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QUEM TEM MEDODAARTE CONTEMPORÂNEA? Fernando Cocchiarale �� FU NDAÇÃO JOAQUIM NABUCO E D IT O R A MASSANGANA ISBN 978-85-7019-446-6 ©2007 Fernando Cocchiarale Reservados todos os direitos desta edição. Reprodução proibida. mesmo parcialmente, sem autorização da Editora Massangana da Fundação Joaquim Nabuco. Fundação Joaquim Nabuco. Editora Massangana. Av. Dezessete de Agosto, 2187. Casa Forte. Recife. Pernambuco. Brasil. CEP 52061-540. Linha direta (81) 30736321. Vendas (81) 30736323. Tele fax (81) 307.36.319. www.fundaj.gov.br PRESIDENTE DA FUNDAÇÃO )OAOUIM NABUCO Fernando Lyra DJRETOI�A DO INSTITUTO DE CULTURA Isabcla Cribari CooRDENADOR-GERAL DA EDITORA MASSANGANA Mário Hélio Gomes de Lima CooRDENADOR DE EDITORAÇÃo Sidney Rocha PROJETO GRÁFICO/CAPA Editora Massangana 1 a. reimpressão Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Fundação Joaquim Nabuco) Quem tem medo da arte contemporânea; Fernando Cocchiarale- Recife: Fundação Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 2006. 80 p.: il: ISBN 978-85-7019-44(>.6 1. Arte contemporânea- arte 2 .. I. Cocchiaralle, Fernando. CDU 347.78 Quem tem medo da arte contemporânea? Muitos. A maioria diz não entendê-la, por achá-la estranha àquilo que consideram arte. Outros, ainda que com conhecimento de causa, seja por conservadorismo, seja por preferirem a arte clássica ou por sua fidelidade teórica (paixão, na verdade) à arte moderna. Curioso é que à medida que nos aproximamos da atualidade a incompreensão parece crescente. A arte pré moderna parece ser entendida mais facilmente do que a moderna e esta última menos arbitrária que a produção contemporânea. Duvido que um leigo diga que entende a Mona Lisa saiba o que é sfumato, seção áurea, claro escuro. O que é anatomia? O que é a perspectiva? No entanto, essas informações não participam necessariamente de fruição estética. Uma das práticas mais generalizadas do mundo institucional das artes, compreendendo aí o chamado grande público, é a necessidade de mediação pela palavra, para a produção de sentido. Não me refiro aqui às teorias 11 da arte, tanto históricas quanto filosóficas, cuja generalidade e universalidade só poderiam ser produzidas pelo discurso. O que está em questão é a busca ansiosa pela explicação verbal de obras reais e concretas, como se sem a palavra fosse-nos impossível entendê-las. A explicação assassina a fruição estética, já que ao reduzir a obra a uma explicação mata sua riqueza polissêmica e ambígua, direcionando-a num sentido unívoco. O problema é que essas pessoas usam um único verbo: entender. Entender significa reduzir uma obra à esfera inteligível. Eu nunca ouvi ninguém dizer: eu não consegui sentir essa obra. Como as pessoas têm medo de sentir, elas entendem, reduzem sua relação ao ato inteligível e, por isso, esperam pelo socorro do suposto farol da opinião daqueles que sabem: historiadores, filósofos, críticos, artistas, curadores ... Quando mal feita uma visita guiada pode estimular esse tipo de coisas, a não ser quando o educador tem uma perspectiva menos formal e estimula o público a estabelecer suas próprias relações. O artista contemporâneo nos convoca para um jogo onde as regras não são lineares, mas desdobradas em redes de relações possíveis ou não de serem estabelecidas. Hoje em dia a formação de público tornou-se uma preocupação essencial. O público passou a ser visto como 14 algo a ser permanentemente formado, sim. Mas quando se fala em formação significa que se vai transmitir alguma coisa. Há casos e casos. Não dá pra se ter uma regra a priori. Então, se alguém está movido por esse tipo de idéia, tem que pensar muito bem se vai tratar o aluno como um receptáculo, ou o visitante como um receptáculo, se vai despejar suas idéias sobre a arte e as obras ali. Não devemos confundir a formação de um teórico de arte, historiador ou esteta com aquilo que devemos fazer com o público. Todos os museus hoje ou têm headfone ou textos plotados nas paredes da sala expositiva. Mas, o monitor, o educador ou mediador deve ser menos a pessoa que transmit..a conteúdos acabados e mais alguém que estimule o público a estabelecer algumas relações de seu próprio modo. A arte contemporânea não é um campo especializado como foi a arte moderna. Centradas na busca de uma arte autônoma em relação ao universo temático, particularmente aquele do naturalismo acadêmico, as primeiras safras de artistas modernos pretendiam proteger o campo da arte das infiltrações de elementos literários ou narrativos (temas). A partir do Impressionismo, a arte moderna passou a refletir e a investigar de modo crescente 15 No mundo contemporâneo, as noções de sujeito, de indivíduo, de identidade, de unidade estão visivelmente em crise e é possível mapear vários pontos em épocas diversas o prenúncio dessa crise que não começa agora, já que estava em gestação no século XIX e hoje tornou-se, em alguns casos, parte do senso comum. Se nós quisermos entender um pouco da arte contemporânea nós não podemos fazer isso do ponto de vista estrito do especialista (o teórico de arte: crítico, historiador, esteta), discutindo as obras que outros especialistas produziram (os artistas como especialistas nas linguagens que utilizam). Ambos restritos ao universo exclusivo da produção artística, um mundo de especialistas. Não que especialistas tenham desaparecido, mas sua autoridade e seu poder de vida e morte numa avaliação perderam muito espaço, já que eles estão subordinados atualmente à multidisciplinaridade, ou à interface. As identidades no mundo contemporâneo não podem mais ser pensadas como uma plantação (onde cada planta tem .a sua raiz) porque ele está em rede. E não estou falando só da internet. Uma rede em que a identidade migra de um canto para outro. Mas de todas as relações que antes supunham identidades estáveis em todos os níveis. Hoje termos n identidades, e não mais uma só. 18 Todas as sociedades desenvolveram noções de pessoa diferentes umas das outras. A nossa desenvolveu a noção de pessoa ligada ao conceito de indivíduo sem divisão e como uma unidade. Se ele é um artista, tem um estilo só seu, inconfundível. A idéia de estilo individual, a coerência como um valor do artista não é natural, mas uma invenção possível do início do Renascimento. É no Renascimento que a arte e artesanato se separam, se não na escala dos valores e das idéias, ao menos na consciência e na prática dos artistas. Quando Leonardo da Vinci escreveu que a "pintura é coisa mental", ele afirmava em primeiro lugar que sua arte não era uma arte mecânica, isto é, meramente manual, tal como era então classificada. Para ele, o uso das mãos não era suficiente para reduzi-la à esfera mecânica, já que a pintura, por causa da perspectiva, do sombreado e demais aspectos, possuía questões racionalmente inteligíveis que justificavam uma mudança de patamar. Ela devia ser pensada como uma das chamadas artes liberais em que o intelecto possuía um peso decisivo. A afirmação do caráter mental da pintura teve outras conseqüências. Ela afastava-se do artesanato (estritamente manual) e de seus esquemas autorais coletivos. Além disso, é também importantíssima porque 19 pode indiretamente até esclarecer certos aspectos da produção contemporânea, na qual o fazer (manual) deu lugar à invenção e à idéia. O ready-made de Mareei Duchamp poderia ser visto dessa forma. Se é coisa mental o fazer não mais integra necessariamente o trabalho do artista. A idéia que as pessoas seriam unitárias, sem fraturas ou divisões internas, indivisíveis qual indivíduos, está em crise. O que aparece no mundo contemporâneo é a possibilidade de uma nova noçãode pessoa, fragmentária. A gente pode falar disso de várias maneiras, mas eu gostaria de voltar a essa investigação do indivíduo que tem a ver com a noção de unidade que é absolutamente familiar a todos nós até hoje. Tenho certeza de que até os mais jovens quando definem uma pessoa como íntegra querem dizer que ela é inteira. Mas integridade em si não é qualidade de ninguém. Tradicionalmente a unidade foi pensada qual algo que emana, no caso da nossa condição, de dentro para fora, e é plasmada como personalidade ou como estilo de dentro para fora, alguma coisa que venha do interior para o exterior. Mas, no mundo das três últimas décadas, tudo o que aparece como unitário é fruto de um processo exteriorizado de montagem ou de edição. 20 Indissociável da noção de identidade, a noção de unidade presidiu todos os processos cognitivos, dos mais intelectuais aos éticos e políticos desenvolvidos no Ocidente pelo menos nos últimos 2500 anos. Na Grécia clássica o pensamento filosófico orientara-se para a busca das qualidades permanentes que especificavam um conjunto com o objetivo de defini-las. Imaginem o espanto de um homem daquele tempo ao olhar para um mundo onde tudo se movia e se transformava, não só as coisas em relação umas às outras, mas cada uma delas tomadas em si mesmas. Algumas dessas transformações são observáveis com facilidade como, quando, por exemplo, uma semente germina em quinze dias; outras necessitam de uma longa espera, como aquela em que percebemos as transformações de um bebê até a fase adulta. Além de todos sermos diferentes uns dos outros, também o somos em nós mesmos, se nos compararmos com o que já fomos em outros momentos de nossas vidas. Como se pode afirmar que para além do movimento, da mudança e da transformação de tudo percebida pelos sentidos existem traços permanentes? E essa unidade é de ordem conceitual ou real? São perguntas que os gregos faziam e que responderam de diversas maneiras. 21 X i I og ravu r a de Albert Dürer. Para Gilles Deleuze, por exemplo, um dos filósofos mais importantes do século XX, a filosofia - e eu, sem qualquer dúvida, poderia acrescentar a ciência também - busca reduzir a pluralidade à unidade; reduzir, por exemplo, essa pequena amostra que somos nós, tão diferentes já uns dos outros, a um único conceito que é o conceito de homem. O conceito de homem teria de abranger todos os homens que existiram e ainda vão existir, desde o início até o fim da humanidade. É um conceito que não leva em 24 consideração quaisquer de nossas características pessoais específicas, sejam elas étnicas, de aparência física, cultural, religiosa, social ou política. Ele é universal porque concentra-se apenas num traço (ou em poucos traços) comum a toda a nossa espécie. Por exemplo, na conhecida definição de Aristóteles, o homem é um animal racional. Definição que se aplica a todos os homens porque não se detém em nenhum deles. Insisto na idéia de que o indivíduo é uma possibilidade histórica. Evidentemente, o mundo do indivíduo não é um mundo de liberdade (isto é uma ilusão infantil quase), mas, no mundo em que essa noção de indivíduo se desenvolve, a partir da Renascença, surgem problemas em decorrência da concepção de pessoa como indivíduo, concepção que, passo a passo, ao longo de vários séculos, valoriza na vida sócio-cultural as tendências, gostos e opiniões individuais, fato inédito na história humana. Como num mundo de opiniões (eu acho, eu não acho ... ) ficam os conhecimentos teórico-científicos? O conhecimento não é algo que um indivíduo acha que é uma coisa e outro acha que é outra: o teorema de Pitágoras não é um problema de opinião, mas algo comum a todos nós, como também o são as leis físicas, ou uma tábua de elementos da química. 25 Num mundo onde cada um acha uma coisa, como é que ficaria a esfera universal e comum do conhecimento, sobretudo o da ciência? Esse problema vai se manifestar progressiva e agudamente a partir do Renascimento, quando, por exemplo, surge a função autoral com muita clareza. Hoje em dia fala-se muito da crise do sujeito. Com isto, a tendência é reduzirmos a nossa compreensão da crise do sujeito à crise do indivíduo. Mas o indivíduo é apenas uma das esferas do sujeito que está em crise. A partir de Descartes e, sobretudo depois de Kant, surge uma outra noção de sujeito, que não é, ao contrário do que possa parecer, individual, mas comum a todos nós. Ao lado de nossas crenças e tendências pessoais esta instância ou função de sujeito cognitivo permite-nos aprender física, química ou matemática. Portanto, ao nível filosófico, a noção de sujeito é diferente da idéia de indivíduo. É o nosso lado universal. Para Descartes, as ciências tinham um grau de desenvolvimento muito desigual, encontravam-se em níveis muito diferentes. Seu projeto era o de fundar uma única ciência - a Mathesis Universalis - que se ramificasse e se desdobrasse em todas as outras. Essa foi uma das principais tarefas de sua filosofia. Nas Meditações ele se 26 propõe a impugnar pela dúvida todos os tipos de conhecimento então vigentes, para verificar se algum deles resiste à sua impugnação. Inicialmente, põe em dúvida os sentidos, em seguida as ciências da natureza, depois as matemáticas, até que chega a uma primeira certeza. Se tudo está sendo posto em dúvida, ele tem uma primeira certeza: não pode duvidar que alguém duvida, e daí passa para a famosíssima afirmação cogito ergo sum - "penso logo existo". O penso logo existo é o primeiro passo que se dá no restabelecimento de uma certeza comum à humanidade porque o indivíduo e os valores que emanam de sua existência histórica (eu acho) já estão em curso. A esse penso cartesiano a gente chama de sujeito também e, no caso, não tem nada a ver com a esfera das vivências pessoais; ao contrário: o sujeito cartesiano funda-se na idéia de uma substância pensante, supra-individual, mas comum a todos os homens, que nos abre os caminhos para partilhar qualquer conhecimento objetivo. Cerca de 140 anos mais tarde, Kant propôs uma noção de sujeito não mais fundada em razões metafísicas, mas como uma função inerente à própria faculdade de conhecer, que se impõe ao mundo, reconstruindo-o. O conhecimento seria, pois, antes construção do que a descoberta de algo 27 já dado empiricamente. A noção de sujeito cognitivo (aquele que conhece) que predominou em grande parte das teorias do conhecimento posteriores é de origem kantiana. Assim poderíamos explicar, por exemplo, porque a pesquisa de um cientista não morre com ele. Quando morre um físico, seu pensamento e trabalho podem continuar a ser desenvolvidos por seus assistentes ou até mesmo por outros físicos porque se trataria do trabalho cognitivo de um sujeito e não da expressão de vivências e idiossincrasias pessoais. O sujeito é uma instância supra individual, e que torna qualquer homem, individualmente falando, passível de compreender qualquer coisa que seja da esfera de sua humana condição. Ora, o mundo contemporâneo não só nasce com o indivíduo em crise, como sujeito cognitivo, também em crise. Foucault, sobretudo, trabalhou criticamente a idéia de sujeito, tal como foi definida plenamente há 200 anos. O campo de trabalho de Foucault é um campo híbrido, uma colagem. Sem a unidade de campo de um filósofo tradicional. Lembro-me que, quando eu estava na graduação em filosofia, vários professores diziam que Foucault não era filósofo, mas um sociólogo, porque seu objeto não era propriamente filosófico. Isso mostra que ele é uma das expressões dessa crise do sujeito unitário 28 facilmente reconhecível em sua especialidade. Costumamos exigir de um crítico de arte imparcialidade para que ele seja justo. Críticavem do grego, krísis (separar, distinguir, escolher, julgar), origem das palavras crise e critério. Nisso está implícita a idéia de que alguém só pode criticar se não estiver envolvido com a situação a ser criticada ou se não tomar partido explícito. Entretanto, ao contrário disso, se observarmos o período áureo da crítica de arte, o pós-guerra (os americanos Clement Greeberg e Harold Rosenberg, o argentino Jorge Romero Brest e o brasileiro Mário Pedrosa, apenas como exemplos), veremos que a melhor crítica foi justamente a que tomou partidos e defendeu posições e tendências. Os melhores críticos foram todos parciais. Mas isso contradiz a idéia de alteridade, de separação que se manifestaria em todas as esferas de atuação do sujeito, separação que garantiria sua isenção. O sujeito tem que estar separado do objeto de seu conhecimento porque ele possui uma função ativa diversa do campo de conhecimento para o qual ele se volta e que ele constitui como objeto de suas especulações e construções. A idéia de coerência estilística emerge com muita força quando o fazer (pôr a mão na massa) desempenha na obra 29 um papel muito importante. Por quê? Porque aí se estabelece uma cadeia entre a coisa mental e o fazer e entre estes e os resultados (obras). Por exemplo, no artesanato a autoria é coletiva. Entendendo por autoria os esquemas e os repertórios que presidem certo tipo de tecelagem ou de cerâmica. Em Caruaru, por exemplo, embora depois de Vitalino muitos tivessem assumido a identidade autoral do artista plástico, os esquemas, os repertórios são mais ou menos comuns, coletivos. Esse caráter coletivo é compensado por um processo onde o fazer é quase individual, uma vez que diferentemente de um filme ou de uma fábrica de geladeiras, a divisão do trabalho é pequena ou inexistente neste tipo de produção. Controlados em suas etapas essenciais por um único artesão, os processos artesanais se definem a partir do exercício e do adestramento da manualidade e não ao nível da elaboração individual de esquemas de representação (Renascença) ou da invenção formal (Arte Moderna). Se por um lado a invenção é limitada por princípios de invenção coletivos, por outro, essa limitação é compensada por uma prática na qual o corpo de um único trabalhador controla todo o corpo do processo de produção artesanal. 30 Num sentido oposto, os projetistas de um carro não precisam participar diretamente de sua produção para serem considerados autores do projeto. Do mesmo modo, um arquiteto ou designer também não precisa executar com as próprias mãos aquilo que concebeu e desenhou. A autoria do projeto é suficiente para torná-los autores, ainda que nem arquiteto ou designer façam, com suas próprias mãos, tijolo por tijolo, peça por peça, o edifício ou o produto por eles projetados. Afastamo-nos da produção artesanal nos últimos duzentos e poucos anos. Isso certamente teve múltiplas conseqüências. E eu não falo disso numa perspectiva apocalíptica, ao contrário, eu acho que tudo pode ser bom dependendo do uso que se possa fazer dessas coisas. Quando o homem passou a produzir bens utilitários não mais a partir da habilidade da manual, mas por meio de máquinas-ferramentas, houve uma expansão e multiplicação dos produtos sem precedentes, mas não devemos nos esquecer de que a essa multiplicação correspondeu outra, não menos importante, que foi a multiplicação da própria espécie humana. Se a gente pensar no período que vai do início da Revolução Industrial, no século XVIII, quando foi inventada a primeira máquina-ferramenta, o tear hidráulico, 31 até agora, veremos que a população da terra, que tinha então algumas centenas de milhões de habitantes, aumentou para os seis bilhões atuais em duzentos anos. A industrialização também condenou o artesanato. No que se refere à produção de imagens, a fotografia veio substituir a mimesis ou a representação clássica como o primeiro meio não artesanal de produção de imagens, depois vieram o cinema e, mais recentemente, o vídeo. De qualquer maneira, nada do que está acontecendo, nos 32 A Torre Eiffel! em construção e, na página seguinte, a Torre Eiffel! construída. últimos quarenta anos, é como um interruptor no qual, do escuro, passamos para o claro num toque. Se é a invenção ou a idéia que qualifica a autoria (coisa mental) o artista não mais precisa, necessariamente, fazer sua obra com as mãos. Essa é uma possibilidade conquistada desde a apropriação duchampiana e do objet trouvé surrealista. Sobre o abandono do fazer e sua defesa, Kandinsky, em carta escrita para André Dezarrois, em 1937, comentava: "os construtivistas vêem geralmente sua origem 33 bo cubismo que empurraram até a exclusão do sentimento ou da intuição e que tentam chegar à arte exclusivamente pelo caminho da razão, do cálculo (matemático ... exemplo do ponto de vista: Malevitch tinha como ideal a possibilidade de ditar sua nona pintura por telefone ao pintor de paredes- medidas exat<Js, cores numeradas)" ( Oeuvres de Vassi1y Kandinsky -1866-1944 -, p. 36). Não se tr<Jta de defender que a delegação do fazer a terceiros pelo artista seja a única possibilidade de fazer arte contemporânea (ainda que seja atualmente uma prática consagrada e muito difundida). Ambas são possibilidades legítimas e plausíveis. Não se trata de substituir uma pela outra. No fazer, na prática artesanal, há uma espécie de contigüidade quase física entre aquele que faz e sua obra. De todas essas conquistas a que mais interessa é a idéia da linha de montagem, na qual o produto é fruto, sem dúvida nenhuma, de um projeto concebido por um alguém que não participa da produção em nenhuma de suas etapas. Certamente, numa feira de uma comunidade de artesãos, eles sabem quais são os seus trabalhos, apesar de parecerem iguais aos olhos de um leigo. Entretanto, no pátio de uma fábrica, eu aposto que nenhum operário reconhece qual o carro de que ele participou da execução. 36 A indústria, ou seja, a produção dos objetos dos quais nós nos servimos na vida cotidiana, passa a ser fruto de uma relação anônima, coletiva de montagem. O produto ( sua unidade) resulta de um processo exteriorizado e não de algo que emana de uma expressão aliada a um fazer pessoais. Essa modalidade de produzir é oposta ao artesanato, Os produtos industriais podem ser fruto de projetos individuais (no artesanato são coletivos), mas sua produção é coletiva e fragmentada (no artesanato a produção é individual). A radicalidade das transformações sócio-econômicas introduzidas pelos processos de produção industriais se fizeram sentir muito fortemente na esfera da produção de imagens. Antes restritas à feitura manual, passaram também a serem produzidas a partir de tecnologias como a fotografia, o cinema e, décadas adiante, o vídeo. O que vai inventar a linguagem do cinema, isso é elementar, vai ser a invenção da montagem (análoga, por exemplo aos métodos de construção de Eiffel, à linha de montagem industrial e à escultura construtivista). Em sintonia com as tecnologias mais avançadas da informação, o vídeo é editado. Mas o que realmente importa é que o produto final tanto do filme quanto do vídeo resultam de processos exteriorizados (em relação ao artesanato) de montagem ou de edição. 37 Ninguém desmonta uma moringa, pois desmontá-la equivaleria a destmi-la, já que não foi montada, mas moldada. Quando um jovem nerd desmonta um computador, ele retorna à etapa imediatamente anterior à existência do mesmo, àquela antes ela montagem dos componentes (fragmentos) que deram origem ao produto. Imagens editadas, textos editados pela imprensa são análogos a uma nova modalidade de registro e criação ele imagens que é o vídeo: o vídeo é o melhorparadigma ela edição. São processos ele totalização exteriorizados. Se existe a questão da unidade no mundo contemporâneo, é uma coisa que se dá na chegada e não na origem. Ao mesmo tempo, os nossos fragmentos internos adquiriram autonomia e abriram outras possibilidades de invenção e criação por conexões, como nunca a humanidade teve anteriormente: a possibilidade ele celebrar a complexidade ela superfície. Tudo hoje em dia é articulado no mundo. Mas é importante caracterizar a diferença entre a montagem, típica da modernidade e a edição, característica da contemporaneidacle. Eu estou falando, respectivamente, de tecnologias elo século XIX (ótico-eletro-mecânicas) e de tecnologias das três últimas décadas do século XX (eletrônico-digitais). 38 Por exemplo, Alexandre Gustave Eiffel, um grande mestre ela engenharia do ferro, contribuiu para a modernização da arquitetura e das artes. A torre Eiffel é um volume sem massa (no mesmo sentido empregado pelos mssos Naum Gabo e Anton Pevsner, no Manifesto Realista, de 1920). Basta que comparemos a Torre Eiffel com a Torre de Pisa, na qual massa e volume estão integrados. Portanto, se a engenharia elo ferro pende de tecnologias siderúrgicas e novos métodos ele constmção do fim do século XIX, ela referenda também a separação de volume e massa que está na raiz da escultura moderna constmtivista levantada como uma ponte no próprio espaço. Engenharia e escultura se contaminaram e se nutriram desses processos ele montagem ou ele constmção que tem a ver com a lógica do produto industrial. Da mesma maneira, a expansão da internet, o mundo em rede está influenciando decisivamente a vida cultural de nossa época. Nós temos que pensar essas características do nosso cotidiano porque um dos grandes obstáculos para entender a arte contemporânea é o fato de ela ter-se tornado parecida demais com a vida. É como se, num processo de integração entre arte e viela, a arte tivesse doado tanto sangue para a estetização da vida que ela se desestetízou. 39 O crítico belga Thierry de Duve diz que a pergunta pré contemporânea (pré-moderna) era "isto é belo?", ou seja, quando alguém estava diante de um quadro sabia que era arte, mas não se era belo. Ele diz que no mundo atual o "isto é belo?" foi substituído pelo "isto é arte"? Mas, na verdade, essa não é uma pergunta que se faça só para a arte. Certa vez, eu estava num museu da Inglaterra com uma amiga. De repente, ela me disse: "há duas moças agarradas ali". Mas eram um rapaz e uma moça. O rapaz estava de batom e unha pintada. Isso significa o quê? Significa uma indefinição de papéis. A pergunta é "isso são duas mulheres?" ou "isto é um homem e uma mulher?" A gente faz essas perguntas o tempo todo porque no mundo contemporâneo não é mais possível estabelecer e fixar identidades. O verbo ser, que é o verbo da raiz, foi substituído pelo verbo estar, que é o da rede. A minha avó materna tinha os cabelos brancos, azulados por uma tintura. Para manter o cabelo penteado, ela colocava sobre a cabeça uma rede quase invisível. Sendo excessivo na licença poética poderia supor (ou quase delirar) que a cabeça da minha avó pode servir como exemplo de dois regimes identitários opostos: os cabelos, cada fio com uma raiz, pensa identidades que poderíamos chamar de verticais, do ser filosófico ao especialista; ou 40 seja, cada coisa é somente o que ela é (o princípio de identidade aristotélico: A é igual a A e diferente de B) e sua identidade se fixa porque sua raiz a fixa num único lugar da realidade. Mas aqueles cabelos, cada qual com sua raiz, não se despenteavam porque sobre eles havia uma rede, e isto fazia com que na superfície todos os fios se comunicassem entre si. O mundo contemporâneo permite pela primeira vez que o ocidente possa pensar a complexidade da superfície (rede), em lugar da superação da opacidade do mundo real pelo aprofundamento do conhecimento de suas causas profundas (raiz). O modelo da rede não é, como talvez muitos possam pensar, uma possibilidade da internet. Ao contrário, a internet é que foi demandada por um mundo que já estava em rede, no qual as pessoas assumem diversas identidades dependendo da conexão que elas estejam estabelecendo naquele momento. Não que isso não acontecesse no passado, mas a idéia de indivíduo e de identidade tinha tal força que juiz era juiz até no bordel. Como se classifica, por exemplo, um travesti, casado, pai de filhos, como o que foi noticiado na mídia há poucos meses? O que ele é? Difícil de definir, mas muito comum hoje em dia. Não se responde a essa pergunta. Nem faz sentido respondê-la. 41 Nós ocidentais pensamos sempre a corda por suas extremidades. Nunca definimos a corda pelo meio dela, ou por 2/4 ... Mas, provavelmente, no caso da arte, talvez uma boa definição devesse passar longe dessas polarizações típicas de nosso pensamento. No texto Leonardo e os filósofos, publicado em 1929, Paul V aléry diz que a experiência estética seria algo diferente da inteligência e, simultaneamente, diferente de nossas sensações comuns, isto é, essa experiência estaria situada em algum ponto entre a razão e a sensibilidade. Definir qualidades permanentes é muito fácil quando se pensa a noite e o dia. E o que se faz com o crepúsculo e com a aurora, que são tão parecidos e tão opostos? Como é que se define isso? Nós vivemos num mundo crepuscular ou boreal? Não sei. Os dois. Como é que eu dou nome? Como eu rotulo isso? Como é que eu chamo a isso tudo? Para que a gente entenda arte contemporânea, devemos entender dois momentos que a precederam. Primeiro: o momento em que a arte se torna arte, o que nós achamos arte, que é o Renascimento. Segundo: o momento em que uma outra arte, a moderna, rompe com a tradição mimética renascentista. E por último, ainda que panoramicamente, a gente pode traçar algumas diferenças essenciais entre a arte contemporânea e a arte moderna. 42 Na verdade, há uma questão que se discute pouco, na chamada história da arte. Aquilo que nós entendemos por arte - e que está deixando de ser - começa no Renascimento. Na verdade, falamos de arte egípcia, arte assíria, arte babilônica, arte indígena, mas, provavelmente as culturas que produziram esses objetos que nós chamamos de arte, não os chamariam assim. No texto clássico A obra de arte na época de sua reprodutíbílidade técnica, Walter Benjamin fala da mudança ocorrida na função da arte durante a Renascença. Da produção simbólica de objetos de culto, voltada para a religião e para o mito (valor de culto), chegou-se à contemplação estética (valor de exibição). De objetos de fé para a contemplação mundana, suscitada por sua beleza intrínseca. Com que sentimentos olhamos para a Píetá de Michelangelo? Mesmo um católico fervoroso tenderá a ver uma obra de arte e não um objeto de fé. A Píetá é antes uma obra de arte do que uma imagem, devocional. Em realidade, mesmo quando a temática religiosa permanece (segundo Walter Benjamim, lá discutindo o problema da aura, etc.), o que vai ocorrer é que a obra de arte passa a ser alguma coisa feita por um autor com o destino e única função de ser contemplada. Fora do 43 âmbito da contemplação estética ela não possui qualquer outro sentido. Mas, segundo Walter Benjamin, ela herda do passado a evocação ritual que vem de sua origem mágico-religiosa. Num museu ou num teatro, por exemplo, as pessoas falam baixo como falariam num templo. Porque o teatro também nasce de rituais mágico-religiosos. Na Grécia Clássica, quando se sacrificava o bode (tragos), entoavam-se cânticos, daí veio a tragédia e as pessoas que cantavam deram origem ao coro. Toda a arte tem origem na religião. As únicas manifestações simbólicas que possuem registros ancestraissão as artes plásticas. Eu não sei como um grego cantava, pois ainda não havia partituras, mas eu sei como um homo sapiens de 30 mil anos atrás via porque suas pinturas ainda estão lá. Nas paredes das cavernas. A origem da arte mistura-se com a origem da vida simbólica e da vida mágica ou religiosa. Um autor não muito cotado no Brasil é Ernst Hans Gombrich. Não sei porquê. Ele é excelente, mas, todo mundo prefere o Giulio Carla Argan. Como se gostar de um nos fosse impedir de gostar do outro. Os metafísicos que me desculpem, mas arte não tem nenhuma essência. Tudo o que é cultural é inventado, etc. 44 A idéia de que o homem precisa de se expressar, precisa de realizar-se individualmente é uma idéia histórica recente. Data da invenção do indivíduo, na Renascença. No Egito não há expressão individual. A arte egípcia foi praticamente a mesma durante dois mil anos. Para Gombrich se não existe arte em todas as culturas - no sentido que nós conhecemos-, pelo menos, podemos dizer que todas as culturas possuem artistas. Porque mesmo em objetos cuja função não era simplesmente contemplativa, eles usaram a simetria, puseram questões simbólicas, então, ele concorda que podemos falar de artistas desde a origem do homem. O que não podemos é falar de arte porque sua função muda, de quando em quando, historicamente. Portanto, ao invés de recusarmos a produção contemporânea em nome das teorias artísticas modernas, deveríamos procurar entender quais as razões que estão por trás de seu surgimento. O Gombrich é um autor que tem uma produção muito sofisticada. Ele é de uma genealogia teórica muito diferente da do Argan, que é marxista. O Gombrich tem origem no instituto Warburg. Na Alemanha, em Hamburgo, no século XIX, um banqueiro muito rico deixou uma fortuna e dois herdeiros. Um deles, que eu não sei se o mais novo ou o mais velho, chegou 45 uma máscara africana pode ser linda, mas ela é usada, por exemplo, pra adquirir poderes sobrenaturais. Então, a primeira função desta máscara não seria a contemplação. Um "Cristo morto" numa igreja, que só é exposto na Semana Santa, por exemplo, não é arte porque se arte é contemplação e ele é feito pra ficar coberto a maior parte do ano, então ele não é arte no mesmo sentido em que a entendemos e sentimos. O que se poderá então dizer das pinturas, das múmias e das coisas deslumbrantes do Egito, que eram feitas para não ser vistas por ninguém? Se elas são vistas hoje é por vandalismo, pela profanação de tumbas. Digamos que daqui a mil anos a gente pudesse visitar um museu e ver arte brasileira. Veríamos na sala expositiva uma pintura do Iberê Camargo, por exemplo, outra da Lígia Clark, junto com uma jarra de uma loja de design qualquer ao lado e uma geladeira Brastemp. Estranho não? Em que esse museu hipotético diferiria do Louvre que freqüentemente expõe ânforas gregas ao lado de esculturas clássicas? Certamente, um grego não achava uma ânfora uma obra de arte. Uma ânfora tinha uma função pra guardar vinho, azeite. Para Gombrich o que chamamos de arte tem 500 anos e, eu diria,· está acabando, está virando outra coisa que chamamos de arte contemporânea. 48 O fato é que, entre o término da Segunda Grande Guerra até os primeiros anos da década de sessenta, toda inteligentsia das artes pensava arte como forma. A partir dessa época, quando surge a primeira safra de artistas contemporâneos, começaram, ainda que imersos na perplexidade e na dúvida, as primeiras críticas à interpretação formal. Podemos dizer que a produção contemporânea começa com a Pop Art? Alguns diriam que ela se inicia no expressionismo abstrato americano da década de 1950. Mas, digamos que seja na Pop o início da arte contemporânea. Teóricos modernistas como Greenberg também tinham medo da produção contemporânea. Recusaram-na porque os esquemas de interpretação de que dispunham não decodificavam aquela coisa esquisita que estava acontecendo, porque eles pensavam formalmente. Teorias não pairam sobre transformações históricas, por todos os períodos. A interpretação da obra de arte como forma e como linguagem foi determinada pelo tipo de obra que os artistas modernos fizeram ao longo das primeiras seis décadas do século XX. No entanto, a tendência de qualquer teoria é projetar os sentidos específicos por ela produzidos, tanto para o passado, quanto para o futuro. 49 O formalismo serviu com perfeição a Greenberg para produzir sentido sobre a obra dos expressionistas abstratos americanos, quais sejam: Pollock, Barnett Newman, Rothko, De Kooning etc. Hoje ela não serve para produzir sentido para coisa nenhuma, talvez apenas para o modernismo. Mesmo alguém que queira falar sobre expressionismo abstrato hoje vai enfatizar aspectos que Greenbcrg não havia enfatizado. No entanto, a obra do Pollock está aí c estará por muito tempo: porque ele é um dos gênios do período final da arte moderna sua obra, ao contrário, terá uma sobrevida muito maior do que às teorias de Greenberg a seu respeito. Não acreditamos mais em deuses egípcios hoje em dia, mas isso não faz com que nosso apreço pela arte egípcia diminua, só porque ela era regulada, à sua época, por normas de origem religiosa. Se assim é, as teorias caducam e as teorias da arte caducam mais do que qualquer obra. Nenhuma obra de arte se torna obsoleta. Não se pode dizer que a cabeça da Nefertite ficou obsoleta, mas posso dizer que a roda da biga que foi encontrada lá junto com a cabeça é absolutamente obsoleta. Aliás, isso que digo está no manifesto neoconcreto de 1959. Ele afirma que se um neoconcreto tivesse de 50 escolher entre a teoria de Mondrian e a obra de Mondrian, ficaria com a obra, que está viva e fecunda porque a obra tem sobrevida maior do que a teoria. Uma leitura, uma interpretação, quer fixar significados que essencialmente não podem ser fixados para sempre. Ao surgirem novos teóricos e novas teorias, outros repertórios e outros olhares seus enfoques mudam e acrescentam às obras significados anteriormente impensáveis. Para os marxistas, por exemplo, a teoria explicaria tudo. O mundo de hoje, no qual uma empreitada intelectual de ordem teleológica é praticamente impossível, deve ser desesperador para um marxista. Na entrevista Os intelectuais e o poder, feita no início dos anos 70, Foucault e Deleuze dizem que a teoria é sempre a mediação entre uma prática e outra, e uma prática é sempre uma mediação entre uma teoria e outra. Eles acabam com a polarização entre teoria e prática tão cara aos marxistas. A teoria passa a ser não uma cosmovisão, mas um veículo. Se eu quero falar do barroco, eu não teria o menor problema em citar Wolflin, mas eu tenho que esquecê-lo se eu quiser falar de arte contemporânea. Portanto, eu não posso ser um sujeito no mesmo sentido que resultou do Iluminismo (Kant) já que eu não mais possuo um instrumento unitário, um monobloco que me 51 explique o sentido geral da vida. A crise do sujeito se manifesta aí também, ele não constitui mais uma função universal, uma metavisão, não é mais o produtor de um telas ao qual uma pessoa deva ser fiel o tempo todo. Isso não existe mais em nenhuma esfera. Aquela idéia de fragmentação e de colagem de um mundo editado se manifesta até aí. Também a teoria adquiriu historicidade. Ainda assim qualquer teoria é pra ser tratada com a mesma seriedade com a qual nós tratamos uma obra de arte. Renascentista, Moderna ou Contemporânea, não importa, porque elas são tão relativas ao período em que surgiram quanto a obra de arte, que eu diria, tem até uma perenidade que a teoria não pode possuir. Quando eu falo de teoria aqui, estou falando das teorias da arte, da filosofia da arte, da sociologia da arte, da antropologia da arte ou de psicanálise,desses campos que chamamos de ciências humanas e sociais dentro dos quais sempre coexistiram diversas interpretações. Algumas contraditórias entre si, sem que nenhuma das facções pudesse dizer "a minha é verdadeira", a não ser por paixão, fé ou crença. O campo de produção de sentido das coisas que nos afetam no nosso dia-a-dia, inclusive a arte, não é um campo com resultados unívocos, mas é um campo de 52 batalha entre leituras ou interpretações às vezes até contraditórias. Não se pode cobrar do século XIX mais do que ele podia. Como o século XX, sobretudo atualmente, mostra que a natureza do jogo teórico nas ciências humanas e sociais se dá antes pela leitura e pela interpretação do que pela imposição de uma verdade. Não há problema nenhum em dizer que essas teorias todas têm sua história, são passíveis de ser substituídas por outras mais interessantes. Curioso é que Michel Foucault, percebendo esse impasse teórico descobriu, em 1969, Panofsky. Foi quase uma revelação para ele. O conceito panofskiano de imagem podia servir, percebeu Foucault, poderia superar o impasse a que havia chegado a leitura formalista da obra de arte e produzir um sentido específico para a arte contemporânea. Uma natureza morta não é para a Iconografia (ramo tradicional da história da arte voltado para o tema ou mensagem, em contraposição à forma, segundo Panofsky), uma imagem. Já um cálice com uma cobra enrolada é uma imagem, desde que saibamos que ele é o símbolo da farmacologia. Mas, para que eu saiba que uma cobra enrolada num cálice é o símbolo da farmacologia, alguém tem que ter me dito isto. Porque aquilo que me é dado a ver reduz-se a um cálice com uma cobra. 53 • r I ·� r � r ,, ,, � � �' � l " ' � E " 1,) � � � � r iconografia. As imagens produzidas pela arte contemporânea desde a Pop, passando pelas mídias técnicas, não poderiam ser validadas como emblemas ou símbolos compósitos entre olhar e conceitos de trânsito cristalino no corpo social como as imagens de que falávamos. As imagens contemporâneas são entronizadas pela mídia, pela publicidade etc, como, por exemplo, a menina vietnamita nua correndo de braços abertos numa estrada após ser atingida por napalm, ou o beijo entre o marinheiro e a enfermeira registrados no fim da guerra por Robert Doisneau, ou ainda o Pato Donald e a Lindonéia de Gerchman. Foucault compreendeu ainda nos anos sessenta que as teorias formalistas não estavam mais aptas para capturar o sentido do que os novos artistas estavam produzindo. E para ele a iconologia pareceu-lhe então um feliz contraponto para a interpretação formalista. Wõlflin, que é um grande historiador da arte formalista, e viveu entre o fim do século XIX e a primeira metade do século XX, jamais escreveu sobre a arte moderna. A grande questão do Wõlflin é a passagem daquilo que nós chamamos de Renascimento para o Barroco, e que ele chama de evolução do estilo linear para o estilo pictórico. 56 No entanto, embora ele não fale nada a respeito da arte moderna, ao analisar o Renascimento como forma e o Barroco como forma, ele está sendo moderno do ponto de vista de sua perspectiva teórica. O que eu quero dizer é que os ismos não só se manifestam ao nível da produção, mas há os ismos teóricos também. Daí a perspectiva de interpretação formalista não ser mais pertinente para a compreensão da arte contemporânea. Alguns de nós talvez não tenhamos entendido sequer a diferença do espaço moderno para espaço renascentista. Por isso talvez tenhamos medo da arte contemporânea. O valor da pureza no mundo moderno engendrou maravilhas como os trabalhos de Theo van Doensburg ou de Mondrian e produziu monstros como Adolf Hitler que também a buscava, só que em nível étnico. O valor pureza informa tanto o racismo de Hitler quanto a beleza criada por Mondrian, Theo van Doensburg etc. Mas vamos seguir esse repertório essencial ao modernismo. No primeiro número da revista Art Concret lançada em Paris, no ano de 1930, Van Doesburg escreveu algo como: Na busca da pureza os artistas foram obrigados a abstrair as formas naturais que escondiam os elementos plásticos, a destruir as formas natureza e substituí-las pelas formas arte. Anos antes, Cézanne 57 afirmara que a "natureza deve ser vista através do cilindro, da esfera e do cone". Há em comum nessas afirmações uma idéia quase platônica que supõe que a natureza é um mundo de aparências que oculta uma estrutura geometrizada. Atingi-la seria como atingir a própria essência da visualidade e, portanto, da própria arte. Quando Gertrude Stein, poeta do início do século XX, diz: "uma rosa é uma rosa é uma rosa", ela nos quer dizer: "não há simbolismo". Uma coisa restringe-se ao que ela significa. Theo van Doesburg, no texto já mencionado, lançou idéias muito parecidas com as de Stein. Para ele um elemento pictural só significa a si próprio. Ele pretendia lançar a forma espírito, que vem direto da razão. Pintura Concreta, porque é a concretização do espírito criador, e não abstrata, porque não partia da natureza. Uma mulher, uma árvore, uma vaca seriam naturais em estado de pintura? Não. Uma mulher, uma árvore, uma vaca são naturais no mundo natural, mas em estado de pintura são abstratas, vagas, ilusórias, ao passo que um plano é um plano, uma linha é uma linha, uma cor é uma cor, nem mais nem menos. A própria idéia do kitsch vem associada a excessos decorativos que não têm a ver com a função daquele objeto. Portanto, ao se interessar apenas pelo mundo das 58 formas, em detrimento das imagens, a arte moderna está nos mostrando que busca um certo tipo de racionalidade e de funcionalidade essenciais que os devaneios simbólicos da arte do passado impediam que fossem alcançadas. Chega a ser curioso, por exemplo, ler um texto de Wõlflin sobre o Renascimento, porque ele reduz o Renascimento ao estilo linear, a uma questão perspectiva, formal, e suprime uma série de questões de conteúdo ou simbólicas que eram de alto interesse para aqueles que gostavam de arte no Renascimento. A forma era então somente um problema do métier do artista, que tinha de decidir se a composição era em triângulo ou em trapézio, mas a redução do problema da interpretação artística ao problema da forma é altamente conveniente para o modernismo. Na verdade, a arte tornou-se linguagem para fugir da idéia de uma obra sem conteúdo e só formal proposta pela arte abstrata. Então ela passou a ser pensada como uma linguagem estruturada num sistema de signos. Como ela voltou com muita força na arte contemporânea a ser imagem, eu suspeito de que ela esteja deixando de ser linguagem. Porque nem tudo o que comunica é linguagem. Enquanto os artistas plásticos, com um sentimento de grande orgulho, investigavam a forma pura, o 59 desenvolvimento tecnológico de reprodução de imagens fotossensíveis difundido sobretudo pelo cinema (e antes, a fotografia) passou a preencher o mundo de imagens que a arte moderna recusava produzir. É claro que muitos artistas sempre foram independentes. Um Volpi foi independente, um Milton da Costa foi independente, embora fossem independentes fazendo geometria. Porque era, digamos, o escopo da época ou a abstração informal, mais livre, etc. O modernismo do pós-guerra tornou-se uma espécie de fórum da alta especulação a respeito da produção formal, por exemplo, a gente sabe que, no momento em que a arte volta à figuração, com a Pop, entre a velha academia figurativa pré-moderna e as imagens técnicas da fotografia, da publicidade e do cinema, os primeiros artistas contemporâneos não tiveram dúvidas. Apropriaram-se das conquistas icônicas das tecnologias da imagem que a cultura moderna havia desprezado.Há poucos anos, tive um encontro que foi fundamental para a minha compreensão de uma nova noção de identidade em formação no mundo contemporâneo: eu tinha de escrever sobre um pintor que iria expor umas quarenta pinturas, todas do mesmo tamanho e expressionistas, mas diferentes do expressionismo histórico 60 e do neoexpressionismo alemães. Ele usava turquesa com rosa-choque, com verde limão e roxo. As telas tinham um cromatismo luminoso próximo à paleta sino-japonesa. Mas, eram quarenta e tantos rostos absolutamente, impactantes, se não me engano, todos masculinos, e todos se chamavam Doutores, Dr. Isso, Dr. Aquilo ... Eu perguntei ao jovem artista quem eram esses Doutores e ele, sem qualquer dúvida, hesitação ou ironia, disse-me que eles eram seus alter-ego. Eu pensei, então, ele tem 40 alter-ego que podem aflorar e que coexistem, neste momento, na parede. Estava, de fato, diante de uma pessoa fragmentada, o que não é problema se a fragmentação não tiver uma origem patológica. Não falo de um caso psiquiátrico, eu estou falando de uma pessoa produtiva, capaz de lidar e negociar com a fragmentação própria e com a dos outros. Senti então que deveria remeter essa afirmação do artista à reflexão sobre a unidade e a divisão, tal como vinha sendo formulada por pensadores como Foucault e Deleuze e não evidentemente do ponto de vista das disciplinas especializadas nesse campo, a psicanálise, por exemplo. Eu lembrei-me de histórias, de romances visionários para o século XIX, uma vez que eram metáforas do futuro, quer dizer que sem pretender ser predições terminaram por 61 antever o que está ocorrendo no mundo contemporâneo das últimas décadas. Lembrei-me primeiramente de Frankenstein ... Todos nós sabemos que, na interpretação antropológica mais corrente das pinturas mpestres, os homens pré históricos acreditavam que, se eles tinham o poder de produzir em imagem os animais que caçavam, teriam igual poder na caçada. Se eles podiam pintar um antílope, eles acreditavam que tinham a possibilidade do domínio efetivo do animal. A origem da imagem está ligada aos rituais religiosos, dentro dos quais nasceu a arte, tem duas pulsões muito fortes e contraditórias. Se examinarmos, ainda que rapidamente, algumas religiões, sobretudo as do Deus único, veremos que estas proíbem certos tipos de imagem, porque são tomadas como um imperdoável ultraje ao criador, Deus, que nos fez à sua imagem e semelhança. Mas em outras religiões, em certos ritos africanos, se alguém com raiva de uma pessoa quer feri-la, pega uma mecha de seu cabelo e faz um boneco de seu inimigo. Um vodu que lhe permitirá atingi-lo, ainda que à distância, causando-lhe todo tipo de mal. Ora, tanto as religiões que proíbem imagens, quanto as que dela lançam mão, partilham de um mesmo temor ou da mesma crença, só que 62 uma proíbe por excesso de zelo e a outra por excesso de licença. Há uma relação conflituosa com a capacidade de invenção e produção de imagens. O Frankenstein, no entanto, é muito mais do que eram as imagens para o homem pré-histórico. Ele é o primeiro homem constmído pelo próprio homem. Diferentemente do mito, ele é uma possibilidade da ciência (de ficção). A figura do cientista louco é absolutamente paradoxal, porque se o cientista é o homem da razão - do penso - ele teria de ocupar, numa escala do pensamento humano, uma extremidade oposta à do louco, que é o homem privado disso tudo. O Frankenstein foi o primeiro homem editado na história da humanidade, montado a partir de pedaços de outros homens. Antes da linha de montagem fordista, tem se um homem editado, que surge provavelmente por uma atitude absolutamente sacrílega do Dr. Victor Frankenstein. Por desrespeito ele "matou" Deus (entre aspas porque Deus não pode ser morto) e por isso vê seus entes mais queridos serem assassinados por sua criatura, o monstro que ele cnou .... Estaríamos em vias de criar éticas, estéticas e políticas fundadas na nossa divisão, ao ponto funcionarem como alternativas à ética, à estética e à política pactuadas no Iluminismo (século XVIII) e que nos regeram até à crise 63 que deu lugar à contemporaneidade lá pela passagem dos anos cinqüenta para os sessenta? Isso é uma coisa que talvez possamos já vislumbrar em nosso cotidiano, embora repertórios culturais do passado dificultem essa percepção. Na verdade, o mundo contemporâneo ainda não é propriamente um mundo de homens editados, mas isso está sendo prenunciado com todas as letras, primeiro com os transplantes, depois com certas próteses, agora com a clonagem, não a clonagem de corpos, mas de órgãos, as pesquisas sobre as células-tronco. Por outro lado, a idéia de que possuímos uma unidade psíquica, individual, esfacela-se nos inúmeros papéis (afetivos, familiares, profissionais, sexuais, políticos, éticos e estéticos etc.) que podemos nos encaixar. O que está em questão agora não é simplesmente o fim da unidade - o mundo contemporâneo não propõe o fim da unidade - mas uma outra noção na qual a unidade resultaria não de um núcleo interior profundo, mas da montagem, colagem ou edição de partes e fragmentos, análoga à unidade montada de um produto industrial, de um filme ou de uma ponte de ferro, ou à edição de um vídeo ou de um texto. 64 Por razões que desconheço, a literatura do século XIX pôde antever os sonhos do futuro em alguns romances. O curioso é que, para o século XIX, todos esses livros causavam medo. Alguns dos mais acalentados desejos do mundo atual têm por origens esses pesadelos literários dos últimos 200 anos. Antes mesmo da publicação de Frankenstein, escrito por Mary Shelley, e lançado em 1818, temos o Fausto, de Goethe, publicado em 1808. Sua interpretação costumeira soa maniqueísta. Fausto trocou sua alma, vendida ao diabo, pela glória mundana, ou seja, pela leitura habitual, era o homem que podia ser bom, mas escolheu o mal histórico. Mas podemos ver Fausto de uma outra maneira. Como, por exemplo, uma tensa possibilidade de relacionamento entre nossas partes, uma barganha entre elas talvez. Seria um outro exemplo de antevisão da contemporaneidade mais de um século e meio antes de sua emergência. O médico e o monstro (O estranho caso do Dr. Jekyll e do Sr. Hyde) de Robert Louis Stevenson, lançado em 1886, trata da dualidade, da cisão de um indivíduo, como uma idéia inaceitável para o mundo moderno da época (uma idéia aterrorizante). O tema da divisão do indivíduo também tem um desfecho trágico, porque um dos lados deve prevalecer e outro destruído para a unidade perdida 65 ser restaurada. Novamente, há aí uma proximidade perigosa entre ciência e loucura. Aquele que tudo faz em nome da ciência e, por isto, ultrapassa limites éticos, flutua num ponto indeterminado entre sanidade e loucura: o próprio título em inglês de O médico e o monstro é revelador: Dr. fekyll and Mr. Hyde. Se tirarmos as duas primeiras letras do nome de Dr. Jekyll, e lermos o que sobra, o veredicto é claro: Kíll the Hide, ou seja "mate o escondido". O outro deve ser eliminado porque eu sou um só (eu não posso ter um outro, um estranho, em mim). Finalmente, dentre essas narrativas a mais difundida é provavelmente Drácula, de Bram Stocker, lançada em 1897. Drácula está contaminado, e contaminará muitos mais, porque o vampirismo passa por contágio. É uma coisa que se propaga como uma epidemia em rede, de uma forma rizomática. Portanto, a contaminação em rede (Drácula), a divisão da alma (O médico e o monstro) e o homem editado (Frankenstein) são possibilidades absolutamente cotidianas e até desejáveis, para nós contemporâneos, mas, no entanto, no século XIX, só podiam encaradas sob a rubrica do horror. 66 A contemporaneidade de uma obra estaria nos meiose nos suportes utilizados por um artista? Sim e não. Você tem obras contemporâneas realizadas com meios convencionais como a pintura e desastres registrados em mídias como o vídeo, inventado apenas há uns 43 anos. Porque uma pessoa que faça um vídeo de uma mulher na praia com um vestido de gaze branco e do outro lado um homem com uma calça arregaçada de linho branco e camisa branca, correndo em câmera lenta um em direção ao outro, é um dejà vu descarado. A arte contemporânea pode estar em vários lugares simultaneamente desempenhando funções diferentes. Mas, o principal de tudo isso são novos tipos de relação que ela nos faz estabelecer. O novo sujeito não será epistemológico como foi o intentado por Kant, mas estético, um híbrido de contradições, porque o homem contemporâneo precisa de um modelo positivo da vivência da contradição. Habituamo-nos a pensar que a arte é uma coisa muito diferente da vida, dela separada pela moldura e pelo pedestal. Aliás, a arte foi mesmo isso durante a maior parte de sua história, pelo menos desde a Renascença. A idéia de uma arte que se confunda com a vida é muito difícil de assimilar porque os nossos repertórios ainda são 67 informados por muitos traços conservadores, alguns deles pré-modernos. Eu acho que a gente precisa ter um outro modelo onde a contradição seja positiva e o único modelo desse tipo no Ocidente é o do artista. O artista junta um rabo de peixe com um corpo de mulher e cria uma situação absolutamente verdadeira: a sereia. Junta um banco com uma roda de bicicleta e cria uma situação verdadeira, como fez Duchamp. O único lugar em que o Ocidente conseguiu tornar positiva uma situação que não é lógica e que não é plausível foi no campo da arte e o mundo contemporâneo busca o transbordamento desse modelo do artista para outras esferas como a teoria, os valores ético-políticos e morais, a legislação etc. O novo sujeito tem maiores condições de ser artístico do que epistemológico (Kant). Daí certos artistas trabalharem quase como cientistas. Quando um Barrio, por exemplo, registra experiências que não têm nenhuma importância do ponto de vista teórico-científico, como quando imprime o corpo de um peixe numa feira em Lisboa, para ver o que as pessoas acham, e registra isso. Talvez o mundo contemporâneo seja mais constelar, menos estrutural. Portanto, a produção de sentido se dá através de processos de interpretação, e uma mesma 68 realidade pode suportar várias interpretações, sem que isso gere contradição. Diferentemente da arte moderna, a arte contemporânea não possui um campo específico especializado que nos facilitaria a empresa de designá-la e dominá-la por meio do conhecimento e da informação. Nenhuma divisão mais do conhecimento humano tem esse poder, isto não é um problema exclusivo da arte. Cézanne se defrontou com certas questões que se abrem para todos os campos da arte moderna; Duchamp faz a mesma coisa com a arte contemporânea, embora ele seja um moderno. Só podemos reconhecer a arte contemporânea se tivermos conhecimento de algumas coisas dos processos nela investidos. Na verdade, quando eu escrevo sobre a arte contemporânea eu procuro pensar no que uma obra tem, até porque é da natureza das coisas no mundo contemporâneo fugirem à classificação em modelos fixos. Se eu não tenho um padrão fixo para dizer arte contemporânea, eu tenho dezenas de critérios, alguns contraditórios entre si, que são combinados e que tecem uma malha esgarçada que caracteriza os textos atualmente. 69 Embora antiqüíssima a hermenêutica parece estar, outra vez, na ordem do dia. Claro está que esse retorno é muito diferente daquilo que era praticado na leitura das escrituras sagradas durante a Idade Média inteira, quando havia uma interpretação analógica e várias formas de interpretação previamente descritas e que orientavam alguém no momento em que se ia interpretar um texto. A expectativa de uma exatidão, de uma precisão, de uma aplicabilidade que as ciências da natureza nos trazem, colocou a interpretação num patamar menos aceitável do jogo teórico, pois perdeu as forças que tinha para uma noção diferente, a noção de análise, uma prática ligada ao laboratório. A interpretação permite a coexistência com outras interpretações. Claro, a interpretação nunca é algo que se dê na esfera do arbitrário, do "eu acho", para se legitimar. Mas é diferente, por exemplo, da lei de Newton, ou da fotossíntese, que não se restrigem à interpretação. O fato é que a crise das grandes teorias, a crise desses verdadeiros faróis teleológicos que tudo iluminavam vai culminar com uma redescoberta e uma revalorização, uma retomada em novas bases (bastante subjetivas, posto que baseadas na subjetividade e na erudição de quem está interpretando) da questão da hermenêutica, da arte de interpretar. Ela hoje é parte do métier crítico-curatorial. 70 Eu não diria mais que existe crítico de arte, a função crítico de arte foi substituída por uma função contemporânea, curador, que é diferente da do crítico, porque o crítico era aquele que pegava um produto recém-lançado, e às vezes de uma maneira arbitrária ou não, ele tinha um poder, pelo menos naquele momento, de dar o veredicto de vida e morte, se aquilo era bom, ou se não era bom, se era arte, ou não era arte. O curador não mais atua nessa esfera, num tipo de tribunal. Porque o crítico, sobretudo na década de 1950, época do grande período da crítica de arte com Mário Pedrosa e Ferreira Gullar, por exemplo, no Brasil; Clement Greenberg e Harold Rosemberg, nos Estados Unidos; Pierre Restany na França etc .. tinha esse poder judicante a respeito do que é bom e do que é mal, pois dispunham de teorias gerais que lhes emprestavam uma objetividade que de fato não tinham. Ninguém precisava de um curador no período modernista. A primeira exposição neoconcreta, realizada no Museu de Arte moderna do Rio de Janeiro, em 1969, não teve curador (aliás, nehuma exposição da época o tinha): todos os neoconcretos sabiam que o eram, por isso não preciavam de um curador para conceituar o evento e escolhê-los, pois a tarefa era de sua própria alçada. Fayga Ostrower, por exemplo, não era neoconcreta e, por isso, 71 não participou. Não somente isso. Tenho certeza de que ela sequer ficou chateada ou sentiu-se excluída, pois, por sua própria decisão não aderira ao movimento neoconcreto. O mundo contemporâneo não mais valoriza a pureza, inclusive estilística, buscada obcessivamente pelos artistas modernos em nome da interface, da multidisciplinaridade e logo a contaminação, a hibridização e o ecletismo. O mundo contemporâneo é absolutamente impuro e isto é para ele um valor. Porque se impureza é conviver com a diversidade -seja ela étnica, política, sexual etc. -ela tornou-se um valor positivo da contemporaneidade. Prefiro mil vezes a impureza que me põe convivendo com o diferente, à pureza que o exclui. O mundo contemporâneo é cheio dessas possibilidades. Mas a falta de um objetivo ou utopia comuns como foram o marxismo e a psicanálise levam a um contraponto terrível dessa disponibilidade para com o outro. Fundamentalistas de todos os teores, neonazistas, pit boys que saem dando cacetadas por aí querem a pureza, eles certamente não suportam a diferença. A Klu Klux Klan também não gosta. Considerando nossa realidade social e histórica atuais o que haveria de estranho quando um artista contemporâneo 72 faz uma instalação com materiais retirados da própria vida como jornais, objetos apropriados do circuito industrial (e mesmo artesanal) de produção de utilitários, coloca às vezes até produtos orgânicos, ele está dialogando com coisas muito mais importantes da vida do que cometendo a picaretagem de querer ser diferentea qualquer preço. Os ismos eram o ponto onde o indivíduo fazia mediação com a história. Se Lygia Clark é diferente de Hélio Oiticica, este de Lygia Pape ou de Franz Weissman e Amílcar de Castro, eles se inscrevem todos na história como neoconcretos, e a escolha de ser neoconcreto dependeu de sua própria escolha. Atualmente, a maioria dos jovens artistas supõe que sua obra decorre apenas de suas vivências e experiências pessoais. Desse ponto de vista ficaríamos aquém da história, já que, se ficamos na esfera individual, subjetiva, estaríamos autorizados a fazer, no máximo, uma psicologia da arte. Para que se faça história da arte, é necessária a inserção desse indivíduo numa coletividade mais ampla, na qual ele não quer ou não sabe se inserir. Eu diria que não quer e não sabe porque num mundo no qual o sujeito, sua obra e especialização estão em crise não é mais possível a existência de ismos tal como ocorria no mundo moderno. A produção contemporânea não pode mais ser agrupada 73 em torno da adesão a princípios plástico-formais, uma vez que, ao transbordar para a vida, afastou-se do campo plástico-formal que a especializava. Se a gente conversa com um artista jovem contemporâneo de um desses grupos veremos que não são as afinidades formais, plástico-formais ou estéticas (estética aqui como qualidade do sensível, daquilo que eu vejo, daquilo que eu possa tocar) que os reúnem e aglutinam. Não! Formam-se em torno de atitudes, de certas crenças, de certas convergências subjetivas. A arte contemporânea não produz ismos como os do modernismo, pois transbordou o âmbito dos meios plásticos convencionais e contaminou-se com todas as outras regiões da ação humana e da cultura. Essa dispersão manifesta-se hoje, de modo inequívoco, no cotidiano das artes, porque os artistas perderam parte de seu antigo poder de criar eventos de grupo a partir de critérios claros e exclusivos como ocorria na era dos ismos modernos. Essa tarefa migrou para a subjetividade de um outro agente, o curador, cuja função é a de criar temas, selecionar os artistas e as obras num circuito de exposições independentes ou institucionais. Esse novo agente chega em alguns casos a disputar a autoria de exposição onde os outros artistas são apenas protagonistas, porque sua obra é o conjunto da exposição. 74 Nós estamos diante dessa questão hoje em dia. Não é uma questão de vontade ou de intenção maléfica por parte dos curadores. Sua relação migra da esfera profissional para a afetiva, já que tanto ele quanto o curador trabalham num mundo onde a diferença entre o que é público e o que é privado viu-se abalada com a subjetivação das relações sociais em escala universal (talvez uma manifestação da crise do indivíduo). Um artista contemporâneo que trabalhe com tecido e bordado que tenha sido esquecido por um curador, seja porque não goste dele, seja porque não o conhece, numa exposição que tenha esse tema, entra num circuito, como é típicamente subjetivo. É claro que num país como o nosso, onde as coisas são muito arbitrárias e autoritárias, por enquanto, alguns grupos de artistas estão propondo como antídoto o mesmo remédio que se recusam a tomar. Propõem assim eventos sem qualquer seleção nos quais entra quem quiser (será que isso é possível?) Todos esses grupos são uma rejeição à subjetividade do curador. Subjetividade que eu acho abusiva, delirante até e, muitas vezes, comprometida com jogadas do mercado de arte. Se o curador está numa instituição existem limites éticos que não emanam de nenhuma regra, mas de decisões de 75 cada um de nós. Esse é um mundo muito mais difícil, onde cada um é responsável por tudo, mas é o mundo no qual a gente vive. Daí precisarmos editar nossa fragmentada existência: da interioridade (psicanalista), ao corpo (personal trainer), nossas casas e cidades, nossa fé (gurus) até nossas relações (internet) e textos (Word). Nesse ponto sou historicista até à raiz. Acho que isso é fruto de circunstâncias históricas que não foram criadas por nenhum de nós. Daí conclusões salvacionistas como restaurar a janela renascentista ainda que venha de um grupo de pessoas estão fadadas ao insucesso. Nem adianta reclamar de eventuais discriminações porque as coisas não aparecem ou se consagram por voluntarismo, mas por demandas histórico-sociais efetivas. Eu trabalho num museu também, sei que esse dilema é um dilema não só do curador, como dos museólogos, dos marchands, da legislação de direito autoral, porque a crise do sujeito, a noção de autoria é uma noção colada com a noção do indivíduo. A gente sabe que na música eletrônica, por exemplo, um DJ como o Dolores, de Pernambuco, o que é que ele faz? Ele se apropria de fragmentos de outros e faz seu trabalho. No entanto, pelos padrões autorais vigentes, isso pode gerar problemas de legislação, aliás, toda vez que a 76 arte se renova isso pode ocorrer. O sampler já é um sintoma de que a noção de arte mudou radicalmente O que é um autor? O Foucault tem um texto lindo com esse nome. O autor é um indivíduo? Se um autor é autor porque publica textos, então, digamos, se encontrarem um bilhete escrito por ele para a empregada ir ao supermercado, esse bilhete é uma obra, é de sua autoria? Claro que não. Então o autor não se delineia com os mesmos contornos de um indivíduo, ou da pessoa que o contém. Um artista é artista só num sentido figurado, ou de seus sentimentos. Mas um artista seria artista 24 horas por dia, quando namora, quando dá uma chinelada no filho ou sei lá o quê? Claro que não! A não ser que seja aquele ente que vive pensando que tudo é arte, tudo é maravilhoso, visão que não combina mais com a experiência que o nosso mundo fraturado nos proporciona, que é um mundo avesso à contemplação. Contemplação é, aliás, uma palavra que está fora do nosso roteiro. Então, é importante que tudo isso que a gente esteja vendo seja percebido como parte de um campo de tensões superficiais e complexas, e em rede. 77 Documento digitalizado(1) Documento digitalizado(2) Documento digitalizado(3) Documento digitalizado(4) Documento digitalizado(5) Documento digitalizado(6) Documento digitalizado(7) Documento digitalizado(8) Documento digitalizado(9) Documento digitalizado(10) Documento digitalizado(11) Documento digitalizado(12) Documento digitalizado(13) Documento digitalizado(14) Documento digitalizado(15) Documento digitalizado(16) Documento digitalizado(17) Documento digitalizado(18) Documento digitalizado(19) Documento digitalizado(20) Documento digitalizado(21) Documento digitalizado(22) Documento digitalizado(23) Documento digitalizado(24) Documento digitalizado(25) Documento digitalizado(26) Documento digitalizado(27) Documento digitalizado(28) Documento digitalizado(29) Documento digitalizado(30) Documento digitalizado(31) Documento digitalizado(32) Documento digitalizado(33) Documento digitalizado(34) Documento digitalizado(35) Documento digitalizado(36) Documento digitalizado(37) Documento digitalizado(38) Documento digitalizado(39) Documento digitalizado(40)