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Curitiba 2013 Filosofia da Educa o Carlos Euclides Marques e Dante Carvalho Targa FED.indb 1 25/02/2016 14:39:56 Ficha Catalográfica elaborada pela Fael. Bibliotecária – Cassiana Souza CRB9/1501 Marques, Carlos Euclides M357f Filosofia da educação / Carlos Euclides Marques, Dante Carvalho Targa. – Curitiba: Fael, 2013. x p.: il. ISBN 978-85-8287-056-3 1. Filosofia da educação I. Targa, Dante Carvalho II. Título CDD 370.1 Direitos desta edição reservados à Fael. É proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem autorização expressa da Fael. Editora faEl Gerente Editorial Denise Gassenferth Projeto Gráfico Sandro Niemicz Design Instrucional Francine Canto revisão Claudia Helena Carvalho Wigert diagramação Thiago Felipe Victorino Rafael de Queiroz Oliveira Katia Cristina Santos Mendes Capa Sandro Niemicz FED.indb 2 25/02/2016 14:39:56 Sumário Apresentação | 5 1 O homem e sua relação com o mundo: Filosofia e Educação | 7 2 O pensamento moderno e a Filosofia da Educação | 59 3 Novas imagens do homem | 93 4 A formação do pensamento pedagógico brasileiro | 137 Referências | 165 FED.indb 3 25/02/2016 14:39:57 – 4 – Filosofia da Educação FED.indb 4 25/02/2016 14:39:57 Apresentação Segundo Edgar Morin, em sua obra Os sete saberes neces- sários à educação do futuro, uma das crescentes imposições de nossa era é a de lidar com os desafios da complexidade. A complexi- dade não representa simplesmente uma dificuldade a ser superada. Mas, como indica o dicionário Houaiss, sua etimologia é latina: “complexus, a, um part. pas. de complecti ‘cercar, abarcar, compreen- der’”, dando, assim, a ideia de algo “que foi tecido junto”. É disso que falamos quando indicamos ser a Filosofia da Educação uma dis- ciplina complexa, pois se trata de vislumbrarmos uma série de pers- pectivas que foram construídas ao longo de muito tempo por um vasto conjunto de pensadores. Não deve ser entendida, contudo, como uma disciplina impossível de ser trilhada. Mais trabalhosa, talvez, mas não impossível! FED.indb 5 25/02/2016 14:39:57 – 6 – Filosofia da Educação Educar é uma tarefa que os seres humanos têm desempenhado intuiti- vamente desde os primórdios da civilização. A transmissão de uma cultura, de valores e da própria linguagem ocorre naturalmente na relação entre as gerações mais antigas e as novas gerações. Todavia, ao que parece, ao nascer da mentalidade ocidental, com a Filosofia, por volta do século VI a.C., homens e mulheres voltaram a atenção para o ato de educar, seus métodos e conteúdos, dando origem à pedagogia. Na Modernidade, mais claramente, passamos a nos dar conta de que o ato de educar envolve não só a transmissão de uma cultura, mas revela também toda a visão de mundo que sustenta tal cultura, em suas dimensões epistemológica (do conhecimento), humana e política; eis o campo da Filosofia da Educação. Com este livro didático você é convidado a adentrar esse vasto campo, onde a história do pensamento, as teorias do conhecimento e a reflexão filosófica e sociopolítica confluem, formando um interessante leque de possibilidades. Vamos lá? Carlos Euclides Marques1 e Dante Carvalho Targa2 1 Graduado em Filosofia (UFSC, 1991) e em Artes Plásticas (Udesc, 2011), mestre em Litera- tura (UFSC, 1997). Professor da Unisul. Experiência na área de Filosofia, focado em Filosofia Antiga, Filosofia da Educação, Antropologia Filosófica e Discurso Filosófico. Autor de mate- riais didáticos ‒ livros, web aulas e objetos de aprendizagem ‒ para o curso de Filosofia (EaD) da Unisul Virtual. 2 Professor e pesquisador graduado em Filosofia (UFSC, 2005) e mestre em Filosofia (UFSC, 2009). Professor da Unisul e da rede pública do Estado de Santa Catarina ‒ Ensino Médio. Estudos paralelos em Pensamento Oriental (Filosofia Védica/Hinduísmo) e Filosofia da Edu- cação. Autor de materiais didáticos ‒ livros e web aulas ‒ para o curso de Filosofia (EaD) da Unisul Virtual. FED.indb 6 25/02/2016 14:39:57 1 O homem e sua relação com o mundo: Filosofia e Educação Estamos iniciando uma viagem que passará por diversas abordagens da vertente essencialista ou metafísica da pedagogia. Veremos mais detalhadamente o significado desta terminologia: “essencialista” ou “metafísica”. Por ora, basta indicarmos que são abordagens focadas em concepções filosóficas que buscam a essência do ser humano e das coisas no mundo. Para chegarmos a tais abordagens, primeiramente, explicitaremos o que é Filo- sofia e o que é Educação, termos que compõem o nome desta disciplina: Filosofia da Educação. Veremos, também, como Educação e Cultura se relacionam a certas formas de Educação não-formais. Avançando no assunto, entraremos no mundo da Antiguidade Grega, inicialmente, tratando das tradições míticas de Homero e Hesíodo. Esta primeira incursão no mundo grego será o mote para abordarmos a passagem do Mito à Filosofia, apresentando alguns pensadores originários: os pré-socráticos. FED.indb 7 25/02/2016 14:39:58 Filosofia da Educação – 8 – Daí em diante, veremos com mais detalhes a abordagem dos sofistas, a de Sócrates e de Platão, que se confundem, e a de Aristóteles. Depois de um rápido apontar para o período Helenístico, vislumbraremos a menta- lidade medieval e caracterizaremos a Patrística e a Escolástica, centrando, um pouco mais, em um expoente de cada corrente, respectivmente, Santo Agostinho e São Tomás de Aquino. Em todo este trajeto temos por objetivo caracterizar, principalmente, os diferentes enfoques da abordagem essencialista ou metafísica, que, ainda hoje, está por trás de certos discursos e práticas pedagógicas. Então, preparados(as)? 1.1 Para início de conversa Ao começar uma disciplina de Filosofia da Educação, uma primeira per- gunta que pode vir à mente é: “O que é Filosofia da Educação?”. Eis uma questão de difícil resposta. Mas, para não deixarmos nossa caminhada sem pontos de partida, vamos apontar algumas possibilidades de resposta. Pri- meiro, reforçando que os caminhos adotados são alguns dos muitos possíveis para dar conta de uma resposta a esta pergunta. Numa olhada rápida, vemos dois termos centrais: Filosofia e Educação. Uma estratégia é, primeiro, tomarmos cada um separadamente. Então, defi- nimos Filosofia e depois Educação. Isso, entretanto, não torna a tarefa mais simples. Mas vamos seguir neste caminho. 1.2 Definindo a Filosofia Talvez em razão do advento da obrigatoriedade da Filosofia no currí- culo do Ensino Médio, a partir da Lei no 11.684, de 2 de junho de 2008, alguns já tenham algum contato com a Filosofia como disciplina. Nessa perspectiva, podemos partir de abordagens comuns em manuais de Filoso- fia destinados ao Ensino Médio. Estes, geralmente, indicam que há muitas definições possíveis para o termo Filosofia. E começam diferenciando o uso coloquial do termo de seu uso técnico, mais acadêmico. Assim, certamente FED.indb 8 25/02/2016 14:39:58 – 9 – O homem e sua relação com o mundo: Filosofia e Educação não é o sentido de filosofia como “estratégia de atuação” ou “sabedoria de vida” ou “visão de mundo”, preenchimentos que encontramos no senso comum1, que queremos aqui. Mais uma entre as estratégias adotadas por esses manuais é recuperar a etimologia do termo Filosofia. Nesta, encontramos dois radicais gregos: philos e sophia. O primeiro podemos traduzir por amigo, apaixonado; o segundo, por sabedoria. Assim, a Filosofia seria a amizade pela sabedoria, a paixão pela sabedoria. Isso remete à busca pelo saber. Entretanto, assim como as definições do senso comum, esta não dá conta, propriamente, de uma definiçãomais técnica do termo Filosofia, pois um cientista ou mesmo um religioso podem ser apaixonados por determinado saber e buscar, cons- tantemente, meios para dar conta desse saber, seja este a explicação de um fenômeno natural, seja em relação ao sagrado. Também encontramos, nos livros didáticos de Filosofia, esta estraté- gia que a toma como uma atitude, uma reflexão sobre o mundo, sobre a realidade. É partindo desta perspectiva que Dermeval Saviani, num texto originariamente escrito para estudantes da disciplina de Filosofia da Edu- cação I do curso de Pedagogia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) em 1973 e, mais tarde, publicado como primeiro capí- tulo de seu livro Educação: do senso comum à consciência filosófica, apresenta uma definição de Filosofia. Atentemos para ela: Com efeito, se a filosofia é realmente uma reflexão sobre os proble- mas que a realidade apresenta, entretanto ela não é qualquer tipo de reflexão. Para que uma reflexão possa ser adjetivada de filosófica, é preciso que se satisfaça uma série de exigências que vou resumir em apenas três requisitos: a radicalidade, o rigor e a globalidade. Quero dizer, em suma, que a reflexão filosófica, para ser tal, deve ser radi- cal, rigorosa e de conjunto. Radical: Em primeiro lugar, exige-se que o problema seja colocado em termos radicais, entendida a palavra radical no seu sentido mais 1 Conhecimento adquirido pela tradição e acrescido pela experiência do dia a dia; conjunto de ideias, preceitos, técnicas que permitem a interpretação da realidade; conhecimento espontâ- neo, por vezes, pouco sistematizado e contraditório. FED.indb 9 25/02/2016 14:39:58 Filosofia da Educação – 10 – próprio e imediato. Quer dizer, é preciso que se vá até às raízes da questão, até seus fundamentos. Em outras palavras, exige-se que se opere uma reflexão em profundidade. Rigorosa: Em segundo lugar e como que para garantir a primeira exigência, deve-se proceder com rigor, ou seja, sistematicamente, segundo métodos determinados, colocando-se em questão as conclusões da sabedoria popular e as generalizações apressadas que a ciência pode ensejar. De conjunto: Em terceiro lugar, o problema não pode ser examinado de modo parcial, mas numa perspectiva de conjunto, relacionando-se o aspecto em questão com os demais aspectos do contexto em que está inserido. É neste ponto que a filosofia se distingue da ciência de um modo mais marcante. Com efeito, ao contrário da ciência, a filosofia não tem objeto determinado; ela dirige-se a qualquer aspecto da realidade, desde que seja problemático; seu campo de ação é o problema, esteja onde estiver. Melhor dizendo, seu campo de ação é o problema enquanto não se sabe ainda onde ele está; por isso se diz que a filosofia é busca. [...] Além disso, enquanto a ciência isola o seu aspecto do contexto e o analisa separadamente, a filosofia, embora dirigindo-se às vezes apenas a uma parcela da realidade, insere-a no contexto e a examina em função do conjunto. (SAVIANI, 2007, p. 20- 21). Reforça ainda o autor que esses termos – radical, rigorosa, de conjunto – não podem ser vistos em separado para definir Filosofia. Dessa forma, nem todo tipo de reflexão é filosófica, assim como nem toda avaliação rigorosa ou de conjunto o é. Se ficarmos com essa definição de Saviani, veremos que Filosofia da Educação é “uma reflexão radical, rigorosa e de conjunto sobre a Educação”. Resta, então, pensarmos a noção de Educação. Todos nós temos um sentido para este termo: Educação. Alguns o tomam como sinônimo de instrução; outros, de postura moral; outros, ainda, como a transmissão do legado de uma tradição. FED.indb 10 25/02/2016 14:39:58 – 11 – O homem e sua relação com o mundo: Filosofia e Educação Fonte: REMBRANDT, Harmensz van Rijn. Filósofo meditando, 1632. Louvre, Paris, França. Num sentido mais amplo, Educação se apro- xima de certo sentido do termo Cultura, pois, assim como este, é um diferenciador do ser humano em relação aos outros seres não humanos. Admite-se, geralmente, que o ser humano se caracteriza não só por responder aos estímulos do meio a sua volta, mas também por alterar este meio e transmitir suas experiências às gerações seguintes. O conjunto de técnicas, práticas, teorias, instituições, preceitos morais e intelectuais é visto pela Antropologia como Cultura. Entendendo Cultura neste sentido é que podemos ver o ser humano como um produtor de Cultura e, consequentemente, de Educação. FED.indb 11 25/02/2016 14:39:58 Filosofia da Educação – 12 – Nossa caminhada, doravante, deve ter em vista esta breve apresentação das noções de Filosofia e Educação. Ao longo dos próximos capítulos, vere- mos, de forma mais detalhada, diferentes abordagens, predominantemente as filosóficas, sobre a Educação, passando por aspectos práticos e teóricos. Vamos em frente? 1.3 A cultura antiga e a Educação Se olharmos para história da humanidade, veremos uma diversidade de culturas e modos de vida: divisão de trabalho; tratos sociais; hábitos alimen- tares e de vestuário; valores; manifestações artísticas. Cada cultura tem formas específicas de transmitir seu legado. Essas “formas de transmissão“ do legado cultural podemos chamar “educação”. É bom lembrar, entretanto, que este vocabulário não se restringe a algo formalmente institucionalizado. De fato, por milhares de anos, o ser humano transmitiu seu legado cul- tural de modo mais espontâneo. Não existiam profissionais especializados, escolas, teorias educacionais ou leis – no sentido jurídico – específicas para dar conta de processos que consideramos, hoje, partes de nossas vidas. O “educar” poderia ser: um adestramento para uma atividade que era passada de pai para filho; um conjunto de preceitos religiosos-morais aglutinadores de terminados grupos. Esse aspecto do educar, alguns autores denominam “educação difusa”; outros “educação não formal” ou “informal”, em oposição à educação for- mal, mais característica nas sociedades letradas que estabeleceram instituições, como a escola, para transmitir o legado cultural sistematizado. Pensar a educação sistematicamente, teorizando seus fundamentos e suas práticas, não é algo que encontramos desde os primórdios da humanidade. Na realidade, se tomarmos a história da humanidade, tal perspectiva é tardia, ou seja, muito mais próxima, cronologicamente, de nós do que pensamos. Diante da diversidade cultural, mencionada anteriormente, precisamos ter muito cuidado com a temática que temos pela frente. O ato de educar é produto de cada concepção de mundo que predomina em determinado tempo, lugar e cultura. Esse ato assume distintas formas, produzindo diferentes pedagogias. Cabe esclarecer que a Pedagogia, enten- dida como área de conhecimento, já é uma forma sistemática e teorizada FED.indb 12 25/02/2016 14:39:58 – 13 – O homem e sua relação com o mundo: Filosofia e Educação do ato educacional, uma Ciência da Educação. As diferentes pedagogias só podem ser bem compreendidas se analisadas à luz de determinado momento histórico, ideias e valores que a fundamentam. Se desprezarmos esses aspectos em nossa reflexão, estaremos fadados a julgar uma cultura a partir de outra e a cometer algum tipo de preconceito. O que implicaria não entendermos adequadamente nosso objeto de estudo. Aliando essas ideias às da Introdução, vislumbra- mos uma tarefa para a Filosofia da Educação, a saber: compreender ideias, fundamentos e princípios que sustentam as variadas concepções pedagógicas. Encontramos a “educação difusa” ou “não formal” nas sociedades tri- bais, nas práticas de trabalho menos especializadas, nas brincadeiras infantis, nas relações familiares e entre amigos, na transmissão das regras de compor- tamentosmorais e em outros tratos sociais2. É bom frisar que, mesmo no espaço acadêmico, encontramos essa forma de “educação”. Em geral, esse modo do ato de educar, principalmente nas sociedades tribais e nas civilizações da Antiguidade, tem maior teor de transmissão do legado cultural, de adestramento, e gera poucas modificações ao longo do tempo. Tal tipo de “educação” é mais estável, mais estático. Contudo, isso não significa que, também aqui, ao longo da história, não encontremos mudan- ças, apenas que tais mudanças são mais demoradas e sutis. Esse aspecto de maior estabilidade, como já foi apontado, encontramos em certos procedimentos educacionais de algumas das grandes civilizações antigas. Nas sociedades do Antigo Oriente, por exemplo, temos o predomí- nio de um tradicionalismo pedagógico. Mas o que é isto? O tradicionalismo pedagógico consiste na transmissão de uma doutrina sagrada; uma sabedo- ria conquistada pela prática, objetivando conduzir o indivíduo à virtude e à felicidade. Aqui, a educação se caracteriza pela busca da perfeição espiritual, 2 Refere-se a normas de conduta, comportamentos normativos não morais ou legais (Direito) relacionados à forma de se portar à mesa, de se dirigir a outrem, de se vestir; à pontualidade etc. FED.indb 13 25/02/2016 14:39:59 Filosofia da Educação – 14 – que, por sua vez, é identificada como único caminho para a virtude e a vida feliz. Temos, nessas culturas, o mestre ou preceptor como figura exemplar, ou seja, que os discípulos e a própria sociedade devem tomar com modelo. Essa prática se liga à visão mítica do mundo, que perpassa, ainda hoje, a Religião. Seguindo as ideias anteriores, podemos traçar pontes entre Mito e Edu- cação. Lembrando que a perspectiva mítica é anterior à perspectiva filosófica e mais ainda à perspectiva científica, podemos compreender a perspectiva mítica não como algo falso ou uma construção mirabolante, mas como uma forma de conhecimento, uma visão de mundo, um conjunto de práticas e valores que agregam certos grupos humanos. É característica da tradição mítica a transmissão do legado cultural por artifícios mnemônicos, ou seja, por meio de técnicas de memorização, que privilegiam aspectos sonoros, por vezes, aliados a aspectos gestuais e imagéticos3. Dessa forma, há um privi- légio da memória sonora e gestual-visual aliada a esta. Até porque a maior parte dos membros dessas sociedades não dominam sistemas de escrita. Não é à toa que, predominantemente, se manifestam por meio de poemas recita- dos musicalmente, não raro acompanhados por certos tipos de instrumentos musicais. Exemplos disso são os mantras, as leituras repetidas de textos sagra- dos, os cânticos e a liturgia nas missas, as epopeias, as narrativas dos bardos4 e trovadores. De forma similar, poderíamos incluir as cantigas de trabalho, as canções que transmitem valores sobre as relações amorosas etc. Para entendermos um pouco mais a mentalidade mítica, devemos perguntar: Qual o papel (função) do mito? Como o mito funciona (suas características)? Primeiramente, como toda forma de conhecimento (modos de ver o mundo), o homem, ao produzir mitos, ou seja, a consciência mítica, procura: 2 dar sentido à vida; ordenar as relações entre si e o Universo, geral- mente sacralizado (divinizado), e entre os fenômenos deste; 2 justificar e consolidar práticas sociais (relações de trabalho, casa- mento, condutas e posições sociais etc.); 2 “explicar” as origens do Universo, dos seres vivos e de práticas sociais estabelecidas. 3 Relativo à imagem; que se revela pela imagem. 4 Nas sociedades celta e gaulesa eram os recitadores dos poemas épicos. FED.indb 14 25/02/2016 14:39:59 – 15 – O homem e sua relação com o mundo: Filosofia e Educação Desse modo, o ser humano se sente mais seguro no mundo. O que difere o pensamento mítico das outras formas de conhecimento é como este se organiza, suas bases, seus instrumentos. Para reforçar o que já foi dito e complementar, tomemos o que diz Chaui (1996, p. 161-163), baseada no antropólogo Claude Lévi-Strauss: O mito possui três características gerais: 1. Função explicativa: o presente é explicado por al guma ação passada cujos efeitos permaneceram no tempo. [...]; 2. Função organizativa: o mito organiza as relações sociais (de paren- tesco, de alianças, de trocas, de sexo, de idade, de poder etc.) de modo a legitimar e garantir a permanên cia de um sistema complexo de proibições e permissões. [...]; 3. Função compensatória: o mito narra uma situação passada, que é a negação do presente e que serve tanto para compensar os humanos de alguma perda como para garantir-lhes que um erro passado foi corrigido no presente, de modo a oferecer uma visão estabilizada e re gularizada da Natureza e da vida comunitária. Podemos perceber que a narrativa mítica não é uma falsificação do real, uma mentira ou mera alegoria ‒ no sentido de figura de retórica ‒, mas uma mentalidade, uma visão de mundo, uma consciência que encontramos, ainda hoje, arraigada em nossas vidas. Dica de Leitura Para aprofundar um pouco mais essa visão sobre o Mito, uma leitura recomendável é Mito e realidade, de Mircea Eliade. Quando pensamos a passagem do Mito à Filosofa, por volta do século VI a.C., na Grécia Antiga, começamos refletindo sobre esta tradição, a mítica, já apontado para aspectos característicos do filosofar. Eis por que partimos dos poemas homéricos. Os poemas atribuídos a Homero (século IX a.C. aproximadamente) constituíram a fonte primária da educação grega desde os primórdios da formação da mentalidade grega. O papel dessas narrativas era transmitir a FED.indb 15 25/02/2016 14:39:59 Filosofia da Educação – 16 – história, a cultura e a relação dos seres humanos com o sagrado por meio da perspectiva mítica. A Ilíada cantava os feitos heroicos dos gregos contra os povos do Oriente e a Odisseia evocava a força das tradições familiares e dos costumes domésticos. Os mitos, sejam das sociedades tribais, sejam dos povos da Antiguidade, têm a função de revelar a faceta intuitiva da compreensão da realidade e de transmitir valores e ensinamentos por meio de imagens, personagens e de narrativas carregadas de grandes façanhas heroicas. Nisso os chamados poemas homéricos foram exemplares dentro da socie- dade grega, desde a suas recônditas origens até os tempos de decadência da men- talidade grega antiga, no período Helenístico. Mesmo Platão, filósofo do período Clássico, que por diversas vezes apresenta posições contrárias à paideia5 homérica, em alguns momentos reconhece Homero como “mestre da Hélade6”. Saiba mais Homero, para os estudiosos, é uma figura de procedência discu- tida. A ele são atribuídas a Ilíada e a Odisseia, que, aceitando a vertente interpretativa mais difundida hoje quanto à questão da gênesis das obras homéricas, não foram escritas por um único homem, mas são – a Ilíada e a Odisseia – construções coletivas de longos anos de compilações e rearranjos de narrativas orais. Logo, obra construída por séculos para chegar à forma “defini- tiva”, que conhecemos até hoje. Outro expoente importante da cultura mítica grega é Hesíodo, que escreveu Os trabalhos e os dias e Teogonia. Parte do que temos da gênesis 5 Palavra grega que pode ser traduzida por Educação. Mas, conforme Jaeger (1989, p. 1), tem uma conotação muito mais complexa para o mundo grego, na Antiguidade: “Paidéia, não é apenas um nome simbólico; é a única designação exacta do tema histórico nela estudado. Este tema é, de facto, difícil de definir: como outros conceitos de grande amplidão (por exemplo os de filosofia ou cultura) [...]. O seu conteúdo e significado só se nos revelam plenamente quando lemos a sua história e lhes seguimos o esforço para conseguirem plasmar-se na realidade.” 6 Refere-se à Grécia,donde seu derivado heleno como sinônimo de grego. FED.indb 16 25/02/2016 14:39:59 – 17 – O homem e sua relação com o mundo: Filosofia e Educação dos deuses gregos vem dos escritos desse poeta, que viveu por volta do século VIII a.C., na região da Beócia. Enquanto Homero retrata o ambiente aris- tocrático, Hesíodo retrata o ambiente do campo, a vida dura do agricultor. Nas obras do primeiro, os valores transmitidos são os dos guerreiros e de seu ambiente: o vigor físico, o preparo para a batalha, a coragem e a inteligência para estratégias bélicas. Já nas obras de Hesíodo, são os valores do campo: a perseverança no trabalhos do dia a dia, mesmo diante das intempéries, a esperança. Isso quanto ao universo masculino. Também quanto ao universo feminino encontramos diferenças entre ambos. Nas narrativas do primeiro, vemos a mulher bela e prendada, com seus dotes domésticos, fiel ao marido e que administra a casa e cuida dos filhos. Nos escritos de Hesíodo, ela apa- rece como um castigo dos deuses, mais uma boca a ser alimentada, o ser que levará os homens à perdição. De um lado temos a figura de Penélope, esposa de Odisseu ou Ulisses; de outro, Pandora, aquela mandada pelos deuses como castigo, que, ao abrir uma jarra ‒ variantes da narrativa dizem caixa ‒, deixa escapar todos os males da humanidade. Saiba mais Como nosso foco não é principalmente a “educação difusa” ou “informal” e a mentalidade mítica, o que por ora foi apresentado é suficiente para se ter uma ideia desses aspectos. Para um maior aprofundamento recomendamos a leitura dos tópicos “Cultura e Educação da nobreza homérica”, “Homero como educador” e “Hesíodo e a vida do campo”, da obra de Werner Jaeger, Pai- deia: a formação do homem grego. Imagens contemporâneas sobre as narrativas homéricas encontramos no cinema, por exem- plo, nos filmes: Odisseia (1997); Helena de Tróia: paixão e guerra (2003); Tróia (2004). Já que estamos nos pautando na Filosofia da Educação, é o nascimento da filosofia grega que nos interessa mais, pois é a Filosofia que trará à Educação, até a nossa época, características fundamentais para o desenvolvimento de concepções pedagógicas ao longo do desenvolvimento da civilização ocidental. FED.indb 17 25/02/2016 14:39:59 Filosofia da Educação – 18 – Tomando por foco, no próximo tópico, a filosofia grega na Antiguidade e seus principais expoentes, vamos identificar os traços fundamentais das cha- madas pedagogias essencialistas ou metafísicas. Mas, antes de avançarmos, é preciso explicitar o que caracteriza as peda- gogias essencialistas ou metafísicas. Para tanto, tomemos algumas passagens do livro Filosofia da Educação, de Maria Lúcia de Arruda Aranha: Na tradição filosófica em que predomina a concepção essencialista ou metafísica, herdada dos gregos ‒ e que ainda hoje persiste em algumas teorias pedagógicas ‒ busca-se a unidade na multiplicidade dos seres, ou seja, a essência que caracteriza cada coisa. Também o conceito de humanidade é compreendido a partir de uma natureza imutável: ape- sar de constatadas diferenças entre os seres humanos, existiria uma essência humana, um modelo a ser atingido. [...] Essas pedagogias tinham como característica o enfoque metafísico próprio da filosofia antiga, que acentuava a atitude teórica de aná- lise dos conceitos universais. Segundo essa perspectiva, educar seria desenvolver as potencialidades da natureza humana, fazendo cada um tender para a perfeição, para aquilo que pode vir a ser. (ARANHA, 2006, p. 150-151). 1.4 Do nascimento da Filosofia à tradição socrática Foi com os pensadores originais ou pré-socráticos, que nasceu a Filoso- fia como um modo de buscar a sabedoria através de uma reflexão orientada pela razão. Esses pensadores buscavam um princípio fundamental, conforme interpretação aristotélica, para a existência de todos as coisas. Aqui, antes de avançarmos, cabe esclarecer como entendemos a noção de princípio fundamental. O termo grego que pode ser traduzido por prin- cípio é arkhé. Conforme explica Marilena Chaui, em Introdução à história da filosofia: Esta palavra possui dois grandes significados principais: 1) o que está à frente e por isso é o começo ou o princípio de tudo; 2) o que está à frente e por isso o comando de todo o restante. No primeiro sigi- nificado, arkhé é fundamento, origem, princípio, o que está no prin- FED.indb 18 25/02/2016 14:39:59 – 19 – O homem e sua relação com o mundo: Filosofia e Educação cípio ou na origem, o que está no começo de modo absoluto, ponto de partida de um caminho; fundamento das ações e ponto final a que elas chegam ou retornam. No segundo caso, arkhé é comando, poder, autoridade, magistratura; coletivamente significa: o governo, por extensão, reino, império. [...] Os dois sentidos estão fundidos na cosmologia e, posteriormente, na metafísica de Aristóteles. É o princí- pio absoluto, eterno, idêntico e incorruptível de todas as coisas e que governa/comanda a realidade. (2002, p. 495-496). Percebemos, no significado de arkhé, uma conotação essencialista ou metafísica. Entretanto, cabe uma ressalva: esses termos ‒ essencialista e meta- física ‒ não são empregados no período da Filosofia nascente e mesmo no período Clássico para identificar tais concepções. Voltemos aos pensadores originários. Ao buscarem um princípio não divinizado e usarem a reflexão orientada pela razão, rompem com as expli- cações míticas sobre o universo. Mas essa ruptura não é imediata, pois, se analisarmos melhor, veremos certo parentesco entre algumas respostas dos pensadores da Filosofia nascente e as narrativas míticas. Talvez, um dos aspec- tos mais gritantes seja o fato de, em sua maioria, aquilo que nos restou dos escritos desses pensadores ‒ os fragmentos e as doxografias ‒ estão em poesia. Ainda assim, cabe indicar que a questão das semelhanças e diferenças entre as narrativas da mitologia grega e as hipóteses defendidas pelos pensadores da Filosofia nascente não é questão fechada e encontramos posições divergentes sobre o tema. Porém, tal digressão não é nosso foco. É pensando a passagem do Mito à Filosofia como algo lento e gradual que vislumbramos a substituição do mýthos ‒ termo grego que traduzimos por: ação de recitar; palavra; discurso; mensagem; mito ‒ pela afirmação do lógos ‒ termo grego que podemos traduzir por: palavra; discurso, razão ‒ e, com isso, o nascer da mentalidade Ocidental. Notadamente, esses dois ter- mos gregos carregam a possibilidade de serem traduzidos por palavra, dis- curso. Entretanto, são discursos com modos diferentes de operar. Enquanto o primeiro tem um caráter mais intuitivo, mas “fechado”, o segundo é mais racional, aberto às críticas. Um exemplo claro dessa “abertura às críticas” é a sequência de hipóte- ses apresentadas pelos três primeiros filósofos, todos da cidade de Mileto. Para Tales, “Tudo é água”. Já Anaximandro, o filósofo na sequência de Tales, estabe- FED.indb 19 25/02/2016 14:39:59 Filosofia da Educação – 20 – lece uma arkhé mais abstrata se comparada à água: o ápeiron ‒ termo grego que traduzimos por: ilimitado, indeterminado. Parecendo fazer uma mediana entre seus antecessores, Anaxímenes diz ser o ar o princípio de tudo. Notemos que há uma passagem de um princípio mais concreto ‒ a água ‒ para um mais abstrato ‒ o ápeiron ‒, caracterizando um primeiro movimento da “abertura às críticas”. Por fim, numa segunda passagem, temos o ar como elemento primordial, que não é tão concreto como a água nem tão abstrato como o ápeiron. Assim, comparando a mentalidade mítica e a filosófica nascente, o que temos são duas formas de conhecimento, cada qual pautada em fundamentos diferentes mesmo que encontremos algumas similaridades entre elas. É esse aspecto próprio da filosofia nascente, a reflexão racional,que conduz, já na tradição filosófica grega, ao aparecimento da pedagogia num sentido mais técnico, como Ciência da Educação. Há em alguns fragmentos dos pensadores originários elementos que são indicativos de uma tradição que começa a tentar se colocar no lugar da paideia homérica e hesiódica. Típico disso são as críticas de Heráclito de Éfeso (cerca de 540-470 a.C.) às tradições que o precederam. Vejamos um fragmento: Estão iludidos os homens quanto ao conhecimento das coisas visí- veis, mais ou menos como Homero, que foi o homem mais sábio que todos os helenos. Pois enganaram-no meninos que matando piolhos lhe disseram: o que vimos e pegamos é o que largamos, e o que não vimos nem pegamos é o que trazemos conosco. (HIPÓLITO, Refu- tações, fragmento 56, IX, 9). Alguns desses filósofos pré-socráticos foram líderes de movimentos políticos que propagavam ideais transformadores para as sociedades da época. Exemplos destes são Pitágoras e os pitagóricos que viam a harmonia cósmica como modelo para encontrarmos a harmonia nas relações humanas. A origem de tudo estava nos números, diziam eles. Entendendo por números, principalmente, as relações de proporções. Assim, para os pitagóricos, descobrir a harmonia constitutiva do cosmo possibilitaria traçar, na concordância com essa harmonia cósmica, regras para a vida individual e política. Há aí um entendimento de que o macro (cosmo) se reflete no micro (vida humana). Embora predomine, nos fragmentos dos pensadores originários, a temática da cosmologia e da busca de um princípio natural, não divino, encontramos em alguns deles conselhos para uma vida regrada e comedida; FED.indb 20 25/02/2016 14:39:59 – 21 – O homem e sua relação com o mundo: Filosofia e Educação regras para a convivência social e política harmoniosas e mesmo orientações alimentares. Entretanto, essas temáticas mais antropológicas são mais características do período seguinte, denominado, na História da Filosofia, Socrático ou Antropológico, que corresponde, geralmente, ao período Clássico da historiografia tradicional. É bom entendermos melhor aquilo que tomamos por princípios naturais como uma remissão a outra noção muito importante para compreendermos o pensamento da Filosofia nascente que é a de phýsis ‒ natureza. Para esclarecer melhor essa noção, tomemos uma passagem de Chaui (2002, p. 509): Possui três sentidos principais: 1) processo de nascimento, surgi- mento, crescimento de um ser [...]; 2) disposição espontânea e natu- reza própria de um ser; características naturais e essenciais de um ser [...]; 3) força originária criadora de todos os seres, responsável pelo surgimento, transformação e perecimento deles. A phýsis é o fundo inesgotável de onde vem o kósmos; e é o fundo perene para onde regressam todas as coisas, a realidade primeira e última de todas as coisas. Opõe-se a nómos [regra, lei, norma]. Com a retomada do comércio, a invenção da escrita alfabética, o advento de leis escritas, culminando com o aparecimento e desenvolvimento da cidade-estado (pólis) como estrutura predominante na organização sociopolítica do mundo grego ‒ fatores que ocorreram ao longo do período Arcaico (aproximadamente do século VIII ao VI a.C.) ‒, novas preocupações apareceram. Isso levou alguns estudiosos contemporâneos a afirmarem que: “A filosofia é filha da pólis”. Esse mote se torna muito mais significativo no período Clássico (entre os séculos V e IV a. C.), no qual Atenas floresce como uma pujante pólis. 1.4.1 Sofistas: os primeiros professores Depois da vitória dos gregos sobre os persas, fechando as Guerras Médi- cas (entre 490 e 479 a.C.), a acrópole de Atenas é reconstruída no comando de Péricles ‒ grande general e, consequentemente, estrategista7. Reformas políticas, aos poucos, levam ao aparecimento da democracia. Esses fatos, além de propiciarem a ascensão de outras classes sociais atenienses que não a aristocracia, atraem, para Atenas, uma diversidade de pessoas: comerciantes, 7 Lembrar que a palavra estrategista vem do grego estrategos. FED.indb 21 25/02/2016 14:39:59 Filosofia da Educação – 22 – músicos, escultores, pintores, arquitetos e pensadores de diferentes matizes. Entre estes estão os sofistas. Mas quem foram esses homens e qual a impor- tância deles para o desenvolvimento da pedagogia? Os sofistas foram pensadores itinerantes, conhecidos, principalmente, como mestres de Retórica e Oratória, que cobravam por seus ensinamentos, aspecto que os coloca como os primeiros professores particulares. Em sua grande maioria os sofistas não são atenienses. Diferentemente dos pensadores originários, os sofistas estabeleceram uma cisão entre as leis da natureza (phýsis) e as leis do universo humano (nómos). Para eles, as leis do universo humano não são a priori nem se mantêm sempre as mesmas. Ao contrário das leis cósmicas, as do universo humano são arbitrárias, conforme a sofística. Dessa forma, não há para os sofistas, no universo humano, valores universalmente válidos. Aquilo que um determinado grupo social vê como bom, justo ou belo pode ser, para outro grupo social, ruim, injusto ou feio. O que faz uma dada sociedade assumir determinados valores são convenções estabelecidas por estratégias de convencimento e o valor atribuído por certa sociedade para isso ou aquilo não é, no fundo, melhor ou pior que os atribu- ídos por outra sociedade. Tal visão expressa dois princípios: o relativismo e o humanismo, ou antropocentrismo. Apesar do relativismo e do antropocentrismo, há quem veja na sofística aspectos da pedagogia essencialista ou metafísica, como indica esta passagem de Aranha (2006, p. 150): Os filósofos sofistas (século V a.C.) eram educadores, mas, quando ensi- navam retórica, a arte de bem falar, na verdade estavam voltados para a formação do homem público, capaz de defender com argumentos suas idéias - e convencer os demais - na assembléia democrática. No mundo da Atenas democrática, tais princípios ‒ relativismo e huma- nismo ‒ combinam com os da própria democracia: a isonomia e a isegoria. Para entender melhor essas noções e a de nómos, já utilizada, tomemos o glos- sário de termos gregos, apresentado por Chauí (2002, p. 503-506): FED.indb 22 25/02/2016 14:39:59 – 23 – O homem e sua relação com o mundo: Filosofia e Educação Nómos: Regra, lei, norma. O primeiro sentido desta palavra é aquilo que se possui por partilha, aquilo que se usa porque atribuído por uma partilha; por extensão: uso, costume conforme ao uso ou ao cos- tume. Esta conformidade ao costume passa a significar a norma ou regra costumeira de um comportamento de um grupo, as conven- ções sociais que o grupo estabelece para seus membros. Mais adiante: opinião geral, máxima geral, regra de conduta. [...] Nómos opõe-se a physis: o nómos é o que é por convenção, por acordo e decisão dos humanos, enquanto physis é o que é por natureza, por si mesmo inde- pendentemente da decisão ou vontade dos homens. Os sofistas dirão que tudo é pelo nómos, tudo é por convenção. Isegoría: Palavra composta de dois elementos: ise-, que vem de isos (igual, igual em número e em força; igualmente repartido, ter parte igual; justo, equitável, equilibrado, nivelado), e -goria, derivada do verbo agoreúo (falar em público, falar numa assembléia, discursar em público). É o direito de cada cidadão de dizer sua opinião na assem- bléia democrática. É a liberdade de expressão que cada um possui e de que todos os cidadãos desfrutam. Isonomía: Palavra composta por ise- (ver isegoría) e -nomia, vinda de nómos (ver nómos). Inicialmente, significa repartição igual; a seguir, significa igualdade de direitos perante a lei no regime democrático. O regime democrático se pauta pelos debates na assembleia, que envol- vem todos os cidadãos atenienses, que devemter habilidades próprias da Retórica e da Oratória. Logo, essas, para o regime democrático, são de fun- damental importância. Entre os grandes sofistas se destacam Protágoras de Abdera e Górgias de Leontinos. O primeiro afirma que: “O homem é a medida de todas as coisas, das que são como são e das que não são como não são”. O que Protágoras está afirmando é que o ser humano é quem atribui valores a todas as coisas e diz que as coisas são dessa ou daquela forma, pois, se há uma essência das coisas, tal essência não é passível de ser conhecida pelo ser humano. Por que o ser humano não tem conhecimento da essência das coisas? Porque, segundo a sofística, das coisas o ser humano só tem aquilo que lhe aparece, ou seja, o fenômeno. Ainda há o fato de ser a partir da linguagem que os seres humanos tentam dizer o que são as coisas. E a linguagem não é a coisa em si. Dizer “casa” não é sentir, essencialmente, uma casa. FED.indb 23 25/02/2016 14:39:59 Filosofia da Educação – 24 – O segunda afirma: “Nada existe que possa ser conhecido; se pudesse ser conhecido não poderia ser comunicado; se pudesse ser comunicado não poderia ser compreendido”. Górgias é mais radical que Protágoras; ele apresenta a impossibilidade do conhecimento, prenunciando o ceticismo do período Helenístico. Notemos que ambos os fragmentos nos colocam perante problemas rela- tivos à possibilidade do conhecimento e a função da linguagem humana no processo de comunicação da experiência sobre o mundo. Ou seja, questões ligadas à pedagogia. Não bastasse isso, os sofistas foram os primeiros a elaborar uma educação intelectual desligada da educação do corpo. Lembremos que até então a educação grega combinava a educação do corpo com a educação da alma: para a primeira a ginástica; para a segunda, a música ‒ aqui, sinô- nimo de poesia. E, como atenta Aranha (1996, p. 43), os sofistas alargam a noção de paideia, que inicialmente se referia à educação da criança, passando, como os sofistas, a se referir, também, à educação continuada do adulto. Os sofistas foram os primeiros a sistematizar um currículo educacional, composto de gramática, retórica e dialética; e, na linha dos pitagóricos, aritmética, geometria, astrono- mia e música. Tal proposta é a precursora da tradicional divisão das Sete Artes Liberais, que, na Idade Média, será a base o currículo escolar, dividido em Trivium e Qua- drivium, dos quais voltaremos a falar mais à frente. A sofística não foi muito bem-vista pelos filósofos do período Clássico: Sócrates, Platão e Aristóteles. A impressão que a tríade deixou sobre a sofística foi de tal forma negativa que a imagem predominante por muito tempo na História da Filosofia leva a crer que os sofistas foram apenas um bando de charlatões, preocupados apenas em enriquecer. O prejuízo decorrente dessa imagem foi, em parte, a perda das obras atribuídas a esses pensadores, restando de suas hipóteses esparsos fragmentos e alusões nos textos de seus opositores, como encontramos, por exemplo, nos Diálogos de Platão. FED.indb 24 25/02/2016 14:39:59 – 25 – O homem e sua relação com o mundo: Filosofia e Educação O próprio termo sofista e seu derivado passaram a ter conotações pejorativas. Embora, por vezes, esqueçamos que o termo sofisticado venha de sophisés, que traduzimos por sofista, e também, numa tradição anterior ao advento da sofística, que significava sábio, excelente em uma arte ou técnica, sensato, prudente. 1.4.2 A questão socrática Como vimos, um dos opositores da sofística foi Sócrates. Mas quem foi esse filósofo e que legado nos deixou? De Sócrates não temos nada escrito, pois este, seguindo à risca a sua visão sobre o texto escrito ‒ para ele, uma imitação da palavra falada e, como tal, algo menor, que não contribuía muito para a busca do saber ‒, nada escreveu. O que temos a repeito de Sócrates nos foi deixado, predominante- mente, por seu mais ilustre discípulo, Platão. Mas também temos os relatos de Xenofontes. Ambos, Platão e Xenofontes, por perspectivas e estilos dife- rentes, dão-nos um Sócrates sábio e modelar. Platão chega mesmo a dizer que Sócrates foi o homem mais justo que ele conheceu. Muito diferente dessa imagem é a que nos deixou Aristófanes, um comediógrafo, contemporâneo de Sócrates. A partir dele, temos um Sócrates malvestido, pobre, que vivia nas nuvens e se utilizava de artifícios retóricos (aqui, no sentido pejorativo). Tais registros divergentes e, provavelmente, não isentos de valores ‒ derivados sejam da excessiva admiração ou da função ridicularizante, típica da comédia clássica ‒ colocam Sócrates muito mais como um personagem. Disso deriva o que os estudiosos chamam de “a questão socrática”. Mesmo assim, sabemos que Sócrates jamais saiu de Atenas e que morreu em 399 a.C., durante o regime democrático. Morte que fez dele uma espécie de mártir da Filosofia. Lembramos que a maior parte dos textos que falam de Sócrates são posteriores a sua morte. Sabemos, também, que ele vivia na ágora ‒ praça pública ‒ e nos ginásios questionando figuras ilustres e quem mais se aproximasse das rodas de debates promovidas por sua estratégia dialogal. Em razão disso, muitos jovens o seguiam. E uma das acusações que o levaram a julgamento foi corromper os jovens; a outra, não crer nos deuses. Saiba mais Para saber mais sobre Sócrates assista ao filme Sócrates (1971). FED.indb 25 25/02/2016 14:39:59 Filosofia da Educação – 26 – Conta-se que, em certa ocasião, um amigo de infância e membro do par- tido democrático de Sócrates, Querefonte, indo a Delfos, cidade grega onde ficava o mais célebre oráculo da Antiguidade, teria consultado o Oráculo, perguntando se havia homem mais sábio que Sócrates. Recebeu a resposta de que não havia ninguém mais sábio que Sócrates. Ora, Sócrates vivia dizendo que nada sabia. Como interpretar esse aparente contrassenso? O próprio Sócrates, personagem de Platão, na Defesa de Sócrates (21b-e), responde: Quando soube daquele oráculo, pus-me a refletir assim: “Que que- rerá dizer o deus? Que sentido oculto pôs na resposta? Eu cá não tenho consciência de ser nem muito sábio nem pouco; que quererá ele, então, significar declarando-me o mais sábio? Naturalmente, não está mentindo, porque isso lhe é impossível.” Por longo tempo fiquei nessa incerteza sobre o sentido; por fim, muito contra meu gosto, decidi-me por uma investigação, que passo a expor. Fui ter com um dos que passam por sábios, porquanto, se havia lugar, era ali que, para rebater o oráculo, mostraria ao deus: “Eis aqui um mais sábio que eu, quando tu disseste que eu o era!” Submeti a exame essa pessoa ‒ [...]Eis, Atenienses, a impressão que me ficou do exame e da conversa que tive com ele; achei que ele passava por sábio aos olhos de muita gente, principalmente aos seus próprios, mas não o era. Meti-me, então, a explicar-lhe que supunha ser sábio, mas não o era. A conseqüência foi tornar-me odiado dele e de muitos dos circunstantes. Ao retirar-me, ia concluindo de mim para comigo: “Mais sábio do que esse homem eu sou; é bem provável que nenhum de nós saiba nada de bom, mas ele supõe saber alguma coisa e não sabe, enquanto eu, se não sei, tampouco suponho saber. Parece que sou um nadinha mais sábio que ele exatamente em não supor que saiba o que não sei.” Tal fragmento é indicativo de que Sócrates era um filósofo no sentido mais etimológico do termo: não um sábio, mas um amigo da sabedoria, ou seja, alguém que busca a sabedoria. Mas como se dá essa busca? Sócrates costumava dizer que nada ensinava, mas procurava ajudar as pessoas a buscarem no interior de si mesmas o conhecimento que tinham. Tal perspectiva é claramente essencialista ou metafísica, pois FED.indb 26 25/02/2016 14:39:59 – 27 – O homem e sua relação com omundo: Filosofia e Educação revela uma concepção inatista do conhecimento: de alguma forma nossa alma já traz – antes mesmo de nosso nascimento, que corresponde ao estabelecimento de uma relação corpo- alma, matéria-espírito – o conhecimento do Bem, do Justo e do Belo. Entretanto, tal conhecimento se encontra adormecido. Assim, segundo Sócrates, o que ele fazia era ajudar as pessoas a recuperar esse conhecimento que estava dentro de si. Para tanto, Sócrates inquiria seus interlocutores. O depoimento de Sócrates, no fragmento da Defesa de Sócrates, apresentado anteriormente, aponta para o método socrático que possuía duas etapas: 2 primeira, a ironia ‒ do grego eironia ‒, perguntar, fingindo igno- rância ‒ que tem um caráter negativo, pois desconstrói a opinião (dóxa) apresentada pelo interlocutor sobre algo; 2 segunda, a maiêutica ‒ maieutiké, relativo ao parto8 ‒, mais posi- tiva, pois consistia em, a partir de outras perguntas, dar à luz as ideias que cada um tem dentro de si. Para Sócrates, conhecer era relembrar (anámnesis). Mas, para enten- dermos tal concepção, devemos aceitar um fundamento religioso no pensa- mento socrático e sua concepção de alma (psykhé). Ao final da parte Vida e obra do volume Sócrates da coleção Os pensadores, José Américo Motta Pessanha esclarece: Na verdade, Sócrates criou uma nova concepção de alma (piquê), que passou a dominar a tradição ocidental. Antes, como em Homero, a psiquê era o “duplo” que podia se desprender provi- soriamente durante o sono ou definitivamente, com a morte, mas que nada tinha a ver com a vida mental ou as “faculdades” da pessoa. [...] É a partir de Sócrates – ou pelo menos é na literatura 8 Sócrates revela (Platão, Teeteto, 148e-151a) que age como as parteiras, mas, enquanto estas trazem ao mundo corpos, ele traz ideias. Sócrates reforça que, assim como as parteiras, ela ape- nas ajuda no nascimento, não faz nascer. Lembremos que Sócrates era filho de uma parteira, Fenárete. FED.indb 27 25/02/2016 14:39:59 Filosofia da Educação – 28 – referente a ele e que se seguiu à sua morte – que surge a concepção de alma como sede da consciência normal e do caráter, a alma que no cotidiano de cada um é aquela realidade interior que se manifesta mediante palavras e ações, podendo ter conhecimento ou ignorância, bondade ou maldade. E que, por isso, deveria ser o objeto principal da preocupação e dos cuidados do homem. (1987, p. XXI). É essa concepção de alma que costura a relação entre conhecimento e atitudes, fundamentando um “já-saber”. É porque outrora a alma vislum- brou a perfeição e depois caiu, agarrando-se à matéria ou bebendo no rio do esquecimento, que a alma participa das ideias, esquecendo-as posteriormente. Cabendo ao mestre provocar no discípulo o desejo de autoconhecimento. Sócrates tomou para si uma máxima que encontramos no Oráculo de Delfos: “Conhece-te a ti mesmo”. Dessa forma, é preciso pensar bem para viver bem. Outra máxima atribuída a ele: “Uma vida sem reflexão não vale a pena ser vivida”. A ética de Sócrates parte da ideia de que a ação moral está intima- mente ligada ao grau de conhecimento do bem. Conhecer o bem, de forma racional, implica agir bem. Ter conhecimento racional (epistéme) é ser virtu- oso. Esta, para ele, é uma relação direta. Assim como os sofistas, Sócrates não se preocupa com a questão cos- mológica pelo arkhé; traz a reflexão filosófica para um domínio centrado no homem e em suas questões. Questionar sobre a natureza do bom, do belo e do justo envolve o agir humano, tanto no aspecto individual (ética) como no coletivo (política). Em oposição às tradições orientais, o homem ocupa o centro do pensamento na cultura ateniense do período Clássico, eis por que podemos falar num humanismo entre os gregos. Mesmo sendo complicado estabelecer um limite, na obra platô- nica, entre o que é de Sócrates e o que é de Platão, muitos estudiosos, ao classificar as obras de Platão, denominam os Diálogos da juventude como “socráticos” ou “aporéticos”. Para esses estudiosos, os Diálogos da juventude estão mais próximos do que seria o pensamento de Sócrates; já os posteriores a esta fase começariam a apresentar ideias propriamente de Platão. Outra característica dos Diálogos da juventude de Platão é serem inconclusos, ou seja, há uma pergunta que inquieta os persona- gens, conduzidos por Sócrates. Eles procuram uma definição para deter- minado objeto de estudo, mas não a encontram, descobrindo, apenas, FED.indb 28 25/02/2016 14:39:59 – 29 – O homem e sua relação com o mundo: Filosofia e Educação que as certezas que tinham sobre o objeto são apenas opiniões parciais, que não servem para definir universalmente o objeto de estudo. A esse questionamento que fica sem resposta chamamos aporia. Eis o porquê da denominação aporético. Vamos agora ao pensamento de Platão. 1.5 Platão: uma utopia, a educação dos governantes Platão nasceu em Atenas9 por volta de 428 a.C. e morreu em cerca de 348 a.C. Assim, viveu entre o apogeu e o declínio de Atenas e foi contempo- râneo do enfraquecimento de Esparta, duas das mais importantes pólei (plural de pólis) da época e que eram inimigas. É significativo que, dez anos após a morte de Platão, Filipe da Macedônia domine a Grécia, perdendo, esta, para sempre, sua autonomia. Platão era de família influente e, por sua origem, tendia para a vida polí- tica. Entretanto, a Grécia vivia em guerra; após o domínio de Esparta sobre as cidades gregas, instaurou-se, em Atenas, um regime tirânico, denominado o Governo dos Trinta, do qual participavam parentes e amigos de Platão. Esse governo impopular foi derrubado pela democracia. Mas, ao que parece, mesmo essa democracia recuperada não tinha a pujança da democracia dos tempos de Péricles. Foi durante essa retomada da democracia que Platão pre- senciou o julgamento, a condenação e a morte de seu mestre: Sócrates. Todas essas circunstâncias levaram Platão a desacreditar da carreira política, o que deixa claro na Carta VII (325c-326b): A mim, que observava essas coisas e os homens que faziam polí- tica, quanto mais examinava as leis e os costumes e avançava em idade, tanto mais me parecia difícil ser correto o dedicar-me à política. Pois, sem amigos e companheiros fiéis, não é possível agir. – Ora, não era fácil achar quem tomasse a iniciativa, uma vez que nossa cidade não era administrada mais nos costumes e usos dos ances- trais, e não era possível conseguir com facilidade outros novos 9 Há quem diga que tenha nascido em Égina, uma pequena ilha do mar Egeu que se tornou possessão de Atenas. FED.indb 29 25/02/2016 14:39:59 Filosofia da Educação – 30 – amigos e companheiros. – A corrupção dos artigos das leis e dos costumes alastrava tão espantosamente, que eu, que de início estava pleno de ímpeto para realizar o bem comum, olhando para eles e vendo-os sendo completamente levados de qualquer modo, acabei em vertigem. Não deixei, contudo, de esperar um momento ade- quado, se, na verdade, a situação e todo o governo melhorassem, para ainda aproveitar qualquer ocasião de realizar o bem comum. Acabei por entender que todas as cidades de agora são mal gover- nadas, pois têm legislação quase incurável, e falta uma preparação extraordinária aliada à fortuna. Fui obrigado a dizer, louvando a verdadeira filosofia, que a ela cabe discernir o politicamente justo em tudo dos indivíduos, e que a espécie dos homens não renunciará aos males antes que a espécie dos que filosofam correta e verdadeira- mente chegue ao poder político, ou a espécie dos que têm soberania nas cidades, por alguma graça divina, filosofe realmente. Após a morte de Sócrates, Platão deixou Atenas, fez diversas viagens; cogita-se que tenha ido ao Egito, à Ásia Menor, a Creta, ao Sul da Itália e à Sicília.Numa dessas viagens é provável que tenha encontrado Arquitas, governador de Tarento, da escola pitagórica. Voltando a Atenas, em torno de 387 a.C., fundou a Academia – para alguns a primeira escola superior do Ocidente – com o objetivo de formar o autêntico filósofo, através dos estudos científicos. Mais ou menos nessa época teria escrito a maior parte de seu mais conhecido Diálogo A república. Fonte: SANZIO, Rafael. Escola de Atenas, pintado de 1508 a 1511. Afresco. Stanza della Segnatura, Vaticano. Em A república, Platão construiu uma cidade ideal como contraponto à cidade real, corrompida. Nessa cidade idealizada o filósofo é o governante. Mas, para que este chegue a governar, tem de passar por uma longa etapa de FED.indb 30 25/02/2016 14:40:00 – 31 – O homem e sua relação com o mundo: Filosofia e Educação educação. Educação essa que servirá para pôr os olhos na direção correta, evitando que a alma seja corrompida. Sabemos que por, ao menos três ocasiões, Platão tentou implantar tal proposta. Em todas elas se saiu malogrado. Algo que leva alguns estudiosos a compararem esta obra do período intermediário da produção platônica com outra da velhice, que, ao que parece, ficou inacabada: As leis. Vamos contextualizar um pouco a Educação da época. Esparta e Atenas eram as cidades modelares também nesse campo. Na primeira predominava uma rígida educação militar: aos sete anos os jovens eram tirados de suas famílias, entregues ao Estado; havia treinamento atlético militar rigoroso, com a finalidade de modelar os espíritos à coragem; os educandos viviam em comunidade e passavam por diversas provas, semelhantes, ou piores, às militares de hoje. A segunda seguia um modelo mais privado, onde a edução ficava sobre a responsabilidade da família; além de aspectos tradicionais da paideia aristocrática – ginástica e música –, devido à ascensão de outras classes sociais, Retórica e Oratória se tornaram partes do “currículo escolar”. Para saber um pouco mais sobre a educação ateniense, tomemos uma passagem do livro História da Educação, de Maria Lúcia de Arruda Aranha: Vimos que, passado o período heróico, a educação ainda é aristo- crática e uma incumbência da família. No final do século VI a.C., já terminando o período arcaico, aparecem formas simples de escolas. Embora o Estado demonstre al gum interesse, o ensino não se torna nem obriga tório nem gratuito e continua predominantemente sob a iniciativa particular. A educação se inicia aos sete anos. Se a crian ça é do sexo feminino, permanece no gineceu, parte da casa onde as mulheres se dedicam aos afazeres domésticos, pouco importantes em um mundo essen- cialmente masculino. Se é menino, desliga-se da autoridade materna e inicia a alfabetização e a educação física e musical. Acompanhado por um escravo, o pedagogo, o menino dirige-se à palestra [lugar para exercícios de luta], onde pratica exercícios físicos. Sob a orientação do pedó triba (instrutor físico), é iniciado em corrida, salto, lançamento de disco, de dardo e em luta, as cinco modalidades do pentatlo, competição famosa de jogos. Aprende assim a fortalecer o corpo e a exercer domínio sobre si próprio, já que a educação física nunca se reduz à mera destreza corporal, mas vem acompanhada pela orientação moral e estética. FED.indb 31 25/02/2016 14:40:00 Filosofia da Educação – 32 – Além do preparo físico, a educação musical é extremamente valo- rizada, e por isso o pedagogo também leva a criança ao citarista, ou professor de cítara. Os gregos eram amantes da música (a arte das musas), de significado muito amplo, abrangendo a educação artística em ge ral. Assim, qualquer jovem bem-educado aprende a tocar lira ou outros instrumentos, como cítara e flauta. É cultivado o canto, sobre tudo coral, bem como a declamação de poesias, geral- mente acompanhada por instrumento mu sical. A dança é expressão abrangente que in clui o exercício físico e a música. [...] O ensino elementar de leitura e escrita, durante muito tempo, merece menor atenção e cuidado do que as práticas esportivas e musicais já referi das. O mestre é geralmente uma pessoa humilde, mal paga e sem o prestígio do instrutor físico. Com o tempo, à medida que aumenta a exigência de melhor formação intelectual, delineiam-se três níveis de educação: elementar, secundária e superior. O gramático (grammata, literalmente “le tra”), também chamado didáscalo (didasko, “eu ensino”), costuma reunir, em qualquer canto – sala, tenda, esquina ou praça pública – um grupo de alunos para ensinar-lhes leitura e escrita. Usa métodos que dificultam a apren- dizagem, em que é acentuado o recurso da silabação, repetição, memo rização e declamação. Geralmente as crianças apren dem de cor os poe mas de Homero, de Hesíodo, as fá bulas de Esopo e de outros autores. Escrevem em tabuinhas enceradas e fazem os cálculos com o auxílio dos dedos e do ábaco, instrumento de contar constituído de pequenas bolas. A educação elementar completa-se por volta dos 13 anos. As crianças mais pobres saem então em busca de um ofício, enquanto as de famí- lia rica continuam os estudos, sendo encaminhadas ao ginásio, pala- vra com diversos sentidos. Inicialmente designa o local para a cultura física onde, com freqüência, os gregos se apresentam despidos (daí sua origem etimológica: gimno. “nu”). Com o tempo, as atividades musicais as direcionam para discussões literárias, abrindo espaço para o estudo de assuntos gerais com matemática, geometria e astronomia, sobretudo sob a influência dos filósofos. Com a criação de bibliotecas e salas de estudo, o ginásio adquire feição mais próxima do conceito de local de educação secundária. Dos 16 aos 18 anos, a educação adquire uma dimensão cívica de pre- paração militar, instituição que se desenvolve por volta do século IV a.C. e é conhecida como efebia (efebo significa jo vem). Após a aboli- ção do serviço militar em Atenas, a efebia passa a constituir a escola em que se ensina filosofia e literatura. FED.indb 32 25/02/2016 14:40:00 – 33 – O homem e sua relação com o mundo: Filosofia e Educação Apenas com os sofistas se inicia uma espécie de educação superior. Eles também se dedicam à profissionalização dos mestres e à didática, cuidando inclusive da ampliação das disciplinas de estudo. [...] Como se vê por este relato, a educação for mal atende aos filhos da elite, excluindo os demais. Segundo o legislador Sólon, “as crianças devem, antes de tudo, aprender a nadar e a ler; em seguida, os pobres devem exercitar-se na agricultura ou em uma indústria qualquer, ao passo que os ricos devem se preocupar com a música e a equitação, e entregar-se à filosofia, à caça e à freqüência aos ginásios”. Isso significa também que não há preocupação com o ensino profis- sional, pois os ofícios são aprendidos no próprio mundo do trabalho. Uma exceção é a medicina, profissão al tamente considerada entre os gregos. Os ensinamentos de Hipócrates (460-377 a.C.) são acrescidos de inúmeras observações, que tor nam a medicina parte integrante da cultura geral grega, ao lado de considerações éticas e regras de conduta. Segundo o helenista Werner Jaeger, esta posição de prestígio decorre da sua relação com a paidéia, ou seja, o médico é co locado ao lado do pedótriba (professor de ginástica), do músico e do poeta. Se o homem sadio é um ideal grego, é preciso entender que ginastas e médicos con- cebem a cultura física na sua dimensão espiritual. (1996, p. 52-53). Com elementos da paideia espartana e da padeia ateniense, Platão com- pôs sua paideia, que transparece, principalmente, no Diálogo A república. Vemos, nesta obra platônica, elementos da velha paideia, como a ginástica e a música. Entretanto, Platão expulsa de sua cidade ideal algumas artes como certos tipos de pintura e de poesia. Hávasta literatura sobre a censura a essas artes imitativas. Partamos da fala do próprio texto platônico: Logo, devemos começar por vigiar os autores de fábulas, e selecio- nar as que forem boas, e proscrever as más. As que forem escolhidas, persuadiremos as amas e as mães a contá-las às crianças, e a moldar as suas almas por meio das fábulas, com muito mais cuidado do que os corpos com as mãos. Das que agora se contam, a maioria deve rejeitar-se. (PLATÃO, A república, II, 377c). O que está por trás disso? Tentando responder ao dilema entre o mobilismo – o ser é constante trans- formação – e o monismo – o ser é uno e sempre o mesmo – que vem da tradição pré-socrática, do debate entre a Escola de Eléia e Heráclito de Éfeso, Platão estabe- lece a separação entre dois mundos: o dos sentidos, mobista; e o das Ideias, imutá- FED.indb 33 25/02/2016 14:40:00 Filosofia da Educação – 34 – vel. Partindo dessa perspectiva, formula, também uma teoria do conhecimento10, que trata as coisas do mundo sensorial como imitações das ideias. E, dessa forma, considera o “conhecimento” gerado pelos sentidos como ilusórios, frutos da dóxa (opinião). Tal concepção é sintetizada na chamada Alegoria da Caverna, à qual votaremos mais à frente. As artes imitativas – particularmente a poesia homérica, as tragédias e a pintura – são, então, para Platão, imitações de imitações. Dessa forma, estão muito distantes dos modelos dados pelas Ideias. E são tais modelos – essências – que devem ser buscados, no processo de conhecimento. Além disso, Platão pretendia uma reforma nas bases morais e tendia a defender uma concepção religiosa monoteísta, aspectos que se chocam com as características da tradição homérica e das representações dela derivadas na tragédia e na pintura. Muitos estudiosos de Platão defendem que, no fundo, sua crítica à paideia homérica é mais ética do que epistêmica, ou seja, refere-se mais aos aspectos éticos e de conhecimento. Assim, deuses, como os descritos pela tradição homérica, que mudam de forma, são vingativos, têm raiva e outras paixões humanas, não servem como modelo ético para o agir humano. Platão, assim como Sócrates, não tinha grande apreço pela escrita, pois esta era imitação da linguagem oral. No entanto, Platão, diferentemente de Sócra- tes, deixou-nos obras escritas. Mas optou por um estilo literário que se mostra o mais próximo possível às conversas que tinha na Academia; por isso, escreveu em forma de diálogo. Eis um claro exemplo de pensador que reflete, na sua própria forma de escrever, princípios de seu método, do qual falaremos à frente. 1.6 A dialética: muito mais que um método O método platônico toma por base as etapas do método socrático, já apresentado. O procedimento dialógico adotado por Sócrates serve para fazer com que os interlocutores descubram a debilidade de suas opiniões (argu- mentos). No entanto, Platão – e o Diálogo A república é um bom exemplo 10 Na realidade, esta é uma terminologia mais adequada para a Modernidade. Em vista disso, para alguns estudiosos, não haveria, propriamente, entre os filósofos gregos, uma preocupação sobre se podemos ou não conhecer e como conhecemos o objeto, mas partiria de um pressu- posto de que esse objeto já é um dado. Logo, não podemos duvidar da possibilidade do conhe- cimento. Tal abordagem é controversa. Mesmo assim, em Platão, seria mais adequado dizer uma Teorias das Ideias que tem reverberações na questão sobre o conhecimento. FED.indb 34 25/02/2016 14:40:00 – 35 – O homem e sua relação com o mundo: Filosofia e Educação disso – não mantém essa característica na totalidade em seu método, indo além no processo de definição conceitual. Assim o processo proposto por Pla- tão vai das opiniões (dóxa – escuridão) às essências (luzes, ideias – epistéme). Este caminhar prático/teórico é a dialética; para Platão, a única forma em que podemos filosofar. O método da dialéctica é o único que procede, por meio da destrui- ção das hipóteses, a caminho do autêntico princípio, a fim de tornar seguros os seus resultados, e que realmente arrasta aos poucos os olhos da alma da espécie do lodo bárbaro em que está atolada e eleva-os às alturas […]. (Platão, A república, VII, 533c-d). O falar está muito ligado ao raciocínio, à construção dos conceitos, ao ser como essência. O homem é o único animal que fala, tem uma linguagem, produz conceitos, juízos. Assim, Platão aposta que o homem consegue se aproximar das coisas em si, ir além das opiniões. Também crê na possibilidade humana de se chegar – ou ao menos se aproximar – a algo irrecusável e seguro para todos enquanto todos são racionais. E, se há essa possibilidade, também é possível, pensa Platão, alcançar o Bem, o Justo e o Belo. Uma etapa para esse processo é o procedimento dialogal, o cuidado com as definições conceituais no debate. Entretanto, o cuidado com a linguagem, a tentativa de não se colocar em contradição e o polimento na definição conceitual ainda não são suficientes, pois estão no âmbito da linguagem. E Platão não discorda dos sofistas quanto a ver na linguagem um dizer algo que esta não é. Eis porque os procedimentos dialogais apenas prenunciam uma intuição de conhecimento. E, no fundo, para Platão é essa intuição intelectual que leva o ser humano ao reconheci- mento das essências (Ideias). [...] a dialética é o instrumento próprio para chegar ao conhecimento dos objetos do pensamento – as Idéias puras – e, finalmente, ao seu objeto último, a Idéia do Bem. Podemos chamar a dialética de lógica e metafísica, ou simplesmente de filosofia; mas, qualquer que seja denominação, ela é não apenas o estudo de objetos percebidos pela mente (mathémata); mas o exame dos primeiros princípios do ser, e sobretudo daquele que é o primeiro e o último, a Idéia do Bem, causa do ser e objeto final do conhecimento. (BARKER, 1978, p. 194). A dialética é o estágio mais elevado da caminhada que vai da dóxa à epis- téme, ocupando, na “grade curricular” estabelecida em A república, o último FED.indb 35 25/02/2016 14:40:00 Filosofia da Educação – 36 – nível, a educação superior. Depois da música, artes e ginástica, matemática e ciências afins, vem a dialética. Esta dará ao guardião a condição de ver além, de conseguir ver a Justiça, o Bem, as Ideias e tornar-se o verdadeiro Filósofo. Sir Ernest Baker (1978, p. 13-184) atualiza este procedimento, explicando-o: [...] o professor “extrai” do aluno o que ele tem de melhor; na verdade, seria mais próprio dizer que este “melhor” aparece por si, reagindo à presença de certos fatores externos, e que a arte do professor consiste justamente em expor tais fatos diante do aluno. No próprio caminhar de A república vemos isso: o “professor”, aqui, Sócrates, faz seus alunos descobrirem, ou reconhecerem, o que seja a Justiça em sua essência. Dando estímulos que os desvelarão ao que está escondido no seu “interior”. E aí conhecer-se a si mesmo equivale a conhecer o mundo, as ideias. Em complemento a uma estratégia mais racional e de uso do raciocínio lógico, o texto platônico recorre a vários Mitos, ou melhor, Alegorias. Mas por que isso? Segundo Platão, há certas coisas muito difíceis de explicar. E mais, há pessoas que não acompanham muito bem uma linguagem lógico-argumentativa. Assim, o recurso aos Mitos ou Alegorias facilitam a compreensão, pois têm uma linguagem poética, sem distorções como as de Homero e outros poetas, e que anima o espírito, provocando a imaginação. Dessa forma o mito completa o diálogo, como nos esclarece François Châtelet no volume 1. A filosofia pagã, de História da filosofia: ideias e doutrinas: O método platônico é demonstrativo e seu instrumento é a “arte” dialética. Entretanto, freqüentemente, o discurso lógico busca apoio em imagens ou alegorias, freqüentemente também desembocaem narrações míticas. Às técnicas indutiva e dedutiva ajuntam-se, pois, procedimentos que repousam sobre o valor expressivo da analogia ou da metáfora. […] Nos dois casos, a linguagem do saber é, ela também, parcialmente inapta para dizer o que é. Duplamente inapta: demasiado envolvida no sensível, ela não consegue dizer completamente a mais alta realidade; demasiado desligada dela, tem dificuldade em fazer entender o que, “lá em cima”, aprendeu. A imagem, o mito compensam essa insuficiência; compensam-na mas num sentido positivo, se se pode dizer: a narração lendária enriquece a dialética, aumenta seu FED.indb 36 25/02/2016 14:40:00 – 37 – O homem e sua relação com o mundo: Filosofia e Educação vigor, acrescenta uma lógica metafórica à lógica da demonstração. (1981, p. 113). Ao aliar várias estratégias em seus escritos, Platão pretende não só fis- gar um leitor ou, para sua época, também, um ouvinte especializado, mas qualquer um que se dispusesse a trilhar a via para fora da caverna. Na Alegoria da caverna, o personagem Sócrates solicita a seus interlocutores que imaginem uma série de seres humanos acorrentados no fundo de uma caverna. Esses seres humanos só podem olhar para o fundo da caverna. Entre eles e uma fogueira, há uma mureta, por trás da qual passam vários viajantes, muitos deles carregando objetos na cabeça. O reflexo desses objetos projeta, no fundo da caverna, sombras, que os prisioneiros acreditam ser a realidade. Alguns até identificam certa regularidade nas sombras e advinham o que virá. Mas eis que um desses prisioneiros é arrastado do fundo da caverna para o lado de fora. Sócrates continua conjecturando que provavelmente tal prisioneiro resistirá e terá dificuldades, no lado de fora da caverna, de olhar para a luz durante o dia, ficando mais à vontade, inicialmente, durante a noite. Mas aos poucos seus olhos se acostumarão à luz e ele poderá, por fim, olhar brevemente para o sol. Esse prisioneiro, ao voltar à caverna para contar a seus colegas o que realmente é a verdade, será visto como um louco. E, em razão de sua insistência em mostrar a verdade, poderá ser morto por seus antigos colegas. Eis um resumo da Alegoria da caverna que você encontra nas primeiras páginas do Livro VII, do Diálogo A república de Platão. Certamente, uma das interpretações possíveis dessa alegoria nos remete ao processo educacional e à função daqueles que buscam tirar outros de sua ignorância. Algo que, não raramente, pode incomodar aqueles que desejam manter o status quo, gerando a morte dos Sócrates que encontramos na vida. Há aí também um caráter soteriológico em relação ao educador, ou seja, uma visão deste como aquele que tem a missão de salvador. No fundo, aquele a quem Platão aponta como o salvador (soter) é o verdadeiro Filósofo, que, apesar de tudo, se dispõe à difícil tarefa de administrar uma cidade. Mas, para Platão, apenas a este cabe o papel de administrador ou de conselheiro do administrado por ser ele o que tem uma alma que mais se recorda da ideias, das essências e modelos do mundo. Fica claro, então, o teor essencialista ou metafísico da proposta platônica. FED.indb 37 25/02/2016 14:40:00 Filosofia da Educação – 38 – Na linha das diferenciações entre Sócrates e Platão – aceitando a possibilidade de estabelecer um limite entre um e outro – é bom lembra- mos, antes de passarmos para o pensamento de Aristóteles, que, enquanto Sócrates se dedica apenas a questões antropológicas – afastando-se do foco naturalista e cosmológico dos pensadores originários –, Platão alarga seus estudos, estabelecendo relações entre cosmologia e antropologia. Dessa forma, ele também retoma temáticas típicas dos pré-socráticos. A ordem cósmica11 é tomada como modelo para a ordem política, que deve ser modelo para a autorregulação do indivíduo. Aliam-se, então, teologia, cosmologia, ética e política. Essa retomada também fará parte do pensamento de Aristóteles. Vamos a ele? 1.7 Do realismo aristotélico à mentalidade medieval Aristóteles nasceu em Estagira12 em 384 a.C. Seu pai, Nicômaco, que morreu quando Aristóteles tinha uns sete anos, foi médico do rei macedônio Amintos, como apuramos em Chaui (2002, p. 334). Mesmo que educado por seu tio, Aristóteles se manteve no ambiente da formação médica. Eis algo que, para muitos comentadores, influenciou sua tendência, mais tarde, aos estudos da natureza e da biologia. Aos dezoito anos Aristóteles vai para Atenas e ingressa na Academia de Platão. É interessante notar que, na faixada de entrada da Academia, estava escrito: “Aqui só entra matemático”. Mas Aristóteles estava mais ligado à biologia. Talvez em razão disso corre uma anedota de que o estagirita tenha entrado pela janela da Academia. Jocosidades à parte, a situação reflete a oposição entre a mentalidade platônica e a aristotélica. Isso, entretanto, não indica que o estagirita foi desafeto de Platão. Muito pelo contrário, ambos tecem elogios entre si. 11 Que, se pensarmos etimologicamente, é um pleonasmo, pois kósmos, em grego, significa: ordenado; ornado. 12 Cidade fundada por gregos, onde se falava grego, mas nos domínios dos macedônios. Algo que fazia com que alguns gregos não vissem os estagiritas como gregos. FED.indb 38 25/02/2016 14:40:00 – 39 – O homem e sua relação com o mundo: Filosofia e Educação Depois de um tempo na Academia, Aristóteles funda, em 335 a.C., o Liceu. Este ficava num bosque dedicado às Musas e a Apolo Lício. Com- punham o Liceu: uma edificação, na qual encontramos a primeira biblio- teca e um museu ligados diretamente ao ensino; um jardim; e uma área de passeio. O termo grego para passeio é perípatos; a ação de passear, peripatéô. Termos formados por um prefixo perí-, que indica: a volta de, em torno, sobre ou em vista de; e patéô, que significa: pisar, marchar, caminhar, percorrer; conforme apu- ramos em Chaui (2002, p. 508). Sabemos que no Liceu as lições, por vezes, eram dadas em caminhadas. Dessa forma, Aristóteles e os estudantes, transitando pelo passeio do jar- dim liceísta, debatiam animadamente filosofia. Eis o porquê da denominação peripatéticos para os membros da escola aristotélica. A dar conta de alguns relatos, o Liceu alcançou prestígio grandioso, reunindo cerca de dois mil alunos. Diversas fontes atestam que, a partir dos quatorze anos, Alexandre, o Grande, teve como seu preceptor – um tipo de professor particular – Aris- tóteles. Os registros de que o estagirita teria ensinado ao futuro imperador são escassos. Entretanto, como aponta Chaui (2002, p. 335-336): Pelos escritos políticos aristotélicos, porém, podemos inferir que, pelo menos, duas ideias foram transmitidas a Alexandre: a de que a Grécia não sobreviveria dividida em cidades rivais, mas precisava ser pacificada sem recorrer a um governo central; e a de que a Macedô- nia era mais grega do que oriental, que havia diferenças profundas entre os gregos e os “bárbaros” e que não era possível unificá-los, pois os primeiros estavam, por natureza e por costume, habituados à liberdade enquanto os segundos eram, por natureza e por costume, afeitos ao despotismo. Pelo que sabemos da história, Alexandre não levou em consideração nenhum desses ensinamentos. FED.indb 39 25/02/2016 14:40:00 Filosofia da Educação – 40 – Dica de filme Para ter em mente um pouco das atitudes de Alexandre em relação a suas conquistas, recomendamos assistir ao filme Alexandre, o Grande (2004). Nesse mesmo filme, encontramos uma sequên- cia onde aparece Aristóteles dando aulas ao jovem Alexandre. Alguns atenienses começaram a ver Aristóteles com desconfiança por diversos fatores: ele ser de Estagira; ter sido preceptor de Alexandre – muitos gregos não gostaram das investidas, por vezes, violentas do imperador macedô- nio na