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Módulo de Introdução à Saúde Indígena ESTUDO DE CASO: Caminho 2 Caminho 2 O barco chega à aldeia às 18 horas e é recebido pelo AIS na beira do rio: - Boa noite doutor Marcelo, enfermeira Lúcia! A viagem foi boa? - perguntou Tainakã. - Foi tudo bem, Tainakã, mas estamos muito preocupados com o quadro desta criança. Por que não chamaram a gente antes? - disse Marcelo. - Sim, doutor, toda aldeia também está preocupada e triste. O casal é muito novo, quebrou uma regra de resguardo, e ontem… - Ah sim, sim, sei… aqui é sempre assim, né? Tudo é feitiço! Vamos lá ver o que a criança realmente tem. Ao chegarem próximo da casa, ouvem choros e cantos. Ao entrarem, veem a família e parentes de outras casas em volta da mãe com o bebê. Poanery e Kayumã estão visivelmente tristes e abatidos, de cabeça baixa. O pajé está fumando sobre a criança e rezando. A avó Yaulaku chora e canta alto, como um lamento. - Por que estão chorando e cantando assim, Tainakã? - pergunta Lúcia. - O pajé está explicando que a alma da criança já foi embora. Para nós, é que nem morrer. Ele está dizendo que o rapaz, o pai, não podia quebrar a regra do resguardo. Agora, o espírito da madeira que ele cortou, levou a alma do filho embora - responde Tainakã. - Mas a criança não morreu, olha lá, está respirando, está se mexendo normalmente! - diz Lúcia. - Sim, Lúcia, mas para nós é diferente. Vocês podem ficar aqui, esperar o pajé terminar e perguntem para ele, pede pra ele explicar o que está vendo. Depois vocês examinam a criança. - Melhor não, Tainakã, deixa o doutor ir lá no posto. Enquanto termina essa pajelança ele pode ir avaliando outros doentes. Depois você manda a família levar a criança lá, tá bom? E amanhã você me ajuda a fazer o pré natal das nossas gestantes... - Não sei se eles vão querer levar a criança lá… sabe como é nossa cultura, né… nem os pais nem a criança podem sair, ainda mais à noite, senão a doença pode até piorar… O médico está bastante incomodado com a situação e com a cena. Nunca tinha visto algo parecido. Reage de forma ríspida: - Então vamos fazer o seguinte, quando a família quiser minha avaliação médica, eles levam lá no posto. Viajamos a tarde inteira para chegar aqui! Enquanto isso vou examinando quem quer ser avaliado, não posso obrigar ninguém. Ele se afasta do AIS, segue em direção ao posto e comenta com a enfermeira Lúcia: - Onde é que já se viu… perder meu tempo para ouvir as crendices de um curandeiro… em pleno século 21! - diz Marcelo. - E sabe o que eu acho mais absurdo, esses anos todos? Na mesma aldeia que um pajé fica segurando o paciente por causa de feitiço, tem os jovens de celular, boné, roupa cara… não perdem uma partida de futebol na aldeia! Quer dizer, eles estão querendo viver que nem a gente, mas ficam com essa história de feitiço só pra atrapalhar nosso trabalho! - diz Lúcia, concordando. Após uma hora, Tainakã avisa: - O pajé já terminou de rezar, mas agora a criança dormiu um pouco e a família disse que vai esperar acordar, porque ela está muito cansada. Falei com o pajé, ele deixou trazer aqui, porque ele vai ficar rezando para proteger o bebê e os pais. - Ah sei, ele “deixou” - responde Lúcia em tom irônico. Pois então manda vir logo, o Dr. Marcelo precisa examinar - diz Lúcia. Durante o exame, o médico confirma o quadro de invaginação intestinal com abdome agudo. Explica para a enfermeira e AIS sobre a doença e a necessidade de encaminhamento para exames e uma provável cirurgia. Além disso, avisa do risco de complicações e óbito, se não for tratada a tempo. Tainakã traduz para a família a explicação dele. A família responde que quer esperar a próxima pajelança de madrugada, para saber como a criança vai ficar e decidirem juntos no dia seguinte. - Nesse caso, eu vou avisar o DSEI amanhã cedo que está havendo uma recusa do atendimento médico por questões culturais. Nesse polo não é a primeira vez que isso acontece. Depois vocês vão na reunião de Conselho reclamar que a equipe não atende nas aldeias. Pois bem, eu estou aqui... eu acho que precisa ter um voo amanhã bem cedo para encaminhar a criança, mas a decisão é de vocês - avisa Marcelo. O médico reavalia a criança às 23h00 na casa, não acompanha as pajelanças e pede para a família ir chamá-lo na casa do Tainakã se houver alguma intercorrência. No dia seguinte, Tainakã vai conversar com a família. Eles explicam que Kuanery conseguiu trazer de volta a alma da criança, mas ela ainda está muito fraca, desprotegida e precisa continuar a pajelança por alguns dias. Além disso, ele encontrou um feitiço na porta da casa, muito perigoso para a família. Como o pajé também está enfraquecido por causa do contato com os espíritos, a família quer trazer o pajé Siredju da aldeia Gavião para ajudar, mas eles não tem combustível para o transporte. Tainakã relata à equipe a conversa com a família, o médico diz: - Entendi... que pena, não tenho muito o que fazer aqui, sem a estrutura do hospital. Vou avisar o DSEI pelo rádio e ficamos de sobreaviso. Vamos terminar o atendimento dos doentes e das gestantes aqui e faço uma avaliação da criança antes de irmos embora. Depois seguimos pra aldeia Gavião. Se eles mudarem de ideia, você me avisa no rádio e amanhã a gente pede um voo. - O pai sabe assinar o nome? Vai ter que assinar um termo de responsabilidade que recusou o atendimento, tá bom? Pode ser aqui no prontuário da criança. Você já sabe como funciona Tainakã, leia para ele a evolução médica e mostra onde assina a recusa - diz Lúcia. A equipe não passa nenhuma informação para o cacique da aldeia e segue viagem para a aldeia Gavião, que fica a duas horas de barco, a mesma aldeia onde mora o pajé Siredju. Lúcia e Marcelo atendem na aldeia, avaliam as gestantes e ficam esperando Tainakã chamar no rádio. No fim da tarde, Marcelo entra em contato com a sede do DSEI e comunica ao DIASI a “recusa" do atendimento: - Estive na aldeia Tucunaré, avaliei uma criança com um quadro de obstrução intestinal a esclarecer, sangramento retal e vômitos, com indicação de encaminhamento para investigação. Após nossa insistência, a família recusou a remoção porque preferem tratar com o pajé. O pai da criança assinou um termo de responsabilidade no prontuário. Estamos na aldeia Gavião, voltando amanhã para o polo base. O AIS está ciente de que pode entrar em contato com a equipe do polo se a família mudar de ideia. No dia seguinte, Tainakã chama a enfermeira Lúcia no rádio: - Bom dia Lúcia, o pajé passou a noite trabalhando muito. A criança piorou um pouco, parou de mamar e teve febre hoje cedo. Continua vomitando várias vezes, eu vi que tem só bile. A mãe disse que evacuou um pouco de muco com sangue, não é fezes, é um tipo de muco mais grosso e vermelho. A família está chorando muito, sem saber o que fazer. - Pois é, Tainakã, por isso que a gente quer mandar a criança pra cidade, ela não vai melhorar aqui. E a família mudou de ideia? - perguntou Lúcia. - Não, porque o pajé viu feitiço grande, que está pegando essa família já faz tempo. Agora precisa descobrir quem está causando isso… Estou muito preocupado! - respondeu Tainakã. - Sim, mas nosso tratamento para essa doença é na cidade! E se a doença é espiritual, a gente tem que respeitar a cultura, não é assim? A equipe termina o atendimento na aldeia Gavião à tarde e segue viagem de três horas em direção ao polo base. O médico faz nova comunicação com o DSEI avisando da evolução do quadro e que a família continua recusando o deslocamento para a cidade. No quarto dia após início dos sintomas, o quadro piora bastante, com persistência de febre, vômitos fecalóides e piora do sangramento retal. O estado geral é de letargia e prostração.A família está em grande sofrimento e pede ao AIS que articule com o polo a retirada da criança. A enfermeira vai de barco até a aldeia enquanto o médico solicita a aeronave. Após cinco horas de viagem, Lúcia chega à aldeia, inicia hidratação endovenosa (EV) e segue viagem ao polo. O avião estava fazendo uma remoção e só consegue pousar no Polo Base Rio dos Peixes no fim da tarde. A enfermeira chega no polo base às 19h00. Passam a noite no polo, mantendo hidratação endovenosa e analgesia. No dia seguinte a criança é removida de avião para o hospital municipal onde é prontamente encaminhada para o hospital regional, no quinto dia de evolução do quadro. O cirurgião pediátrico está em outro município e consegue chegar no hospital regional na madrugada do dia seguinte. A obstrução por invaginação intestinal evoluiu para necrose, peritonite e septicemia. O óbito da criança ocorreu no sexto dia de evolução. A família retorna para a aldeia de luto, todas as aldeias tomam conhecimento e ficam abaladas. Na reunião de Conselho Local do mês seguinte ao óbito, o assunto vem à tona, diversas lideranças colocam sua insatisfação com a equipe e pedem a demissão do médico.