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Respostas a duas questões levantadas na disciplina “Introdução à Filosofia: Ética” Turmas B, E, N, Q, R Daniel Melo Soares Pergunta: Seria Hegel um relativista? Resposta: Hegel distingue entre moralidade e ética ou, em seu vocabulário, eticidade. Na eticidade estamos no nível dos costumes, das instituições, tais como o casamento, a família, a sociedade civil, o estado, a religião, etc. Em outras palavras, a eticidade se refere a certa ordem social, suas regras, leis, sanções formais e informais, bem como os papeis sociais instanciados nos indivíduos (por exemplo, a posição na família, seu trabalho, a cidadania, etc.) (WOOD, 1990, p.196). A moralidade se refere a adequação dos desejos dos indivíduos aos costumes dados pela eticidade, sem ignorar a felicidade do indivíduo, ou seja, a realização de seus desejos individuais. O objetivo último da moralidade é fazer com que os indivíduos atinjam a “vontade santa”, ou seja, o momento de adequação do desejo individual de alguém aos costumes (e objetivos) dados por sua comunidade (VIEIRA, 2014, p.351). Para essa adequação é fundamental que o indivíduo se reconheça em sua cultura, que ele se identifique com o papel social lhe atribuído, e encontre suporte nessa mesma cultura que assegure seu valor, sua dignidade, o valor da posição que ocupa, etc. Caso contrário, temos um indivíduo alienado, ou seja, que até está inserido em uma cultura, mas, não se reconhece nela, nem reconhece seus fins (WOOD, 1990, p.201). Com a necessidade dos indivíduos se reconhecerem em suas culturas e existindo várias culturas/estados/comunidades/eticidades, Hegel foi considerado, vez e outra, como um relativista (WOOD, 1990, p. 202), pois, cada uma dessas comunidades possuiria suas próprias verdades éticas. Porém, essa consideração não é inteiramente verdadeira, visto que a pluralidade de comunidades existentes e suas verdades, são comunidades históricas, “Estados Históricos”, que devem progredir até o “Estado Absoluto”, que seria justamente a finalidade, o objetivo, de todo o processo histórico (WEBER, 1995, p.13). As verdades éticas dos estados históricos seriam apenas verdades parciais, incompletas, que seriam plenas apenas dentro e com o advento do Estado Absoluto. Nesse último estado sim, teríamos uma ordem social maximamente organizada, livre de contradições e ambiguidades, detentora de um código ético objetivo que deve servir de critério e referência (WOOD, 1990, p.203-4). Com isso, Hegel não poderia ser considerado um relativista, pois, a pluralidade de verdades é apenas um estágio da progressão rumo ao Estado Absoluto. Essa pluralidade de verdades seria um momento de verdades parciais (meias-verdades) e, apenas no Estado Absoluto, teríamos a plena e objetiva verdade ética. Bibliografia VIEIRA, L. O espírito certo de si mesmo. A moralidade. In: VIEIRA, L.; SILVA, M. (Eds.). Interpretações da Fenomenologia do Espírito de Hegel. São Paulo: Edições Loyola, 2014. WEBER, T. A eticidade hegeliana. Veritas, v. 40, n. 157, mar. 1995. WOOD, A. Hegel’s ethical thought. Cambridge: Cambridge University Press, 1990. WOOD, A. Does Hegel have an ethics? The Monist, v. 74, n. 3, p. pp.358-385, jul. 1991. Pergunta: A ciência pode contribuir para dirimir as questões levantadas pelo relativismo? Resposta: Segundo a filósofa Carol Rovane, a empreitada científica pressupõe para suas investigações uma abordagem unimundialista, ou seja, ela pressupõe que haja um único mundo e que, sobre esse mundo constituído de fatos, podemos ter um conjunto unificado, coeso (não contraditório), de conhecimento. Toda e qualquer nova descoberta tem que poder se aglutinar a esse corpo de conhecimentos. Para exemplificar: caso se descobrisse um novo planeta M, essa descoberta sendo verdade, poderíamos unir tal ao nosso corpo de conhecimento sobre planetas; teríamos Marte, Saturno, Júpiter, Planeta M, etc. E essa descoberta não poderia contradizer o nosso corpo de verdades já estabelecidos, por exemplo: não poderíamos concluir que se trata de um planeta do sistema solar que não orbita o sol. Além disso, na ciência, há uma busca ativa por um conhecimento universal, ou seja, que pode ser válido/validado a/por qualquer um, no que Rovane chama da busca pela “visão de todos os lugares”. Essa visão da empreitada científica só é possível pressupondo que nós humanos possuímos um aparelho cognitivo e perceptivo semelhante uns aos outros, mesmo e apesar de nossas diferenças, e que erigimos a ciência em continuidade com conhecimentos muito básicos dos fatos do mundo, tais como: o fato constatável por todos de que objetos pesados caem no chão, caso soltos; o fato das cores das cores vermelho e verde não poderem se combinar; o fato da chuva molhar os objetos, e assim por diante. Na ética, porém, para Rovane, a abordagem de maior sucesso é a multimundialista, ou seja, a exata negação do unimundialismo. Nessa abordagem temos vários mundos, ou seja, corpos de conhecimentos, por vezes, contraditórios entre si, por vezes, incomunicáveis e incomparáveis. Esses corpos são constituídos histórica e socialmente, variando de cultura para cultura, de povo para povo. Por exemplo: podemos estar em uma cultura X que valoriza a individualidade e os sucessos no trabalho, enquanto uma outra cultura Y valoriza as relações familiares e subordina as conquistas do trabalho ao bem-estar da família. Alguém que nascesse e crescesse em X, dificilmente conseguiria compreender a vida de quem vive em Y, isso, pois, ambas pessoas habitam “mundos” distintos, ambientes culturais com formações históricas diversas e incomparáveis. Talvez, não haja sequer comunicação entre alguém de X e de Y, seja por limitações da língua, seja por limitações temporais, geográficas, ou de mera compreensão. Nesse caso, se buscássemos abordar a ética de modo científico, ou seja, de modo unimundialista, até obteríamos alguns resultados, segundo Rovane. Poderíamos vislumbrar alguns valores que sempre estiveram presentes nas considerações éticas de todas as comunidades mesmo e apesar de toda a separação histórica e cultural. Porém, esses valores descobertos estariam fadados a serem “vazios”, sem conteúdo, ao menos que estivessem situados dentro de alguma cultura. Para exemplificar: de um modo ou de outro, parece que em todas as culturas matar alguém é ruim, porém, essa constatação é vazia, pois, em inúmeras culturas, inclusive em nossa própria, há circunstâncias em que essa ação é aceita e até positivamente considerada, seja para salvaguardar a honra (em duelos, em combates medievais), seja para proteger a cidade em que se vive (em caso de guerra), seja por autodefesa (como é na nossa cultura), seja para agradar ao rei, seja como sacrifício a algum deus, etc. Até podemos constatar que, no geral, matar é ruim, porém, essa constatação é vazia até situarmos ela no tempo e no espaço, nas condições que a tornam verdadeira ou falsa. Bibliografia ROVANE, C. The metaphysics and ethics of relativism. Cambridge: Harvard University Press, 2013.