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A contemporaneidade pode ser um eterno presente que causa um incômodo, matizado pelas aparências que se travestem de realidade. Para o historiador tentar compreender o passado, há a alternativa de traçar um fio condutor que coadune a política e a cultura, tanto pela perspectiva sincrônica, quanto diacrônica, como aponta Carl Schorske.
	Dentro da história contemporânea, uma lógica da crueldade vai se concretizando com políticas de concentração de renda nas mãos de poucas famílias, enquanto, mais, recentemente, o discurso neoliberal apregoa a oportunidade de ascensão econômica a todos os indivíduos. Se os reflexos da superestrutura do modo de produção capitalista na cultura se deram de maneira lenta, manifestando-se à época de Walter Benjamin, hoje, como se poderiam identificá-los? O hábito coevo bloqueou a indignação às desigualdades impostas pela apropriação capitalista, que promoveu a mudança dos valores humanos e dos espaços públicos de modo a controlar o modo de vida de cada indivíduo já no século XIX.
	O surgimento de um homem psicológico dos escombros da “velha cultura”, onde a virada do século XIX para o XX representa o momento de desintegrabilidade de um modo de vida, aliando aspectos políticos e culturais, dos quais a razão vai perdendo espaço para uma realidade que se desmantela por não se fixar em conceitos. Contudo, ainda no período oitocentista, um anjo da história apareceu, mesmo para logo se perder em um fantasma: a Comuna de Paris, pois esta representa uma fragorosa derrota para a classe operária francesa, como é próprio do fantasma aparecer e desaparecer. A realização material da Comuna representou o assombro e estímulo para a política e cultura por sua reprodutibilidade em diversos momentos antes e depois da sua realização concreta pelos communards e a sua, consequente, repressão.
	Marx apontou em O 18 Brumário o motivo que deveria guiar as revoluções: “a revolução social do século XIX não pode tirar sua poesia do passado, e sim do futuro. Não pode iniciar sua tarefa enquanto não se despojar de toda veneração supersticiosa do passado”. Como ilustra La liberté guidant le peuple, de Delacroix, a Liberdade/Marianne, a musa revolucionária francesa, estática e imersa no movimento, despe-se aos poucos e remete ao motivo clássico, enquanto um jovem armado, e pronto para o combate, é posto em primeiro plano, representando o futuro; o quadro é a poesia de um futuro revolucionário, que mata e faz renascer, um convite à ação com apelo militar, é a promessa de um futuro de felicidade. A questão da luta de classes estava posta em 1848 e em 1870, com a consequente reação burguesa àquela realidade massificadora: o controle das massas.
	A remodelagem das cidades, proposta pelo barão de Haussmann, em formas concêntrica e radial, com a construção de bulevares e a destruição das ruas estreitas, que favoreciam a concentração popular, promoveu a divisão da cidade em linhas de classe. O moderno deixa para trás aquele que não acompanha a sua nova modelação do tempo e espaço, em sua fixação poética do passado, afinal, tudo se perde no ritmo acelerado da objetividade. O espaço no qual se é forçosamente conhecido em uma província se perde na multidão por tornar o sujeito anônimo com a recriação do espaço urbano. A materialização do anonimato nas cidades modernas destaca a experiência da vigilância dos olhares, mesmo que cada um se perca no universo das grandes cidades. A sua remodelagem promove a circulação das mercadorias com a promessa de desejos realizáveis, de felicidade, complementaridade, porém, é efêmera por natureza por que realiza aquela sensação inicial para ser tomada por outra coisa, em uma ordem cíclica. Some-se a isto, um realismo que mortifica o modernismo reacionário, que abraça os aspectos da modernidade, com suas inovações que tornam o vulgar algo comum e apresentam a fugacidade do tempo, mas mantêm as controvérsias do passado conservador, como o voyeur de Baudelaire. Courbet, com L’Origine du monde, traz essa realidade, provocando o público com a materialidade criadora do homem. A reinterpretação sobre a história, que inspira a provocação à realidade, pode ser vista também, além de em Courbet, em outras obras, como em Manet, em L’Exécution de Maximilien, que ilustra o episódio de fuzilamento de Maximiliano pelos mexicanos para criticar o fracasso imperial de Napoleão III em terras da América. Em paralelo, outro fuzilamento, mas, desta vez, pintado por Goya. Em El tres de mayo de 1808 en Madrid, a conquista napoleônica não levou somente a luz da razão, como entreviu Hegel, mas também o massacre promovido pela guerra. Enquanto em Goya, as luzes caem sobre o povo sacrificado e fuzilado, em Manet, o povo fuzila o seu algoz e acaba se tornando um panfleto de uma nova revolução.
	Contudo, dos quase cem anos que separam a figura heroica de Delacroix da arte fin-de-siècle, a arte mudou: do sujeito disposto à revolução à nutrição de desdém e ojeriza pelas figuras heroicas de antanho, onde se encaixa a reação a uma perda de classe e uma retomada do controle. Em La Valse, de Maurice Ravel, a trajetória do império austríaco é musicada da ascensão ao declínio, um “fantástico rodopio do destino”, no qual elementos distintos, ferozes e suaves, reúnem-se para compor algo novo e revelar uma inquietação. Guardadas as devidas proporções, uma inquietação traduzida em um indivíduo, Van Gogh e sua série de sapatos. Os calçados mostram a vida de um sujeito ativo, portanto, gastos e contra a uniformidade e elegância de uma Viena, por exemplo. A cultura moderna buscava a ideia de profundidade e experiência frente a um período de exagero e superficialidade. A série Diamond dusty shoes, de Andy Warhol, já evidencia sapatos sem história, sem lugar, que retratam uma mercadoria, isto é, válido pela aparência e pelos signos impostos culturalmente, em uma época onde já reina a superficialidade.
	Para Fredric Jameson, em A Lógica Cultural do Capitalismo Tardio, o pós-modernismo baseia-se na hipótese de uma forte ruptura (no começo dos anos 60) com o movimento moderno, mas se indaga se essa mudança seria mais fundamental do que as do chamado alto modernismo. Para o autor essas rupturas são mais evidentes no âmbito da arquitetura, de onde ele iniciou a sua concepção de pós-modernismo. Desta forma, a arquitetura pós-moderna apresenta uma crítica decisiva ao modernismo arquitetônico, responsável pela "destruição da tela urbana da cidade tradicional e de sua antiga cultura da vizinhança" (p. 28). A arquitetura pós-moderna, portanto, insere-se na forma de um populismo estético, visando apagar a fronteira moderna entre a alta cultura e a cultura de massa. Alta cultura moderna esta em que Carl Schorske se foca em Viena fin de siècle.
	Schorske examina os primórdios da transformação cultural em Viena em fins do século XIX. Logo de início trata do termo "moderno" e da "morte da história", afirmando que o uso do primeiro, ao contrário do século XVIII (em que "moderno" se dava contra o passado), se dá de forma independente do passado, tornando-se indiferente à história. Além disso, critica a fragmentação generalizada do pensamento humanista em Nietzsche, pois não permite nenhuma integração dialética, deslocando as narrativas do político e sociológico para o privado e psicológico. A alta cultura europeia ingressou em um elevadíssimo número de inovações, em que cada área era independente do todo. Essa alta cultura teria se dado com a plena maturidade dos movimentos modernos.
	Na obra é traçada constantemente a relação entre política e cultura no contexto dessas transformações culturais, focando na música, literatura, arquitetura e pintura.

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