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51 Re vi sã o: A nd ré ia A nd ra de - D ia gr am aç ão : L éo - 1 9/ 09 /2 01 1 HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO Unidade II 5 A FILOSOFIA MODERNA O Renascimento, ocorrido nos séculos XIV e XV, é nitidamente demarcado pela redescoberta da arte e da literatura grega, abrangendo o humanismo, com ênfase na colocação do homem no centro da realidade, o repensar da política, o estilo de governo influenciado pelas obras de Maquiavel, o estudo científico e a filosofia moderna, com destaque para o poder racional do homem, sinalizando um retorno às raízes do pensamento racional e à renúncia do controle do conhecimento pelo misticismo e pela Igreja Católica. Nesse contexto, a sabedoria não é mais vista como algo sagrado e místico, uma vez que, por meio do pensamento e do raciocínio, o homem tem poder para traçar seu próprio destino e caminhar rumo ao conhecimento. Para começar, é importante lembrar que a filosofia da Idade Moderna nasceu por causa dos trabalhos dos grandes mestres do renascimento cultural e científico dos séculos XIV e XV, entre eles Nicolau Copérnico e Leonardo da Vinci, e dos esforços de cientistas e pensadores como Galileu Galilei, Francis Bacon, René Descartes e Emanuel Kant nos séculos seguintes. A filosofia moderna teve início, de fato, com a Teoria do Conhecimento de René Descartes. Na Idade Média, tanto na sociedade quanto na política, a palavra de Deus era considerada como fonte única do conhecimento absoluto, sendo interpretada pela Igreja, que dominava todos os aspectos da vida humana. Por isso, o Renascimento trouxe uma renovação da ciência e a necessidade de uma nova definição do ser humano e seu lugar no mundo. A chamada Idade da Razão surgiu para redefinir os padrões científicos e filosóficos já existentes. Descartes, na declaração “penso, logo existo”, descobre o homem como um ser racional por natureza, com a capacidade de alcançar o conhecimento e, mais que do isso, sua existência é definida pelo ato de pensar. As obras de Descartes formaram a base sobre a qual os racionalistas desenvolveram seus trabalhos e formularam suas hipóteses. Figura 10 – Voltaire na corte de Frederick II da Prússia 52 Unidade II Re vi sã o: A nd ré ia A nd ra de - D ia gr am aç ão : L éo - 1 9/ 09 /2 01 1 Danilo Marcondes, em Iniciação à história da filosofia, sintetiza o Iluminismo, ou o Século das Luzes, como sendo um movimento do pensamento europeu (mais fortemente na França) concentrado principalmente nas últimas cinco décadas do século XVIII. Segundo ele: o Iluminismo valorizou o conhecimento como instrumento de libertação e progresso da humanidade, levando o homem à sua autonomia e a sociedade à democracia, ou seja, ao fim da opressão (2007, p. 210). Portanto, o Iluminismo como movimento dentro da modernidade e mantendo a ênfase na racionalidade possui características próprias, como a liberdade e o fim da opressão. Esse esclarecimento não requer nada mais que a liberdade, incluindo a mais inofensiva de todas as liberdades, ou seja, a de fazer uso público de sua razão em todos os domínios. Esse aspecto é importante, pois só se via limitação da liberdade, e o uso público da nossa razão deve ser livre, uma vez que somente ele pode difundir o esclarecimento entre os homens. O Iluminismo influenciou os responsáveis pelos movimentos de libertação no século XVIII, e seu efeito foi sentido de forma muito especial na França, sendo um dos fatores que levaram à Revolução Francesa. A burguesia, geradora de riqueza, estava presa sobre o jugo da aristocracia, da monarquia absolutista e da Igreja, dominantes desde a Idade Média, sendo obrigada a pagar impostos para sustentar o luxo de poucos, e ansiosa por uma sociedade livre. Ao encontrar aliados prontos para lutar entre as massas de miseráveis parisienses, revoltou-se contra a opressão pelo direito de ter liberdade de escolha sobre o curso da própria vida e contra uma voz no governo do país que ajudou a enriquecer. De acordo com Danilo Marcondes, uma das características fundamentais da filosofia do Iluminismo em relação ao homem é “o individualismo que se baseia na existência do indivíduo livre e autônomo, consistente e capaz de se autodeterminar” (2007, p. 208). O homem que, de acordo com Rousseau, nasce bom, passa a ser visto como livre, autônomo e senhor do seu próprio destino. 6 RENÉ DESCARTES: O RACIONALISMO Figura 11 – René Descartes 53 Re vi sã o: A nd ré ia A nd ra de - D ia gr am aç ão : L éo - 1 9/ 09 /2 01 1 HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO O primeiro pensador moderno As transformações que ocorreram no século XVI mudaram a concepção de mundo do homem ocidental à medida que novas descobertas foram ampliando os horizontes espaciais e temporais da experiência humana. Os pensadores dessa época encontravam antigas doutrinas de cunho filosófico e científico formuladas pela civilização greco-romana, que renasceu a todo vapor, tornando possível a construção de novo saber racional em oposição aos valores e aos princípios que prevaleceram na Idade Média, com base em uma nova configuração geográfica do planeta. Nesse contexto, praticamente tudo foi contestado, desde a unidade política e religiosa da Europa, passando pela autoridade da Bíblia e chegando a abalar o prestígio do Estado e da Igreja. Afinal, com os navegadores cruzando os mares e descobrindo novos povos e culturas, era natural que o questionamento das verdades até então estabelecidas fosse abalado. Foi nessa fase de efervescência e de arrebatamento pela compreensão de um mundo ainda inédito que nasceu e viveu René Descartes. Ele acreditava ser um iluminado cuja missão consistia em unificar todos os conhecimentos humanos a partir de bases sólidas atestadas pela ciência para edificar um modo de pensar centrado na verdade e, por isso mesmo, permeado apenas pelas certezas racionais. Como matemático e filósofo francês, ele refutou todos os pressupostos e ideias que vinham da natureza subjetiva dos sentidos, o que o levou a escrever a máxima “penso, logo existo”. Para ele, todo o universo material poderia ser explicado em termos físicos e matemáticos, o que o levou a criar a geometria analítica como forma de definir e manipular as formas geométricas por meio de expressões algébricas. Deu origem ainda às coordenadas cartesianas, a forma por intermédio da qual os pontos são representados nesse sistema, que marcaram para sempre seu nome na história da humanidade. Além de desenvolver a ciência da ótica, Descartes ajudou a conceber e modelar as teorias contemporâneas de ciências, como a astronomia, e o estudo do comportamento animal. Como filósofo, identificou a coisa pensante ou mente como sendo a alma ou a consciência humana. Já o corpo, apesar de interagir de alguma forma com a alma, era uma máquina física, secundária, podendo ser separado da alma. Ele defendia que tudo tinha uma causa, destacando que, apesar de toda a matéria estar em movimento, ela não se move por si, pois o impulso inicial vem de Deus. O dualismo cartesiano explicava que existiam duas substâncias totalmente diferentes em sua composição, a substância espacial, ou seja, a matéria, e a substância pensante, da qual a mente faz parte. René Descartes nasceu em 1596 em La Haye, rebatizada com o nome de Descartes em sua homenagem, no sul de Tours, na França. Integrou o exército do príncipe Maurício de Orange e, em 1619, durante uma viagem pela Europa, decidiu aplicar os métodos da matemática à metafísica e à ciência. Para isso, foi morar nos Países Baixos em 1628, onde tinha mais possibilidades de se libertar das influências e das perseguições da Igreja Católica. Em 1649, visitou a corte da rainha Cristina, na Suécia. O trabalho de maior destaquede Descartes no campo da matemática foi La Géométrie (A Geometria), publicado em 1637. Mesmo sem ter sido o primeiro a usar a álgebra na geometria, foi o primeiro a usar a geometria na álgebra. Ele foi também pioneiro na classificação das curvas sistematicamente, separando as curvas geométricas, que podem ser expressas com exatidão por meio de uma equação, das curvas mecânicas, que não admitem esse enquadramento. Entre seus trabalhos mais conhecidos, estão O discurso do 54 Unidade II Re vi sã o: A nd ré ia A nd ra de - D ia gr am aç ão : L éo - 1 9/ 09 /2 01 1 método (1637), Meditações sobre a primeira filosofia (1641) e Princípios da filosofia (1644), além de várias publicações sobre fisiologia, ótica e geometria. Também conhecido como Renatus Cartesius (forma latinizada), Descartes ganhou fama por seu trabalho revolucionário na filosofia e na ciência; mas também obteve reconhecimento matemático por sugerir a fusão da álgebra com a geometria, o que deu origem à geometria analítica e ao sistema de coordenadas cartesianas. Além disso, foi um dos pensadores mais importantes na Revolução Científica. Muitas vezes chamado de “fundador da filosofia moderna” e “pai da matemática moderna”, ele passou para a história como um dos pensadores mais influentes do pensamento ocidental, que serviu de modelo e inspiração para várias gerações de filósofos que viriam depois. Boa parte da filosofia escrita a partir da época em que viveu foi uma reação às suas obras ou a autores supostamente influenciados por ele. Muitos especialistas afirmam que Descartes inaugurou o racionalismo da Idade Moderna, enquanto décadas mais tarde, na Grã-Bretanha, John Locke e David Hume deram início a um movimento filósofico que pode ser considerado oposto ao seu pensamento, que se convencionou chamar de empirismo. No Discurso do método, Descartes declarou sua decepção não com o ensino da escola em si, mas com a forma de pensamento baseada na cultura e na tradição que era fundamentalmente escolástica, cujo conhecimento científico achava-se confuso, obscuro e nem um pouco prático. Ele criticou ainda as escolas da Companhia de Jesus, fazendo com que os mestres jesuítas o considerassem um filósofo deficiente. Nessa mesma época, escreveu também Larvatus prodeo (Eu caminho mascarado). No ano de 1637, ficou mais conhecido com a publicação de três pequenos tratados científicos: A Dióptrica, Os Meteoros e A Geometria. No entanto, foi o prefácio dessas obras que o tornaram um pensador célebre, levando-o ao reconhecimento posterior, intitulado Discurso sobre o método. Em 1641, lançou sua obra filosófica e metafísica mais importante: Meditações sobre a filosofia primeira, juntamente com os primeiros seis conjuntos de Objeções e Respostas. Em 1643, o cartesianismo foi condenado pela Universidade de Utrecht, enquanto Descartes publicava Os princípios da filosofia, obra que faz uma síntese dos seus princípios filosóficos para a formação da ciência. Em 1649, a convite da Rainha Cristina da Suécia, escreveu e publicou o Tratado das paixões, dedicado à princesa Elizabete da Boêmia, com quem mantinha uma amizade afetuosa. Morreu de pneumonia em 1650 em Estocolmo, onde estava trabalhando como professor. Por ser católico em um país protestante, foi enterrado em um cemitério de crianças não batizadas, em Adolf Fredrikskyrkan. Durante a Revolução Francesa, seus restos foram desenterrados para serem deslocados para o Panthéon, ao lado de outras grandes figuras ilustres da França. Em 1667, a Igreja Católica Romana colocou suas obras no Índice dos Livros Proibidos. O pensamento de Descartes pode ser considerado revolucionário para uma sociedade feudalista, na qual a influência da Igreja ainda era muito forte e quando ainda não existia uma tradição da produção de conhecimento científico. Ele viajou muito e viu que sociedades diferentes possuíam crenças diferentes e até mesmo contraditórias. Aquilo que numa região era tido como verdadeiro, era considerado ridículo e desprovido de bom senso em outros lugares. Descartes constatou que os costumes, a história de um povo, bem como sua tradição cultural, determinavam a forma como as pessoas pensam naquilo em que acreditam, o que o levou a entender a cultura como inimiga da razão. 55 Re vi sã o: A nd ré ia A nd ra de - D ia gr am aç ão : L éo - 1 9/ 09 /2 01 1 HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO Por isso, o método cartesiano consiste basicamente no ceticismo metodológico, que duvida de tudo que pode ser duvidado. Esse pensamento vai de encontro ao dos gregos antigos e dos escolásticos, que acreditavam que as coisas existem simplesmente porque precisam existir, ou porque assim deve ser. Ainda nesse contexto, ele também concebeu o método na realização de quatro tarefas básicas: verificar se existem evidências reais e indubitáveis acerca do fenômeno ou da coisa estudada; analisar, ou seja, dividir ao máximo as coisas em suas unidades de composição, fundamentais, e estudar essas coisas mais simples que aparecem; sintetizar, agrupar novamente as unidades estudadas em um todo verdadeiro; e enumerar todas as conclusões e princípios utilizados para manter a ordem do pensamento. Quanto à ciência, desenvolveu uma filosofia que influenciou muitos cientistas até ser passada pela metodologia de Isaac Newton. Ele acreditava que a matéria não possuía qualidades inerentes, sendo apenas o material bruto que ocupava o espaço, dividindo a realidade em res cogitans (consciência, mente) e res extensa (matéria). Para Descartes, Deus criou o universo como um perfeito mecanismo de moção vertical, que funcionava de forma determinista e sem a intervenção divina. Ele instituiu a dúvida, alegando que seria possível dizer que existe apenas aquilo que pode ser provado. Não temerei dizer que penso ter tido muita felicidade de me haver encontrado, desde a juventude, em certos caminhos, que me conduziram a considerações e máximas, de que formei um método, pelo qual me parece que eu tenha meio de aumentar gradualmente meu conhecimento, e de alçá-lo, pouco a pouco, ao mais alto ponto, a que a mediocridade de meu espírito e a curta duração de minha vida lhe permitam atingir (DESCARTES, 1973 p. 42). A curiosidade de Descartes pela Matemática começou logo cedo, no College de La Flèche, escola dirigida pelo clero, por um motivo que já deixava entrever sua visão filosófica, ou seja, a garantia que as demonstrações ou as justificativas matemáticas proporcionam às descobertas humanas. Os matemáticos reconhecem a importância de Descartes pelo seu estudo pioneiro sobre a geometria analítica. Antes dele, a geometria e a álgebra apareciam ainda como segmentos distintos da Matemática e foi o filósofo quem mostrou uma forma de traduzir problemas de geometria para o campo da álgebra, abordando-os por meio da criação de um sistema de coordenadas. Essa teoria serviu de suporte para o cálculo de Newton e de Leibniz, colaborando em grande escala para a concepção da matemática estudada atualmente. Lembrete Na declaração “penso, logo existo”, Descartes descobre o homem como um ser racional por natureza, com a capacidade de alcançar o conhecimento e, mais que do isso, sua existência é definida pelo ato de pensar. 56 Unidade II Re vi sã o: A nd ré ia A nd ra de - D ia gr am aç ão : L éo - 1 9/ 09 /2 01 1 6.1 David Hume: o empirismo Figura 12 – David Hume Considerado um dos mais importantes filósofos da Grã-Bretanha do século XVIII, David Hume nasceu em Edimburgo, na Escócia, em maio de 1711. Voltou para a propriedade rural de sua família em 1737, depois de estudar na França, e lá permaneceu até a morte, em 1776. Assim que regressou, providenciou a publicação de sua obra maisfamosa, o Tratado, composta por três livros, publicados no anonimato em duas etapas, antes de completar 30 anos. O Livro I tem como objetivo fornecer uma explicação do processo de aquisição de conhecimento pelo ser humano, desde o surgimento das ideias, passando pelas noções espaciais e temporais, até a causalidade e o ceticismo atribuído aos sentidos. Já o Livro II, sobre as “paixões” do homem, apresenta um elaborado mecanismo para explicar a ordem afetiva ou emocional no homem, e reserva um papel subordinado para a razão. Essas duas partes foram publicadas em 1739, anonimamente. O Livro III descreve o bem moral em termos de “sentimentos” de aprovação ou desaprovação que o homem sente quando considera o comportamento humano sob a luz do que é de consequência agradável ou desagradável para ele ou para os outros. Essa terceira parte foi publicada em 1740. Ele frequentou a universidade local. Inicialmente, pensou em seguir a carreira jurídica; mas, em suas palavras, chegou a uma “aversão intransponível a tudo, exceto ao caminho da filosofia e à aprendizagem em geral”. Apesar de muitos acadêmicos considerarem hoje o Tratado sua maior obra e um dos livros mais importantes da história da filosofia, o público inglês não se entusiasmou imediatamente. Em 1744, foram recusadas a Hume as cadeiras nas Universidades de Edimburgo e Glasgow, provavelmente devido a 57 Re vi sã o: A nd ré ia A nd ra de - D ia gr am aç ão : L éo - 1 9/ 09 /2 01 1 HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO acusações de ateísmo e à oposição de um dos seus principais críticos, Thomas Reid. Após esses insucessos, trabalhou como curador de um doente psiquiátrico e posteriormente como secretário de um general. No entanto, para além dos seus trabalhos no âmbito da filosofia, Hume ascendeu à fama literária como ensaísta e historiador com seu célebre História da Inglaterra. Viveu a última década da vida em Edimburgo, no novo aldeamento de New Town. O pensamento de Hume possui grande influência na filosofia atual. Para ele, percepção em estado puro dá origem às impressões que, posteriormente, conferem ao sujeito a possibilidade de compor a ideia como uma cópia deturpada da percepção bruta. Essa teoria de Hume ficou conhecida como empirismo psicológico, que deu origem ao empirismo lógico. De acordo com essa concepção, as palavras só encontram significação se possuírem um ser ou um objeto correspondente no mundo, ou seja, uma base empírica. Nesse sentido, Hume foi de encontro aos postulados filosóficos complexos e de conclusões metafísicas que não têm como fundamento a base no real, pois, para ele, a abstração não existe. Nesse caso, toda forma de conhecimento estaria associada às impressões e às relações entre as ideias inatas e originais, como as verdades dos princípios matemáticos, que são irrefutáveis, uma vez que as deduções lógicas podem ser demonstradas. Dessa forma, os objetos da razão podem ser divididos em relações de ideias e questões de fatos. Fazem parte do primeiro grupo as verdades matemáticas, quer dizer, a relação de ideias remonta à razão humana, que estabelece as relações entre elas. Essas assertivas possuem validade universal, uma vez que comparam ideias que não são efetivas, pois somente os objetos pensados admitem efetividade. Hume também critica o conceito de substâcia, seja ela de ordem material, seja de natureza espiritual, descartando o conceito de alma concebido por Descartes. Para ele, o ser humano consiste em um feixe de sensações da consciência que permanecem em um fluxo constante, sucedendo-se. Portanto, a consciência opera com essa somatória de momentos, e o eu passa a existir quando ocorre uma ação de presença; quando se morre, o eu se anula. Com o objetivo de garantir sua sobrevivência, o homem buscou colocar ordem à sua volta, dando prioridade àquilo que é útil. Como o fundamento das ciências naturais para Hume não é racional, a natureza sobrepõe-se à razão. Nesse sentido, filosofar seria uma forma de refutar o racionalismo. Como o princípio causal tem origem na experiência, nossa mente é formatada pelo costume e pela experiência. Aceitamos algo como natural; mas, se fosse de outra maneira, aceitaríamos da mesma forma. Hume admite a existência objetiva dos efeitos da natureza, uma vez que até mesmo um cético tem de aceitar a existência de um objeto concreto. No entanto, as leis da natureza são apenas as mais prováveis de acontecer e, como a causalidade não é objetiva, uma vez verificadas que nem sempre as mesmas causas surtem os mesmos efeitos, a certeza precisa ser trocada pela probabilidade dos acontecimentos, incluindo a expectativa que um evento ocorra, por ser inerente apenas ao homem. Na visão de Hume, a origem da religião encontra-se no sentimento, assim como a origem da moral. O filósofo ainda aborda a questão do que é o bem para o homem em sua teoria moral, que tem um tom altruísta que afirma a existência de um Ser supremo e senhor da natureza. Na sua obra Ensaios morais, políticos e literários, Hume explica que o ser humano busca a perfeição da natureza por meio da inspiração artística, criticando a felicidade artificial, em contraposição aos sentidos. Ele também refuta os sábios, pois acredita que o caminho deve vir de dentro e não de teorias, e é nessa caminhada que 58 Unidade II Re vi sã o: A nd ré ia A nd ra de - D ia gr am aç ão : L éo - 1 9/ 09 /2 01 1 atingimos o prazer e a virtude. Portanto, sua linguagem é jovial, enaltecendo sempre o arrebatamento epicurista pelas paixões como se fosse a doutrina de prazer. Já no ensaio seguinte, O estoico, Hume continua louvando a natureza, contrapondo a barbárie e afirmando que devemos apurar nosso gosto pelas artes. De acordo com ele, a natureza foi generosa com o homem, tornando-o superior aos outros animais; mas ele necessita ser civilizado por meio da educação. Devemos, então, aperfeiçoar o espírito e refletir. Ao encontrarmos as regras para nossa conduta, seremos filósofos; mas, somente quando as aplicarmos do ponto de vista pragmático, seremos sábios. No ensaio O platônico, Hume aborda ainda a diversidade dos gostos humanos, além da contemplação filosófica, que devem estar relacionados à perfeição e à beleza universal. Já no ensaio O cético, Hume observa que não é possível recorrer às teorias filosóficas tendo em vista o prazer, pois é infinita a gama de variações das possibilidades humanas. Para ele, o único princípio filosófico verdadeiro é que as coisas em si não possuem as qualidades que o homem lhe atribui. Hume insiste em afirmar que é a paixão a responsável pela proposição dos valores de tudo o que existe. Ao vivenciar uma sensação de prazer, quando observa os objetos que trazem um sentimento, o ser humano tende a classificá-los pela beleza, seja ela desejável ou abominável. Ao igualar os homens, presume que aquilo que os diferencia está na paixão ou na fruição. Ele critica a aspereza de espírito de muitos e acredita que a filosofia pode corrigir esse defeito, ainda que seja para poucos, pois ela induz ao prazer. Como todos os males vêm do universo que os engloba, para escapar deles e dos seus infortúnios, é preciso prevenir-se e conhecê-los. No ensaio Da origem do governo, Hume afirma que, na sociedade tradicional, uma pessoa nascida em família precisa conservar esse laço social, tendo em vista o cumprimento da justiça como o principal motivo da existência do poder governamental. Como a natureza humana possui sua face maligna, tornam-se necessárias a paz e a ordem para conservar a organização social. Por esse motivo, é preciso criar mecanismos para assegurar a obediência por meio dos hábitos, para que os homens aprendam a aceitar as regras sem questioná-las. A origem divina do governo como vontade de Deus é defendida por Hume no ensaioDo contrato original, justificando ser isso necessário para a humanidade como um todo. O filósofo também alega que o vigor dos membros e a coragem constituem a força natural de um homem e, depois de consolidada, a obediência passa por várias gerações até ser reconhecida como natural. Ele ainda afirma que foi em Atenas que ocorreu a maior prática da democracia, apesar de o voto ser limitado aos cidadãos de posse, o que o leva a pensar que o governo não surge a partir do consenso popular, pois esse consenso surge da força. Da mesma forma, a utopia da justiça é impossível pela natureza humana, já que o fluxo da vida implica uma transmissão de valores hereditários. Para Hume, existem duas espécies de deveres morais, sendo do primeiro grupo aqueles relacionados ao instinto natural. Já a segunda espécie decorre da obrigação, uma vez que se tornam necessárias leis para viver em sociedade, fazendo surgir o sentido da justiça e a lealdade. Após negar as origens filosóficas e religiosas do governo como consenso popular, parte para buscar o motivo da submissão no ensaio Da obediência passiva. Para ele, a justiça precisa ter utilidade pública, enquanto a lei deve garantir a segurança da coletividade. Mesmo considerando a monarquia arrogante, o filósofo também defende o direito de resistência à tirania. 59 Re vi sã o: A nd ré ia A nd ra de - D ia gr am aç ão : L éo - 1 9/ 09 /2 01 1 HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO Com o ensaio Dos primeiros princípios do governo, Hume demonstra sua admiração pelo fato de muitos renunciarem aos seus sentimentos em benefício de uma minoria. A opinião pode ser de interesse ou de direito; a primeira origina-se do benefício do governo, enquanto o direito está relacionado ao poder, que predomina, e à propriedade. Essas opiniões são fundamentais para o governo, mas os interesses pessoais e as características inerentes ao ser humano podem restringi-las. No ensaio Da sucessão protestante, o filósofo elabora um estudo da sucessão hereditária, utilizando políticos ingleses da sua época como exemplos. Em ensaios anteriores, sua opinião sobre a monarquia não era tão benevolente. Para Hume, o governo hereditário dos príncipes, uma nobreza sem vassalos e um povo escolhendo seus próprios representantes, pode ser considerado o que existe de melhor na monarquia, na aristocracia e na democracia, respectivamente. No entanto, ele coloca em dúvida se as formulações gerais da política devem ser efetivas. No ensaio Que a política pode ser transformada em ciência, critica o pensamento de Maquiavel, alegando que parte de sua teoria baseia-se em falsos princípios. Uma constituição pode ser boa se consegue combater a má administração. Já no ensaio Da liberdade civil, ele elogia as pessoas livres de preconceitos, que se dedicam a causas partidárias e políticas, contribuindo assim para a sociedade. Mas, como todos são ainda muito jovens, não existe uma fórmula aceitável. Hume também verifica a mudança que se dá no Estado em razão do poder da instituição, ou seja, quando se passa de um governo de homens para um governo de leis. Ele apreciava o filósofo pré- socrático Xenofonte, e nele buscou várias informações históricas. No ensaio Ideia de uma república perfeita, expõe o quanto é difícil modificar uma forma de governo, mesmo que seja para melhor. Ao abordar os teóricos que traçaram planos imaginários de governo, como Thomas More e Platão, estrutura um sistema governamental que inclui o senado, o condado e representantes, ressaltando os poderes executivo e legislativo como necessários para o alcance do equilíbrio social. No ensaio Da superstição e do entusiasmo, coloca a superstição e o entusiasmo como exemplos falsos de religião, uma vez que a alma humana pode alcançar um estado de espírito negativo e imaginar objetos, atribuindo poderes a algo inexistente. Outro tipo de estado de espírito conduz ao entusiasmo e, nele, a imaginação flui, enquanto o mundo material perde a sua grandeza. Hume também acredita que sentimentos como a esperança e o orgulho, além da imaginação, são fontes do entusiasmo e parte para criticar os membros do clero, chamando-os de tiranos. No ensaio Da origem e progresso das artes e ciências, alerta para a distinção entre o que é do acaso e aquilo que provém da causa. O que depende de poucos vem do acaso e, o oposto, vem das causas. Na história da arte e da ciência, deve-se tomar cuidado para não confundir as causas ou achar causas inexistentes. Hume ainda acredita que o homem é superior à mulher, embora a natureza tenha se encarregado de prover todas as espécies de amor entre os sexos, mesmo que seja por tempo limitado. No ensaio Da eloquência, destaca que sentimentos nascidos da vaidade dão origem às disputas. Em todos os seus ensaios, Hume defende que a natureza humana possui um lado maligno e que o preconceito acaba com a capacidade de raciocinar, fazendo da arrogância um defeito comum entre os homens. Como Deus é o ser supremo, deseja o bem, que deve ser experimentado por meio das sensações puras, que se encontram pervertidas no processo civilizatório pelos defeitos comuns que afastam de Deus, muito embora haja homens com gosto superior. 60 Unidade II Re vi sã o: A nd ré ia A nd ra de - D ia gr am aç ão : L éo - 1 9/ 09 /2 01 1 De forma resumida, o ceticismo de Hume está na negação não da crença, mas da evidência. É a conclusão filosófica de que o homem é mais uma criatura de percepção sensível e prática que de razão. O que ele diz é que somente existe nossa experiência de que uma coisa se segue à outra, que os padrões de uma experiência passada se repetem e passam a ilusão de causa e efeito. Ele não observa nenhuma relação causal entre os dados dos sentidos “externos” porque, quando o homem considera quaisquer eventos como causalmente relacionados, tudo que faz e pode observar é que eles frequentemente caminham juntos. Nesse tipo de associação, é um fato que a impressão ou ideia de um evento traz com ele a ideia do outro. O trabalho da associação do hábito fixa-se na mente e passa a ser sentido como compulsão. Com esse sentimento, Hume conclui ser a única fonte da ideia de causalidade. 6.2 Immanuel Kant: o apriorismo e o conhecimento Figura 13 – Immanuel Kant (1724-1804) O crítico da razão e da moral Nascido em 1724 no seio de uma família protestante em Königsberg, atual Kaliningrado, Emmanuel Kant teve educação rígida em uma escola de princípios pietistas, ou seja, reacionária contra o protestantismo dogmático. Na primeira fase da vida adulta, era apenas um metafísico menor numa universidade prussiana; mas foi então que uma crise existencial o atormentou, sendo possível afirmar que isso teve forte influência na suas convicções posteriores como filósofo e pensador. Em 1740, Kant tinha 16 anos e Frederico II tornou-se o rei da Prússia, trazendo sinais de tolerância para uma nação célebre pela disciplina militar. Trouxe também iluministas para sua corte e continuou a política de encorajamento à imigração que o pai tinha seguido. Com o falecimento do pai em 1746, foi obrigado a trabalhar como professor particular. Ao se tornar professor de 61 Re vi sã o: A nd ré ia A nd ra de - D ia gr am aç ão : L éo - 1 9/ 09 /2 01 1 HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO lógica e metafísica na universidade, após quatorze anos como docente, entrou em contato com a obra de David Hume, que o despertou do seu sono dogmático, uma vez que se perguntou como são possíveis juízos sintéticos a priori; para responder a essa pergunta, escreveu um livro com mais de 800 páginas. Em 1773, Frederico II, um protestante, concedeu refúgio à Ordem dos Jesuítas, banidos pelo Papa, enquanto Kant, aos 50 anos, vivia o auge do movimentoromântico, chamado Sturm und Drang. Sete anos mais tarde, publicou a Crítica da razão pura. A reação aos seus escritos foi pouco encorajadora, pois Moses Mendelssohn e Johann Georg Hamann pronunciaram-se de forma reticente, o que levou Kant a escrever um artigo intitulado O que é o Iluminismo? Aos 71 anos, publicou o tratado Para a paz eterna, no qual surgia a perspectiva de um cidadão do mundo esclarecido. Morreu com 80 anos, após uma prolongada doença que apresentava sintomas semelhantes à doença de Alzheimer, uma vez que já não reconhecia sequer seus amigos mais íntimos. Foi considerado como o último grande filósofo da era moderna, e também um de seus pensadores mais marcantes. Há estudiosos que avaliam sua concepção filosófica de mundo como uma espécie de síntese entre o racionalismo de René Descartes e Gottfried Leibniz, no qual predomina o raciocínio dedutivo, e a tradição empírica inglesa, de David Hume e John Locke, que prioriza o raciocínio indutivo. Kant ainda recebeu reconhecimento pela sua teoria conhecida como Transcendentalismo, segundo a qual todos trazem conceitos a priori, ou seja, aqueles que não vêm da experiência para a vivência concreta do mundo. Seguindo essa linha de pensamento, a filosofia da natureza e da natureza humana concebida por Kant é, do ponto de vista histórico, uma das mais influentes do relativismo conceptual que tomou conta da postura intelectual do século XX. Porém, é possível que o próprio filósofo refutasse o relativismo nas suas formas atuais, como o pós-modernismo. Ele também ficou conhecido pela sua filosofia sobre a moral e pela proposta moderna de uma teoria a respeito da formação do sistema solar, denominada de hipótese Kant-Laplace. Aos 46 anos, entrou em contato com a obra de David Hume, considerado um empirista ou um cético que, para uns, desprezava qualquer tipo de explicação metafísica, para outros era tido como um naturalista. Em seu trabalho mais conhecido, alega que nada na experiência humana pode justificar a existência de poderes causais inerentes às coisas, o que deixou Kant bastante perturbado, por achar o argumento de Hume irrefutável, apesar de as conclusões serem inaceitáveis. Depois de dez anos, em 1781, publicou o célebre Crítica da razão pura, uma das obras mais significativas da filosofia moderna. Nesse livro, ele elabora sua ideia de uma teoria transcendental para demonstrar que, mesmo sem saber as verdades acerca do universo, somos obrigados a refletir sobre ele, já que podemos ter a certeza de um grande número de coisas sobre o mundo enquanto sua aparência, regido por leis da física e da matemática, por exemplo. Nos vinte anos que se seguiram, Kant produziu de forma incessante, completando sua contribuição à filosofia moderna com a Crítica da razão prática, que tratava da moralidade de maneira semelhante ao modo como a crítica inicial abordava o conhecimento. Em Crítica do julgamento, ele destaca os diversos usos dos poderes mentais, que não requerem conhecimento factual nem nos fazem, necessariamente, 62 Unidade II Re vi sã o: A nd ré ia A nd ra de - D ia gr am aç ão : L éo - 1 9/ 09 /2 01 1 partir para a ação. Da maneira como Kant os concebeu, os juízos de valor relacionados à estética e à teleologia estabelecem uma conexão entre os nossos julgamentos morais e empíricos, unindo todo o sistema. A fundamentação da metafísica dos costumes é considerada por muitos filósofos a mais importante obra já escrita sobre a moral. Nela, Kant definiu as funções da ação fundamentada pela moral, introduzindo conceitos como o “imperativo categórico” e a “boa vontade”. Ele ainda produziu ensaios mais populares sobre história, política e aplicação da filosofia à vida. Quando veio a falecer, estava escrevendo a Quarta crítica, por ter concluído que seu pensamento estava incompleto. Esse manuscrito foi publicado como obra póstuma. De acordo com Kant, para fazer uma crítica sobre aquilo que é belo, precisamos nos orientar pelo poder do julgamento, e a indagação fundamental que move essa investigação crítica consiste em saber se existe um valor universal capaz de conceituar o belo e reivindicar que outros indivíduos, a partir da apreciação de uma forma bela da natureza ou da arte, confirmem esse juízo. Se não for dessa forma, temos que aceitar o fato de que todo objeto que julgamos ser belo seria, portanto, um valor subjetivo. Logo, a capacidade de julgar, que pertence a todos, é universal, entrelaçando o julgamento estético e prático. Assim, a investigação crítica que Kant propõe refere-se ao universo especulativo das faculdades subjetivas do homem que atuam conforme princípios que fazem farte da essência do pensamento humano. Segundo estudiosos da obra filosófica de Kant, ele reconhece três faculdades do ânimo: a de conhecer, a de apetição e o sentimento de prazer e desprazer. A faculdade de conhecer refere-se ao objeto e à unidade de percepção, já a faculdade de apetição consiste nas representações consideradas como causa de efetividade desse objeto, enquanto o sentimento de prazer e de desprazer são as representações que se referem ao sujeito e que conservam sua existência nele. Ele acredita que o sentimento está localizado em um patamar entre o desejo e o conhecimento, conceituando prazer como um sentimento relacionado ao gosto, compreendido como a capacidade de apreciação do prazer. Na Crítica da razão prática, o filósofo discorre sobre o respeito, considerando-o diferente dos demais sentimentos por pertencer à razão pura e, por isso, não poder ser atribuído nem ao gozo nem ao sofrimento. Para ele, o respeito encontra-se vinculado à representação da lei moral em todo ser racional, sem que haja o condicionamento ao prazer ou ao desprazer. Dessa forma, a razão sugere um sentimento de satisfação no que diz respeito ao dever cumprido. Essa conclusão vai originar a crítica do gosto, uma vez que associa o ânimo com o sentimento moral. O juízo de gosto, então, seria a faculdade de julgar, que produz satisfação e descontentamento. Nas palavras do próprio Kant (1987), “gosto é a faculdade de julgar um objeto ou uma representação mediante uma satisfação ou descontentamento, sem interesse algum. O objeto de semelhante satisfação chama-se belo”. Portanto, é possível compreender o juízo de gosto como o “interesse desinteressado”, que vem da contemplação da beleza. Por isso, todo juízo referente às artes faz parte da satisfação estética, que é desprovida de interesse e encontra-se no prazer diante da contemplação do objeto. 63 Re vi sã o: A nd ré ia A nd ra de - D ia gr am aç ão : L éo - 1 9/ 09 /2 01 1 HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO Para Kant (1987): só a crítica pode cortar pela raiz o materialismo, o fatalismo, o ateísmo, a incredulidade dos espíritos fortes, o fanatismo e a superstição, que podem se tornar nocivos a todos e, por último, também o idealismo e o cepticismo, que são, sobretudo, perigosos para as escolas e dificilmente se propagam no público. Mesmo tendo adaptado a ideia de uma filosofia crítica, cujo objetivo inicial era revelar os limites das capacidades intelectuais humanas, ele foi um dos grandes edificadores de sistemas, criticando a metafísica, a ética e a estética. Sua famosa citação – “o céu estrelado por sobre mim e a lei moral dentro de mim” – consiste em uma síntese dos seus estudos. Com isso, o filósofo busca explicar, por intermédio de uma teoria sistemática, que tempo e espaço são formas elementais de a mente humana perceber o mundo; mas só podem ser empregadas na prática, uma vez que a mente não pode produzir essa ideia. Além disso, nada pode ser percebido, exceto por meio dessas formas, sendo os limites da física as fronteitas finais da estrutura mental. Na visão kantiana, o conhecimento, a priori,possui a capacidade de compreender as experiências naturais, que são apresentadas à consciência humana. Em seguida, ela retira o mundo real (que ele chamou de numenal) da cena da percepção. Kant denominou seu pensamento filosófico crítico de idealismo transcendental, ou seja, descreveu a forma de procurar as condições da possibilidade do conhecimento do mundo pelo homem. Porém, esse idealismo difere de outros sistemas idealistas. Para ele, os fenômenos dependem das condições da sensibilidade, do espaço e do tempo, ao contrário da tese da dependência mental no sentido do idealismo de Berkeley. Em 1784, no ensaio Uma resposta à questão: o que é o Iluminismo?, Kant buscava atingir os grupos que tinham levado o racionalismo além dos limites, incluindo os metafísicos, que pretendiam compreender tudo sobre Deus e a imortalidade, os cientistas, que presumiam por meio de seus experimentos a descrição mais exata da natureza, e também os céticos, que alegavam que a crença em Deus, na liberdade e na imortalidade não tinha fundamentos racionais. Apesar de tantas divergências, Kant mantinha-se otimista por atribuir à Revolução Francesa uma forma de instaurar o domínio simultâneo da razão e da liberdade. As investigações filosóficas de Kant ocuparam-se de quatro questões principais: a mecânica do saber, a ética, a religião e a natureza do sentimento estético, bem como a direção da evolução biológica. A respeito de cada uma delas expressou ideias que marcaram de forma decisiva a história do pensamento humano. No que se refere à natureza do saber, a importância de Kant reside menos no resultado dos seus estudos do que no fato de haver proposto o assunto. Em outras palavras, ele foi o primeiro a pensar em estudar a natureza da compreensão humana antes de levar em conta seus resultados, concebendo a ideia de razão independente da experiência, e, com isso, provocou uma espécie de revolução comparada às transformações que mudaram os conceitos científicos e filosóficos do século XIX. 64 Unidade II Re vi sã o: A nd ré ia A nd ra de - D ia gr am aç ão : L éo - 1 9/ 09 /2 01 1 6.3 Hegel: o idealismo alemão Figura 14 – Drawing Hands, de Maurits Cornelis Escher O pensador das contradições George Wilhelm Friedrich Hegel, filósofo nascido em 1770, é considerado o expoente máximo do idealismo alemão do século XIX, que acabou provocando um impacto profundo no materialismo histórico de Karl Marx. Aos 18 anos, ingressou no seminário protestante de Tubingen, para estudar teologia, onde conheceu Schelling e Holderlin. O pietismo, uma das correntes gnósticas do protestantismo, influenciou profundamente seu pensamento. Hegel foi um ilustre professor universitário de filosofia que iniciou suas atividades em Berna, na Suíça, entre 1793 e 1796; depois lecionou em Frankfurt, de 1797 a 1800. Foi também mestre de conferências na Universidade de Iena, professor e reitor em um colégio de Nuremberg, professor em Heidelberg e, finalmente, em Berlim, onde permaneceu até a morte. Hegel formulou o modelo analítico da realidade que maior influência teve ao longo dos séculos XIX e XX, para pensadores como Schopenhauer, Nietzsche, Marx, Kierkegaard e Jean-Paul Sartre, em razão de uma proposta que recusa a concepção filosófica de Kant. Buscou se defrontar com temas diversos, como a lógica, o direito, a religião, a arte, a moral, a ciência e a história da filosofia. Em todos esses domínios, ele viu a manifestação do espírito absoluto, que se materializa e revela por intermédio da história da humanidade. A filosofia hegeliana parte do princípio de que a negatividade é inerente ao real e que o positivo realiza apenas por meio do negativo. A dialética, portanto, seria o método que permite compreender e esclarecer a racionalidade do real. A obra inicial e a mais significativa dos estudos de Hegel foi a Fenomenologia do espírito ou Fenomenologia da mente. Ele também publicou a Enciclopédia das ciências filosóficas, a Ciência da lógica e a Filosofia do Direito. Várias outras obras sobre filosofia, religião e história da filosofia foram concebidas com base nas anotações dos seus estudantes, tendo sido publicadas somente após sua morte. No entanto, as obras de Hegel ganharam fama de serem de difícil compreensão, tendo em vista os temas que pretendem abranger. Ele ainda critica a concepção do conceito como representação no sentido de preencher uma ausência. Ele introduziu também um sistema para compreender a história 65 Re vi sã o: A nd ré ia A nd ra de - D ia gr am aç ão : L éo - 1 9/ 09 /2 01 1 HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO da filosofia e do mundo da dialética, que pode ser explicado como uma espécie de progressão na qual cada sucessão de movimento surge como solução para contradições inerentes do movimento anterior. De maneira geral, a dialética pode ser considerada como uma das diversas partes do sistema hegeliano, que nunca foi bem compreendido de fato. Um dos possíveis motivos para isso se deve ao abandono, por parte dele, da ideia de que a contradição gera um objeto desprovido de conteúdo. Hegel confere dignidade à contradição, bem como ao negativo; mas, por outro lado, ele não queria dizer que absurdos fossem possíveis. No estudo atual do hegelianismo para estudantes de nível superior, a dialética costuma ser explicada em três momentos distintos: tese, antítese e síntese. No entanto, Hegel não empregou pessoalmente essa classificação. Ele usou esse sistema para explicar a história da filosofia, da ciência, da arte, da política e da religião, mas muitos críticos modernos alegam que ele tende a analisar as realidades da história de forma superficial para poder enquadrá-las em seu paradigma dialético. O método hegeliano inspirou em grande escala as análises de filósofos contemporâneos sobre as relações do eu com o outro. Na luta de duas consciências, Hegel examinou simultaneamente a relação de dois “eu” e a relação de cada “eu” com sua própria vida. O “senhor”, aquele que é vitorioso no combate, aceitou arriscar a vida. Sendo assim, ele é mais do que ela e, por sua coragem, colocou-se acima dos objetos comuns da necessidade e da existência empírica. O vencido, aquele que se rendeu, tem medo de perder a vida. Como consequência, ele é escravo da vida e de seus objetos empíricos. Hegel quer dizer com isso que o senhor não é senhor “em-si”, mas por meio de uma mediação, isto é, de uma relação. O senhor se define por sua relação com o escravo e por sua relação com os objetos, que depende, ela própria, da relação com o escravo. No ponto de partida, o senhor domina os objetos da necessidade, já que no campo de batalha ele se mostrou corajoso e superior à sua vida e aos objetos das necessidades. Secundariamente, o senhor domina os objetos por mediação do escravo que trabalha, isto é, que transforma os objetos materiais em objetos de consumo e de fruição para o senhor. Em suas lições sobre a história da filosofia, Hegel assinala que essa noção envolvia uma contradição interna. De fato, a filosofia quer conhecer o imperecível, o eterno, sendo seu fim a verdade. No entanto, a história conta o que foi numa época e que desapareceu em outra, substituído por outra coisa. Se a verdade é eterna, “ela não penetra na esfera do que passa e não tem história”. Entretanto, a filosofia encontra-se toda nos sistemas dos filósofos. A ideia geral de filosofia permanece abstrata se não se confunde com os diversos sistemas dos filósofos no decurso da história, assim como a noção geral de fruto. Na realidade, Hegel defendia que cada filosofia correspondia a um momento da história e a uma etapa na evolução do espírito absoluto. Portanto, cada filosofia é “o espírito da época existente como espírito que se pensa”. Ela surge “no devido momento, nenhuma ultrapassouseu tempo”. Por isso, as filosofias sucessivas não se anulam, mas as novas filosofias mostram as anteriores como verdades parciais e passíveis de serem integradas numa síntese mais ampla que se elabora com o tempo. Dessa forma, a história da filosofia oferece momentos privilegiados ou, como diz Hegel, vem reconciliar dialeticamente os contraditórios. Nesse sentido, a razão passa a ser única como a racionalidade, formando um sistema. Por essa razão, a evolução das determinações do pensamento é igualmente racional e os princípios gerais surgem segundo a necessidade da noção fundamental. Portanto, o princípio de uma filosofia passa, na seguinte, 66 Unidade II Re vi sã o: A nd ré ia A nd ra de - D ia gr am aç ão : L éo - 1 9/ 09 /2 01 1 para a categoria de um momento. Não se refuta uma filosofia, apenas sua posição, pois as filosofias são as formas do Uno. Um estudo mais avançado nesse campo pode mostrar como progridem seus princípios, de maneira que o seguinte é uma nova determinação do precedente. Essa evolução permanente e contraditória ao mesmo tempo permite vislumbrar a importância de conhecer os princípios dos sistemas filosóficos para, na sequência, reconhecer cada um deles como necessário em sua época superior. Mais adiante, a determinação precedente torna-se apenas um ingrediente da nova, que é assumida sem ser rejeitada. Desse modo, todos os princípios são conservados. Assim, a unidade consiste no fundamento de tudo. Aquilo que se desenvolve na razão progride na unidade dessa razão e conhecer verdadeiramente um sistema significa tê-lo justificado em si. Limitar-se apenas a refutar uma filosofia é não compreendê-la, sendo necessário ver a verdade que ela contém. Não existe nada mais fácil do que criticar do ponto de vista negativo. No entanto, quem só vê a negação ignora o conteúdo, ele sim afirmativo, e o supera sem se encontrar no interior dele. A dificuldade então consiste em ver o que os sistemas filosóficos contêm de verdadeiro. Somente quando são justificados em si próprios é possível falar das suas limitações e de suas deficiências. O radicalismo dessas oposições levou ao individualismo egoísta de Stirner e à versão marxista do comunismo, da mesma forma que os teóricos pragmatistas se apropriaram dos aspectos comunitaristas da filosofia hegeliana. A filosofia de Hegel foi redescoberta no século XX, graças à volta da perspectiva histórica que ele projetou em tudo, e também ao reconhecimento cada vez maior do valor da sua metodologia dialética. Nesse sentido, o renascimento de Hegel também colocou em evidência a importância fundamental das suas obras iniciais, publicadas antes da Fenomenologia do espírito. Porém, não foram apenas os teóricos da escola de Frankfurt que viram reviver o vigor e a profundidade da filosofia hegeliana na contemporaneidade. 6.4 Marx: o materialismo histórico Figura 15 – Karl Marx, em 1882 67 Re vi sã o: A nd ré ia A nd ra de - D ia gr am aç ão : L éo - 1 9/ 09 /2 01 1 HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO O pai do materialismo dialético Karl Heinrich Marx nasceu no seio de uma família judia de classe média em Tréveris, na Alemanha. Era filho de mãe judia holandesa e de um pai advogado que teve de se converter ao cristianismo, quando Marx tinha 6 anos de idade, em virtude das restrições impostas à presença de membros judeus nas atividades públicas. Aos 17 anos, ingressou na Universidade de Bonn para estudar Direito; mas, logo depois, transferiu-se para a Universidade de Berlim, onde a influência de Hegel ainda era bastante sentida no início da sua obra. Com os interesses voltados para a filosofia, ele participou ativamente do movimento dos jovens hegelianos. Doutorou-se em Jena, em 1841, com a tese sobre as Diferenças da filosofia da natureza em Demócrito e Epicuro. Nesse mesmo ano, concebeu a ideia de um sistema que combinasse o materialismo de Ludwig Feuerbach com a dialética idealista de Hegel. Impedido de seguir uma carreira acadêmica, tornou-se, em 1842, redator-chefe da Gazeta Renana, mas por causa do fechamento do jornal pelos censores do governo prussiano, em 1843, Marx foi para a França. Com a Revolução de 1848 e o exílio que se seguiu a ela, foi obrigado a abandonar o jornalismo na Alemanha e tentar ganhar a vida na Inglaterra. Durante a maior parte da vida, conseguiu seu sustento escrevendo artigos, que publicava de forma esporádica em jornais alemães e norte-americanos, além do auxílio financeiro que recebia do amigo e principal colaborador de seu pensamento, Friedrich Engels, economista alemão. Juntos, eles sintetizaram a experiência de muitos séculos de lutas de classes oprimidas contra seus opressores, criando a doutrina do socialismo científico como uma transformação revolucionária que inaugurou uma nova época no desenvolvimento do pensamento social. Por essa razão, analisar a trajetória da sociedade humana sem se referir a Marx é uma tarefa praticamente impossível, dada sua importância à constituição histórica do século XX, que se deve, em maior ou menor escala, às influências da sua produção intelectual, apesar da grande polêmica gerada até hoje pelos seus pressupostos teóricos. Foi diretamente influenciado por Ludwig Feuerbach, que antevia uma visão invertida do materialismo de Hegel. Marx evoluiu dessa ramificação, que já superava o idealismo revolucionário dos jovens hegelianos de cujo movimento ele mesmo fez parte. Seu pensamento, nitidamente engajado com as lutas proletárias, teve como base uma síntese de três correntes distintas: a economia política inglesa, o socialismo francês e a filosofia alemã. Da união dessas ideias, ele construiu um raciocínio inédito que ficou conhecido como “materialismo dialético histórico”. Essa teoria consiste no desenvolvimento mais elevado sobre a interpretação materialista e dialética da evolução histórica do homem. Para Marx, a realidade material será sempre a grande responsável por todas as condições de vida capazes de expor ao ser humano sua condição existencial, sendo que dela devem partir todas suas formas de ideologia, ou seja, as visões de mundo. Diante dessa formulação, pode-se deduzir que não é a ideia que produz a realidade, mas sim a realidade que produz as ideias, que acabam se correlacionando de forma dialética para modelar as constituições sociais. Inserido no contexto do pensamento alemão que deu origem ao racionalismo (idealismo lógico) e ao romantismo (idealismo sensível), resultando no “materialismo contemplativo”, Marx defendia a prática de um materialismo ativo. 68 Unidade II Re vi sã o: A nd ré ia A nd ra de - D ia gr am aç ão : L éo - 1 9/ 09 /2 01 1 No entanto, seu materialismo não pode ser encarado de forma empírica, porque Marx acreditava que o racionalismo era ainda muito abstrato quando comparado ao materialismo dialético, uma vez que matéria e ideia são categorias opostas que se interrelacionam, mantendo uma espécie de unidade. Seu pensamento político criticou todas as correntes socialistas por não ter um caráter decididamente transformador, somente reformador. Ainda que para Marx a evolução e a revolução são dialéticas e cada partido operário, ao realizar suas metas curtas, se torna inútil. Enquanto posição, ele defendia o socialismo científico em oposição a um socialismo romântico, ou o comunismo (revolucionário, para se opor ao mero reformismo). Ele defendia também não apenas a melhoria das condições de vida do proletariado, mas, acima de tudo, a própria emancipação deste, com o fim da condição proletária. Não se tratava de amenizar a exploração, mas sim de exterminá-la. No entanto, as condições dessa emancipação, que só a prática poderia realizar, estava nas condições reais em que estavainserida. Por isso, em Marx, é o desenvolvimento do capitalismo que criou a proletarização, é o exército que vai destronar a burguesia, pois a própria hostilidade que o capitalismo produz sobre a condição proletária gera as condições subjetivas para a explosão revolucionária. Na lógica do materialismo dialético histórico, trata-se sempre de um “drama histórico”, termo que Marx utiliza em O 18 Brumário de Luís Bonaparte, e não de um “determinismo histórico”, que resultaria em um materialismo mecânico e positivista, oposto ao materialismo dialético. Dessa maneira, Marx finalizou as teses de Feuerbach. Não se trata de interpretar o mundo de forma diferente, mas sim de transformá-lo, pois somente a ação revolucionária produz a transcendência da ordem em vigor. Na obra Ideologia alemã, Marx introduz os pressupostos de seu novo pensamento, enquanto no Manifesto comunista elabora sua tese política mais importante. Na Questão judaica, ele critica a religiosidade, alegando que não se pode tratar dos questionamentos humanos do ponto de vista teológico, mas sim considerar a teologia como uma questão humana. Para ele, o foco deve estar em encarar as religiões como projeções fantasiosas do homem, embora reproduzam a condição humana real a que estamos presos. Na Crítica do Programa de Gotha, Marx produz o mais longo e esquematizado esboço daquilo que seria uma sociedade socialista, apesar tentar evitar qualquer esforço de “futurologia”, para permanecer restrito ao campo da ciência. Já em Guerra civil na França, ele assume de forma definitiva que, apenas com a extinção do Estado, o proletariado pode oferecer a si mesmo as condições necessárias para manter o poder recém-conquistado, defendendo que o fim do Estado significa o fim do monopólio da violência que o Estado representa. A colaboração de Engels em todos os textos de Marx foi de suma importância, ainda que este sempre frisasse a superioridade de Marx. Uma das obras mais importantes de Engels para o comunismo é Do socialismo utópico ao socialismo científico, na qual apresenta de forma mais clara as diferenciações do socialismo de Estado com as do socialismo científico, e o Estado como sendo um “capitalista coletivo”. Marx considerava a sociedade extremamente capitalista e acreditava que o capitalismo traria divisões sociais. O conceito de mais-valia foi empregado por Marx para explicar a obtenção de lucros contínuos a partir da exploração da mão de obra. Os donos dos meios de produção obtêm parte de seus lucros pela exploração do trabalhador. 69 Re vi sã o: A nd ré ia A nd ra de - D ia gr am aç ão : L éo - 1 9/ 09 /2 01 1 HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO Em 1864, Marx foi um dos fundadores da Associação Internacional dos Operários, depois chamada I Internacional, na qual encontrou a oposição dos anarquistas, liderados por Bakunin. Em 1872, no Congresso de Haia, a associação foi praticamente dissolvida. No entanto, Marx foi responsável pela fundação do Partido Social-Democrático alemão em 1875, que foi proibido pouco tempo depois. Entre seus trabalhos iniciais, o mais importante foi o artigo Sobre a crítica da filosofia do direito de Hegel, de 1844, primeira tentativa de interpretação materialista da dialética de Hegel. Apenas em 1932, foram descobertos e editados em Moscou os Manuscritos econômico-filosóficos, datados de 1844. Trata-se do esboço de um socialismo humanista, que se preocupa especialmente com a alienação do homem e com a compatibilidade desse humanismo com o marxismo que viria posteriormente. Em 1888, Engels publicou as Teses sobre Feuerbach, escritas por Marx em 1845, que refutam o materialismo teórico na busca de uma filosofia, além de interpretar o mundo. Esse documento já contém o germe do marxismo, que proclama a relação indissolúvel entre filosofia e atividade social. Foi em 1867 que Marx iniciou a publicação de O Capital, sua obra mais importante e direcionada especialmente para o estudo da economia, como resultado das pesquisas no British Museum, que abordam a teoria do valor, da mais-valia, além da acumulação do capital. Nele, Marx reuniu uma documentação imensa para dar continuidade a essa obra. Os volumes II e III de O Capital foram editados por Engels em 1885 e 1894. Outros textos foram publicados por Karl Kautsky, como o volume IV (1904-10). Em O Capital, Marx elabora uma análise das leis econômicas que regem a sociedade capitalista, estudando essa sociedade na sua origem, no seu desenvolvimento e na sua decadência. Essa coletânea também inclui duas obras destinadas por Marx às grandes massas operárias, Trabalho assalariado e Capital, e serviram de base para as conferências pronunciadas por ele em 1847, na Associação Operária Alemã de Bruxelas. Salário, preço e lucro foi a conferência realizada em 1865, em duas sessões do Conselho Geral da Associação Internacional dos Trabalhadores. Nesses trabalhos, Marx forneceu uma análise teórica profunda, exposta de forma popular, sobre as relações econômicas em que está baseada a dominação de classe da burguesia, explicando a origem e a essência da mais-valia e levando o leitor à conclusão revolucionária da necessidade de o operariado lutar pela supressão total da escravidão assalariada. De acordo com a dialética marxista, as leis do pensamento correspondem às leis da realidade. Portanto, a dialética consiste em pensamento e realidade ao mesmo tempo. A contradição dialética não é somente uma contradição externa, mas sim unidade das contradições e também identidade, como esclarece o próprio Lefebvre (1979 p. 192): A dialética é ciência que mostra como as contradições podem ser concretamente idênticas, como passam uma na outra, mostrando também por que a razão não deve tomar essas contradições como coisas mortas, petrificadas, mas sim como algo vivo e mutável, lutando uma contra a outra. Os momentos contraditórios são situados na história com sua parcela de verdade, mas também de erro; não se misturam, mas o conteúdo, considerado como unilateral, é recapturado e elevado a uma instância mais elevada. 70 Unidade II Re vi sã o: A nd ré ia A nd ra de - D ia gr am aç ão : L éo - 1 9/ 09 /2 01 1 Marx acusou Feuerbach, afirmando que seu humanismo e sua dialética eram estáticos, já que o homem não possui dimensões fora da sociedade e da história, sendo pura abstração. Para Marx, é fundamental compreender a realidade histórica em suas contradições na tentativa de superá- las. Os princípios da sua dialética podem ser resumidos em tudo aquilo que se relaciona e se transforma, incluindo as mudanças qualitativas como consequências de revoluções quantitativas. Embora a contradição seja interna, os contrários passam a ser unidos em um momento seguinte. Assim sendo, a luta dos opostos impulsiona o pensamento e a realidade. Na teoria marxista, o materialismo histórico pretende explicar a história das sociedades humanas de todas as épocas por meio dos fatos materiais essencialmente econômicos e técnicos. Nesse sentido, a sociedade pode ser comparada a um edifício no qual as fundações, ou seja, a infraestrutura, seriam representadas pelas forças econômicas, enquanto o edifício em si, a superestrutura, representaria as ideias, os costumes e as instituições. A propósito, Marx, na obra A Miséria da filosofia (1847), atestou que as relações sociais permanecem interligadas às forças produtivas. Ao produzir de maneira diferente, os homens podem modificar o modo de produção, a maneira de sobreviver e, com isso, mudar as relações sociais. O aspecto central da crítica marxista está na questão de como compreender o que é o homem, lembrando que ele defende que não se trata de ter consciência e, muito menos, de ser um animal político que dá ao homem o sentido da sua existência, mas sim o fato de ele sercapaz de produzir suas condições de existência, tanto do ponto de vista material quanto ideal, ou seja, aquilo que o diferencia. Se o homem é historicamente determinado pelas suas condições, é responsável por todos seus atos. Nesse caso, todas as teorias de Marx estão baseadas na existência humana. Com o objetivo de também mostrar uma visão econômica da história, além de propor uma visão histórica da economia, a teoria marxista busca explicar a evolução das relações econômicas nas sociedades humanas no decorrer do processo histórico. De acordo com a concepção marxista, haveria uma dialética contínua das forças entre fortes e fracos, repressores e oprimidos. Nesse sentido, a história humana teria avançado por uma luta permanente de classes, como enfatiza claramente o início do primeiro capítulo de O Manifesto comunista, de Marx e Engels: “A história de toda sociedade passado é a história da luta de classes”. Classes essas que, para Engels, são “os produtos das relações econômicas de sua época”. Mesmo com todas as diversidades aparentes, a escravidão e o capitalismo seriam etapas sucessivas de um só processo. Com isso, a base da sociedade estaria na produção econômica e sobre ela se ergue uma superestrutura, um estado e as ideias de toda natureza. Marx almejava a inversão da pirâmide social, com o poder sendo colocado a favor do proletariado, como a força capaz de deter o capitalismo e de construir uma sociedade socialista. Para Marx, a vitória do comunismo era inevitável. Ele afirmava que a história segue certas leis imutáveis conforme avança de um estágio a outro. O comunismo, na visão dele, seria o último e mais alto grau de desenvolvimento, e a grande solução para a compreensão dos estágios do desenvolvimento estaria na relação entre as diferentes classes de indivíduos na atividade produtiva. Para o marxismo, a luta de classes é o meio pelo qual a história humana avança historicamente. Por acreditar que a classe dominante nunca deixaria o poder por livre e espontânea vontade, a luta e a violência eram necessárias e inevitáveis. 71 Re vi sã o: A nd ré ia A nd ra de - D ia gr am aç ão : L éo - 1 9/ 09 /2 01 1 HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO O Manifesto comunista fez o homem caminhar, de fato, na busca da solução de problemas como a pobreza e a exploração do trabalho. Por isso, trata-se de um documento histórico. A Liga dos Comunistas pediu a Marx e a Engels a redação de um texto que tornasse precisos os objetivos dela e sua forma de ver o mundo. Nesse sentido, o Manifesto comunista pode ser considerado como um conjunto de ideais em que os revolucionários da época acreditavam, por conter os elementos necessários à compreensão das transformações sociais do ponto de vista econômico. No que diz respeito à estrutura, traz uma pequena introdução, três capítulos e uma conclusão sucinta. A introdução destaca a força do comunismo ao expor o modo comunista de ver o mundo e também suas finalidades. A parte I, denominada Burgueses e Proletários, resume a história da humanidade, quando duas classes sociais antagônicas dominam o cenário. A maior contribuição desse capítulo está na descrição das grandes transformações que a burguesia industrial provocava no mundo, representando um papel histórico essencialmente revolucionário. Marx e Engels relatam o fenômeno da globalização que a burguesia implementava no comércio pela navegação e pelos meios de comunicação da época. O Manifesto fala de ontem, mas ainda parece atual. Já a parte denominada Literatura socialista e comunista, critica as diversas correntes socialistas da época, classificando três tipos de socialismo: reacionário, conservador e burguês e socialismo e comunismo crítico-utópico. Nesse capítulo, a obra mostra seu caráter temporal, quase local, revelando a sua profunda imersão na efervescência das ideias e dos conflitos da época, quando a aristocracia, para condenar a burguesia, faz uma espécie de elogio ao socialismo. Marx pode ser considerado como o herdeiro da filosofia alemã, ao lado de Kant e Hegel. Na condição de um dos maiores pensadores de todos os tempos, possui uma produção teórica com a extensão e a densidade de um pensador como Aristóteles, de quem era admirador. 6.5 Augusto Comte: o positivismo Figura 16 – Auguste Comte Auguste Comte nasceu em Montpellier, na França, a 19 de janeiro de 1798, filho de um fiscal de impostos. Suas relações familiares foram sempre conflituosas e, por isso, explicam o desenvolvimento 72 Unidade II Re vi sã o: A nd ré ia A nd ra de - D ia gr am aç ão : L éo - 1 9/ 09 /2 01 1 de sua vida e até mesmo do conteúdo de suas obras. Com frequência, culpava os pais por sua situação econômica instável. Tão complexos eram os laços familiares, rompidos por Comte, que lhe deixaram marcas pro fundas. Aos 16 anos, ingressou na Escola Poli técnica de Paris, o que teria significativa influência na orientação posterior do seu pensamento filosófico. Embora tenha permanecido apenas dois anos nessa escola, Comte recebeu a influência do trabalho intelectual de cientistas como o físico Sadi Carnot, o matemático Lagrange e o astrônomo Pierre Simon de Laplace. Na mecânica analítica de Lagrange, Comte teria encontrado inspiração para abordar os princípios de cada ciência segundo uma perspectiva histórica. Em 1816, Comte deixou a Politécnica e, apesar da insistência da família, resolveu continuar na França. Nesse período, sofreu influências dos chama dos “ideólogos”, como Destutt de Tracy, Cabanis e Volney. Também leu os teóricos da economia política, como Adam Smith e Jean-Baptiste Say, filósofos e historiadores como David Hume e William Robertson. No entanto, o fator mais decisivo para a formação de seu pensamento filosófico foi o estudo do esboço do Quadro histórico dos progressos do espírito humano, de Condor cet, ao qual se referiria, mais tarde, como “meu imediato predecessor”. A obra de Condorcet traça um retrato do desenvolvimento humano, no qual os descobrimentos e as invenções científicas e tecnológicas desempenham um papel preponderante, fazendo o homem caminhar rumo a uma era em que a organização social e política seria o produto final das luzes da razão, ideia que iria se transformar em um dos pontos cruciais da filosofia comtiana. Logo após o idealismo que predominou na primeira metade do século XIX, surge o positivismo, que ocupa a segunda metade do mesmo século, espalhado em todo o mundo civilizado. Trata-se de um pensamento que representa uma reação contrária ao apriorismo, ao formalismo, ao idealismo, priorizando o estudo da experiência prática e dos dados positivos. Podemos considerar como a diferença fundamental entre idealismo e positivismo o fato de que o primeiro procura uma interpretação, uma unificação da experiência mediante a razão, enquanto o segundo, pelo contrário, quer limitar-se à experiência imediata, pura, sensível, como já havia ocorrido com o empirismo. Vem desse aspecto sua superficialidade filosófica, mas também seu valor como descrição e análise da experiência por meio da história e da ciência, considerando o idealismo, que altera a experiência, a ciência e a história. O positivismo também ganha impulso graças ao grande progresso das ciências naturais, em especial das biológicas e fisiológicas do século XIX. Tenta-se aplicar os princípios e os métodos daquelas ciências à filosofia, como forma de solucionar os problemas do mundo e da vida, com o intuito de conseguir bons resultados. O positivismo ainda ganhou força devido ao desenvolvimento dos problemas econômico- sociais que predominaram no século XIX. Por ser altamente valorizada a atividade econômica, que produz bens materiais, é compreensível que se busque uma perspectiva filosófica positiva, naturalista e materialista para asideologias no campo das atividades econômico-sociais. Grosso modo, o positivismo admite, como fonte única de conhecimento e de critério de verdade, a experiência, os fatos positivos, além dos dados sensíveis. Nenhuma metafísica, portanto, como interpretação, justificação transcendente ou imanente da experiência, possui espaço nesse campo de reflexão. Nesse sentido, a filosofia é reduzida à metodologia e à sistematização das ciências, e a lei, única e suprema, domina o mundo concebido positivisticamente, promovendo a evolução necessária à energia 73 Re vi sã o: A nd ré ia A nd ra de - D ia gr am aç ão : L éo - 1 9/ 09 /2 01 1 HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO naturalista. O nome de Auguste Comte está indissociavelmente ligado ao positivismo, corrente filosófica fundada por ele com a intenção de reorganizar o conhecimento humano, que teve grande influência no Brasil. Figura 17 – Detalhe da bandeira do Brasil Figura 18 Comte também é considerado o grande sistematizador da sociologia. Vale destacar que ele viveu em um período da história francesa em que se alternavam o despotismo e as revoluções, o que levou a sociedade a uma turbulência e a um desencanto geral com a política e a uma crise dos valores tradicionais. Ele buscou dar uma resposta a esse estado de ânimo pela união de elementos da obra de pensadores anteriores a ele e também de alguns contemporâneos, o que resultou em uma teoria denominada por 74 Unidade II Re vi sã o: A nd ré ia A nd ra de - D ia gr am aç ão : L éo - 1 9/ 09 /2 01 1 ele de positivismo. “Ele reviu as ciências para definir o que, nelas, decorria da realidade dos fatos e permitia a formulação de leis naturais, que orientariam os homens a agir para modificar a natureza”, diz Arthur Virmond de Lacerda, professor da Faculdade Internacional de Curitiba. Um dos fundamentos do positivismo está na ideia de que tudo o que diz respeito ao homem pode ser sistematizado de acordo com a adoção de princípios como o critério de verdade para as ciências exatas e biológicas. Isso deveria ser aplicado também aos fenômenos sociais, que seriam reduzidos a leis gerais como as da física ou da matemática. Para Comte, a análise científica aplicada à organização social é o centro da questão sociológica, cujo objetivo seria o planejamento da organização social e política. De acordo com os positivistas, só é possível afirmar que uma teoria é correta se ela puder ser comprovada por intermédio de métodos científicos válidos, em detrimento dos conhecimentos relacionados às crenças, à superstição ou a qualquer outro que não reúna condições de ser comprovado cientificamente. Para eles, o progresso da humanidade depende unicamente dos avanços da ciência. Observação “O grande instrumento do Iluminismo é a consciência individual, autônoma em sua capacidade de conhecer o real” (Danilo Marcondes). Saiba mais Assista Danton, filme que narra a história da Revolução Francesa, que marca o início do pensamento filosófico moderno. Danton. Dir. Andrzej Wajda, França/Polônia, 131 minutos, 1982. 7 A FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA Pode ser considerada como contemporânea a filosofia que compreende a segunda metade do século XIX até o início do século XXI, e o positivismo permanece como presença constante na história do pensamento dessa fase. Apesar das suas notáveis diferenças na maneira de lidar com os problemas, é possível reconhecer essa conduta empirista do século XVIII no positivismo do século XIX e no positivismo lógico ou empirismo lógico do século XX. O empirismo lógico ou positivismo lógico do século XX consiste num dos movimentos integrantes da corrente analítica dos nossos dias, cuja originalidade está em ter conseguido transformar o próprio conceito de filosofia. Para a corrente analítica, a filosofia não tem por objeto a realidade, mas sim a análise da linguagem que envolve a realidade, seja a linguagem ordinária, comum ou científica. 75 Re vi sã o: A nd ré ia A nd ra de - D ia gr am aç ão : L éo - 1 9/ 09 /2 01 1 HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO Outras correntes da filosofia contemporânea tomaram como objeto principal de consideração o fenômeno da história, da vida e da irredutibilidade da existência pessoal: as filosofias historicistas, existencialistas e personalistas. O existencialismo constitui, originalmente, uma reação a favor da individualidade, colocando em primeiro plano a categoria de singularidade, preferida pelo sistema dialético de Hegel. Quanto ao vitalismo de Nietzsche, representa uma reação não apenas contra Hegel, mas contra toda a tradição intelectualista-religiosa que se opôs à vida e aos valores vitais, desde que se verificou a aliança do platonismo com o cristianismo. Podemos afirmar que a característica externa mais notável da filosofia contemporânea consiste na diversidade dos enfoques, dos sistemas e das escolas frente ao desenvolvimento. Os responsáveis por essa disseminação de opiniões e de escolas divergentes foram os fatores socioculturais, como a crise dos sistemas políticos e o avanço das ciências naturais e lógico-formais, além do desenvolvimento das ciências humanas. O mundo atual, rodeado pelas telecomunicações, dominado pela internet e formulador dos programas espaciais, da física quântica e da medicina biomolecular, parece não ter mais espaço para o pensamento filosófico. Qual seria então, hoje, a função da filosofia? O filósofo inglês Bertrand Russel, em Os problemas da filosofia, refletiu sobre essa questão: A filosofia, como todos os outros estudos, visa em primeiro lugar ao conhecimento. O conhecimento a que ela aspira é o tipo de conhecimento que dá unidade e sistematiza o corpo das ciências, e que resulta de um exame crítico dos fundamentos de nossas convicções, preconceitos e crenças (RUSSEL, 2008). Com certeza, essa é uma das definições de filosofia. Trata-se de uma disciplina que estuda os fundamentos das convicções humanas. Porém, enquanto as ciências estabelecem um corpo sólido de conhecimentos e verdades a partir do qual passam a se desenvolver, a filosofia não alcança os mesmos resultados, pois não dá respostas definitivas a nenhuma questão. O próprio Bertrand Russell, também em Os problemas da filosofia, explicou por que ocorre esse descompasso: Isto se deve em parte ao fato de que, assim que o conhecimento definitivo a respeito de qualquer assunto torna-se possível, esse assunto deixa de ser chamado de filosofia, e torna-se uma ciência independente. O estudo total dos céus, que agora pertence à astronomia, foi um dia incluído na filosofia; a grande obra de Newton chamava-se Princípios matemáticos de filosofia natural. Do mesmo modo, o estudo da mente humana, que fazia parte da filosofia, agora foi separado da filosofia e tornou-se a ciência da psicologia. Assim, em grande medida, a incerteza da filosofia é mais aparente que real: as questões que são capazes de ter respostas definitivas são abrigadas nas ciências, enquanto aquelas para as quais, até o presente, não podem ser dadas respostas definitivas, continuam a formar o resíduo que é chamado de filosofia (RUSSEL, 2008). 76 Unidade II Re vi sã o: A nd ré ia A nd ra de - D ia gr am aç ão : L éo - 1 9/ 09 /2 01 1 7.1 Conhecimento e ciência Vivemos em um mundo que não para de introduzir novas questões no campo da filosofia e, por essa razão, torna-se difícil reconhecer o que é a filosofia contemporânea. Certamente, é possível compreender a filosofia da antiguidade de forma mais clara e coerente do que a filosofia contemporânea, que tem como base uma série de pressupostos que foram elaborados no final do século XIX. Um deles