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Módulo de Introdução à Saúde Indígena ESTUDO DE CASO: Caminho 3 Caminho 3 O barco chega à aldeia às 18 horas e é recebido pelo AIS na beira do rio: - Boa noite doutor Marcelo, enfermeira Lúcia! A viagem foi boa? - perguntou Tainakã. - Correu tudo bem, Tainakã... a gente quer entender melhor o que está acontecendo com a criança e com a família. Como começou o quadro da criança? Quais sinais você identificou? Você vai me explicando no caminho. E o pajé, está lá na casa da família? - questiona o médico. - Hoje cedo ele fez pajelança e viu que o espírito roubou a alma da criança. Por isso, ela acordou pior. Agora ele está na mata rezando, para trazer de volta a alma da criança. Como informei pelo rádio a criança está sem febre, não vomitou mais desde a madrugada, não conseguiu evacuar e o abdome está distendido - respondeu Tainakã. - Tudo bem. E eu posso examinar a criança enquanto isso? Quando o pajé voltar a gente conversa com ele, para entender o que ele está percebendo - diz Marcelo. - Pode sim. Para nós é melhor examinar o bebê na casa, porque a doença é bem forte e o pajé pediu para ficar protegido lá dentro. - Ah, sim, claro! Você pode levar a mesa de exame do posto para lá? Preciso deixar a criança em uma posição reta para examinar o abdome. A gente está com a lanterna forte aí, né Lúcia? - Sim, está aqui. Tainakã, o Marcelo já esteve no nosso polo, mas precisa conhecer mais sobre os costumes do seu povo. Conta para ele o que você já me explicou, as regras, como funciona o trabalho do pajé, está bom? Enquanto isso, vou falar com o cacique, avisar que a gente chegou e ver se ele pode acompanhar as conversas também - diz Lúcia. O AIS explica todo o contexto para o médico: a quebra do resguardo dos pais jovens; a vulnerabilidade espiritual da criança e da família e a proposta de tratamento do pajé por alguns dias. Explicou também como os profissionais de saúde que trabalham há mais tempo conduzem os casos e como a comunidade espera que seja a postura do profissional. - Entendi, Tainakã, que bom. Logo que eu comecei a trabalhar no DSEI, participei de algumas reuniões e treinamentos sobre as questões culturais, sobre a história de contato de cada povo e sobre o trabalho da equipe, isso me ajudou bastante. As equipes nos polos também conversam sobre isso no dia a dia... os AIS e as lideranças das outras aldeias gostam de explicar pra nós como as coisas funcionam. Eu acho muito importante, ajuda muito no nosso trabalho. Então vamos lá examinar juntos e depois conversamos com todos. O médico e o AIS entram na casa e veem a família e os parentes em volta da mãe e do bebê, todos chorando muito. O AIS pergunta aos pais se o médico pode examinar e eles concordam. Durante o exame, ele confirma o quadro de abdome agudo, com suspeita de invaginação intestinal. Enquanto isso, Lúcia está conversando com o cacique: - Bom dia chefe, chegamos, como estão as coisas? - Bom dia Lúcia, que bom que vocês chegaram. Pois é, todo mundo está preocupado com a criança. Você sabe como é a nossa doença... o pai e a mãe da criança são novos demais, a moça ainda estava na reclusão quando engravidou. E esses dias o rapaz foi cortar madeira que não pode, fez mal para a criança. E o médico novo, vocês estão gostando? - pergunta Walumã. - Sim, ele tem bastante experiência no hospital e também tem muita abertura para escutar quem trabalha há mais tempo aqui, escutar as lideranças, os AIS… Ele participou dos treinamentos lá no DSEI com a equipe técnica, profissionais de saúde indígenas, lideranças e os conselheiros de saúde - responde Lúcia. - Ah, isso é muito bom! Depois que a gente começou a discutir no Conselho Local o trabalho de vocês junto com os pajés e as parteiras, melhorou muito né, Lúcia? As equipes estão entendendo melhor e as famílias ficam mais tranquilas quando o doente precisa dos dois tipos de tratamento. - Com certeza. A gente aprendeu muita coisa com vocês. E o DSEI está muito envolvido também, está se estruturando para dar apoio ao trabalho junto com os pajés aqui na área, na CASAI e nos serviços de referência. Quando o pajé retorna à casa, Tainakã pede para chamar o cacique Walumã e a enfermeira Lúcia. Todos sentam-se para uma conversa. O pajé explica o tratamento que está fazendo, explica que a criança e a família estão muito vulneráveis espiritualmente e que seria preciso alguns dias de pajelança para se fortalecerem. O médico explica como é o quadro clínico da criança, faz desenhos para ilustrar, explica o tratamento, as complicações possíveis da doença e o risco de morte. O AIS traduz para todos na língua indígena: - Na minha medicina, é assim que eu vejo a doença da criança e o tratamento. Nós não conseguimos enxergar como o pajé, que sabe olhar dentro e ver o espírito que causa a doença. A gente precisa das máquinas do hospital para enxergar aquilo que estamos suspeitando. É por isso que eu indico a saída do bebê. E se confirmar a doença que estou pensando, dentro do nosso conhecimento, o jeito de curar é com uma cirurgia, senão ela vai só piorando e pode morrer em pouco dias - explica o médico. A avó Yaulaku conta que estão pensando em chamar o pajé Siredju da aldeia Mutum para ajudar, mas a família tem recurso somente para pagar a pajelança, não pode custear o transporte do pajé para a aldeia. - E porque é importante mais um pajé? - questiona a enfermeira Lúcia. Tainakã traduz a explicação do pajé Kuanery, que justifica o desejo da avó: - Nesse caso, ele vai ajudar a resolver mais rápido, porque os dois pajés vão enfrentar juntos os espíritos que fazem mal para criança e para a família. Desse jeito, a criança vai se fortalecer espiritualmente, fica protegida para seguir viagem e aguentar a cirurgia que vocês querem fazer. Não tem problema fazer a cirurgia para a doença de vocês. Mas precisa cuidar da parte espiritual, você entendeu? - Eu entendi, Kuanery. É muito importante este trabalho junto. Vou pedir para o nosso barqueiro buscar o pajé Siredju. Tainakã, você avisa o pessoal da aldeia Mutum que o barco está indo lá pegar o pajé? - disse o médico. O médico comenta com a enfermeira que é arriscado viajar com a criança nesse estado à noite. A melhor conduta é estabilizá-la e acompanhá-la durante a noite no trabalho do pajé. Ao mesmo tempo foi articulado o voo para a retirada da criança da aldeia para o hospital municipal. A enfermeira e o médico prestam cuidados à criança, puncionam um acesso venoso, iniciam hidratação e analgesia. O pajé Siredju chega à noite e durante toda a madrugada os pajés rezam, um deles vai para a mata buscar a alma da criança. Toda a aldeia fica em silêncio, ninguém sai de casa durante a pajelança. O médico e a enfermeira acompanham todo o processo, demonstram interesse em conhecer as explicações e o trabalho dos pajés, examinam a criança entre as pajelanças, realizam o controle de sinais vitais e medicações. O quadro clínico da criança se mantém estável, com redução dos sinais de dor. No dia seguinte, os pajés relatam que foi possível trazer a alma da criança de volta , mas que ainda precisa de cuidados, pois retiraram um feitiço na porta da casa muito perigoso para a família. Os pajés decidem que a criança precisa continuar o tratamento. A enfermeira e o médico, cientes da necessidade de remoção, se reúnem novamente com a família. A enfermeira pergunta aos pajés se é viável um deles acompanhar o doente e a família, continuando a pajelança no hospital. Kuanery explica que é viável, desde que um deles continue na aldeia, rezando no espaço onde aconteceu o feitiço. A criança passa por uma rápida avaliação no Hospital Municipal de Capim Pequeno e é encaminhada para o hospital regional, ao mesmo tempo em que o DSEI realiza contato como hospital regional para viabilizar o trabalho do pajé. Não houve dificuldade nesta articulação, porque a discussão entre os serviços da rede de atenção municipal e regional para as especificidades do usuário indígena vem amadurecendo há bastante tempo. No quarto dia de evolução é confirmada a suspeita de invaginação intestinal. A criança realiza procedimento cirúrgico com sucesso e durante o pós operatório tardio o pajé Kuanery finaliza seu trabalho. O médico manteve contato com a equipe da DIASI para acompanhar o caso.