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Isadora Dutra de Freitas | 63 3. Análise da tragédia Assim, analisando cada personagem individualmente, podemos com- preender melhor as relações entre si e, sobretudo, o que cada um representa no contexto da pólis. Para Karen Moutinho de Assis: “Nessa perspectiva, o prólogo condiciona, nos termos da philia, a ação trágica da tragédia: o retorno do herói a Troia, a união dos guerreiros gregos” (ASSIS, 1996. p. 94). Concordando, por este viés, o posfácio da tradução de Filoctetes por Trajano Vieira destaca o desenlace da tragédia através da relação que é firmada entre o herói abandonado e o jovem efebo Neoptó- lemo e, posteriormente, afirmada por Heracles. Para Vieira, a aparição de deus ex machina é que consolida o final do drama: "É de se destacar que a solidão do personagem só acaba quando Héracles, de quem havia recebido o arco, determina sua ida a Troia. Nem a persuasão, nem o arrependi- mento, nem a força física o haviam feito mudar de idéia" (VIEIRA, 2014, p.177). O que percebemos nesta última citação é que o grande responsável pela aceitação de Filoctetes de seu destino foi divino. Entretanto, a philia está intrínseca nessa decisão, quando o deus encerra sua orientação afir- mando que: “(...) a tomada de Troia, belo campo dependerá da mútua confiança (θςλάδδεηον), qual dupla de leões que caçam juntos, ele contigo e tu com ele" (v. 133-136). Assim, ambos os heróis deviam se manter uni- dos, por meio de um companheirismo e amizade que se consolidaram. Portanto, assim como a philia pode ser considerada a katarse - no sentido Aristotélico - desta obra, conforme as ideias de Assis, também constitui o grande problema. Filoctetes, como já vimos, foi ultrajado ao ser abandonado por dez anos na ilha de Lemnos. Solitário, sem qualquer contato com humanos, beirando a linha entre selvagem e civilizado. Deste modo, ao ser excluído 64 | Histórias Antigas: entre práticas de ensino e pesquisa desta relação pelos próprios amigos, tornou-se um aphiloi - sem amigos. Ainda em seu posfácio, Vieira reitera a imagem de Filoctetes como um morto civicamente: Filoctetes, assim como Édipo em Colono, vive, de certo modo, antecipada- mente a morte, prefigura e, sua indiferença em relação ao mundo que o cerca, o sentido metafísico da ausência, do retorno ao vazio depois do inacreditável desenho que seu destino configurou (VIEIRA, 2014, p.177). A relação estabelecida entre estes heróis reflete à função social de am- bos, principalmente no que se refere à imagem de Odisseu, como nos elucida Matheus Dagios: São postos em cena visões de mundo e de cidade em embate, aquela diké con- tra outra diké, assinalada por Vernant como característica do texto trágico, que no Filoctetes é elaborada nos diferentes discursos dos personagens Odisseu, Filoctetes e Neoptólemo e na sua interação (DAGIOS, 2012, p. 143). Como o autor indicou muito bem, a análise por opostos em contradi- ção - muito utilizada por Jean Pierre Vernant - cabe muito bem no estudo desta peça. Entre Odisseu e Neoptólemo vemos as condições de adulto e efebo; tecné e areté, que consistem justamete no aspecto principal desta relação: o convencimento sem compromisso com a verdade em oposição à veracidade e justiça. Sobre este primeiro ponto de oposição podemos perceber pela própria tradução como a visão de Odisseu afrontava os prin- cípios do Aquileu. No verso 1125 da tragédia, onde Odisseu indaga a Neoptólemo: "Odisseu: estou perplexo, que erro cometeste?", podemos observar no texto original a palavra erro como hamartía (άμαπηία), que para Aristóteles, em "A Poética", consiste na falta, no erro cometido pelo personagem trágico, conforme afirma Almeida. Em "Mito e Tragédia" este conceito também é colocado como um dos pontos de tensão da tragédia: