tipo de laço de solidariedade e compreensão. Citarei aqui aqueles que acompanharam o processo com grande proximidade ou que facilitaram a realização de tarefas que, de outro modo, teriam sua execução comprometida. Assim, agradeço a consideração e os cuidados especiais que recebi, do professor Marcos Bretas, pela orientação dedicada e o apoio em diversas atividades exercidas durante a pesquisa. Vindo de outra área acadêmica e assumindo um objeto de pesquisa inteiramente diverso da minha experiência anterior, a confiança depositada no projeto me ajudou a prosseguir, mesmo nos momentos mais difíceis desta trajetória. das professoras Vera Lúcia Soares (Universidade da Amazônia /Pará) e Patrícia Melo Sampaio (Universidade do Amazonas), pelos convites para os seminários realizados em suas universidades, quando tive oportunidade de debater a pesquisa que vinha realizando na região. da professora Karla Martins (Universidade Federal do Amapá/Universidade Federal de Viçosa), sempre pronta a responder aos meus pedidos de ajuda. Foram longas e agradáveis conversas por e-mail. de Cláudia Paixão (UFRJ/IFCS), que me auxiliou no início da pesquisa e com a maior disposição se prontificou a fotografar imagens de instituições educacionais do início do século XX, depositadas em obras da Biblioteca Nacional e do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Já nos últimos momentos da tese, Luis Fernando de Faria Nogueira preparou a reprodução digital dos mapas em anexo. de Alessandra Martinez Schueler, pelas importantes dicas sobre a história da educação no século XIX. de Eneida Pamplona, que com paciência e carinho, ouviu minhas dúvidas e incertezas ao longo da escrita da tese. Agradeço à equipe do Centro de Estudos e Pesquisas sobre a Infância, especialmente a Irene Rizzini, pela enorme compreensão que demonstrou ter ao me liberar de todas as (inúmeras) atividades do Centro. E à coordenação do PPGHIS, que viabilizou a realização da pesquisa nos arquivos e bibliotecas de Belém e Manaus em 2002, com a aprovação para a concessão das passagens. À família Marinho Batista, nas pessoas de Luciana, Virginia e Edir, meu agradecimento especial, pela acolhida durante a pesquisa realizada em Belém, quando a hospitalidade e afeição de todos amenizaram a saudade de casa. As trocas de idéias e materiais com Luciana foram fundamentais para o aprofundamento do meu aprendizado sobre a história do Pará. Sem dúvida, o saldo das novas amizades é uma feliz conquista de todo este processo. E, relaciono por último, para guardar bem na memória, os meus queridos Ricardo, Clarissa e Camila, que permaneceram o tempo todo ao meu lado, me apoiando e dando a necessária tranqüilidade afetiva para a árdua tarefa a que me propus fazer. Resumo O cidadão polido e o selvagem bruto A educação dos meninos desvalidos na Amazônia Imperial Irma Rizzini Orientador: Marcos Luiz Bretas da Fonseca Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em História Social, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em História. O envolvimento e os percalços dos governos das províncias amazônicas junto à instrução da população, no período de 1850 a 1889, constituem o objetivo deste estudo. A educação popular é analisada de acordo com o entendimento de seus empreendedores, ou seja, como a instrução elementar e profissional do povo, formado, em geral, pelos filhos dos pobres livres. A população desvalida do Pará e do Amazonas apresentava grande diversidade étnica e cultural, atingindo as instituições educacionais nos aspectos mais fundamentais, pois freqüentemente não havia a desejada uniformidade lingüística e de costumes. A pesquisa privilegia as instituições educacionais dirigidas aos meninos, tanto as escolas primárias quanto os internatos de ensino profissional. A prioridade recai sobre a educação enquanto uma política de governo, portanto, as escolas públicas e os internatos oficiais de formação de artífices são os objetos principais da análise. Dos internatos, optou-se por incorporar à análise aqueles cujas propostas educacionais se aproximavam das instituições oficiais, como foi o caso do Instituto Providência, criado pelo Bispo do Pará. A experiência dos internatos nortistas é comparada com outras iniciativas disseminadas pelo país, abarcando tanto os estabelecimentos de educandos artífices quanto os esparsos e breves projetos dos colégios indígenas do Segundo Reinado. As fontes do estudo foram pesquisadas nos arquivos do Rio de Janeiro, Belém e Manaus, abrangendo, além de outros materiais, a documentação primária e secundária das instituições educacionais públicas e as coleções eclesiásticas. A correspondência entre diretores e presidentes de província, os relatórios institucionais, os artigos e cartas aos jornais de Belém e Manaus sobre a educação popular se mostraram fontes essenciais para a pesquisa. O estudo revela que o quadro da educação popular se modificou substancialmente nas duas províncias, notadamente no último decênio do Império. Pais de alunos e moradores das pequenas localidades do interior das províncias forçaram a abertura de nichos de participação neste processo, através das cartas aos jornais e às diretorias de instrução pública.Belém e Manaus abrigaram os institutos de aprendizes artífices de maior duração do Império e conheceram um importante crescimento na instrução primária pública, atingindo índices de alfabetização correspondentes às principais capitais do país. Abstract The polite citizen and the rough savage Education of poor children in Brazilian Amazônia (1850-1889) Irma Rizzini Supervisor: Marcos Luiz Bretas da Fonseca Programa de Pós-Graduação em História Social, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro This study concerns the development and the difficulties faced by the provinces of the north of Brazil to offer education to the people, between 1850 and 1889. The idea of popular education is treated according to its contemporary understanding; as basic and professional training for the children of free poor. The lack of a common language and customs among the poor in Amazonas and Pará, due to its ethnic and cultural diversity presented a challenge to the new educational institutions. The research is focused on institutions for the education of boys, both in primary schools and in boarding schools dedicated to professional training. The priority is to understand education as public policy, therefore public sponsored establishments are privileged in our work. Boarding schools are examined when their project is similar to public institutions. The experience of boarding schools in the north is compared to others around the country, both for training craftsmen or dedicated to the rare projects for the education of the indian children. The sources of the study have been researched in archives from Rio de Janeiro, Belém, and Manaus, encompassing the surviving documents from the institutions, and eclesiastical sources. The exchanges between public education officials, public reports, letters to the press and articles published in Belém and Manaus were essential to our purposes. We show that popular education in the North provinces experienced deep changes in the last decade of the Brazilian Empire. Parents and inhabitants of small villages mobilized through the press. They also wrote to the authorities, forcing them to open new spaces for education. Belém and Manaus held the longest lasting professional boarding schools and had a significant growth in primary public education, reaching levels of literacy as high as the main cities of the country. O cidadão polido e o selvagem bruto A educação dos meninos desvalidos na Amazônia Imperial Sumário Introdução..........................................................................................................................1 Capítulo 1 - A educação nas Províncias do Pará e do Amazonas: o século das luzes na Amazônia ................................................................................................ ..............12 Abordagens historiográficas da educação no Brasil .................................................15 O governo da população e a instrução pública: Amazonas e Pará na metade do século XIX................................ ......................................................................................... 22 Visitando a cena: as escolas sob exame ................................................................... 31 A observação e o exame em prol da reforma da vida indiana no Pará...................32 Um testemunho – Gonçalves Dias no Amazonas .................................................39 As casas escolares e os professores................................................................ ..........48 Capítulo 2 - A civilização nas fronteiras remotas da Amazônia: expansão da instrução pública nas décadas de 1870 e 1880..........................................................55 Os números da instrução primária pública na Amazônia ................................ ..........59 A expansão geográfica......................................................................................... 61 A expansão social................................................................ ................................68 Necessidades dos governos e demandas da população .............................................78 A fiscalização das escolas e a política d’aldeia........................................................ 85 Tensões na inspeção escolar: as queixas de pais, professores e autoridades públicas ............................................................................................................................ 90 A visita escolar: observando a escola e os modos de viver da população ................ 100 Modos de viver das famílias versus a instrução da infância ................................ 105 Entre pais, chefes de família e mandões d’aldeia: imagens, vivências e usos da escola ................................................................................................ ..............................112 Os combates ao patronato e à politicagem na instrução pública ......................... 118 Os procedimentos escolares: críticas através da imprensa ...................................... 136 Os procedimentos escolares: o mestre sob o olhar vigilante dos pais.................. 140 Capítulo 3 - Selvagens x polidos: o ensino profissional no Segundo Reinado........158 O ensino profissional no Segundo Reinado................................................................159 O ensino de ofícios mecânicos em instituições asilares: casas de educandos artífices e instituições afins.........................................................................................................168 A clientela das instituições: critérios sociais, étnicos e políticos.........................182 Educação versus exploração do trabalho dos meninos índios...........................190 A educação para o trabalho nas instituições imperiais...............................................206 Os mestres de ofícios................................................ ...........................................223 Resultados do aprendizado: a difícil inserção no mercado de trabalho................227 O cidadão polido e o selvagem bruto: o regime disciplinar das instituições e o comportamento dos educandos...................................................................................234 Representações e expectativas familiares...................................................................253 Capítulo 4 - Instituições asilares de formação de artífices na Amazônia Imperial: educandos de Belém e Manaus ...................................................................................265 Educandos do Amazonas............................................................................................267 A exposição da decadência da Casa dos Educandos na imprensa amazonense......273 A extinção da Casa de Educandos de Manaus........................................................288 O Instituto Amazonense de Educandos Artífices.......................................................293 O Instituto Paraense de Educandos Artífices.............................................................303 A entrada da ruim política da Província no Instituto Paraense...............................309 O controle dos governantes sobre a instituição.......................................................313 Capítulo 5 - Colégios indígenas do Brasil Imperial: projetos educacionais do Cônsul Domingos Gonçalves, do Brigadeiro Couto de Magalhães e do Bispo Macedo Costa...............................................................................................................324 Colégio dos Índios de Urubá, Pernambuco................................................................331Colégio Isabel, Goiás..................................................................................................340 Instituto “Providência”, Pará......................................................................................350 Conclusão.....................................................................................................................380 Fontes............................................................................................................................391 Bibliografia...................................................................................................................397 Anexos...........................................................................................................................406 Tabelas........................................................................................................................406 Imagens.......................................................................................................................430 Quadros e tabelas Do capítulo 2 Freqüência à escola da população livre em idade escolar (6 a 15 anos), segundo o Censo de 1872..............................................................................................................62 Número de matriculados e de escolas públicas primárias da Província do Amazonas no 1º trimestre de 1888.................................................................................................64 Freqüência diária das escolas públicas primárias (diurnas) da Província do Pará no 1º trimestre de 1887 e no 2º trimestre de 1888.................................................................66 Freqüência à escola dos meninos e das meninas livres, em idade escolar (6 a 15 anos), segundo o Censo de 1872.............................................................................................69 Alunos e alunas matriculados nas escolas públicas da Província do Amazonas no 1º trimestre de 1888..........................................................................................................71 Freqüência diária das escolas públicas primárias (diurnas) da Província do Pará no 1º trimestre de 1887 e no 2º trimestre de 1888, por tipo de escola...................................82 Relação das visitas escolares localizadas na documentação (1870-1889)..................104 Do capítulo 3 Casas de Educandos Artífices criadas no século XIX................................................170 Instituições de formação profissional - Rio de Janeiro, Pernambuco e Bahia............178 Filiação dos colonos da Colônia Orfanológica Isabel – PE........................................187 Programa de ensino de instituições profissionalizantes do século XIX.....................207 Número de alunos por aula oferecida na Colônia Orfanológica Isabel – PE.............213 Casa dos Educandos Artífices do Maranhão: alunos “demitidos” em 1850..............237 Do capítulo 4 Despesas da Província do Amazonas com educação da mocidade entre 1858 e 1868........................................................................................................................... 289 Anexos Estatística escolar do Pará e do Amazonas (referente aos capítulos 1 e 2).........406 Anexo 1 - Instrução pública primária no Pará (1840-1888).......................................407 Anexo 2 - Quadro demonstrativo da freqüência das escolas de instrução primaria do Pará (1861-1870)........................................................................................................408 Anexo 3 - Freqüência diária das escolas públicas de ensino primário do Pará (1º trimestre de 1864) ......................................................................................................408 Anexo 4 - População escolar e escolas públicas primárias por comarca da Província do Pará (1881) ................................................................................................................409 Anexo 5 - Escolas públicas do Pará em dezembro de 1888.......................................409 Anexo 6 - Freqüência diária das escolas públicas noturnas da Província do Pará no 1º trimestre de 1887 e no 2º trimestre de 1888...............................................................409 Anexo 7 - Instrução Pública no Amazonas (1852-1889)...........................................410 Anexo 8 - Número de alunos das escolas públicas de ensino primário no Amazonas (1852-1876) ...............................................................................................................411 Anexo 9 - Mapa geral do movimento do ensino público primário na Província do Amazonas no ano de 1877..........................................................................................412 Anexo 10 - Situação em 1888 das localidades relacionadas no “Mapa geral do movimento do ensino público primário na Província do Amazonas no ano de 1877” ....................................................................................................................................413 Estabelecimentos de ensino profissional (referentes aos capítulos 3 e 4)............414 Anexo 11 - Número de educandos por ano (Casa dos Educandos - Manaus) .............................................................................. .....................................................414 Número de alunos por oficina ................................................................................415 Anexo 12 - Casa de Educandos Artífices (Amazonas) .............................................415 Anexo 13 - Instituto Paraense de Educandos Artífices .............................................415 Anexo 13 - Instituto Paraense de Educandos Artífices .............................................416 Anexo 14 - Jovens formados nos Asilos dos Meninos Desvalidos (RJ) entre 1875 e 1894, por profissão ....................................................................................................417 Anexo 15 - Colônia Orfanológica Isabel em 1876 - Pernambuco .............................417 Anexo 16 - Colégio de Educandos Artífices em 1873 - Paraíba ...............................417 Anexo 17 - Casa de Educandos Artífices em 1848 - Maranhão ................................418 Anexo 18 - Casa de Educandos Artífices em 1861 - Maranhão ................................418 Anexo 19 - Casa de Educandos Artífices em 1862 - Ceará .......................................418 Anexo 20 - Destinos dos ex-alunos da Casa Pia dos Órfãos de São Joaquim – Bahia (1825-1910) ...............................................................................................................419 Estatística escolar e Censo de 1872.........................................................................420 Anexo 21- Freqüência à escola da população livre em idade escolar (6 a 15 anos), por sexo, segundo o Censo de 1872 (Pará e Amazonas)................................................. 420 Anexo 22- Mapa demonstrativo freqüência diária das escolas públicas primárias da Província do Pará (1º trim. 1887 e 2º trim. de 1888)..................................................421 Anexo 23- Quadro demonstrativo da matricula das escolas públicas primárias da Província do Amazonas no 1º trimestre de 1888.......................................................427 Imagens .........................................................................................................................430 Mapas do Pará e do Amazonas – distribuição geográfica das escolas públicas.........431 Fotos de internatos de formação profissional do Pará e do Amazonas......................433 Amazonas: Instituto Afonso Pena Pará: Instituto Lauro Sodré, Instituto do Prata, Instituto Gentil Bittencourt Siglas RPAM – Relatório da Presidência da Provínciado Amazonas RPPA – Relatório da Presidência da Província do Pará RPMA - Relatório da Presidência da Província do Maranhão RPPE – Relatório da Presidência da Província de Pernambuco RPGO – Relatório da Presidência da Província de Goiás 1 Introdução O foco da presente pesquisa incide sobre a educação dos meninos nas províncias do Pará e do Amazonas. O objeto de análise é o conjunto das instituições educacionais voltadas para a instrução elementar e à formação profissional de meninos índios e desvalidos. As escolas públicas espalhadas pela imensa região e os estabelecimentos de educandos artífices das capitais constituem objetos privilegiados deste estudo. Portanto, somente as iniciativas dos governos provinciais são trazidas à cena, com uma única exceção. Trata-se do Instituto de Agricultura, Artes e Ofícios “Providência”, criado pelo Bispo do Pará, D.Antonio de Macedo Costa, para a educação dos filhos do Amazonas e do Pará. O objetivo inicial da pesquisa de investigar a educação indígena “falou mais alto” neste caso, como também a intromissão da Igreja local no âmbito da instrução pública e na educação do povo amazônico, parafraseando o bispo. A análise abarca o período de 1850 a 1889, abrangendo, portanto, quase 40 anos de história. O limite inicial é determinado pela separação legal do Amazonas da Província do Grão-Pará, em 1850, e o final, pela queda do regime imperial. Nos dois primeiros capítulos, a instrução elementar pública é discutida, na perspectiva de um programa de educação popular voltado para a afirmação da nacionalidade, através da consolidação da língua portuguesa na região. Em termos específicos, visava-se à formação de quadros para o funcionalismo público e para servir aos propósitos eleitorais. As duas províncias inseriam-se nos movimentos, nacional e internacional, de disseminação da instrução elementar entre as classes populares, num período em que a quantidade de escolas e de alunos passou a ser considerada importante indicador de progresso e de civilização de uma nação. Em se tratando de uma região cercada pelo preconceito contra a selva e o selvagem, os termos progresso e civilização adquiriam valoração toda especial. Uma sociedade formada por cidadãos de arco e flecha constituiu um estigma que as elites locais se esforçaram por suplantar. As transformações pelas quais passaram Belém e Manaus do período da belle époque mostram o quão profundamente as metas do progresso e da civilização, delineadas ainda no século XIX, foram seguidas. 2 As diferenças na abordagem das décadas de 1850-1860 e 1870-1880 são patentes neste trabalho, em decorrência da trajetória educacional das províncias. No primeiro período, as iniciativas educacionais são mais tímidas e restritas à esfera governamental. O Amazonas iniciava a estruturação do ensino público na Província, criando o seu primeiro regulamento e algumas escolas. O Pará vivia o fracasso da experiência da Casa de Educandos Artífices, que estava prestes a fechar as portas, e reformava a legislação, visando reverter o tão anunciado estado crítico das escolas elementares. Nas décadas de 1870 e 1880, o debate relativo à educação do povo expandiu-se do âmbito governamental, envolvendo a sociedade letrada de Belém e Manaus, sob a influência das idéias liberais e sob o domínio das paixões partidárias. A educação tornava-se uma prioridade para liberais e conservadores. Atentos às grandes questões do século das luzes, governantes e governados estavam com os pés fincados na terra local, utilizando intensamente os recursos oferecidos pelas instituições educacionais em benefício dos mecanismos eleitorais. As demissões e novas admissões de professores e funcionários das instituições educacionais públicas nos períodos de mudança de gabinete incendiavam as discussões nos jornais de Belém e Manaus. Os diretores da instrução pública não se cansaram de repudiar o envolvimento de professores no processo eleitoral das cidades, vilas e povoados do interior. Para o “bem” ou para o “mal”, a instrução do povo alcançou uma posição de destaque na região, no âmbito da população, do Estado e da Igreja. O quadro da educação popular se modificou substancialmente nas duas províncias, notadamente no último decênio do Império. O número de escolas e alunos aumentou consideravelmente, não apenas nas capitais. Verifica-se, neste período, a expansão geográfica e social da instrução, quando povoações, algumas bem distantes das capitais, passaram a contar com escolas públicas de meninos e meninas e as principais cidades instituíram escolas noturnas para trabalhadores. Pais de alunos e moradores das pequenas localidades do interior das províncias forçaram a abertura de nichos de participação neste processo, através das cartas aos jornais e às diretorias de instrução pública. Os capítulos 3 e 4 estão voltados para a discussão do ensino profissional no século XIX, em âmbito nacional, e especificamente, para o estudo das instituições públicas de formação de artífices do Pará e do Amazonas. As Casas de Educandos 3 Artífices ou os Institutos, como passaram a ser chamados a partir da década de 1870, foram instalados nas capitais. Os estabelecimentos estavam sob o controle do centro do poder político das províncias, submetidos às ingerências diretas dos presidentes. A autoridade máxima da província acompanhava o funcionamento cotidiano da instituição, atendendo às suas necessidades e conferindo-lhes status social, deixando-a, porém, vulnerável aos desmandos das disputas políticas. A admissão de educandos era decidida pela presidência, tendendo, em muitos momentos, a favorecer suas redes de protegidos. Filhos de funcionários públicos e de militares estudaram nos institutos, ao lado de meninos desvalidos e de indígenas. No Amazonas, especialmente, o governo procurou reservar vagas para filhos de índios, adotando estratégias visando eliminar suas desconfianças, através das visitas de chefes ou parentes à instituição. O tema do ensino profissional é retomado no capítulo 5, porém somente no que condiz aos colégios indígenas (internatos). Três projetos de ensino agrícola e artístico são expostos, oriundos das províncias do Pará, Pernambuco e Goiás. A análise centra-se na experiência paraense, uma iniciativa da qual o bispo Macedo Costa se ocupou pessoalmente. A metodologia de trabalho e as fontes de pesquisa estão descritas nos capítulos, obedecendo às exigências da análise. Em se tratando de categorias das mais desvalorizadas socialmente, as dos menores desvalidos e dos filhos de índios, nem é preciso advertir o leitor de que suas vozes não aparecem na documentação. Contudo, o esforço de trazer à tona o cotidiano educacional, vivências da escola e do internato por seus diversos participantes, não foi de todo malogrado. Ao lado das importantes fontes oficiais, a pesquisa de periódicos amazonenses, e especialmente, dos paraenses, se mostrou extremamente rica devido ao acesso de outros participantes do processo educativo: professores, pais, moradores dos povoados, visitantes, delegados literários, inimigos e amigos políticos, etc. As cartas e os artigos de colaboradores surgiram inesperadamente na pesquisa, alterando seus rumos. As denúncias de moradores e familiares de alunos do interior, sobretudo do Pará, impuseram a necessidade de ampliar o escopo da pesquisa para os mais diversos projetos de educação popular na região, incluindo-se as escolas públicas. Tarefa praticamente impossível na análise dos rígidos internatos, os anseios e os flashes do cotidiano da instituição educativa eram expostos através dos jornais, para que governo e população se inteirassem das angústias e4 propostas de reforma destes atores. Uma extensa carta de um morador do interior do Pará revelou as possibilidades deste novo caminho. Tratava-se de uma denúncia de morador ou pai de família, contra o professor público, indignado com a abertura de uma taberna colada à parede da escola – a carta seguia com a descrição de outros problemas da escola e desmandos do mestre junto a seus alunos. A carta representou para esta pesquisa um verdadeiro achado, pinçado dos rolos dos microfilmes da Biblioteca Nacional. A pesquisa realizada nos arquivos e bibliotecas de Belém e Manaus, possibilitada pela concessão de passagens através da coordenação do Programa de Pós- Graduação em História Social (UFRJ/IFCS), possibilitou contornar a dificuldade de acesso aos meninos e familiares dos internatos profissionalizantes. Os ofícios trocados entre os diretores do Instituto Paraense de Educandos Artífices e os presidentes do Pará, mesmo com toda a aridez dos documentos burocráticos, permitiram a construção de cenas da vida institucional. Associados às outras fontes pesquisadas na região e nas bibliotecas e arquivos situados no Rio de Janeiro, possibilitaram à pesquisadora, senão “entrar” na instituição, ao menos dar umas “olhadelas” pela janela. Mas, a pesquisa não pretendia somente abarcar a documentação governamental. Logo pudemos descobrir o silêncio das fontes eclesiásticas quanto ao Instituto que tanto empolgou o polêmico Bispo do Pará. As coleções eclesiásticas relativas à correspondência do bispo, pesquisadas nos arquivos públicos e religiosos do Pará e do Rio de Janeiro, pouco se referem à iniciativa, somente citada nas questões restritas ao âmbito estatal, como a aquisição das terras do Instituto Providência. Novamente, os jornais locais mostraram o quanto estavam comprometidos com a educação popular na região, analisando, combatendo, propondo reformas ou enaltecendo as suas instituições educacionais. Temendo a repetição, cedemos ao ímpeto de nos estender no relato dos caminhos da pesquisa, passando à descrição das províncias amazônicas. Uma breve apresentação das províncias do Amazonas e do Pará se faz necessário para uma melhor compreensão das políticas educacionais desenvolvidas em seus territórios no século XIX. Informações adicionais estão distribuídas pelos capítulos, conforme a análise as exige. A caracterização baseia-se nos trabalhos de Patrícia Maria Melo Sampaio, José Ribamar Bessa Freire, Ana Maria Daou, Maria de Nazaré Sarges e no Censo de 1872. 5 Santa Maria de Belém se originou da construção de um forte no século XVII pelos colonizadores portugueses, visando à defesa da região contra a invasão de estrangeiros. O Estado do Grão-Pará e Rio Negro foi criado entre 1772-1774, emancipado do Estado do Maranhão e Grão-Pará. A sede do Estado do Grão-Pará manteve-se em Belém, subordinada diretamente a Lisboa. Essa situação persistiu até o início do XIX. Com a implementação do Código Criminal na região, em 1833, a Província do Pará passou a ter três comarcas: Grão Pará, Baixo Amazonas e Alto Amazonas. Em 1850, o Alto Amazonas tornou-se a Província do Amazonas, somente implantada em 1852. Cidade de longa história colonial, Belém chegou à metade do século XIX com uma população em torno de 25.000 habitantes. O crescimento demográfico da bela cidade formada pelo casario colonial, avenidas e praças arborizadas, com iluminação a gás, foi significativo.1 O Censo de 1872 apresenta aspectos importantes da Província, ressaltando-se a necessidade de se olhar com reserva para os dados censitários do período, devido à imensidão da região, à dificuldade de acesso a certos locais e à mobilidade de uma parcela da população da capital e dos demais núcleos populacionais, dedicada às atividades extrativistas. Apresentaremos, especialmente, os dados educacionais da área geográfica correspondente ao município de Belém, constituído por doze paróquias, e da Província no todo. Quando necessário para fins de comparação, separaremos a cidade de Belém de seu município, formada por quatro paróquias. Em 1872, o município de Belém já contabilizava 61.997 habitantes, chegando ao final do século com uma estimativa em torno de cem mil habitantes.2 A população total da Província, em 1872, era de 275.237 indivíduos, entre eles, 27.458 escravos. Entre os escravos, 89 sabiam ler e escrever. Os filhos dos escravos não foram incluídos na categoria da população em idade escolar do Censo Geral de 1872, pois a legislação vetava o acesso dos escravos ao ensino público no país, obedecendo a um preceito constitucional que prescrevia a instrução pública gratuita aos cidadãos. 1 SAMPAIO, Patrícia Maria Melo, 2001, DAOU, Ana Maria, 2000 e SARGES, Maria de Nazaré, 2000. 2 O Censo de 1890 contabilizou para o município de Belém somente 50.064 habitantes, distribuídos por treze distritos correspondentes às antigas paróquias. Já os dados de 1900 se aproximam das estimativas: Belém possuía 96.560 habitantes ao findar o século XIX (IBGE-Sinopse do Recenseamento de 1920. Rio de Janeiro, 1926. Citado por SARGES, Maria de Nazaré, p.90). 6 Dentre a população livre da Província, de todas as faixas de idade, 24,4% sabiam ler e escrever, mas somente 14,9% da população em idade escolar, constituída por indivíduos livres entre 6 e 15 anos, freqüentavam escolas.3 O índice de alfabetização da população livre do município da capital era bem mais alto: 53,1%. Incluindo no cálculo a população escrava do município, a taxa de alfabetizados continuava alta para o período, ou seja, 45,5%. Comparado com a cidade do Rio de Janeiro, centro do poder político do país, Belém apresentava índices surpreendentes. Na Corte, 36,2% da população total era alfabetizada em 1872. A diferença entre os percentuais de escravos dos dois municípios não explica a clivagem no índice de alfabetização entre Belém, cujos escravos representavam 14,3% dos 61.997 habitantes, e a Corte, com 17,8% dos 274.972 habitantes constituídos por escravos. A freqüência à escola em Belém não era muito superior aos outros municípios, atingindo 22,4% da população em idade escolar. A diferença entre as taxas de alfabetização e freqüência à escola revela a baixa escolarização da população frente a outras formas educacionais, como a doméstica. Na cidade de Belém, a educação das meninas vinha adquirindo um valor diferenciado com relação aos meninos e ao restante do Pará. As meninas em idade escolar tinham um índice maior de freqüência às aulas do que os meninos: 26,3% das meninas na faixa de 6 a 15 anos estavam na escola, contra a taxa de 22,3% dos meninos. Considerando-se a Província toda, a relação se inverte: 18,3% de meninos contra 11,15% de meninas. O Censo de 1872 oferece uma visão aproximada da composição étnica da região. As categorias de índios e mamelucos, empregadas em levantamentos realizados anteriormente no Amazonas, foram eliminadas do primeiro Censo Geral do Império. A categoria de “caboclos” passou a incorporar estes dois grupos. Os recenseadores encontraram em Belém uma população formada por 5,6% de caboclos, 35,2% de brancos, 40,3% de pardos e 18,9% de pretos.4 Os ofícios mecânicos, os quais passariam a compor o programa de ensino profissionalizante do Instituto Paraense de Educandos Artífices, instalado em 1872, ocupavam 5,4% dos moradores do município de Belém, com maior concentração nas quatro paróquias que formavam a capital. Os “operários” 3 O percentual de analfabetismo no Pará correspondia ao do Império, em torno dos 80% (MARTINEZ, Alessandra Frota, 1997, p.131). Uma ressalva deve ser feita à categoria “freqüentamescolas” do Censo de 1872, já que no período era comum o uso dos termos freqüência e matrícula escolar como sinônimos. 4 FREIRE, José Ribamar Bessa, 2003, p.166. 7 que trabalhavam com madeiras, metais, vestuários, calçados e em edificações eram mais abundantes, sobretudo na cidade de Belém. Prosperidade, progresso e civilização são expressões que adquiriram um forte simbolismo nas províncias amazônicas, no anseio de sobrepor estas condições à resistência imponente da selva e do selvagem . A aspiração de transformar matas em campos cultivados e nativos em seres civilizados era tema recorrente nos discursos das elites ilustradas de Belém e Manaus. A difusão da instrução pública tornou-se um objetivo importante nas duas últimas décadas dos oitocentos. O Pará não apenas acompanhava as discussões acerca da educação popular que circulavam pelo país e nos “países cultos”, mas seus governantes e legisladores promoveram reformas legislativas e a criação de um significativo número de instituições educativas, notadamente a partir da metade da década de 1870. A Escola Normal e o Instituto Paraense de Educandos Artífices surgiram no calor dos empreendimentos e debates educacionais. Em 1885, a cidade de Belém possuía 24 escolas e, no ano de 1888, este número saltou para 53 escolas primárias. Neste ano, o diretor da instrução registrou na Província toda, 16.550 alunos matriculados em 331 escolas públicas, com a freqüência média de 9.930 alunos. 5 No ano de 1885, o diretor da 2ª seção da Diretoria da Secretaria da Presidência da Província, Manoel Baena, elaborou um relatório por solicitação do Governo Imperial, descrevendo todas as cidades, vilas e povoações do Pará. Baena retratou mais detalhadamente a cidade de Belém, não escondendo o que ele considerava velho e feio, porém destacando o progresso de suas companhias urbanas e a beleza de suas edificações. A cidade era formada por quatro distritos ou freguesias, servidos por linhas de bonde. Além dos estabelecimentos educacionais citados, o governo mantinha um liceu para o ensino secundário de rapazes e um colégio (internato) para órfãs e desvalidas. O número de estabelecimentos particulares de ensino primário e secundário também crescia. Manoel Baena listou quinze estabelecimentos, além do Asilo Santo Antônio para meninas e do Instituto Providência, para o ensino de ofícios e de agricultura aos desvalidos, ambas iniciativas do Bispo do Pará, D. Antonio de Macedo Costa. A 5 Geralmente as diretorias de instrução do Império contabilizavam os alunos matriculados, apresentando cifras de um terço a 100% mais altas do que a freqüência efetiva às aulas. O número de escolas podia apresentar variações nos relatórios do mesmo ano, devido à diferença entre o total de escolas providas de professores e o total de escolas criadas (Cf. capítulo 2). 8 indústria animada e o comércio ativo e importante de Belém estão inseridos na descrição do autor, retratos de uma cidade dinâmica e orgulhosa de seu progresso. Os símbolos culturais estavam representados pela biblioteca pública e a do Grêmio Português, pelo Teatro da Paz e Teatro-circo Cosmopolita, este construído em madeira para um público de 2500 pessoas, não esquecendo das nove tipografias que imprimiam oito jornais e um periódico. Ruas calçadas a paralelepípedos, quatorze praças, algumas primorosas, palácios, chácaras e chalés terminam por compor o quadro da Belém imperial. A Província era servida por 35 vapores, além das lanchas e rebocadores. A cidade de Manaus também teve sua origem ligada à defesa da região. Manaus é a denominação moderna do antigo povoado da Fortaleza São José do Rio Negro, instalado no século XVIII. A administração pombalina criara, em 1755, a capitania de São José do Rio Negro, região transformada, em 1833, na Comarca do Alto Amazonas. Na metade do século XIX, o Amazonas conquistou a independência administrativa e política, ocorrendo a separação da Comarca do Alto Amazonas com relação ao Grão Pará. Instalada em 1852, a Província do Amazonas tinha por capital a cidade da Barra do Rio Negro, que veio a receber, em 1856, a denominação definitiva de cidade de Manaus, uma menção aos Manáos, um dos grupos indígenas que ocupou a área.6 Os recenseamentos da população do Amazonas revelam duas características importantes da região: a existência de uma escassa população, (mal) distribuída por um vasto território, e o crescimento populacional notável na segunda metade dos oitocentos, associado à migração de nordestinos provocada pelo incremento da exploração da borracha. Como lembra Patrícia Sampaio, os levantamentos do período apresentavam inúmeros problemas, os quais, contudo, não impedem a análise dos significados dos números. Não se deve esperar precisão nas cifras, porém, elas permitem acompanhar a movimentação populacional da Província e especificamente, da capital. Os dados disponíveis informam que, em 1851, o Amazonas possuía 29.904 habitantes, e 42.185 moradores no ano de 1856. Tratava-se de uma população jovem, constituída em 1856, por 42% de menores, e que pouco contava com o braço escravo de origem africana, pois apenas 2% do contingente populacional eram formados por cativos. O Censo de 1872 apresentou uma população total de 57.610 indivíduos para a 6 DAOU, Ana Maria, 2000 e SAMPAIO, Patrícia Maria Melo, 1997. 9 Província, diminuindo a proporção de escravos para 1,6%. A cidade de Manaus acompanhou este crescimento populacional, com 5.081 habitantes estimados em 1852, alcançando, em 1872, 17.686 pessoas morando em 1.727 casas.7 Cerca de metade da população do Amazonas vivia no município de Manaus, formado por seis paróquias. O recenseamento de 1872 levantou as categorias de cor e profissão, permitindo-nos vislumbrar como se compunha a população racialmente e em que se ocupava. A Província, inclusive a capital, era formada por uma maioria de “caboclos” – 64% e 69%, respectivamente, isto é, por descendentes de índios, mamelucos ou não. A feição índia de sua população é reforçada pela pouca representatividade das outras categorias: 19,5% no total, e 16,4% em Manaus, de brancos. As categorias pardo e negro, que incluíam os escravos, eram minoria. Os pardos alcançaram 13% da população total e os negros, 3,5%. Em Manaus, pardos e negros representavam 12,6% de seus habitantes. Os chamados tapuios e os índios eram legalmente livres.8 O Censo não contabilizou os índios “não domesticados”, isto é, os diversos grupos autônomos, que preservavam a identidade étnica. Da população com profissão declarada da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição de Manaus, a maior parte empregava-se na lavoura (36%). O índice dos sem profissão era muito alto - 39,4% - não significando, contudo, população inativa. A categoria abarcava crianças e idosos, pessoas com profissão mal definida ou não declarada.9 Uma categoria profissional importante para a região amazônica não está contemplada no Censo, isto é, a atividade extrativista, cujos trabalhadores possivelmente foram inseridos entre os lavradores, pois era comum a execução das duas tarefas, ou entre os sem profissão. As profissões relacionadas aos ofícios ensinados no estabelecimento de educandos de Manaus eram pouco representadas na Província. Dentre as profissões manuais e mecânicas, os classificados como “operários”, representavam 1,6% da população total de Manaus e 1,7% da população total da Província. Entre as atividades relacionadas no Censo aos “operários”, o Amazonas dedicava-se principalmente aos trabalhos com madeiras, metais, vestuários, calçados e edificações,nesta ordem. 7 SAMPAIO, Patrícia Maria Melo, 1997, p.37-42; DAOU, Ana Maria, 1998, p.383. 8 Tapuios eram índios “destribalizados”, que viviam do comércio de produtos extrativos e de pequenos serviços nos povoados (SILVA, Marilene Corrêa da, 1996, p. 109). 9 SAMPAIO, Patrícia Maria Melo, 1997, p.42-43. 10 O Censo de 1872 revela uma sociedade onde a tradição oral imperava. O índice de pessoas livres alfabetizadas era muito baixo. Na Paróquia de Manaus, somente 18,5% dos habitantes sabiam ler e escrever e na Província toda, o índice caía para 13,5%. A freqüência à escola entre a população em idade escolar correspondia aos seguintes percentuais: em Manaus, 18,9% dos meninos e meninas freqüentavam escolas, e na Província, somente 12,5%. Portanto, no início da década de 1870, apenas uma pequena parcela da população do Amazonas tinha acesso à escola, principalmente as meninas, resultando em baixos índices de alfabetização da população, sobretudo das mulheres. Dentre os 979 escravos arrolados pelo recenseamento no Amazonas, nenhum sabia ler e escrever. Manaus possuía fortes raízes indígenas que as elites locais e os administradores, a maioria vinda de fora da Província, se esforçaram por suplantar. Especialmente nas duas últimas décadas do século XIX, o Estado regulou sua ação no sentido de transformar a feição da cidade tapuia, com suas casas cobertas de palha, em consonância com os símbolos da civilização ocidental. Neste período, a língua portuguesa já era dominante na Amazônia, suplantando o neheengatu, a língua geral amazônica, processo analisado por José Bessa Freire. O avanço migratório de nordestinos, expulsos de suas regiões pela seca e atraídos pela produção de borracha, consistiu em fator determinante para a disseminação da língua portuguesa, facilitada pela navegação a vapor. A política de difusão de escolas pelo interior teve sua contribuição na “portugalização” da Amazônia. O investimento nas instituições educacionais adquiriu nova valorização, direcionado para a construção de um novo modo de vida. Neste processo, instalou-se o Liceu, a Escola Normal e, em 1882, reergueu-se o estabelecimento dos educandos artífices, sob a moderna designação de Instituto Amazonense de Educandos Artífices. As escolas públicas se multiplicaram na capital, acompanhadas pela vigilância atenta dos diretores de instrução. Em 1877, a cidade tinha oito escolas públicas e 385 matriculados, passando a 23 escolas públicas primárias em 1889, com 1.104 alunos. Além do investimento na educação pública, a capital começava a empreender uma trajetória rumo à civilização e à cultura européias, lançando as primeiras pedras para a construção de monumentos em homenagem à cultura e ao conhecimento científico, como o teatro, a biblioteca pública e o museu botânico. Na virada do século XIX, este 11 processo se intensificou com a criação de novos espaços, vistos como elementos de progresso e civilização pela “elite da borracha”, como o demonstra Ana Maria Daou. 10 10 DAOU, Ana Maria, 1998. A autora investiga a implantação do processo civilizador na sociedade amazonense da virada do século XIX, focando os novos espaços criados na cidade de Manaus, como o teatro e o mercado, vistos como elementos de progresso e civilização pela “elite da borracha”. Edinea Mascarenhas Dias (1988) analisa o “período do fausto” no final do século XIX e a influência do crescimento da cidade de Manaus no surgimento de instituições de controle social, na primeira década do século XX. 12 Capítulo 1 A educação nas Províncias do Pará e do Amazonas O século das luzes na Amazônia "A verdadeira redempçao do paiz está no derramamento das luzes; a ignorancia dos póvos é tambem uma escravidão, e esta é medonha considerando os seus effeitos sociaes.”1 “Eu desejava que as luzes fossem diffundidas pela classe do povo e pelos pobres. Illustrando-os, civilisando-os é que havemos de ser grandes algum dia.”2 Ao nascer do Amazonas, oito jovens índios aportaram na Cidade da Barra, capital da nova Província. As quatro raparigas e os quatro rapazes chegaram de canoa, conduzidos por um alferes, em comum acordo com o primeiro administrador provincial, João Baptista Figueiredo Tenreiro Aranha. O diretor de índios do Rio Abacaxis enviou os jovens Mundurucú para que fossem educados na cidade, nos ofícios apropriados à sua condição e gênero. O diretor assegura ter conseguido o consentimento de pais e parentes, os quais, como “governados”, confiavam na tutela oferecida pelo governo recém instaurado. No ofício enviado ao presidente, Francisco Antonio Rodrigues comemora o “triunfo” de vencer uma possível repugnância dos pais em confiar os filhos à educação oferecida pela Província, l3onge de suas vistas: “He me assaz lisongeiro o significar a V. Exa. que pude conseguir que os pais e parentes a isso se prestassem sem a menor repugnancia, não obstante serem muito extremosos por seus filhos. Foi pois um triumpho, devido ás felizes esperanças que V. Exa. dá a seos governados.” 3 O primeiro jornal da Província, A Estrella do Amazonas, aplaude a iniciativa em prol da civilização e educação dos índios. A boa vontade por parte dos prestimosos pais 1 Conselheiro Joaquim Maria Nascentes d'Azambuja (1884? P.126), inspetor das escolas públicas de ensino primário nos Municípios da Capital, de Itacoatiara e Parintins, Amazonas. 2 Dr. Couto de Magalhães, Presidente do Pará. Instrucção publica. In: RPPA, 1864, p.27. 3 Ofício de Francisco Antonio Rodrigues ao Presidente da Província. Abacaxis, 4/3/1852 (Jornal A Estrella do Amazonas, 23/3/1852) 13 dos pequenos aprendizes em confiarem seus filhos aos cuidados da Província foi recebida como um sinal de confiança no governo recém empossado, representando um ato instaurador do governo da população. A Estrela do Amazonas anuncia a vinda dos índios e informa que o pequeno filho do “Principal dos Mondurucús do rio Canumá” já vinha sendo educado nas primeiras letras no Palácio do Governo, a pedido do pai. Uma nova era parecia chegar à região, quando “algumas tribus indígenas do Amazonas vão chegando a reconhecer que com a educação e a instrucção é que virão a ser uteis á si e á Sociedade; e esse reconhecimento já alguns chefes delles tem manifestado ao actual Exmo. Presidente da Província, que tem sabido gravar- lhes no coração o dito principio”. O jornal irradia esperança no futuro do Amazonas.4 O que a imensa e pouco habitada Província esperava da educação de sua população? Quais foram os debates, os projetos e as realizações educacionais dos governos das duas Províncias amazônicas, Pará e Amazonas? Neste capítulo, temos como foco estas questões, buscando articular os debates em torno da educação do povo amazônico com as medidas tomadas ou apoiadas pelos governos amazonenses e paraenses para a efetivação das propostas educacionais, principalmente após a instalação da Província do Amazonas em 1852. Ou seja, focalizaremos as idéias e as realizações educacionais. A análise será norteada pela concepção de que os projetos educacionais do Segundo Reinado, no país, dirigiam-se à formação de “cidadãos úteis a si e à Pátria”, isto é, de trabalhadores disciplinados, tementes a Deus e ao Estado. Na Amazônia, as tônicas da falta de braços e de agricultura e da independência de seus habitantes, tornavam mais prementes o objetivo da formação de um povo trabalhador e obediente. Criar escolas era indicador importante de progresso e civilização. As duas províncias participaram ativamente do movimento civilizador queorientou, em todas as partes do país, a criação de escolas primárias e secundárias, asilos para órfãos e instituições de ensino de ofícios. Nós, pesquisadores, nos sentimos mais confortáveis ao lembrarmos ao leitor que nossos estudos não pretendem dar conta da totalidade da problemática proposta. No caso 4A Estrella do Amazonas, 23/3/1852. O primeiro número deste jornal circulou no dia 07 de janeiro de 1852. Antes denominado 5 de setembro (1851), o jornal mudou de nome com a instalação da Província, quando “uma nova estrela appareceu no diadema imperial”. Criado pelo primeiro Presidente da Província, o jornal divulgava os atos administrativos do Império e do governo local e noticiava acontecimentos da Corte e das províncias (SANTOS et al, 1990, p.90). 14 do presente estudo, um aviso desta natureza, é insuficiente, por abordar questões relativas aos sistemas educacionais de duas províncias, dentro de um período longo da história - o Segundo Reinado. Não há de nossa parte nenhuma pretensão de fazer uma história da instrução e da educação populares nas duas províncias. Neste capítulo, abordamos os debates relativos à educação do povo no Norte amazônico, mostrando como as críticas e as propostas repercutiam nas ações, levando à criação ou à reforma das instituições educacionais. A abordagem da instrução elementar pública feita neste trabalho obedece a dois períodos: 1850-1869 e 1870-1889. Neste capítulo, focalizamos o primeiro período, quando as discussões e realizações estiveram mais restritas ao âmbito governamental. A documentação privilegiada são os relatórios de província, relatórios das diretorias de instrução pública e dos visitadores escolares, além da correspondência dos presidentes com o Ministério do Império, fontes importantes de análise da situação da instrução e educação populares no período, bem como dos anseios de mudança de seus atores. Nos dois últimos decênios, contamos com a abundante fonte dos jornais, divididos entre as facções liberais e conservadoras. A imprensa, tanto a liberal quanto a conservadora, acompanhava com grande interesse e conhecimento as discussões nacionais e internacionais relativas à educação popular, olhar entrelaçado com os temperos locais. Avaliações da política educacional dos governos e de suas instituições resultavam em aplausos, críticas e propostas de reforma. As análises não se pretendiam isentas: liberais e conservadores denunciaram a miúdo o partidarismo, a politicagem, o patronato político, o filhotismo, termos que expunham o favorecimento a “amigos” e parentes na redistribuição de cargos públicos. Segundo seus autores, a proteção política orientava as mudanças nas instituições educativas governamentais, principalmente àquelas relativas ao pessoal - diretores, professores, mestres e pessoal administrativo. Nos anos 1870 e 1880, expande-se o envolvimento, não apenas da sociedade ilustrada, mas também dos pais e moradores das pequenas povoações do interior do Pará e do Amazonas, nas questões condizentes à educação oferecida pelo Estado. 15 Abordagens historiográficas da educação no Brasil A abordagem da historiografia, embora bastante breve, é necessária para a compreensão dos pressupostos que fundamentam esta pesquisa. A revisão historiográfica realizada para o projeto de tese não é reproduzida no produto final, devido à opção de convocar seus apontamentos no contexto das discussões inseridas nos capítulos. A história da educação no Império permaneceu por muito tempo no limbo. Luciano Mendes de Faria Filho observa que a historiografia consagrada concebe o século XIX como uma espécie de idade das trevas da educação primária. Estudos recentes mudaram o enfoque sobre o período, indicando que havia em várias províncias uma intensa discussão acerca da necessidade de escolarização da população, principalmente das chamadas “camadas inferiores da sociedade”, constituídas pelos negros (livres, libertos ou escravos), índios e mulheres. Intensos foram os debates e a constituição de leis para o ordenamento legal da educação escolar.5 Intensos foram também os limites à expansão da instrução pública a toda população, relacionados aos aspectos políticos e culturais da sociedade escravista da época, e aos econômicos, como a baixa capacidade de investimento das províncias.6 A historiografia revela a riqueza dos debates e das ações educacionais empreendidos no período.7 Projetos de reforma da instrução eram elaborados pelas províncias com surpreendente freqüência. Embora nem todas as idéias tenham sido realizadas, o Segundo Re inado assistiu a uma importante intervenção estatal na educação, através das iniciativas dos governos e assembléias provinciais.8 Escolas, 5 FARIA FILHO, Luciano Mendes de, 2000. O autor lembra que as províncias publicaram um grande número de textos legais sobre instrução, sobretudo a partir do Ato Adicional de 1834, o qual responsabilizou os governos provinciais pela instrução pública. Em Minas Gerais, foram 600 textos entre 1835 e 1889 (p.137). 6 Evaldo Cabral de Melo (1984) mostra que o governo monárquico não logrou uma descentralização autêntica no país, gerando ressentimentos nas províncias do Norte (atual Norte e Nordeste), pelo sistema desigual de recolhimento de impostos e distribuição de favores. O “processo de espoliação” sofrido pelo Norte durante o Segundo Reinado, aliado a crises econômicas mundiais e locais, afetava diretamente a instrução pública, sobretudo nas províncias mais pobres. 7Sobre a historiografia relativa a instrução pública, ver MARTINEZ, Alessandra 1997, p.1-7. 8 Analete Regina Schelbauer (1998) em Idéias que não se realizam: o debate sobre a educação do povo no Brasil de 1870 a 1914, focaliza os debates nacionais sobre instrução e educação populares, notadamente, a questão da criação de um sistema nacional de educação, não efetivado no período. A autora identifica, para este período, um intenso debate em prol da intervenção do Estado na educação 16 institutos e asilos para a infância desvalida surgiram durante todo o período. Faria Filho levanta uma questão muito interessante com relação à criação de escolas primárias. Tendemos a encontrar neste ato toda a positividade, reforçada pelos ideais da civilização moderna. A instituição escolar teria vindo ocupar um vazio no processo de socialização.9 No entanto, a recepção à instituição escolar nem sempre foi positiva. Muitas escolas foram fechadas por falta de alunos e os pais (e também os filhos) acusados de ignorarem a importância da educação para a vida civilizada, dentro de uma concepção de cidadania que se considerava adequada às camadas populares. Mesmo províncias mais importantes e populosas viveram o drama de não atingir o número mínimo de alunos de forma a manter a escola em funcionamento. Além de todos os obstáculos referentes à criação de escolas no Brasil imperial, os governos tinham que vencer a resistência da população. A “remoção dos obstáculos” ao progresso da “educação do povo” só seria possível com a “mudança de hábitos e idéias” da população, explicava o Presidente do Amazonas ao Ministro do Império, em 1861. Preocupava-se o governante com a baixa procura pelo ensino oferecido pelo “poder público” nos povoados, depositando, contudo, claramente 1nos pais a responsabilidade pelos tímidos números da freqüência escolar na Província.10 Muito se discutiu a respeito da obrigatoriedade escolar, regulamentada pelas províncias em momentos diferentes, sempre em meio a grandes conflitos a respeito de sua aplicabilidade. A instrução pública constituiu-se em palco privilegiado do confrontoentre o governo da casa e o governo do Estado.11 As autoridades e interessados no tema, quando discursavam ou escreviam sobre a educação do povo, ressaltavam a falta: faltam escolas, faltam alunos, faltam materiais e mobília, faltam professores habilitados... Visão que contaminou os historiadores da educação da época e de períodos posteriores. Contudo, outras perspectivas de análise são possíveis, como a percebida por Faria Filho para o século XIX: popular, afirmando não ter sido realizada neste momento, seguindo uma tendência universal (p.131). A tese da não realização das propostas educacionais no Império vem sendo questionada pela historiografia dirigida ao estudo das instituições e das práticas educacionais. 9 FARIA FILHO, Luciano Mendes de, 1999, p.127. 10 Ofício n.7 de 11/2/1861. O presidente, Manoel Clementino Carneiro da Cunha apresenta relatório sobre o estado sanitário, ensino primário e secundário da Província do Amazonas (Arquivo Nacional, Correspondência entre a Presidência da Província do Amazonas e o Ministério do Império – 1852-1889) 11 MATTOS, Ilmar Rohloff de, 1987, p.259. 17 “Vê-se pois, que a escola não veio atuar num vácuo; pelo contrário, para se impor, para se afirmar, os educadores e demais interessados na instrução do povo, seja porque motivo for, tiveram que deslocar outras instituições e processos formadores de seus tradicionais lugares.”12 Mais recentemente, a história da educação tem se debruçado sobre as perspectivas do cotidiano escolar, da vivência e da formação de alunos e professores. Abandona-se uma história do que a educação deveria ter sido, em que a legislação é privilegiada, para uma história de como ela foi vivenciada pelos seus atores mais diretos (alunos, professores e famílias) e como se inseriu em um projeto político mais amplo, a construção do Estado. Neste aspecto, o trabalho de Ilmar de Mattos13 é um marco, ao contribuir para a compreensão da relação entre a instrução pública, a construção do Estado Imperial, a constituição de uma classe hegemônica e a formação do povo. Mattos analisou o papel da instrução pública no “laboratório fluminense”, no período de 1830 a 1850, campo de experimentações que esperava-se que funcionasse como exemplo e modelo para as outras províncias do país. A instrução pública ocupava um lugar privilegiado na meta perseguida pelos dirigentes “saquaremas” de superar um passado compreendido como desorganizado e bárbaro em virtude de um outro momento, o da ordem e da civilização. Do ensino da leitura, da escrita e do contar do período colonial, o instruir, adquiriu novos significados quando à instrução foi incorporado o sentido do educar. Formar o povo implicava em levá- lo a adquirir os princípios éticos e morais necessários à convivência social e a melhorar os seus “costumes”.14 Baseado na análise de Ilmar Mattos, Faria Filho concebe a escola como um instrumento de fabricação do cidadão, importante para a luta do governo do Estado contra o governo da casa, na perspectiva daqueles que defendiam a superioridade e a especificidade da educação escolar frente às outras instâncias de socialização, como a família, a Igreja e o grupo de convívio15. A instrução pública no país foi majoritariamente administrada por conservadores. As divergências entre conservadores 12 FARIA FILHO, Luciano Mendes de, 1999, p.133. 13 MATTOS, Ilmar Rohloff de, 1987. 14 Alessandra Frota Martinez (1997), ao analisar a instrução pública na Corte entre 1870 e 1889, verificou que novos sentidos foram acrescentados à palavra educação, paralelamente à difusão das regras de civilidade e do sentimento religioso. Educar para a vida em sociedade passaria a ser também função da escola, que deveria constituir o homem integralmente, ciente de seus direitos e deveres. 15 FARIA FILHO, Luciano Mendes de, 2000, p.146. 18 e liberais se manifestavam no campo da instrução pública na oposição entre os “ideais de maior centralização/controle dos poderes públicos e maior autonomia/liberdade de ensino dos pais e educadores”.16 Os estudos avançam rumo a desnaturalização do lugar da escola, construído pela historiografia, que via a institucionalização da escola como um “vir a ser contínuo” e a mostrar que no processo histórico de construção da instituição escolar, os seus defensores tiveram de “apropriar, remodelar, ou recusar tempos, espaços, conhecimentos, sensibilidades e valores próprios de tradicionais instituições de educação”.17 A historiografia recente recusa a idéia da transposição automática de modelos educacionais estrangeiros (europeus e norte-americanos)18. A diferenciação nos processos de escolarização entre as províncias é um indício de que ocorreram diferentes apropriações e adaptações dos sistemas escolares da Corte, de outras províncias e países. Essa diversidade encontrada na legislação e nas experiências escolares das províncias vem sendo abordada pelos estudos nos últimos anos. Não pretendemos aqui dar conta da historiografia da educação, mas apontar que o Segundo Reinado foi um período muito rico em termos da afirmação da educação e da instrução populares e que o campo de pesquisa é extenso e pouco explorado, principalmente com relação à região Norte, cuja carência de estudos recentes na área nos levou, em inúmeros momentos, a limitar nosso diálogo às fontes. A instrução primária na Amazônia imperial é campo por desbravar; uma ou outra instituição educativa (internatos) foi estudada por historiadores das universidades federais locais, como os trabalhos de Márcia Alves sobre a Casa de Educandos de Manaus, de Márcio Reis Páscoa, sobre o ens ino da música na mesma cidade e o de José Maia Bezerra Neto, sobre o Asilo de Santo Antônio, de Belém. São trabalhos utilizados nos capítulos referentes aos internatos de formação profissional. 19 Não podemos deixar de ressaltar que a Amazônia colonial vivenciou uma importante e atribulada história de educação 16 MARTINEZ, Alessandra Frota, 1997, p. 127. Divergências as quais, segundo a autora, correspondiam às diferenças entre “saquaremas” e “luzias” no tocante à distribuição do “aparelho de Estado” (maior centralização a partir da Corte e do Sudeste versus distribuição mais equilibrada entre os poderes locais). 17 FARIA FILHO, Luciano Mendes de, p. 136. 18 A respeito da transplantação de modelos estrangeiros, ver MATTOS, Ilmar Rohloff de, 1987, p. 259. 19 Na fase de revisão final da tese, recebemos três artigos sobre o processo educacional no Pará do século XIX. O autor, professor da UFPA José Maia Bezerra Neto, prevê a publicação dos textos para este ano (ver bibliografia). 19 dos índios, a qual dedicaremos algumas linhas, indicando o embate entre o Estado colonial e a Igreja quanto ao esforço de controle da educação dos índios e dos colonos. Garcilenil Silva introduz o leitor na história da educação da Amazônia colonial estruturando-a em três períodos, de acordo com a vigência da legislação dirigida aos índios: o Regimento das Missões (1616-1757), o Regimento do Diretório (1757-1798) e o Regimento Provisional (1798-1808). A autora focaliza os agentes (instituições e pessoas) que assumiram a educação na região: as ordens religiosas que primeiramente assumiram total responsabilidade pela catequese e educação dos índios, sobretudo a jesuítica; a direção laica da educação dos nativos introduzida pelo Diretório dos Índios e as primeiras tentativas de sistematização do ensino no Estado do Grão Pará.20 A historiografia, em geral, concordaque a expulsão das ordens que até então se ocuparam da educação dos índios, nas escolas das aldeias e das fazendas e nos colégios e seminários, levou à ruína o ensino na região. A reorganização do ensino na capitania do Grão Pará através da Reforma de Marquês de Pombal em 1759 não se efetivou na prática. As investigações de José Pedro Garcia Oliveira e Betânia Leite Ramalho também sugerem que a determinação da introdução das aulas régias ou disciplinas isoladas na capitania do Grão Pará não teria alterado em nada o mapa educacional da região. Os autores não encontraram evidências no Arquivo Público do Pará da realização deste modelo educacional no Grão Pará, entre 1759 e 1808. A precariedade e a fragmentação das aulas régias na região teriam sido causadas por três fatores principais: a falta de professores leigos e de espaços para funcionamento das aulas, além do que, o interesse maior de Portugal residia na defesa da economia local. A educação pouco significado teve frente à economia e aos privilégios que gozavam a elite colonial.21 Garcilenil Silva esclarece que no período de vigência do Diretório dos Índios (1757-1798), as vilas e lugares não possuíam meios para estabelecer as escolas, onde se ensinaria a língua portuguesa. Em alguns lugares, vigários se responsabilizaram pela educação dos filhos e filhas dos índios; em outros, as escolas tinham como mestres soldados de vida licenciosa e incapazes de instruir. Este cenário sofreu algumas mudanças com a instauração do Regimento Provisional para os Professores de 20 SILVA, Garcilenil do Lago, 1985. 21 OLIVEIRA, José Pedro Garcia , RAMALHO, Betânia Leite, 2002. 20 Filosofia, Retórica, Gramática e de Primeiras Letras no Estado do Grão Pará. Duas aulas de primeiras letras foram criadas em Belém e treze no interior, localizadas nas freguesias mais populosas do Estado. Professores nomeados deveriam ensinar a mocidade, de um e outro sexo, a ler, escrever, contar e os princípios da religião e os da lealdade, obediência e amor para com o Soberano e a Pátria. 22 Ângela Domingues apresenta uma versão da história educacional do Grão Pará com algumas divergências quanto à aplicação das medidas previstas pelo Diretório, pesquisa realizada nos arquivos portugueses e brasileiros, incluindo o Arquivo Público do Pará.23 A autora afirma que, na segunda metade do século XVIII, com o advento do Diretório dos Índios, a educação foi inserida no contexto de um processo de colonização da Amazônia e de civilização dos índios. O primeiro objetivo visava a transformar a diversidade física e humana da região numa unidade integrada em território luso- brasileiro, resistente às ofensivas européias. O segundo, a transformação dos índios em indivíduos que reconhecessem e se sujeitassem à soberania portuguesa. A análise da historiadora baseia-se, principalmente, nos propósitos educacionais das novas medidas de civilização dos índios, do que propriamente no seu cumprimento. A autora define a civilização dos índios, como o “acto de torná- los cristãos, tementes e obedientes ao Deus dos lusos, e de transformá-los em portugueses, submissos e leais ao rei fidelíssimo”.24 Uma das medidas previstas pelo Diretório e executada principalmente pela administração local foi a criação de escolas, onde era ministrado um “ensino em conformidade com o conceito europeu de educação”, inclusive às crianças indígenas residentes em aldeamentos.25 A escola, vista como um meio de transmissão da língua portuguesa, era utilizada como um instrumento de política - um elemento de unificação e de identificação. O Diretório proibia às crianças e a quem estivesse apto a falar o português, o uso da língua geral ou da língua da própria etnia. A autora afirma que escolas foram instaladas na capital, nas vilas e povoados, a despeito das dificuldades para o cumprimento do objetivo educacional, pois não havia mestres preparados, fazendo com que em muitas povoações o ensino ficasse a cargo de padres, que autorizavam aos jovens a falar a língua geral. Ademais, enfrentava- 22 SILVA, Garcilenil do Lago, 1986, p.87-88 e 111. 23 DOMINGUES, Ângela, 1995. 24 Op. cit., p. 68. 25 Idem. 21 se a falta de materiais e instalações. A resistência indígena à escola era grande, do ponto de vista cultural e econômico. Um sistema de educação, baseado no valor da tradição, no exemplo e na ação, se contrapunha a um sistema dissociado da vida cotidiana, que “pretendia derrotar e substituir as tradições e a memória coletiva”.26 As crianças tinham participação importante nas atividades da coletividade, como colheita, caça e pesca e como mão-de-obra para particulares, numa época em que faltavam adultos. Estas questões estarão assombrando os governos provinciais amazônicos no século seguinte. As escolas deveriam ser freqüentadas por todas as crianças indígenas, no entanto, Domingues afirma que a política educacional dirigiu-se aos “filhos de principais, de sargentos-mores, de capitães-mores e de outros indivíduos que tivessem lugar de destaque ou de prestígio na comunidade”. A hipótese da autora é que se pretendia “formar um grupo apto e fiel, capaz de administrar localmente as comunidades, como de exercer algumas funções no âmbito dos mecanismos de poder governamentais e da estrutura religiosa”.27 Hipótese não comprovada, pois a documentação analisada não forneceu indicações sobre o papel dos índios cultos ou educados na sociedade colonial. A estratégia educacional não se restringiu à implantação de escolas, pois percebia-se nelas alguns inconvenientes em termos da formação de futuras lideranças ou de exemplos para as comunidades indígenas, como permitir que a criança continuasse vivendo sob os hábitos indígenas, em contato com a língua de origem, mantendo-se a transmissão de conhecimentos. Outro inconveniente residia na utilização dos alunos por diretores, vigários e particulares, em serviços diversos, nas roças e nas casas. Crianças provenientes de famílias com algum prestígio ou destaque em seu meio, como os filhos de principais, eram enviadas aos seminários ou às casas de particulares, visando afastá- las do contato com a família e a comunidade. O estudo de Domingues nos deixa algumas questões não respondidas: se a política educacional, no caso dos índios, atingiu somente filhos de principais, afastados de suas famílias, quem freqüentava as escolas das localidades? Pode-se concluir que, em termos de civilização dos índios, a escola teve um papel insignificante? Qual foi o papel desempenhado na sociedade local por 26 Op. cit., p. 76. 27 Op. cit., p. 70. 22 esta “aristocracia indígena” que freqüentou os seminários e os colégios?28 Como a experiência educacional proporcionada pelo Diretório dos Índios foi absorvida pelas reformas posteriores? Não apenas a era pombalina mantém-se obscura quanto aos resultados das iniciativas educacionais. Não podemos deixar de citar que a educação na primeira metade do século XIX é tema que aguarda o interesse dos pesquisadores. A historiografia clássica sobre história do Pará elege algumas iniciativas de maior porte, como a Casa das Educandas, instalada em 1804 pelo bispo do Pará, D. Manoel de Almeida Carvalho, ao trazer quinze meninas indígenas de sua viagem ao interior, com o intuito de educá-las. Com o tempo, a Casa dedicou-se ao recolhimento e educação de meninas pobres, afastando-se da finalidade original do “resgate” de indígenas.29 Mais tarde, a instituição passou a denominar-se Colégio de Nossa Senhora do Amparo, quando o Governo da Província assumiu