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Capítulo 124- Abuso Infantil ● Maus-tratos são entendidos como a atitude deliberada ou desnecessária de colocar uma criança em situação de perigo. ● Abuso é uma ação que causa algum tipo de dano a uma criança. ● Negligência é uma “não ação” que causa dano a uma criança, é o não atendimento às suas necessidades básicas. ● O abuso e a negligência infantil causam sérios danos (físicos e psicológicos) que repercutem na adolescência e na fase adulta e podem afetar o comportamento do indivíduo com as próximas gerações, contribuindo para perpetuar o ciclo de violência familiar. ● Notificar situações de violência familiar, como nos casos de maus-tratos, negligência e abuso, é obrigatório para os profissionais de saúde. Do que se trata ● O abuso é caracterizado pela OMS como uma situação na qual uma pessoa em condições de superioridade (idade, força, posição social ou econômica, inteligência, autoridade) comete ato ou omissão capaz de causar dano físico, psicológico ou sexual, contrariamente à vontade da vítima, ou por consentimento obtido a partir de indução ou sedução enganosa. ● Sob o aspecto legal, considera-se criança a pessoa até 12 anos de idade incompletos, e adolescente, aquela entre 12 e 18 anos. ● Assim, as intervenções para o enfrentamento da violência contra a infância e a adolescência só são possíveis se realizadas em rede. Dentro da formação dessas redes, a Estratégia Saúde da Família (ESF) possui um importante e potencializador universo de atuação, tendo em vista a proximidade das equipes com a realidade das famílias atendidas. ● O médico de família e comunidade encontra-se muitas vezes na posição de ser o primeiro contato da pessoa abusada com o serviço de saúde e, pelo fato de trabalhar de forma interdisciplinar e prestar um cuidado diferenciado, deve ser capaz de captar com mais facilidade os casos suspeitos de violência intrafamiliar e tomar a conduta adequada. ● Para que essas ações se desenvolvam de forma a propiciar a quebra do ciclo da violência, a preparação dos profissionais de saúde é essencial. Essa capacitação deve proporcionar não apenas a habilidade em compreender o significado desta forma de violência e fazer o seu diagnóstico, mas desenvolver um senso crítico e de responsabilidade social e com o desenvolvimento das crianças nas comunidades. Quando pensar ●Dificuldades de aprendizagem: pode ser reflexo da má-organização familiar, da negligência dos pais ou do estresse associado ao abuso. ●Postura hipervigilante no ambiente em que se encontra: a vítima em geral se torna desconfiada, não se sentindo à vontade em lugares desconhecidos ●Comportamento opositor: enfrentamento aprendido algumas vezes pela criança como forma de autoproteção. ●As várias formas de comportamento antissocial: entendido como fuga ou resultado somado de outras posturas de defesa. ●Comportamento muito amadurecido para a idade: “pseudoadulto”, precoce, erotização exagerada. ●Comportamento regressivo: quando a criança, sem outra razão aparente, começa a apresentar comportamento típico de fase anterior da infância. ●Baixa autoestima: resultado de se sentir “suja” ou culpada pelo abuso ou, ainda, quando passa a aceitar o rótulo de incapaz ●Comportamento compulsivo: muitas vezes como forma de lidar com o estado ansioso subjacente à situação de abuso. ●Medo de parentes: ou também ansiedade quando um familiar, potencial agressor, é esperado ou visitado. ●Dificuldade para se divertir ou se envolver em brincadeiras com outras pessoas: tanto em função da baixa autoestima quanto do receio dos riscos de socializar. ●Inversão no padrão de cuidados na família: quando, por exemplo, a criança se torna exageradamente ansiosa para atender às demandas e necessidades dos pais e cuidadores, ou quando passa a desempenhar, muitas vezes com aprovação dos adultos, um papel de responsabilidade muito acima do que seria indicado para sua idade, porte físico e maturidade psicológica. ●Isolamento social: enquanto mecanismo de proteção ou para esconder certos comportamentos. ●Componentes associados ao agressor: abuso ou dependência de substâncias (álcool e drogas), histórico de abuso na infância, baixa autoestima, transtornos de conduta, psiquiátricos ou psicológicos. ●Componentes associados à vítima: situação de dependência (própria da infância, mas mais grave em vítimas mais jovens ou na vigência de outros transtornos mentais e neurológicos ou doenças genéticas), sexo da vítima diferente do desejado por ela, condições de saúde que exigem maiores cuidados (prematuridade, doenças neurológicas, etc.), histórico de abusos anteriores, ser uma criança não desejada ou não planejada. ●Componentes associados ao meio social falta de leis de proteção à infância, grandes desigualdades sociais, ambiente com alto índice de marginalidade, desemprego, analfabetismo, aceitação de violência como forma normal de punição (em especial agressões corporais), pobreza, pouco estímulo à criação de ambientes de desenvolvimento seguro e envolvimento social saudável para crianças e adolescentes. ●Componentes associados à família: pais jovens (adolescentes), gravidez não planejada, pouca compreensão do papel parental, cuidados pré-natais inadequados, famílias uniparentais, famílias vivenciando situações de conflito, violência conjugal, famílias substitutas, famílias com padrão fechado de comunicação, famílias com grande número de filhos. O que fazer Anamnese ● É conveniente lembrar a importância de uma anamnese geral e de desenvolvimento, além do uso de ferramentas de abordagem familiar para caracterizar o quadro a ser avaliado. ● São comumente reconhecidas as seguintes situações de abuso infantil: ○ negligência (incluindo o abandono) ○ abuso físico (incluindo a síndrome da criança espancada) ○ síndrome de Munchausen por procuração ○ síndrome do bebê sacudido ○ abuso sexual ○ abuso psicológico Negligência:tipo mais comum de abuso, trata-se da omissão de cuidados básicos à criança, como o oferecimento de alimentos, medicamentos, vestuário, apoio emocional, afeto, proteção e cuidados de higiene. - As regras de trânsito conferem proteção à criança, e desobedecê-las (p.ex., não colocar nelas o cinto de segurança) pode caracterizar uma situação de negligência; o mesmo ocorre ao se permitir o consumo de álcool e drogas - . Há também a negligência educacional, entendida como a situação na qual os pais não matriculam a criança na escola ou permitem suas faltas às aulas mesmo após terem sido informados que é inapropriado. - O abandono, mais comum em famílias muito numerosas, é definido como uma negligência grave. Abuso físico: é o uso intencional de força física contra a criança ou adolescente.É mais comum em meninos, e os agressores geralmente são os próprios pais da criança. Na maioria das vezes, o abuso físico deixa marcas: as agressões mais frequentes são tapas, beliscões, chineladas, queimaduras (por água quente ou cigarros), mutilações, murros, intoxicações, sufocação e espancamentos. - 1962 - síndrome da criança espancada, quando são evidentes múltiplas lesões, inclusive fraturas de ossos longos, sem explicações convincentes e ocorrendo repetidamente. - 2014- a Lei n° 13.010, conhecida como Lei da Palmada → o direito da criança de ser educada sem que se recorra a sofrimento físico que cause lesões ou humilhações, sob pena de advertência aos responsáveis, encaminhamento para orientação e programa de proteção à família. - A lei ficou conhecida também como Lei menino Bernardo, em homenagem a Bernardo Boldrini, morto aos 11 anos de idade, supostamente por punições físicas. Síndrome de Munchausen por procuração: ocorre quando pais ou responsáveis provocam ou simulam na criança sinais e sintomas de doenças que ela não tem. A suspeita deve ocorrer quando o profissional de saúde compara a gravidade do que é apresentado pelos responsáveis com um intrigante bom estado geral da criança após o exame físico e propedêutica adequada. - A criança é submetida a sofrimento físico epsicológico.Neste caso, o perpetrador mais comum é a mãe. Síndrome do bebê sacudido: apesar de o diagnóstico geralmente ser feito pela combinação de hemorragias retinianas e subdural, é um tipo de violência que pode não deixar marcas evidentes. É, muitas vezes, perpetrada pelo pai biológico, que, irritado com o choro da criança, tenta fazê-la se calar. Pode levar a graves lesões cerebrais, ao atraso do desenvolvimento e até à morte. Abuso sexual: Pode ocorrer na ausência de outras formas de abuso e na maioria das vezes não deixa marcas físicas evidentes. - Ocorre quando a vítima tem desenvolvimento sexual inferior ao do agressor e é exposta (por ameaças, mentiras e violência) a estímulos eróticos impróprios para a sua idade, a fim de satisfazer o agressor ou outras pessoas (como na realização de vídeos caseiros e fotos com a vítima). - É importante lembrar que o agressor também precisa de cuidados (em geral, também foi abusado na infância). - Pode ou não ocorrer intercurso sexual (com penetração oral, vaginal ou anal). - Meninas são mais abusadas que meninos, e o agressor geralmente é uma pessoa conhecida da família ou mesmo membro dela. - O diagnóstico de infecções sexualmente transmissíveis (ISTs) em crianças deve levantar sempre a suspeita de abuso sexual, bem como comportamento exageradamente erotizado por parte da criança, gravidez precoce, autoflagelação e fugas constantes de casa - Também se considera situação de abuso quando a criança, por condições sociais inapropriadas, se vê em situação de observar as relações sexuais dos pais, negligentes quanto a este cuidado com a infância (a criança acaba exposta a estímulos eróticos visuais impróprios). - Segundo o artigo 127 do Código Penal, é considerado crime de estupro ter conjunção carnal ou praticar qualquer ato libidinoso com menor de 14 anos, do sexo feminino ou masculino, ainda que haja consentimento da vítima e experiência sexual prévia. Abuso psicológico: trata-se de toda forma de discriminação ou desrespeito em relação à criança. - É um dos mais difíceis de ser caracterizado apesar de ser comum. - Pode envolver também o isolamento intencional da criança pelos pais e cuidadores - Promove a estimulação ao crime, ao consumo de drogas e à prostituição. - Há também do preconceito sofrido por orientação sexual e/ou de gênero - Parental alienation syndrome (síndrome de alienação parental): crianças cujos pais geralmente estavam em situação de litígio conjugal: elas faziam relatos fantasiosos sobre um dos genitores, muitas vezes combinando elementos próprios com os de um dos pais - A Equipe de Saúde da Família pode se ver envolvida neste tipo de situação quando um dos pais busca respaldar sua história junto ao Serviço de Saúde, por isso é importante embasar melhor a suspeita e conversar com o restante da equipe antes de notificar o abuso. - A taxa de denúncias encontra-se hoje muito abaixo da estimativa de casos de abusos e maus-tratos praticados. Exame físico —genitálias e nádegas raramente são áreas envolvidas em acidentes domésticos; —presença de lesões em vários estágios de cicatrização (indicando abuso crônico); —proceder a investigação mais cuidadosa em crianças com condições precárias de higiene (pensar em negligência); —hemorragias no couro cabeludo podem indicar puxões, assim como amolecimento de base dos dentes e desvio anormal da abertura bucal podem atestar agressões com socos; —queimaduras arredondadas podem ser causadas por cigarros; —lesões de órgãos genitais, sangramento anal, petéquias no palato e sinais de sêmen ou de ISTs são alertas de abuso sexual. Conduta proposta - Os profissionais da Atenção Primária à Saúde devem usar a longitudinalidade do cuidado e o conhecimento da comunidade para se certificar de uma provável situação de abuso. - A ACS por seu maior vínculo com a comunidade configura-se como peça chave no diagnóstico - A suspeita de abuso deve ser discutida por toda equipe, por meio do sigilo e abordagem cautelosa durante a investigação. - Comunidades de alta vulnerabilidade podem dificultar a sensibilização da equipe , uma vez que a situação de violência pode fazer parte do aceitável. - Em caso de suspeita de abuso, o primeiro passo é notificar, uma obrigação dos profissionais que prestam atenção à infância e adolescência e, em especial, dos profissionais da saúde. - Deve ser encaminhada notificação própria ao Conselho Tutelar da região e uma notificação de violência doméstica à Secretaria Municipal de Saúde para fins epidemiológicos - O Ministério da Saúde determina obrigatoriedade de notificação para todas as unidades de saúde integrantes do Sistema Único de Saúde do Brasil, de acordo com a Portaria nº 1.968/GM, de 25 de outubro de 2001. - Art. 13 do Estatuto da Criança e do Adolescente define que os casos de suspeita ou confirmação de maus-tratos contra criança ou adolescente serão, obrigatoriamente, comunicados ao Conselho Tutelar da respectiva localidade, sem prejuízo de outras providências legais.10 - Art. 245 do Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei nº 8.069, de 13/07/1990, é aplicável multa de 3 a 20 salários de referência, aplicando-se o dobro em caso de reincidência, quando o médico, professor ou responsável por estabelecimento de atenção à saúde e de ensino fundamental, pré-escola ou creche, deixar de comunicar à autoridade competente os casos de que tenha conhecimento, envolvendo suspeita ou confirmação de maus-tratos contra criança ou adolescente. - O Conselho Tutelar é um órgão criado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente com o objetivo de zelar pelo cumprimento dos direitos apregoados por este. Deve haver pelo menos um Conselho Tutelar por município, que deve ser criado por lei municipal. - Os conselheiros são eleitos pela comunidade para um mandato de três anos, que pode ser renovado. - Tem papel gerenciador de situações de risco, podendo acionar os demais atores e instituições (como Ministério Público e serviços de saúde), embora não lhe caiba julgar os conflitos que lhe são apresentados - É autônomo, não se submetendo às gestões municipais ou estaduais e tem liberdade para definir, com base no ECA, o melhor itinerário para os casos que acompanha. - Deve funcionar todos os dias do ano, 24 horas por dia. - Na falta do Conselho Tutelar, encaminhar a notificação à Vara da Infância e Juventude. - Em casos de abuso sexual, abuso físico grave e abandono, comunicar também à Delegacia de Polícia mais próxima. A categoria médica é a que mais resiste em fazer a notificação, por motivos diversos. As principais dificuldades apresentadas são: ●Falta de preparo do profissional para identificar e lidar com os casos de maus-tratos. ●Medo do profissional em fazer a notificação e ter problemas com a justiça ou sofrer retaliações por parte do agressor. ●Falta de suporte para realizar um atendimento mais aprofundado em função da enorme demanda. ●Tradição de uma prática que se restringe ao atendimento das patologias, sem questionar as causas. ●Descrença no Poder Público e na real possibilidade de intervenção nestes casos. ●Visão de que se trata de um “problema de família”, não sendo de responsabilidade de uma “instituição de saúde”. ●Temor de estar enganado e notificar uma “suspeita infundada”. - A adoção de ações de educação junto à comunidade valorizando a criação de espaços saudáveis e seguros de convivência social e a atenção contínua à vítima e familiares figuram ainda como importantes esforços que precisam ser levados adiante - A notificação ao Conselho Tutelar serve para que, ao menos, medidas sejam tomadas no sentido de interromper a situação de violência em curso, algo que não pode ser desconsiderado e que pode salvar a vida de muitas crianças e adolescentes. - As particularidades locais precisarão ser levadas em conta na elaboração de um plano de trabalho,esperando, assim, que os profissionais possam organizar as estratégias multidimensionais que julgarem mais apropriadas para o local onde atuam.Abordagem geral das situações de violência doméstica Ações de prevenção primária: Incorporar ações de educação em saúde sobre o tema, além de programas de treinamento com profissionais que atendam crianças. Incentivar a criação de espaços e eventos saudáveis de convivência e conciliação na comunidade. Lembrar-se de que discutir sobre a violência ajuda a inibir sua perpetuação. É importante informar sobre os locais de apoio e fluxo das unidades de saúde, bem como reforçar a necessidade de diálogo aberto nas famílias e de boas referências adultas para as crianças, ajudando a criar laços mais fortes e adequados. Ações de orientação para que os pais possam se apropriar da responsabilidade de seu papel no cuidado às crianças, bem como prestação de cuidados adequados a pessoas com problemas mentais, deficiências físicas ou dependência de substâncias. Ações de detecção: - Redes orientadas para essa detecção precoce (das quais são parte tanto as equipes e o médico de família e comunidade quanto as escolas e as instituições religiosas). - Confirmação da suspeita, em que é necessária discussão sigilosa e criteriosa da equipe - Organize um plano de trabalho. Ações de enfrentamento imediato: - atendimento específico aos traumas a que a vítima tenha sido submetida - deslocamento da criança para ambiente protegido (como abrigos) - notificação ao Conselho Tutelar e demais instituições - No caso de vítimas de abuso sexual, é importante a avaliação de ISTs e gravidez. - Nos casos de espancamento, investigação com exames de imagem, às vezes em serviços de urgência e emergência. - Mesmo que o paciente precise ser transferido para outro espaço ou nível de atenção, a garantia de acompanhamento da criança deve ser sempre oferecida pela equipe de saúde da família Ações de acompanhamento: são ações de supervisão e cuidado prolongado. - Participação de familiares em grupos como o Pais Anônimos - Oferecimento de ajuda às vitimas, bem como aos agressores (prevenção terciária). - Vigilância por toda a equipe de saúde e pelo Conselho Tutelar em casos com risco de reincidência. - Os casos devem ser discutidos (e não apenas encaminhados) com equipes multidisciplinares - A presença de assistentes sociais e psicólogos é fundamental para organizar este tipo de ação. ➔ Disque 100, um canal telefônico para denúncias de violação de direitos humanos coordenado pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República: originalmente restrito a informações sobre abuso infantil, foi ampliado para qualquer forma de agressão doméstica ou a minorias (como violência contra a mulher, racismo, população LGBTQ+, etc.). Prognóstico e complicações possíveis - Uma pessoa abusada, se não abordada adequadamente, tende a repetir essa conduta com outros indivíduos da mesma família ou com filhos de pessoas próximas. - Crianças abusadas tendem a apresentar comportamento mais agressivo na adolescência e idade adulta, mais envolvimento com crimes, uso de drogas e prostituição, entre outros comportamentos de risco, e passam a considerar a violência doméstica como algo normal. Tendem também a apresentar depressão e sintomas físicos aparentemente inexplicáveis. - Por essas razões, é imprescindível que os profissionais da área se apropriem dessa discussão, contribuindo, dessa forma, para intensificar o olhar sobre um desenvolvimento humano saudável. (é fundamental investigar qualquer tipo de suspeita)