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1 Algumas relações entre as imagens e os sons no audiovisual contemporâneo: o crepúsculo de uma era1 Luciene Belleboni2 Universidade Metodista de São Paulo - UMESP Universidade Metodista de Piracicaba - UNIMEP - Professora Resumo A sociedade contemporânea apresenta uma extensa gama de produtos audiovisuais, porém integra suas linguagens constituintes em diferentes níveis de resolução. Durante a década de 80 e início da de 90 os músicos passaram a contar com as ferramentas digitais de reprodução sonora. A utilização desses meios desencadearam, sob vários aspectos, uma revolução nesse fazer artístico que afeta as produções audiovisuais. Pretendemos pesquisar como os profissionais envolvidos na produção audiovisual concebem a articulação entre som e imagem em narrativas audiovisuais e como essas transformações ocasionadas no sistema de produção, via tecnologia digital, vêm atuando na unificação e integração dessas linguagens. Privilegia-se a trilha sonora, como objeto, buscando-se a interface desse com os sistemas de linguagem do produto audiovisual. Palavras-chave: imagem; som; audiovisual; processos mediáticos. 1 Trabalho apresentado ao Núcleo de Pesquisa Mídia Sonora da Intercom, Porto Alegre, set. 2004 2 Psicóloga (Unimep), especialização em Música e Indústria Cultural (UFB) e Mestre em Ciências da Comunicação pela ECA/USP. Professora universitária desde 1995 na área de áudio em Cursos de RTV. Coordenadora e orientadora do Projeto Experimental de RTV – Unimep de 1999 a 2003. Coordenadora da Rádio Metodista da Facom RTV- Umesp desde 2002. Produtora de paisagens sonoras para vídeos experimentais desde 1993. Cantora e violeira de Folia de Reis – Companhia Clara Luz (Cajuru SP) desde 1998. lbelebon@unimep.br e luciene.belleboni@metodista.br 2 Esse trabalho, que constitui-se um fragmento das nossas reflexões referentes à pesquisa de mestrado3, procura investigar alguns fatores determinantes do conflito entre som e imagem na cultura eletrônica audiovisual. A pesquisa levou-nos a entender parte do que diz respeito ao predomínio da imagem na sociedade pós-industrial. Tal predomínio configura-se, por um lado, em fatores como o desenvolvimento da tecnologia imagética em detrimento da auditiva, por outro, na globalização e, ainda por outro, na poluição sonora que diariamente ganha ruidosas e ensurdecedoras proporções4. Em um primeiro momento, as tecnologias de linguagem analógica tiveram um papel importante nisso, por se apresentarem – permito-me dizer – mais imagéticas que auditivas. Para elucidar essa questão, citamos Norval Baitello: “Enquanto a reprodução da imagem se desenvolveu (a fotografia, o cinema mudo primeiro, as cores, a televisão), a reprodução e a conservação do som tiveram sempre menor prioridade ou menor qualidade.”5 Neste sentido, percebe-se um crescente tecnicismo e submissão do som à imagem, que se dá, entre outros motivos, pela mediação da tecnologia eletro-eletrônica. Na denominada “Era da Imagem”, verificamos que a sociedade contemporânea apresenta uma extensa gama de produtos audiovisuais, porém, integra suas linguagens constituintes em diferentes e questionáveis níveis de resolução do ponto de vista da utilização sonora para efeito estético global desses produtos. No entanto, durante a década de 80 e início da de 90, os músicos tiveram acesso às ferramentas digitais de reprodução sonora. A utilização desses meios desencadeou, sob vários aspectos, uma revolução nesse fazer artístico favorecendo essa produção. Verificamos que essa nova forma de construir o discurso do som, de distorcê-lo, provocou uma mudança tanto na função e na atividade do músico, como nos paradigmas da criação sonora e, conseqüentemente, na produção do audiovisual. Muitos autores, como Arlindo Machado, apontam para as transformações radicais que a informática introduz na produção artística em geral. Sobre a produção musical em especial, a musicóloga Daniella Bruni, em seu artigo “Sinestesia e Novas Tecnologias”, expõe a seguinte assertiva: 3 BELLEBONI, Luciene. Com-paixão: a relação entre o som e a imagem no audiovisual contemporâneo. USP/ECA. 2002. Orientação Prof.ª Dr.ª Maria Cristina Costa. 4 VALENTE, 1999. 5 BAITELLO, 1998: 67. 3 “...com o advento das novas tecnologias e da era da multimídia, com o nascimento de verdadeiros e próprios “dispositivos sinestésicos” (hologramas, as interfaces, tecnologias que transformam e reconvertem em tempo real os movimentos ou os sinais acústicos e visíveis, a realidade virtual), a sinestesia se destacou da pura e simples evocação intrapsíquica de um preceito sensorial induzida pela simulação de uma outra e diferente sensorialidade (M. Costa), tornando-se a solicitação simultânea de diferentes sentidos, onde cada um dos quais vem atingido de um fluxo de informações provenientes de instrumentos que lhe correspondem e lhe são psicologicamente adequados, facilitando assim uma transferência e um acréscimo de conhecimento.Daqui se deduz, posteriormente, quantas sejam as potencialidades expressivas da sinestesia, cujo efeito vem seguramente enfatizado, ampliado e extenso através do uso das novas tecnologias e dos processos interativos, uma solicitação para colher e um desafio estimulante a perseguir para verificar futuras valiosidades artísticas e estéticas, e ao mesmo tempo uma oportunidade de sentirem-se ativos e criativos na relação com o espaço planetário, construindo-se os próprios roteiros individuais de exploração e de intercâmbio”6. Assim, aceitando essa premissa de que os dispositivos sinestésicos dos meios digitais possam estar desenvolvendo uma nova sensibilidade artística e uma nova relação entre imagem e som, procuramos saber como eles vêm atuando nessa unificação e integração de linguagens, no sentido da ruptura de uma hierarquia que parece favorecer a imagem na produção do audiovisual. Objetivamos entender como vem acontecendo essa nova convivência e, mais do que isso, como se configura o estar dessas coisas no mundo dos sons e da música, especificamente, nas produções audiovisuais que usufruem dessas tecnologias7. O objetivo desse trabalho é, portanto, discutir sobre o audiovisual na sociedade contemporânea e verificar como acontece a relação entre o som e a imagem a partir do depoimento de profissionais ligados a esses meios. Pretendemos questionar se a produção em mídias digitais reitera ou reverte a tendência das mídias analógicas de privilegiarem o tratamento da imagem em detrimento do som nas produções audiovisuais e quais têm sido as conquistas da produção musical a partir das novas tecnologias8. Assim, damos seqüência ao trabalho apresentando a metodologia de abordagem junto aos profissionais especializados na área, bem como os critérios de análise das 6 BRUNI, 1996: 96 7 Essa revolução, que teve lugar no cotidiano do músico e na produção do audiovisual tem sido objeto de pesquisa de muitos autores e artistas que analisam e discutem a questão da tecnologia digital. Retomar esse debate e participar dele é também objetivo deste trabalho. 8 Porém, estamos num período de transição em que, o processo de produção sonora mantém-se híbrido quando tecnologias distintas coexistem e se complementam. Cabe reforçar que o sistema analógico não foi extinto, tendo um novo espaço dentro do processo de produção em audiovisual, às vezes sendo resgatado na íntegra, de forma intencional, para provocar determinado efeito estético próprio do suporte, como no caso da videoarte. 4 entrevistas, partindo em seguida para uma avaliação sobre as questões colocadas neste estudo. Atualmente, estamos diante de uma grande e diversificada produção audiovisual, num processo complexo e diferenciado.Assistimos à multiplicação de formatos, gêneros e linguagens, cujas barreiras tendem a se mesclar. Resultando na produção de audiovisuais os quais, utilizando a tecnologia eletro-eletrônica apresentam diferentes graus de integração som/imagem. A televisão, exemplificando, incorpora recursos do cinema, o cinema do vídeo, e o vídeo do cinema. Além de todo essa mixagem, as obras audiovisuais não são apresentadas em um formato ou suporte padrão. Filmes são selecionados e podem ser exibidos na televisão, computação gráfica realizada em monitores pode aparecer em telas cinematográficas e, assim, várias outras possibilidades se fazem presentes nesse contexto. Diante de todo esse hibridismo, tanto tecnológico como dos formatos e gêneros, optamos, nesta pesquisa, por selecionar alguns profissionais brasileiros que tenham trabalhos com cinema, televisão ou vídeo, ou seja, em linguagens audiovisuais, realizados nas décadas de 80 e 90. Esse período foi escolhido por representar a consolidação das inovações e conquistas desencadeadas pelo uso de tecnologias digitais na pré-produção, na produção e na pós-produção musical do audiovisual. Cabe retomar que, a arte pós-clássica constituída, entre outros fatores, por meio da Revolução Tecnológica, da Indústria Cultural, da Arte-técnica e dos Meios de Comunicação de Massa, recolocou, em função de processos cada vez mais sofisticados de produção, registro e distribuição, questões dialéticas como o trabalho coletivo que dilui o processo de autoria individual da obra, tornando-a um produto coletivo9. Portanto, considerando que a produção audiovisual resulta de um trabalho em equipe, procuramos entrevistar não só o músico-trilheiro, embora a esse caiba a responsabilidade técnica-conceitual da produção sonora, mas também editores, roteiristas e diretores, indagando como eles se situam e como concebem a relação entre as linguagens visual e sonora em narrativas audiovisuais. A partir dos relatos e análises desses profissionais sobre seu próprio fazer, discorremos sobre o futuro do audiovisual na era digital. 9 COSTA, 1999. 5 Para os músicos, além dessas questões gerais, perguntamos como os meios digitais vêm atuando na unificação e integração de linguagens, no sentido da ruptura de uma hierarquia que parece favorecer a imagem na produção do audiovisual, e quais têm sido as conquistas da produção musical a partir dessas novas tecnologias. Em razão da complexidade da amostra, resultaram dois roteiros diferentes de entrevista que se complementam. Tendo esses objetivos guiando as entrevistas, selecionamos profissionais que, por suas produções, atuações e representatividade no cenário de produção audiovisual brasileira10, destacam-se dentro do período estudado, podendo colaborar no que se refere à nossa problemática. São artistas que, num circuito alternativo – festivais, mostras, TVs educativas e cenário acadêmico –, distinguiram-se pela criação de obras que exibem uma relação significativa com a técnica e a tecnologia e, especialmente, com a linguagem audiovisual. Segundo esses critérios, selecionamos os músicos Ivan Rocha Soares11 e Fernando Iazzetta12; os diretores, roteiristas e produtores Carlos Nader13 e José Roberto Aguilar14; e o editor de imagens e de som/imagem Alexandre Talocchi15. 10 Entendemos por produção brasileira as produções audiovisuais que tenham sido realizadas aqui no Brasil. 11Formou-se em Rádio e TV pela ECA-USP. É compositor, produtor, produtor musical, editor e sonorizador. Foi o criador e produtor da trilha sonora do programa Tevesinha Pão de Açúcar da TV Record. Atualmente trabalha na TV Cultura de São Paulo nos Programas X-Tudo e Castelo Ra-tim-bum. Nessa mesma emissora, produziu o programa Glub-Glub. Também trabalha em estúdio com diversos instrumentos tais como bateria, teclado, piano e guitarra. 12 Formado em percussão erudita no Instituto de Artes da UNESP, com mestrado em Comunicação e Semiótica na PUC de São Paulo. Em 1994, foi estagiário no Center for New Music and Audio Technologies da Universidade da Califórnia em Berkeley, EUA. É doutor pela PUC/SP onde trabalha no Laboratório de Linguagens Sonoras. É também professor na área de música eletroacústica na ECA no Departamento de Música da USP. Entre suas obras se destacam Promenade (1997), DRU (1997) e Percurso (1997). Iazzetta, realizou trilhas sonoras, entre elas, a do espetáculo de Ivani Santana e Rachel Zuanon. 13 Iniciou os cursos de graduação em Administração Pública, Economia e Cinema na USP, porém optou por trabalhar com o audiovisual de maneira informal. Foi roteirista dos programas Fora do Ar com Marcelo Tass (1998) e Brasil Legal da Rede Globo de Televisão (1995) e produtor independente do Programa Legal (1992). Sua videografia é composta, entre outras, por Os Judeus Caboclos da Amazônia (1990) e O Expresso Transiberiano (1991). Como diretor, entre outras, realizou O Beijoqueiro (1992), Trovoada (1995), Concepção (2000) e Girl From Ipanema (2001). Suas obras são exibidas em vários países e já forma premiadas na Alemanha (1996) e na França. Já no Brasil, sua premiação passa pelo Grande Prêmio Cinema Brasil (2000), no Festival Videobrasil (1998 e 96), na MTV Brasil Video Music Awards, (98) e no Rio Cine Festival (1998). 14 Graduou-se em Economia. Entre 1974 e 1975, em Nova York, começou a produzir videoarte. Cérebre, Anavedave, Tantra coisa, Ofício de Pintor I, Banda Performática I e Banda Performática II (1974 a 1982) são alguns de seus vídeos que o levaram a ser considerado como um dos pioneiros da videoarte brasileira. Participou de vários festivais internacionais como o Vídeo-Arte em Caracas na Venezuela (1978), o Encontro Internacional de Vídeo-Arte em Tóquio no Japão (1979), a Vídeo-Performance da Beaubourg em Paris (1980) e Vídeo na Galeria de Brera em Milão na Itália (1980). Essa experiência o levou à performance que desembocou, no início dos anos 80, na formação da Banda Performática que foi retomada no ano de 2000. Em 1978 recebe o prêmio Governador do Estado de São Paulo. Na década de 80, desenvolveu atividades como pintor, com constantes exposições sendo um dos artistas com maior número de exposições no exterior, sobretudo, nos EUA e Alemanha. Esse artista multimídia, também compõe músicas e gravou um disco (1982). 6 As entrevistas foram pessoais, gravadas e transcritas obedecendo a um roteiro aberto, que permitiu a colocação de outras perguntas que surgissem à medida que o entrevistado desenvolvia seu pensamento caracterizando uma abordagem qualitativa para coleta desses depoimentos. As respostas ao roteiro, contidas na entrevista, foram agrupadas em dois grandes blocos: relação entre linguagem visual e sonora na criação e produção audiovisual e contribuições e dificuldades do uso da tecnologia digital na (re)produção sonora digital. Após essa (re)organização das entrevistas procedemos a uma análise qualitativa de seu conteúdo16. No primeiro bloco Relação entre linguagem visual e sonora na criação e produção audiovisual, podemos observar que há posições divergentes sobre a relação imagem e som do audiovisual contemporâneo. Há aqueles que compreendem a imagem como dominante e outros que consideram o som e a imagem com a mesma importância nessa construção narrativa. Estes defendem que cada audiovisual tem suas particularidades, não havendo, portanto, um padrão pré-estabelecido para todos os trabalhos. Aqueles, que o audiovisual configura-se predominantemente visual por tradição, por uma questão de contingência e pelas próprias características humanas. Os entrevistados enfatizam que esta relação depende das características de cada produção, de uma série de variáveis como o gênero, o formato, a tradição, e a produção autoral ou comercial. Além disso, eles apontam dentro dessasvariáveis alguns subitens. O formato traz implicações nessa relação na medida em que o vídeo, o cinema ou a televisão são linguagens diferenciadas pela própria natureza. Tomamos como exemplos o videoarte, o comercial publicitário, o institucional e o documentário que são proliferações de gêneros que apresentam conceitos distintos entre si, determinando articulações caracterizadas. 15 Iniciou seus estudos em Cinema e Biologia, contudo dirigiu-se à produção audiovisual. Trabalha desde 1997 como editor, produziu campanhas políticas, comerciais de TV, programa de TV, videoarte e vídeo institucional para produtoras independentes. Entre seus trabalhos destacam-se C&A, Electrolux e Itaú (Agência O2 Filmes), Philco, Marie Claire, Volkswagen e Close Up (Academia de Filmes), Faber Castel (JXF Filmes), Keep Cooler (Videoart Filmes), Banco do Brasil (Movieart Filmes), Zapping (Vertical Filmes), Embratel (Espiralcom Filmes), Brasil Telecom, Motorola (Duetos Filmes) e Renault (Estação da Luz Filmes). Também produziu a versão em inglês dos comerciais da Almap/BBDO para o Festival de Cannes (1999-2001). Foi assistente de montagem de vários comerciais de TV e de filmes de Umberto Martins em São Paulo (SP) de 1996 a 1998. 16 Esse trabalho resulta, portanto, da interpretação de depoimentos que constituem nosso material empírico, ao qual soma- se nossa experiência na produção de áudio e na docência nessa área para cursos de comunicação. Apesar da subjetividade das falas dos entrevistados, procuramos descobrir convergências que permitissem algumas generalizações sobre o tema. Nossas análises basearam-se nas experiências expressas nas entrevistas e não na análise formal das obras produzidas. 7 Ainda nesta categoria, há diferenças estabelecidas pelo conteúdo do produto e pelo seu público-alvo. Podemos perceber a nítida diferença que, quase todos os entrevistados reconhecem entre uma produção voltada para o desenvolvimento da linguagem experimental – a autoral – e o trabalho feito por encomenda, isto é, o comercial, seja aquele da publicidade ou qualquer outro. Nestas, os padrões são pré-estabelecidos pelo cliente e a equipe de trabalho pode ser formada por qualquer profissional. Naquelas, há a possibilidade de experimentar a linguagem de forma íntegra, portanto, relacionadas aos momentos próprios da criação, à intuição, à subjetividade do criador e à sincronia de idéias entre os membros da equipe. Cabe ressaltar que em nenhum momento é negado o lado o artístico do trabalho comercial, do publicitário, mas, destacam que no trabalho comercial, não há condições para a experimentação. Relatam portanto, sobre a necessidade de experimentação estimulada pelas linguagens e que a arte não pode estar atrelada à mera flutuação do mercado. Nessa medida, a relação entre o som e a imagem depende da finalidade de cada produto. Além dessas variáveis, a relação imagem/som também depende de uma série de circunstâncias técnico-humanas, ou seja, da formação intelectual da equipe, dos recursos técnicos e financeiros disponíveis, do prazo de entrega e do público que também influi na qualidade das produções audiovisuais. Assim, o resultado final do produto está também condicionado ao conceito de audiovisual dos técnicos, que, dependendo da equipe, haverá mais ênfase no som ou na imagem, à organização da equipe, à infra-estrutura dos locais de exibição, instalações e qualidade dos equipamentos utilizados na produção, portanto, o resultado final do audiovisual depende da tecnologia disponível. Identificamos igualmente várias formas de produção audiovisual. A música – original ou não – pode ser criada antes da imagem, seguindo os parâmetros da música e ainda pode ser criada em função de uma imagem ou juntamente com ela. Destacamos modos diferentes na fase da edição que podem ser realizados com ou sem som implicando em diferentes resultados estéticos. Observamos ainda que, dependendo da característica do audiovisual, o processo de criação imagem/som altera-se, pois o músico cria a trilha assistindo às imagens. O elemento ritmo foi colocado como um dos elos primordiais entre a criação imagem/som. 8 Diante do quadro exposto acima, a arte configura-se como uma das possibilidades de valorizar a articulação entre som e imagem de forma diferenciada nos produtos audiovisuais. Compreendemos, a partir desse primeiro bloco, que o conjunto dessas variáveis define os diferentes níveis de resolução do audiovisual contemporâneo, em que há uma acentuada importância na linguagem em relação ao instrumento contribuindo para que a produção audiovisual tenha, de certo modo, uma concepção abstrata e subjetiva. Portanto, a relação imagem/som dos audiovisuais do período estudado depende de uma série de interligadas variáveis que definem os diferentes níveis de resolução do audiovisual contemporâneo. Tais variáveis como a finalidade do produto, a tradição, o formato, o gênero, a diferença entre o autoral e o comercial, as circunstâncias técnicas e humanas: formação intelectual da equipe, equipamentos disponíveis, como os de captação e os de exibição, os recursos financeiros, o prazo de entrega, a organização da equipe, o público e, enfim, por sua heterogeneidade, determinam as diferentes articulações entre as linguagens sonora e visual. No segundo Bloco Contribuições e dificuldades do uso da tecnologia digital na (re)produção sonora, constatamos que além da proliferação de suportes, da agilização no processo de produção, da mudança da atividade produtiva, o paradigma do som em contraponto com o da nota da ferramenta MIDI, está em vigor, através da música eletroacústica. Constatamos ainda a submissão da linguagem sonora à linguagem numérica, uma outra forma de representação do som de interferência no real, ou seja, uma nova linguagem. Identificamos no relato dos entrevistados a não neutralidade da tecnologia, a padronização, uma certa tendência ao trabalho individual e não de equipe e uma ramificação das atividades e uma desregulamentação do campo artístico. Aqui, o computador é considerado não como um instrumento musical e sim como um gerenciador de recursos e de informações. É compreendido como “frio” por sua produção mecanizada, exigindo reflexão matemática além de sensibilidade musical, permite simulação, dilui o caráter artesanal e a idéia de produto, possibilita retomar o processo a qualquer momento e conduz a um trabalho individual do profissional que o manuseia. 9 Quanto aos profissionais que utilizam essa tecnologia, verifica-se que há pouca formação e, em muitos casos, tais pessoas devem ser autodidatas, se assim podemos dizer. Porém, se por um lado o resultado pode ser mais incerto, por outro pode ser surpreendente. De qualquer modo, esta produção implica cada vez mais em especialização e na divisão de trabalho, assim nos parece que a articulação entre som e imagem tende a ser cada vez mais elaborada. Sobre a formação intelectual da equipe de produção, ainda destacamos que os meios digitais vêm favorecendo aquele músico que sempre apresentou muita dificuldade de produção seja em termos materiais, financeiros ou humanos, e também aquele que apresenta boa formação, que não vai ser seduzido pelos efeitos dessa mídia, mas pela economia de recursos. Outra mudança refere-se a inversão de valores, em que o modelo de excelência é dado pelo produto gravado e não pela performance ao vivo, relativizando o conceito de músico e da própria música. Diante de toda essa revolução, podemos verificar que os profissionais dessa área se vêem diante de uma transformação, envolvendo sua atividade artística em aspectos como a liberdade criativa, o direito autoral, a originalidade, a identificaçãodo valor da obra, a necessidade de uma formação técnica apurada, bem como a modificação de seus mecanismos de síntese e apreensão sobre esse fazer. Nesse quadro, como se observa, vários elementos estão inter-relacionados. Portanto, entre eles há necessidade de uma formação técnica específica, exigindo do profissional outra capacitação. Observamos que o músico tende a transformar-se em um consumidor de bens tecnológicos e, em função da velocidade de obsolescência dos equipamentos, vem sendo pressionado, constantemente, a atualizar-se. Embora isso já tenha se verificado em épocas anteriores, uma vez que os músicos sempre dependeram de seus instrumentos e de sua exploração, agora a rapidez com que isso acontece, entendemos ser maior. Verificamos que a homogeneização dos recursos, iniciada com a Revolução Tecnológica do século XIX é, agora, enfatizada por essa nova linguagem, aproximando o fazer musical de um público maior, modificando, inclusive, a recepção e a relação do público com o universo sonoro. 10 Trata-se, então, de toda uma produção acentuadamente mecânica, como exemplo, o treinamento motor, que até então, era uma das condições para a execução musical e que agora passa a estar acoplado à tecnologia. Isto vem possibilitando ao usuário o redimensionamento de seu processo de aprendizagem e a aproximação rápida da linguagem musical. Sendo assim, e também pelas facilidades desencadeadas pela redução de custos dos equipamentos, há uma apropriação do fazer artístico por parte de amadores, com muitas pessoas se experimentando no campo da música, com uma formação completamente diferente daquele artista até então legitimado, que apresenta habilidades artesanais específicas, que requer treinamento diário e o convívio com as especificidades da linguagem musical. Logo, verifica-se, ao lado de toda uma produção musical que continua ocorrendo nos moldes tradicionais, o surgimento de um tipo de “músico”17 diferente, relativizando o conceito e a função desse artista na sociedade. A maioria dos nossos entrevistados se configura como um exemplo dessa questão. No entanto, tudo isso colide com toda uma tradição, que considera o músico como o especialista capaz de interpretar e saber como e quais sons usar. Desse modo, observamos certa desvalorização e desmistificação desse artista, uma vez que a habilidade artesanal é suplantada pela habilidade com as ferramentas tecnológicas o que acaba por questionar a noção de que o músico tradicional se apresenta como único detentor do saber musical desregulamentando o campo artístico. Contudo, assistimos a uma transição em que este período configura-se híbrido, o que implica na definição de lugares, formas e usos dessas duas tecnologias e por conseqüência das possibilidades de experiências nos resultados finais com os produtos audiovisuais que são decorrentes do olhar, do escutar e do saber fazer do produtor. Outro destaque cabe à automação e a mecanização. A automação foi altamente reforçada, implicando num determinado período, na repetitividade resultante da sistematização de tudo aquilo que os músicos criaram, o que provocou certas formas de padronização da produção musical. Com relação à mecanização, observamos que compacta processos cognitivos, implicando na dificuldade da expressão da subjetividade do artista, o 17 Designado de usuário por Iazzetta. IAZZETTA, 1993. 11 que, conseqüentemente, reflete na diminuição das possibilidades de criação. Para esclarecermos essa colocação, parafraseamos Iazzetta. Ele afirma: “Existem programas de computador vendidos comercialmente que tentam criar a mesma ilusão: a de que qualquer pessoa pode sentar na frente de uma tela e compor música com alguns clics do mouse. Fica faltando o principal: todo o sofisticado processo de criação que configura o que chamamos de arte (...) ainda não somos capazes de ensinar o computador a ser intuitivo ou criativo, que são condições primordiais para a produção artística”18. Assim, a delimitação estética acaba por delinear o fazer artístico musical, pois as ferramentas apresentadas determinam, de certo modo, o que vai ser realizado. Dessa maneira, a tecnologia colocada não se apresenta neutra, pois desencadeia a reprodutibilidade de determinadas formas de pensar. Para reforçar essa questão, apontada enfaticamente nas entrevistas, citamos o pesquisador Rodolfo Caesar19, que ao discutir a ferramenta MIDI observa que, independentemente da forma de sua implantação, ela se tornou um padrão que, com algumas exceções, determina um fazer de uma música de características em que prevalece a “dicotomia nota/partitura e um sistema temperado”. O autor destaca que o equívoco não está na existência desse tipo de produto, mas na crença de que MIDI promoverá algum avanço de caráter efetivamente musical. A partir do que foi colocado, destacamos que há, na atualidade, um empobrecimento da criatividade musical como conseqüência desses novos processos tecnológicos, apontando para uma tendência à banalização da produção em música, conseqüentemente no audiovisual, uma vez que, como exemplo, o MIDI tem uma concepção apenas funcional. Mas, por outro lado, indagamo-nos se tal banalização não vai exigir um talento mais criativo por parte do usuário/músico. E ainda por outro, questionamos se o fato de que a população, por estar aprendendo rudimentos da música, não estará se tornando uma sociedade culturalmente mais musical, embora não sendo a musicalidade concebida na Modernidade. E, em que medida essa idéia de "democratização" do acesso à produção sonora, musical, não é um argumento promocional dos revendedores dessas tecnologias? Até que ponto o usuário de um computador, que domina determinados tipos de programas e máquinas especializadas em som, é compositor ? Ou ele seria um co-criador? 18 www.esfera.net/008/musica-fiazzetta.htm 19 CAESAR, Rodolfo. Diabulus in Machinas. w.acd.ufrj.br/lamut/lamutpgs/rcpesqs/diabulus.html 12 Todas essas questões, pertinentes ao crepúsculo de uma Era, nos levam a refletir sobre as invenções e suas normais transformações nas formas de fazer e reconhecer a arte, na formação dos artistas e na sua relação com o público. Pensamentos divergentes e avaliações contraditórias marcam essa época. No entanto, não podemos esquecer que, ao lado dessas mudanças radicais e de tudo que põe em cheque especialmente aquilo que se considera como arte, os meios digitais vêm popularizando a música, reintroduzindo-a na vida cotidiana das pessoas de uma nova forma, o que deverá instigar a sensibilidade musical das pessoas e estimular e aumentar a produção artística. Cabe aqui citar Tavares e Plaza: “O computador funciona para o artista como um amplificador da imaginação, já que coloca à disposição dele a história como depósito de linguagens, como “Museu de tudo” na feliz expressão de João Cabral de Mello Neto”20. Esses pesquisadores da poética eletrônica apontam que atualmente a imagem e toda a arte são espaços da metamorfose e não mais da metáfora, levando a um comportamento móvel e modelável, ativo e interrogativo, interativo, que convida à manipulação, ao jogo, à transformação, ao ensaio e à mudança. Uma metamorfose que conduz à experimentação e à invenção de outras regras estéticas21. Outra característica dos meios eletrônicos digitais que, entendemos de relevância apontá-la, refere-se a possibilidade, pela imaterialidade da matriz digital, de armazenar o som e manipulá-lo – recriá-lo- no futuro, permitindo-se ir do único ao múltiplo, criando-se um contexto de obra como processo e não como produto22. Outro aspecto relacionado a essa questão diz respeito à possibilidade de se estabelecer uma produção musical mais fecunda, na medida em que se tornou possível armazenarem-sevários processos. Verificamos então, outra polêmica, pois com a eliminação da idéia do original, tão valorizada na Modernidade, estamos nos opondo à tradição de produto acabado, do produto findo. Com relação a outro desdobramento estético, parece-nos que o caráter multimídia da tecnologia digital favorece a relação entre som e imagem dos audiovisuais na medida em que facilita alguns aspectos de uma produção complexa, barateando os custos, otimizando os tempos de trabalho, ganhando-se velocidade, o que possibilita também experimentações 20 TAVARES, 1998: 195. 21 Idem, p. 199. 22 Por exemplo, o remix de peças fonográficas tão em voga na atualidade. 13 que antes não eram possíveis ser realizadas nesses processos. Compreendemos que, por enquanto, as tecnologias digitais têm se consolidado mais como recursos de produção do que efetivamente como meio expressivo, embora as experiências mostrem um forte potencial para isso, pois, essa tecnologia enquanto mídia possibilita, através da codificação de informações, a tradução, a interatividade e a inter-relação entre linguagens. Isto configura o potencial sinestésico dessas produções audiovisuais, uma vez que acumulam a experiência das outras mídias no mesmo suporte, diferente do cinema e da televisão, por exemplo. As colocações acima afinam-se com o pensamento de Daniela Bruni23 já exposto acima. Observamos ainda que a ciência médica utiliza-se, há algum tempo, de técnicas de tradução do som em imagem como a ultra-sonografia e o eletrocardiograma, experiências sinestésicas que poderiam ser aproveitadas no âmbito do fazer audiovisual. Diante desse quadro, podemos entender que a sociedade se encontra num processo de transformação em que as mídias digitais tendem a propiciar uma relação som/imagem de forma mais elaborada e harmoniosa, rompendo com uma tradição hierarquizada. Portanto, os meios digitais estimulam a produção e o uso dos seus recursos direcionando para uma outra forma de conceber o processo de integração entre som e imagem. Porém, não se trata de “simples” integração de duas linguagens, mas de uma traduzibilidade dessas linguagens em um só produto audiovisual. Segundo E. Couchot, todas as linguagens estão submetidas a uma outra linguagem que é a numérica, o que significa que provavelmente som e imagem serão vistos de uma maneira diferente com maior racionalidade, com maior abstração. Nesse sentido, Assayag, nos lembra que a composição musical assistida pelos computadores está filiada na tradição reinante na Idade Média, quando a música era a ciência dos números aplicada aos sons24. Frente a essa revolução acreditamos que inelutavelmente está em vigor a incorporação de uma outra forma de representar, criar, produzir, executar e divulgar informações. Apontamos ainda que a tecnologia digital ora empobrece, ora enriquece a produção musical e, conseqüentemente, a realização do audiovisual. Que essa tecnologia, ao mesmo tempo em que “facilita”, deixando mais prático o processo operacional nas fases 23 BRUNI, 1996: 96. 24 ASSAYAG,1999: 25. 14 de pré-produção, produção e pós-produção desse sistema complexo, também traz implicações estéticas e sócio-culturais. No entanto, cabe trazer aqui as considerações do entrevistado Ivan Soares: “Ele (o processo) não está finalizado a chegar a uma conclusão. Essa passagem do analógico para o digital ainda está acontecendo, então você não vai ter uma conclusão porque não é um processo acabado”. Assim, imersos num período de transição, reafirmamos a importância da concepção da equipe de produção sobre a narrativa audiovisual e que o determinante para uma abordagem mais coerente do áudio no audiovisual trata-se da pressão da cultura no sentido da formação musical, da homogeneização, da repercussão fácil, da audiência já cativa, da Indústria Cultural e do processo de globalização. Entendemos que está na cultura, aqui referida aos valores, às parcerias, à formação, às crenças, às tradições e ao contexto no qual o produtor se insere, seja em nível pessoal, familiar ou social – incluindo as gravadoras, a televisão e a mídia –, a resposta para o nível de resolução da produção audiovisual de um artista. Sempre que houver uma valorização do sonoro, esse será utilizado de forma compatível com suas potencialidades na arte sincrética audiovisual. Fatores estes mais fortes do que os suportes tecnológicos, os formatos e os gêneros audiovisuais como podemos observar na poética audiovisual desenhada por Normam McLaren, Nam June Paik, Artur Omar, Arnaldo Antunes, Walter Murch e Golley e Creme. Para encerrar esse trabalho, que não tem a pretensão de esgotar essa temática, consideramos que todas as transformações que os meios digitais promovem na produção audiovisual exigem atenção, especialmente por aqueles que, como produtores, implementam outros resultados estéticos, os quais são divulgados em larga escala pelas mass midia. Observar a paisagem sonora é um exercício de percepção que os profissionais e pesquisadores da área de comunicação, de certo modo, têm negligenciado, priorizando estudos sobre imagem desarticulados do som. Isto significa que há muito a ser pensado e discutido a respeito da relação som/imagem, do papel do som, da música e do silêncio nessas criações bem como sobre linguagem, tecnologia e percepções. Como podemos observar pelos nossos entrevistados, a sociedade da visualidade, independente dessa fase de transição tecnológica, exige, entre outras necessidades, um aprimoramento da equipe de produção sobre a concepção sonora dos audiovisuais, da 15 formação do público e de melhoria técnica para que o produto final apresente um nível de resolução mais harmonioso. Portanto, não há motivos para que as escolas e as faculdades de comunicação se descuidem de disciplinas relacionadas ao som, ao som articulado com a imagem na medida em que o diálogo e a interação entre essas expressões promovem uma experiência sinestésica que, ao nosso sentir, possibilitam um outro prazer estético, o contato com o sublime: um sentido não acontece de forma isolada do outro. BIBLIOGRAFIA ASSAYAG, Gérard. A matemática, o número e o computador. IN: Colóquio/Ciências. Revista de Cultura Científica. Nº 24/1999. Fundação Calouste Gulbentian. BELLEBONI, Luciene. 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