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Matheus Barros da Silva | 39 verso 120 Neoptólemo diz: “Seja! Farei, abandonando todo o escrúpulo”. No texto original o que designa escrúpulo é αἰσχύνη (aiskhúnē), que pode ser traduzida por vergonha ou desonra. Isto está de pleno acordo com sua natureza heroica, uma vez que uma das características do heroísmo aris- tocrático é seu senso de honra perante o grupo. Aquiles, justamente pai de Neoptólemo é o maior exemplo dentre os gregos. O drama segue seu desenvolvimento, até que na altura do verso 896 Neoptólemo retrocede, deixa transparecer seu impasse e passa então a re- velar o plano a Filoctetes. O arqueiro se vê mais uma vez vítima de uma trama sórdida, sua dor física é complementada pelo ferimento que tam- bém é feito em sua alma e caráter. Desse momento em diante o que a peça apresenta são os apelos de Filoctetes ao filho de Aquiles, que esse aja de acordo com a natureza que certamente herdara de seu pai. O que Filoctetes mais quer é apenas ser levado para sua casa, nada quer com a causa grega, despreza a glória guerreira, pois já não é seu mundo. Filoctetes se enche de fúria, que chega a níveis muito elevados quando Odisseu retorna à cena. Filoctetes tenta se matar e também matar Odisseu (Sófocles, Filoctetes, vv. 1002-1003; v. 1299). É impedido por Neoptólemo, mas não com força física, ou astúcias. Neoptólemo usa agora a persuasão clara. Parece ser possível afirmar que sua natureza foi reatualizada, ao mesmo tempo que é tributário da herança moral de seu pai, também afir- ma os valores da pólis e do mútuo agir visando um bem comum. O Filoctetes tem êxodo entre os versos 1409 e 1471, com a aparição de Héracles como deus ex-machina. O deus ordena que Filoctetes seja in- tegrado ao contingente grego, que lute lado a lado de Neoptólemo, derrubando Troia e sendo curado de sua ferida. A voz de Héracles traz para o mundo dos homens a palavra divina, reorgani- zando o espaço e devolvendo cada um a seu lugar. As armas recuperam a sua função de instrumento para conquista de algo maior. Acima de tudo está a 40 | Histórias Antigas: entre práticas de ensino e pesquisa piedade (eusébeia, 1443) que não se acaba com os mortais e se confunde com o próprio Zeus (SANTOS, 2019, p. 95). Fernando Brandão dos Santos destaca a εὐσέβεια (eusébeia) no dis- curso de Héracles. O deus ao reintegrar Filoctetes e justamente ao lado de Neoptólemo, “estabelece, assim, um discurso que concilia o novo com o antigo” (SANTOS, 2019, p. 95). A εὐσέβεια (eusébeia), que pode ser tra- duzida como piedade religiosa, também pode ser entendida como o valor de respeito mútuo entre os cidadãos na pólis clássica. Com efeito, é possível ver que Neoptólemo está entre a natureza e a cultura. Uma oposição que ocorria em Atenas ao final do século V a. C., e visava inquirir qual formação, qual educação, qual cultura era necessária aos cidadãos. Um debate candente, presente na pólis de quando da ence- nação do Filoctetes. Em um artigo, Fernando Brandão dos Santos resume em poucas e certeiras palavras o debate que aqui se julga possível apreen- der do Filoctetes: “como pode se dar a formação ou a transmissão de caráter no ser humano” (SANTOS, 2019, p. 87). O tema estava presente na cultura comum grega, seja na tese da decadência das raças de Hesíodo, ou nas reflexões sobre o homem virtuoso de Aristóteles. Tucídides, mais con- temporâneo a Sófocles, também discorreu sobre essa temática (III. 70-85). Mantendo a concepção de que a tragédia é arte política, a leitura que aqui se faz do Filoctetes de Sófocles propõe que o drama apresenta no te- atro a figura de um jovem em processo de maturação de seu caráter. Sendo exposto a paradigmas de conduta frontalmente opostos – Odisseu e Filoc- tetes. A tragédia é o grande momento da educação pública em que a cidade atualiza a tradição e apresenta atualizados as suas referências e os seus valores aos seus cidadãos. A tragédia não oferece modelos de conduta, mas mostra confli- tos, contradições, erros de avaliação e obstinações fatídicas, que estimulam a