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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA
DISSERTAÇÃO DE MESTRADO
“Se Torcer Sai Sangue”:
Uma Análise das Representações
Sobre Religiosidade Afro-Brasileira
No Jornal O DIA
Marcelo Vidaurre Archanjo
Orientação: Profa Dra Maria Lina Leão Teixeira
Rio de Janeiro
1997
Marcelo Vidaurre Archanjo
“Se Torcer Sai Sangue”: Uma Análise das Representações 
Sobre Religiosidade Afro-Brasileira no Jornal O DIA
Dissertação de Mestrado em Sociologia apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
Sociologia, do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio
de Janeiro, como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Sociologia.
Orientadora: Profa Dra Maria Lina Leão Teixeira
Banca Examinadora:
_______________________________________________
Profa Dra Maria Lina Leão Teixeira (presidente)
_______________________________________________
Prof Dr José Reginaldo Santos Gonçalves
_______________________________________________
Profa Dra Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti
_______________________________________________
Profa Dra Elina Gonçalves da Fonte Pessanha (suplente)
“Se Torcer Sai Sangue”: Uma Análise das Representações Sobre Religiosidade Afro-Brasileira no Jornal O DIA
Marcelo Vidaurre Archanjo
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“Se Torcer Sai Sangue”: Uma Análise das Representações Sobre Religiosidade Afro-Brasileira no Jornal O DIA
Marcelo Vidaurre Archanjo
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ARCHANJO, Marcelo Vidaurre
“Se Torcer Sai Sangue: Uma Análise das 
Representações Sobre Religiosidade Afro-Brasileira 
no Jornal O DIA”. PPGS/IFCS/UFRJ, 1997, 
Tese: Mestre em Ciências (Sociologia)
1. Jornal 2. Macumba – Religiões Afro-Brasileiras 
3. Estereótipos 4. Teses
I. Universidade Federal do Rio de Janeiro – IFCS
II. Título
“Se tua existência cotidiana te parece pobre,
não culpes a ela, mas a ti mesmo. Percebe
que não és poeta o suficiente para dela
extrair riquezas, pois aos olhos do criador não
existe pobreza, não existe lugar pobre e sem atração.”
R. M. RILKE
À memória de minha avó
Doresny Junger Vidaurre,
com saudades
SUMÁRIO
“Se Torcer Sai Sangue”: Uma Análise das Representações Sobre Religiosidade Afro-Brasileira no Jornal O DIA
Marcelo Vidaurre Archanjo
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 Resumo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . pág. 06
 Agradecimentos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . pág. 08
 Introdução: “Como Ler um Jornal” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . pág. 11
 Capítulo 1: “Uma Visão de Modernidade e a “Cidade Maravilhosa” ” . . . . . pág. 25
 Capítulo 2: “Os Sentidos da “Macumba” ” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . pág. 45
 Capítulo 3: “Manchete do Dia: “Macumba” da Grossa” . . . . . . . . . . . . . . . . pág. 57
 Capítulo 4: “Festas, Disputas, Federações: o Outro Lado das “Macumbas” ”. pág. 99
 Considerações Finais: . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . pág. 131
 Referências Bibliográficas: . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . pág. 136
RESUMO
“Se Torcer Sai Sangue”: Uma Análise das Representações Sobre Religiosidade Afro-Brasileira no Jornal O DIA
Marcelo Vidaurre Archanjo
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O objetivo deste trabalho é perceber os estereótipos negativos imputados aos
grupos religiosos afro-brasileiros em um jornal popular durante a década de 50 na
cidade do Rio de Janeiro (jornal “O DIA”). Através da análise e comparação de dois
“espaços” distintos e complementares do jornal (notícias policiais e artigos
umbandistas) foi possível entender como se estruturam e se mantém crenças e atitudes
que reforçam o preconceito racial e religiosos no Brasil. O eixo condutor desta pesquisa
foi a compreensão de que o termo “macumba” pode ter múltiplos significados, segundo
o grupo social que o utiliza.
ABSTRACT
“Se Torcer Sai Sangue”: Uma Análise das Representações Sobre Religiosidade Afro-Brasileira no Jornal O DIA
Marcelo Vidaurre Archanjo
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The objective of this work is the understanding of the negative stereotypes
imputed to the afro-brasilian religious groups in a popular newspaper during the 50’s in
Rio de Janeiro (“O DIA” newspaper). Through the analysis and comparison of two
distinct and complementaries “spaces” of this newspaper (police news and umbandista
articles), was possible to understand how believes and attitudes that reforce the racial
and religious preconception are made. The conductor axis of this work was the multiple
social utilization of the term “macumba”.
AGRADECIMENTOS
“Se Torcer Sai Sangue”: Uma Análise das Representações Sobre Religiosidade Afro-Brasileira no Jornal O DIA
Marcelo Vidaurre Archanjo
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“Por que todo este fasto verbal num texto? O luxo da linguagem faz parte das riquezas excedentes, do
gasto inútil, da perda incondicional? Uma grande obra de prazer (a de Proust, por exemplo) participará da
mesma economia que as pirâmides do Egito? O escritor será hoje em dia o substituto residual do
Mendigo, do Monge, do Bonzo: improdutivo e no entanto alimentado? Análoga à Sangha búdica, a
comunidade literária, qualquer que seja o álibi que apresentar, será mantida pela sociedade mercantil, não
pelo que o escritor produz (não produz nada) mas pelo que ele queima? Excedente, mas de modo algum
inútil? . . . é a própria inutilidade do texto que é útil, a título de potlach.”
(ROLAND BARTHES – “O Prazer do Texto”)
Este trabalho não seria possível sem a ajuda e o apoio de muitas pessoas e
instituições. Inicialmente sou grato à Coordenadoria de Aperfeiçoamento do Pessoal de
Nível Superior - CAPES – que me concedeu os recursos financeiros necessários para a
realização deste trabalho.
Na Biblioteca Nacional encontrei todo o material de pesquisa, agradeço a todos
os funcionários do setor de microfilmes.
Sou grato a todos os meus professores do Instituto de Filosofia e Ciências
Sociais e do Laboratório de Pesquisa Social da UFRJ, que ao longo de todos esses anos
de graduação e de pós-graduação me deram o privilégio de assistir a suas aulas, sempre
mantendo o ambiente intelectual aberto a discussões. Sou especialmente grato a alguns
professores com os quais descobri o meu prazer no estudo das Ciências Sociais e em
particular no estudo da Antropologia. Um agradecimento especial à Marco Antonio
Teixeira Gonçalves, José Reginaldo Santos Gonçalves, Maria Laura Viveiros de Castro
Cavalcanti . . . muito obrigado.
Não sei e talvez não tenha como agradecer a minha orientadora, Profa Dra Maria
Lina Leão Teixeira. Sua ajuda, estímulo, (muita) paciência, respeito e amizade foram
essenciais em todos esses anos. Seu exemplo de professora e pesquisadora ajudou a
fixar em mim o “vírus” da antropologia.
Ao Prof. Ismael Pordeus da UFC, pelo espaço em Canindé/Ceará em 1993 e no
GT sobre Etnografia Afro-Brasileira na ABA 1994. Sou grato pelas suas críticas e
sugestões.
“Se Torcer Sai Sangue”: Uma Análise das Representações Sobre Religiosidade Afro-Brasileira no Jornal O DIA
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Agradeço a ajuda das “meninas” da Secretaria do PPGS, Cláudia, Denise e
Estela. Também pude contar, sempre que precisei, com o auxílio de Cláudia e Sheila,
ambas do LPS.
Aos colegas do Mestrado: as aulas, os bate-papos na sala de computadores, as
angústias quanto ao futuro, as alegrias das conquistas e os nossos almoços foram
momentos muito agradáveis que dividimos juntos. Obrigado a todos: Alexandre Brasil,
Euler Siqueira, João Carlos Colaço, Luciana Barão, Luciana Gonçalves, Manuel Macia,
Marcelo Senna, Maria Domênica, Vanessa Dias.
Ao carinho das amigas: Ana Cristina Mandarino - que me trouxe para esse
“campo” - e Laura Moutinho - pelas conversas sobre o ensino da antropologia. 
Com Júlio Vascopude conversar algumas vezes sobre a profissão de jornalista,
foram poucas porém de grande valia . . . valeu.
Alguns amigos foram essenciais em todos esses anos, propiciando um ambiente
de Interesse, Sintonia e Confiança, indispensáveis ao meu desenvolvimento pessoal.
Juntos procuramos construir uma vida com Equilíbrio e Harmonia. Agradeço a todos o
apoio e a amizade.
Duas pessoas muito me influenciaram na escolha desta profissão. A elas eu serei
sempre grato; Elizabeth Vidaurre Franco que me disse que a sociologia era “linda” e
Emanuel Teodoro Rosa Santos pela oportunidade de todos os “papos-cabeça”.
Aos meus pais, Pedro Archanjo e Magali Junger, pois sem a ajuda deles eu não
estaria aqui. E a minha família, com quem sempre dividi momentos de muita alegria e
que sempre esteve ao meu lado nos momentos mais difíceis.
Agradeço ao irmão Luis Dias, que certo dia me disse que eu tenho “livros muito
estranhos”. E ao amigo Eduardo Mattos, que sabe como cultivar uma amizade.
E como diz Roland Barthes: “Estar com quem se ama e pensar em outra coisa:
é assim que tenho os meus melhores pensamentos, que invento melhor o que é
necessário ao meu trabalho”.
“Se Torcer Sai Sangue”: Uma Análise das Representações Sobre Religiosidade Afro-Brasileira no Jornal O DIA
Marcelo Vidaurre Archanjo
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O terreiro da Tia Ciata, ou Tia Aciata, ficava localizado na na rua Visconde de Itaúna,
perto da Praça Onze. Era muito conhecido no final do século passado e início deste. Esta
ilustração de Caribé representa a ida de Macunaíma ao terreiro a fim de pedir ajuda a Exú para
matar o Gigante. No desenho, aparecem no alto uma constelação de deuses, e embaixo na
assistência estão diversas pessoas. São gente pobre, gente direita, jornalistas, advogados,
garçons, pedreiros meia-colheres, deputados, gatunos, enfim o mundo variado dos que
recorriam a Exú e às divindades da religião afro-brasileira, para a obtenção de vantagens e de
vinganças.
“Se Torcer Sai Sangue”: Uma Análise das Representações Sobre Religiosidade Afro-Brasileira no Jornal O DIA
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INTRODUÇÃO
“Como Ler um Jornal”
“Todo jornal, da primeira à última linha, não passa
de um tecido de horrores, guerras, crimes, roubos,
impudicícias, torturas, crimes de príncipes, crimes de nações,
crimes de particulares, uma embriaguez de atrocidade universal.
É deste aperitivo repugnante que o homem civilizado
Acompanha sua refeição cada manhã.”
(Charles Baudelaire)
“Se Torcer Sai Sangue”: Uma Análise das Representações Sobre Religiosidade Afro-Brasileira no Jornal O DIA
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O 
objetivo central desta dissertação é perceber como se processou a construção social da
“macumba”, por um meio de comunicação de massa, na Capital Federal durante a
década de 50. Um jornal foi eleito - O Dia1 - como veículo através do qual foram
levantados modelos de “ver” e de “ler” as “macumbas” e os “macumbeiros”. A partir
da identificação de certos estereótipos2 imputados à religiosidade afro-brasileira durante
este período, mostrarei que eles também se encontram presentes entre os próprios
adeptos das religiões afro-brasileiras na década de 90. 
A história desta pesquisa começou quando, ainda estudante de graduação em
Ciência Sociais no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ, participava como
bolsista de iniciação científica da pesquisa desenvolvida pela Profa Maria Lina Leão
Teixeira sobre religiões afro-brasileiras. A minha pesquisa, portanto, estava inserida
dentro da pesquisa que Teixeira (1994:05) desenvolvia para sua tese de doutoramento,
centrada nas “representações da [lou]cura em Terreiros de Candomblé, partindo do
discurso do povo-de-santo e da observação de rituais considerados terapêuticos pelos
participantes de comunidades religiosas localizadas na cidade do Rio de Janeiro e na
Baixada Fluminense”. Através de trajetórias de indivíduos que fazem parte do povo-de-
santo, a autora procurou perceber possíveis correlações entre, de um lado, determinadas
políticas de saúde e o exercício de cidadania, e de outro lado, os preconceitos raciais e
religiosos que incidem ou são introjetados pelos adeptos das religiões afro-brasileiras.
Um dos objetivos era perceber como se dava a utilização das categorias “macumba” e
“macumbeiro”, seja pelo povo-de-santo ou pela sociedade mais ampla. Neste sentido
era muito importante perceber como os meios de comunicação de massa utilizavam
estas mesmas categorias, e se contribuíram para a disseminação de estereótipos,
preconceitos e atitudes.
1 O título da dissertação foi tirado de uma expressão de uso corrente no senso comum para definir o tipo
de jornalismo realizado pelo “O DIA”, assim como o de outros jornais populares que seguem a mesma
linha. Esses jornais focalizam principalmente a morte como um espetáculo sanguinolento. A expressão
usada para definir o “O DIA” dizia que : ‘Se torcer sai sangue. . . .’
2 Segundo a definição de Jahoda (1987:419), um estereótipo “designa convicções pré-concebidas acerca
de classes de indivíduos, grupos ou objetos, resultantes não de uma estimativa espontânea de cada
fenômeno, mas de hábitos de julgamento e expectativa tornados rotina . . . um estereótipo é uma
convicção que não está alicerçada por uma hipótese apoiada na evidência, mas é antes confundida – no
todo ou em parte – com um fato estabelecido”. 
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A escolha da década de 50 foi feita com base na idéia de que neste momento
profundas transformações sociais e econômicas ocorriam na sociedade brasileira. O
projeto nacional pretendia inserir definitivamente o país na modernidade, sendo a
construção de uma Capital Federal no então inabitado planalto central o seu ponto
máximo; realização plena de um sonho e de um projeto político. A urbanização e a
industrialização crescentes eram os sinais de que o Brasil se desenvolvia; e mais do que
isso, de que alcançava o futuro. Caminhando junto com tudo isto, podemos perceber que
a crença no “feitiço como operador lógico dessa classificação metonímica que no
Brasil hierarquiza e relaciona grupos” (Maggie; 1992:30), se intercalava no ethos e na
visão de mundo (Geertz:1978) das diferentes classes sociais no Brasil.
Utilizarei as noções de Geertz (1978:143-144) sobre ethos e visão de mundo,
que são assim definidos:
 “os aspectos morais (e estéticos) de uma dada cultura, os elementos
valorativos, foram resumidos sob o termo “ethos”, enquanto os
aspectos cognitivos, existenciais foram designados pelo termo “visão
de mundo”. O ethos de um povo é o tom, o caráter e a qualidade de
sua vida, seu estilo moral e estético e sua disposição, é a atitude
subjacente em relação a ele mesmo e ao mundo que a vida reflete. A
visão de mundo que esse povo tem é o quadro que elabora das coisas
como elas são na simples realidade, seu conceito de natureza, de si
mesmo, da sociedade. Esse quadro contém suas idéias mais
abrangentes sobre a ordem”.
Muito provavelmente todo habitante da cidade de São Sebastião do Rio de
Janeiro já teve algum contato com a religiosidade afro-brasileira; seja ou não adepto
dessas religiões, alguns objetos com os quais já cruzou nas esquinas das ruas, nas praias
ou nas cachoeiras foram prontamente identificados como pertencentes a elas. O
“respeito”, o “medo” ou a “evitação” mantida em relação a esses objetos representa a
existência de certos significados comuns tanto aos iniciados como aos não iniciados
nessas religiões. Maggie (1992:21) expressa muito bem esta relação de evitação com
determinados objetos, reconhecidos como pertencentes às “macumbas”, na seguinte
cena:
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“Não há pessoa que passe pelo Rio de Janeiro sem reparar nos
despachos, velas e oferendas nas praias, cachoeiras e parques. As
oferendas insistem em estar presentes, apesar de quase sempre às
escondidas. As mães não deixam os filhos pequenos mexerem
naquelas coisas perigosas. Ninguém esquece o medo infantil ao ver
vela, galinha preta, pele de cobra seca, alguidar com farofa, panos
vermelhos e pretos, garrafas de cachaça na esquina de casa.”
A existência do reconhecimento de que certos objetos são de “macumba”,
também quer dizer que certos conhecimentos e linguagens são partilhados por diferentes
extratos da população. No dizer de Berger e Luckmann (1987:57), “o destacamento da
linguagem consiste muito mais fundamentalmente em sua capacidade de comunicar
significados que não são expressões diretas da subjetividade “aqui e agora””.
Podemos, através da linguagem, tornar presentes e falar de assuntos dos quais nunca
tivemos experiência direta. Isto ocorre em razão da participação comum no “acervo
social disponível do conhecimento” (idem; idem:62). 
Quando iniciei essa pesquisa, o meu conhecimento sobre religiões afro-
brasileiras se dava principalmente através dos meios de comunicação de massa (filmes,
jornais, revistas, livros), ou então das festas de final de ano nas praias cariocas, onde
inevitavelmente acabava vendo alguns religiosos em transe (mesmo sem “entender”
nada do que estava acontecendo, mas evidentemente tecendo considerações e
representações).
Certo dia me perguntei sobre a origem das opiniões que possuía a respeito dessas
religiões, já que nunca tinha ido a nenhum centro ou terreiro antes de iniciar as
pesquisas. Percebi então a existência daquilo que Velho (1978) denomina como
familiaridade e que distingue de conhecimento. Em uma sociedade complexa como a
nossa, onde a “vida social é fragmentada e totalmente plural” (Maffesoli; 1984:11), e
onde diversos grupos coexistem próximos uns aos outros, inevitavelmente temos a
ilusão de conhecer aqueles dos quais estamos fisicamente próximos ou com os quais
estamos familiarizados. 
Park (1970:169-171) distingue entre o que ele define como “conhecimento de”
e “conhecimento acerca de”. O primeiro tipo de conhecimento é o que adquirimos no
dia-a-dia com o mundo em que vivemos, “é o conhecimento que adquirimos mais
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através do uso e do hábito do que de qualquer espécie de investigação formal ou
sistemática”. O outro tipo de conhecimento é formal, racional e sistemático; ‘baseia-se
na observação e no fato, mas no fato verificado, rotulado, sistematizado e, finalmente,
ordenado nesta e naquela perspectiva, segundo o propósito e o ponto de vista do
investigador”.
Usualmente os meios de comunicação de massa, e em especial os jornais, nos
dão a impressão de que conhecem aqueles sobre os quais estão falando, quando na
maioria das vezes apenas transmitem estereótipos. Eles se utilizam justamente de um
estoque de conhecimento que é comum aos membros de uma determinada sociedade,
para transmitir informações que atinjam e que sejam compreendidas pelo maior número
possível de pessoas (no caso específico leitores), promovendo o que denomino de
“cristalização de estereótipos”.
É muito comum considerar os meios de comunicação de massa como detentores
de um enorme poder de persuasão. Sempre se imagina e tenta-se medir o tamanho e a
eficácia deste poder. Poder este que é representado como dotado de grande capacidade
de convencimento. Uma das questões colocadas diz respeito a entender se, no caso de
um jornal, esse convencimento - entendido como formação de opiniões - realmente
estaria sendo exercido sobre questões do dia-a-dia de uma determinada população, de
acordo com o perfil e o gosto do seu público leitor. De acordo com Thompson
(1995:12) existe um estrito relacionamento entre as formas simbólicas e os contextos
sociais dentro dos quais elas são produzidas, transmitidas, recebidas e interpretadas.
Na análise de um jornal deve-se considerar antes de tudo que toda notícia é uma
mercadoria consumida no momento de sua leitura. E “para ser consumido como
mercadoria que é, o jornal tem que atender às necessidades de seus leitores, tem de
falar de coisas que os leitores queiram saber, e, lendo, sejam capazes de compreender”
(Dantas, 1989: 10); além de poderem abalizar suas “certezas” e pontos de vista.
Existem muitas maneiras possíveis de se analisar um determinado material
jornalístico, segundo o objetivo a que se almeja chegar.
Uma maneira possível de se ler um jornal é através da abordagem que o
considera como um registrador de fatos que acontecem no dia-a-dia da cidade e do
mundo; tomá-lo como um puro banco de dados (idem; idem:13). Através dessa leitura o
jornal informa, imparcialmente, sobre aquilo que aconteceu ou está acontecendo na
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sociedade. Busca justamente “apresentar a realidade dos fatos”, colocando-se como um
mero meio que amplia os órgãos sensórios, perceptivos e experienciais do leitor.
Um outro tipo de abordagem, como por exemplo em Goldenstein (1987; 1992),
analisa o material jornalístico utilizando o conceito de “Indústria Cultural” - Adorno e
Horkheimer - , procurando com seu uso compreender “o processo pelo qual um
determinado jornal se torna parte da indústria cultural” (Goldenstein; 1987:30).
Segundo o ponto de vista que utiliza, o desenvolvimento dos meios de comunicação de
massa, assim como o desenvolvimento de seus produtos, estão submetidos “às
determinações mais amplas da sociedade capitalista em seu movimento histórico”
(idem; idem:22).
A primeira pergunta que ela faz frente ao material que analisa é a seguinte: Qual
a natureza da relação entre a mensagem jornalística e a empresa? Se a mensagem estiver
submetida à lógica da empresa, é um caso típico da indústria cultural. Se, por outro
lado, é a própria mensagem que articula os demais componentes do jornal, pergunta
sobre a configuração social em meio à qual surge o jornal, como se imbrica nela e a
relação estabelecida entre o destino do jornal e o movimento da sociedade.
A autora define “Industria Cultural” como “um conjunto de complexos
empresariais, altamente concentrados do ponto de vista técnico e centralizados do
ponto de vista do capital, que produzem e distribuem em grande escala, empregando
métodos muitas vezes (mas nem sempre) marcados por um alto grau de divisão do
trabalho, baseados em fórmulas, e tendo em vista a rentabilidade econômica, objetos
culturais” (idem; 1992:18).
É possível também abordar um determinado material jornalístico a partir da
maneira como ele molda os acontecimentos sociais. Herzlich e Pierret (1992) realizam
uma pesquisa sobre a construção, por determinados jornais franceses, do “fenômeno
social AIDS”. Seu objetivo é acompanhar a maneira como é anunciada à sociedade o
surgimento de uma nova patologia, e perceber os efeitos da circulação de informações
entre grupos que pouco a pouco se consideraram afetados e se mobilizaram a partir
dessas informações. O que importa inicialmente às autoras é reconhecer o papel
fundamental da comunicação de massa: “o de criar um acontecimento na consciência
dos atores sociais e, mais amplamente, o de cristalizar as relações que se instauram a
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16seu respeito” (idem; idem:10). Para as autoras, um elemento essencial na compreensão
do fenômeno estudado é sua dimensão temporal.
Dentre essas diferentes formas de abordagem a um material jornalístico, a que é
utilizada por Dantas talvez seja a que mais se aproxima da que tentarei utilizar nesse
trabalho. Para Dantas (1989:14):
“Um jornal contém mais do que fatos e construções políticas de fatos.
Um jornal é produzido para ser consumido. E este consumo se dá no
momento em que o indivíduo, através da leitura, absorve seu
conteúdo. Existe, portanto, entre o jornal e o leitor uma linguagem
que tem de ser comum a cada um dos lados, para que ocorra a
comunicação. A comunicação acontece porque o jornal codifica uma
determinada realidade em sinais que por sua vez são decodificados
pelo leitor, permitindo, assim, a esse último a reconstrução mental da
realidade transmitida. . . . Para haver a comunicação é necessário
que haja um consenso jornal/leitor não apenas no que se refere aos
sinais (a língua), mas aos seus significados, ou seja, é necessário um
consenso simbólico, uma linguagem comum”.
Particularmente importa na mensagem jornalística o que se pode perceber sobre
a sociedade que a produz, através da própria mensagem; a notícia sendo, antes de tudo
uma representação3, uma manifestação cultural, um produto coletivo a nos informar
sobre o ethos e a visão de mundo dessa sociedade, ou pelo menos do público
consumidor de determinado jornal.
Pode-se então utilizar o jornal como manancial e veículo de representações que
a própria sociedade constrói de si mesma, e que são “cristalizadas” em forma impressa.
Acredito que o poder desse veículo de comunicação de massa está justamente em sua
capacidade de captar as representações elaboradas pela sociedade ou por determinado
grupo social, mas que se encontram difusas no ethos e na linguagem, e em dar-lhe uma
forma que é altamente valorizada na sociedade contemporânea, a escrita.
3 Em Durkheim (1994:41): “A sociedade tem por substrato o conjunto de indivíduos associados. O
sistema que eles formam, unificando-se, varia segundo sua própria disposição sobre a superfície do
território, a natureza e o número de vias de comunicação, tudo o que constitui a base sobre a qual se
edifica a vida social. As representações, que são sua trama, originam-se das relações que se
estabelecem, tanto entre os indivíduos, de tal forma combinados, quanto entre os grupos secundários que
se interpõem entre o indivíduo e a sociedade total.”
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Becker (1994:137) se refere aos modos de representação dizendo que eles
passam a fazer mais sentido quando são visto num “contexto organizacional”, ou seja,
“como maneiras que as pessoas usam para contar o que pensam que sabem, para
outras pessoas que querem sabê-lo, como atividades organizadas moldadas pelo
esforço conjunto de todas as pessoas envolvidas”. Esta definição de Becker é
interessante por relativizar justamente a idéia de que os meios de comunicação
subordinam seus usuários com idéias e imagens. Ao invés disso, os meios de
comunicação dialogam com seus usuários, porque falam, ou procuram falar, do que eles
querem saber. 
A essa valorização da escrita acrescente-se a prática cotidiana da leitura do
jornal, ritual ao qual recorre-se para saber das “coisas que se passam”. Isto acontece
graças ao “efeito de apresentação da realidade” que é criado pelo jornal ao “colocar-se
como “meio” através do qual os fatos seriam transmitidos ao público” (Serra;
1980:17).
Como diz Rui Barbosa (1990:37-38), em conferência editada no ano de 1920, e
que representa bem a maneira como intelectuais e políticos do começo do século
pensavam o papel a ser desempenhado pelos meios de comunicação de massa na
construção de um Brasil moderno: “a imprensa é a vista da Nação. Por ela é que a
Nação acompanha o que lhe passa ao perto e ao longe . . .Sem vista mal se vive. Vida
sem vista é vida no escuro, vida na soledade, vida no medo, morte em vida . . .Mas a
imprensa, entre os povos livres, não é só o instrumento da vista, não é unicamente o
aparelho do ver, a serventia de um só sentido. Participa, nesses organismos coletivos,
de quase todas as funções vitais. É, sobretudo, mediante a publicidade que os povos
respiram . . . Entre as sociedades modernas, esse grande aparelho de elaboração e
depuração reside na publicidade organizada, universal e perene: a imprensa”.
Neste mesmo sentido de pensar, Alceu Amoroso Lima (1990) em texto
publicado em 1958, pretende ver a prática jornalística através de seus aspectos estéticos
e literários. O autor quer entender o jornalismo como um gênero literário, uma espécie
de literatura em prosa de apreciação de acontecimentos (idem; idem: 41). Koshiyama
(1990:11) chama a atenção para o fato de que as definições de Alceu Amoroso Lima
sobre o jornalismo, deveriam abrir “nossos olhos para a observação do fenômeno
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jornalismo enquanto atividade quotidiana”. Atividade que oferece “a ilusão de saber e
está presente de modo dominante em nossas vidas cotidianas” (Koshiyama; 1990:21).
No final do século passado, Nina Rodrigues já chamava a atenção para a
maneira como eram tratados pela imprensa, não só da Bahia como também de outros
Estados, os cultos afro-brasileiros. Para ele a imprensa revelava uma desorientação não
só no modo de tratar o assunto, como também nas atitudes que defendia a serem
tomadas pela polícia (Rodrigues; 1988). Nina Rodrigues (idem:239) em texto publicado
em 1933 lamenta que:
“. . . a imprensa local revele, entre nós, a mesma desorientação no
modo de tratar o assunto, pregando e propagando a crença de que o
sabre do soldado de polícia boçal e a estúpida violência de
comissários policiais igualmente ignorantes hão de ter maior dose de
virtude catequista, mais eficácia como instrumento de conversão
religiosa do que teve o azorrague dos feitores”.
O conjunto de notícias que Nina Rodrigues diz possuir, cobrem os anos de 1896-
1905, e constituiriam apenas um pequeno extrato do total que recolheu na imprensa de
diversos pontos do país.
Depois dele, em 1904, o cronista carioca João do Rio reuniu em sua obra
“Religiões do Rio” uma série de reportagens sobre as religiões existentes na então
capital federal. Dedica nesta obra cinco capítulos aos cultos afro-brasileiros. Em suas
próprias palavras, “não há ninguém cuja vida tivesse decorrido no Rio sem uma
entrada nas casas sujas onde se enrosca a indolência malandra dos negros e das
negras” (Rio; 1951:34). É em torno do feitiço, “o nosso vício, o nosso gôzo, a
degradação” (Rio; 1951:35), que se constitui uma intrincada rede de relações sociais
envolvendo diferentes segmentos da sociedade carioca. Em João do Rio já podemos
perceber que as representações sobre os cultos afro-brasileiros eram compartilhados por
toda a população carioca (Maggie, 1992 e Teixeira,1986).
Contins e Goldman (1984) acompanham o noticiário sobre um assassinato
ocorrido na cidade do Rio de Janeiro que relaciona os cultos afro-brasileiros e a
sociedade abrangente. A partir da observação das repercussões deste caso em dois
jornais cariocas de grande circulação (“O DIA” e “O GLOBO”) realizam um trabalho
“Se Torcer Sai Sangue”: Uma Análise das Representações Sobre Religiosidade Afro-Brasileira no Jornal O DIA
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de análise de discursos. Do ponto de vista dos autores, esses discursos são parte
constituinteda relação entre os cultos afro-brasileiros e a sociedade como um todo.
A hipótese básica dos autores é que a ambigüidade da Umbanda, “incorporada
como elemento de autodefinição de uma certa “identidade nacional”. . . encontra a
contrapartida dessa função nas constantes acusações a que é submetida, encarada
como manifestação de certos problemas sociais (“primitivismo”, “selvageria”,
“atraso”, etc. . .) ou mesmo individuais (perturbações mentais, desajustes psico-
sociológicos, etc. . . ) . . . . responde pelo caráter incerto e também ambíguo de sua
classificação socialmente atribuída no Brasil.” (idem; idem:123).
Acredito que para uma melhor compreensão deste tipo de notícia, presente em
jornais brasileiros desde o século passado, é necessário compreender os significados
socialmente construídos em torno da “macumba”. Pois é principalmente em relação
com esse termo (“macumba”) que se constróem as notícias onde os cultos afro-
brasileiros de uma maneira genérica são percebidos como atividades criminosas e/ou
como sinônimo de atraso e degenerescência (Capítulo II).
Entendo que para compreender o significado do que vem a ser a “macumba” no
Rio de Janeiro, não se pode deixar de relacioná-la com o surgimento e a organização da
Umbanda. Foi na cidade de Niterói que em meados da década de 20 se fundou o
primeiro centro de Umbanda. Em 1938 este centro se mudou para a área central da
então Capital Federal. Seus membros “provinham predominantemente dos setores
médios. Trabalhavam no comércio, na burocracia governamental, eram oficiais de
unidades militares; o grupo incluía também alguns profissionais liberais, jornalistas,
professores e advogados, e ainda alguns operários especializados” (Brown; 1985:11).
Brown considera que a umbanda servia como meio para a classe média expressar seus
interesses de classe, suas idéias sociais e seus próprios valores.
A primeira Federação de Umbanda foi fundada por Zélio de Moraes e outros
líderes umbandistas em 1939, com o nome de União Espírita Umbandista do Brasil
(UEUB) e tinha como objetivo principal dar proteção aos centros a ela filiados. Em
1941 essa Federação organiza o primeiro Congresso de Umbanda no Rio de Janeiro. Em
1949 esta mesma Federação lança uma publicação mensal, o “Jornal de Umbanda”, que
dava cobertura a eventos nacionais e regionais de umbanda, apresentava artigos e
debates sobre doutrina e ritual, além de fazer resenhas de livros e periódicos sobre
“Se Torcer Sai Sangue”: Uma Análise das Representações Sobre Religiosidade Afro-Brasileira no Jornal O DIA
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Umbanda, que começavam a aparecer em grande número neste período. Durante as
décadas de 50 e 60 este jornal foi o principal órgão de divulgação da umbanda. 
Ainda durante a década de 50, seis outras federações foram criadas na capital da
República. Uma dessas federações (Federação Espírita Umbandista), sob a liderança de
Tancredo da Silva Pinto, defendia uma “forma de umbanda de orientação africana”, e
sua liderança era composta basicamente por pessoas provenientes das camadas sociais
mais baixas, muitos deles sendo negros e mulatos.
Tancredo da Silva Pinto foi, junto com outros líderes de federações de umbanda,
autor de diversos livros sobre umbanda de estilo africano. Neste período ele consegue
uma coluna semanal em um dos jornais de maior circulação no Rio de Janeiro, “O
DIA”. De propriedade do político populista Chagas Freitas, o jornal é utilizado como
meio de propaganda para captação de eleitores; e a umbanda, com seus milhares de
fiéis, é uma excelente fonte de eleitores.
Dirigido para a grande massa de trabalhadores do município do Rio de Janeiro,
as reportagens do “O DIA” versavam principalmente sobre violência e criminalidade.
No “O DIA”, o cotidiano da cidade de São Sebastião é profundamente marcado por uma
atmosfera caótica e sanguinolenta. 
O jornal “O DIA”, além de reservar um lugar especial para a divulgação da
doutrina umbandista, também possuía um lugar próprio para as “macumbas” - as
páginas policiais. O que temos observado em diversos meios de comunicação de massa
no Brasil, ao longo deste século, é a constante associação da religiosidade afro-brasileira
com a criminalidade e/ou com a violência (Archanjo; 1995). Jornais, revistas, livros,
filmes; textos que nos mostram as “macumbas” como locais privilegiados para irrupção
da desordem.
Não se trata, enfim, de analisar o jornal como se constituísse um conjunto, uma
obra, mas antes como uma “cena” presente no imaginário social brasileiro. Pode-se
observar esta “cena” em materiais literários, jornalísticos, na música, nos sonhos; nas
sombras das esquinas nas metrópoles brasileiras, no alto dos morros e nas periferias.
Essas imagens são conjugadas a fim de imprimir um misto de horror e fascínio ao
brasileiro morador nos grandes centros urbanos. A “cena da macumba” implica
“Se Torcer Sai Sangue”: Uma Análise das Representações Sobre Religiosidade Afro-Brasileira no Jornal O DIA
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necessariamente na realização de algum tipo de sortilégio4, de um crime, uma morte,
enfim, algum tipo de ação que é considerada como transgressora. 
Os estereótipos incidentes tanto sobre as religiões afro-brasileiras como sobre a
população negra, na visão de Teixeira (1995:45-46), são uma maneira da sociedade
brasileira pensar e classificar-se:
“É óbvio que ser negro é diferente de ser do Santo ou
“macumbeiro”, porém existem elementos que aproximam ambas
as identidades, contribuindo para um conjunto comum de
experiências. Esta comunhão de caráter amplo e contrastivo é que
delimita um lugar social adequado, tanto para a primeira, quanto
para a segunda identidade; isto é, ajuda a evidenciar diferença(s)
e erigir fronteiras. Fronteiras estas que, para os do Santo,
especialmente grupos e indivíduos do Candomblé, se encontram
marcadas pelas seguintes características atribuídas, assumidas
e/ou introjetadas:
- objeto de discriminação enquanto forma religiosa anímica e
atrasada, coisa de negros boçais, capaz de produzir efeitos
nefastos nos adeptos (escola N.Rodrigues) e de contribuir para a
patologia social, sobretudo no que diz respeito a distúrbios
mentais (eclosão de várias perturbações como a histeria, vista
como diretamente relacionada à possessão);
- objeto de perseguições, por estar em oposição ao credo
hegemônico católico e contribuir para a organização e revolta de
segmentos importantes da população das grandes cidades como
Salvador (Reis, 1986;1988) e Rio de Janeiro (Maggie,
1988;1992), o que faz com que os participantes das comunidades
de culto se digam católicos, escondendo sob esse rótulo suas
crenças);
4 “Sortilégio II (mistério negro de Zumbi redivivo)” é o título do livro de Abdias do Nascimento (1979),
fundador e diretor do Teatro Experimental do Negro, no Rio de Janeiro, entre os anos de 1944 a 1968.
Este livro foi escrito em 1951, mas só estreou no Teatro Municipal do Rio de Janeiro em 1957 após longa
batalha com a censura da época. Nele Abdias conta a história do Dr. Emanuel, advogado, jovem e negro,
que acaba de assassinar sua jovem esposa, a branca Margarida, após descobrir que ela o traía. Após matar
a esposa, Emanuel fugindo da polícia sobe o morro e acaba se vendo no meio de uma “macumba”, de
onde só sairá depois de morto. Achei interessante observar que Abdias reúne neste drama elementos que
também se encontram no “O DIA” - a relação direta entre “macumba”, favela, negro e assassinato.
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- objeto de medo, pois a crença no feitiço e na potencialidade
mágica das religiões afro, genericamente denominadas de
“macumba”, é algo disseminado emtodo imaginário social, como
mostrado por Rio (1904/1951), Marques (1897) e vários outros
literatos, e mais recentemente, por Maggie (1988) quando analisa
os processos de curandeirismo na justiça carioca. Além disso, o
medo também é decorrente da massa liberta em 1888, que vai
estar presente no cenário dos grandes centros urbanos e
potencialmente ameaça o poder da elite branca minoritária
(Azevedo, 1987).”
Minha hipótese principal é a de que os meios de comunicação de massa
mostram como a sociedade brasileira se pensa; as representações que ela constrói sobre
sua dinâmica sócio-cultural, na tentativa de explicar para si mesma suas desigualdades
e diferenças. Fazendo assim com que sejam “cristalizados” determinados preconceitos e
estereótipos negativos incidentes principalmente (mas não exclusivamente) sobre a
população negra. 
De acordo com o que exposto até aqui, os capítulos subsequentes desta
dissertação tratam das seguintes questões.
No primeiro capítulo abordarei os sentidos da modernidade, procurando
entender de que forma e atendendo a quais imperativos a modernidade toma corpo na
“Cidade Maravilhosa”. Serão discutidos os diferentes aspectos das interrelações entre a
noção de progresso e o ambiente urbano, vendo de que forma essas noções exprimem
hierarquias e conflitos sociais, assim como marcam as diversas identidades religiosas.
O segundo capítulo é uma “leitura” da produção acadêmica sobre a religiosidade
afro-brasileira, enfocando principalmente os diferentes sentidos dados ao termo
“macumba”.
O terceiro e quarto capítulos tratam especificamente do material recolhido no
jornal “O DIA” da década de 50 que faz referência às religiões afro-brasileiras; os dois
capítulos são uma etnografia do material jornalístico, analisada à luz da teoria
antropológica.
Finalizarei esta dissertação com um breve capítulo de Considerações Finais onde
aponto algumas possíveis continuações deste trabalho. 
Após este capítulo estão as Referências Bibliográficas consultadas. 
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CAPÍTULO 01
“Uma Visão De Modernidade 
e a ‘Cidade Maravilhosa’ ”
“E a novidade que seria um sonho
O milagre risonho da sereia
Virava um pesadelo tão medonho
Ali naquela praia, ali na areia . . “.
(GILBERTO GIL – “A Novidade”)
P 
ara Giddens (1991:11), modernidade “refere-se a estilo, costume de vida ou
organização social que emergiram na Europa a partir do século XVII e que
ulteriormente se tornaram mais ou menos mundiais em sua influência”. Segundo
Rouanet (1994:11) podemos tomar como ponto de partida da modernidade
“Se Torcer Sai Sangue”: Uma Análise das Representações Sobre Religiosidade Afro-Brasileira no Jornal O DIA
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contemporânea “as duplas revoluções, a Industrial Inglesa e a Política Francesa, nos
fins do século XVIII”. Característica desta modernidade é a sua capacidade de
“mundializar-se”. Rouanet parte da definição de Weber de que a modernidade
corresponde a uma “construção estritamente sistêmica e descritiva” (idem:41), de que
ela “é aquilo que é, e não aquilo que deveria (ou não deveria) ser” (idem:42). Uma
situação onde não existe nenhum elemento normativo. Rouanet define então a
modernidade não só como um sistema que funciona de maneira ótima, mas antes de
tudo como “aquela configuração histórico-social, onde, além de haver um desempenho
sistêmico satisfatório, há, também, uma estrutura de fins” (idem:42). Assim, a
modernidade não se caracteriza apenas por ser um sistema que funciona bem, mas antes
de tudo por ser um modelo, “um objetivo ideal, ligado a uma estrutura de fins”
(idem:43).
No entender de Rouanet (idem:45-46) o sistema weberiano enfatiza
principalmente o conceito de eficiência funcional. A idéia de Rouanet é introduzir na
discussão um conceito de modernidade que possua aspectos normativos e teleológicos, e
não simplesmente funcionais. Ele pressupõe que a proposta iluminista de modernização
do mundo dê conta dessa estrutura de fins que faltaria em Weber. O iluminismo propõe
entre outras coisas: que o sistema econômico moderno seja funcional; que seja abolido o
sistema monárquico de governo, devendo ser substituído por um sistema de maior
eficiência; e a existência de liberdade de crítica cultural frente à religião. “Em todas as
dimensões onde Weber via apenas o conceito de eficiência sistêmica, a ilustração
acrescenta o objetivo da autonomia, tanto para o homem como para a sociedade como
um todo”.
O importante para a modernização de uma sociedade é perceber se ela possui um
“telos, um ideal, uma virtualidade, que não se concretizou ainda. A modernidade não é
o que já somos, mas tudo aquilo que poderemos ser - o que ainda não ocorreu, mas que
depende de nós que venha a ocorrer” (idem; idem:46).
Definindo desta forma a modernidade como um tipo de relação social que
fundamentalmente depende da ação humana, ou seja, os acontecimentos do mundo não
seriam mais a expressão de uma tutela divina.
A definição de Alain Touraine (1995:09) expressa este pensar:
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“A idéia de modernidade, na sua forma mais ambiciosa, foi a
afirmação de que o homem é o que ele faz, e que, portanto, deve
existir uma correspondência cada vez mais estreita entre a
produção, tornada mais eficaz pela ciência, a tecnologia ou a
administração, a organização da sociedade, regulada pela lei e
a vida pessoal, animada pelo interesse, mas também pela
vontade de se libertar de todas as opressões.”
A correspondência de cultura científica, sociedade ordenada e indivíduos livres
só se torna possível graças a existência de uma razão triunfante. Mas triunfo sobre o
que? Sobre tudo aquilo que vem a ser designado como “tradição”, e que é igualado à
“dócil escravidão” (Berman; 1986:24). Para Berman, estariam amontoadas de um lado
todas as tradições da humanidade, e de outro, fazendo oposição, uma modernidade
concebida como libertadora.
Boaventura de Sousa Santos (1996:77-78) diz que a modernidade se assenta
basicamente sobre dois pilares - o pilar da “regulação” e o pilar da “emancipação”. O
pilar da regulação é constituído por três princípios, formulados a partir das obras e das
idéias de três grandes pensadores modernos (princípio do Estado - Hobbes; princípio do
mercado - Locke; princípio da comunidade - Rousseau). O outro pilar, da emancipação,
“é constituído por três lógicas de racionalidade: a racionalidade estético-expressiva da
arte e da literatura; a racionalidade moral-prática da ética e do direito; e a
racionalidade cognitivo-instrumental da ciência e da técnica”. As infinitas
possibilidades da modernidade, estariam calcadas justamente nas correspondências e
interrelações entre os dois pilares e seus respectivos princípios ou lógicas. Em razão
disso, uma das características mais marcantes da modernidade é justamente o seu
excesso de promessas conjugado a um sempre presente déficit de cumprimento.
No entender de Giddens (1991:45) o que usualmente é chamado de “razão
libertadora” ele vem a designar como “reflexividade”: 
“A reflexividade da vida social moderna consiste no fato de que
as práticas sociais são constantemente examinadas e
reformadas à luz de informação renovada sobre estas próprias
práticas, alterando assim constitutivamente seu caráter.”
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Por isso mesmo, a modernidade é percebida como um conjunto de
descontinuidades, de constantes rupturas com tipos de ordens sociais identificadas como
tradicionais. Para Alain Touraine (1991:11):
“A modernidade pode ser definida pela destituição das ordens
antigas e pelo triunfo da racionalidade objetiva ou
instrumental.”
É a partir desta razão instrumental que serão planejadas as mudanças no
panorama das cidades que pretendem acolher a modernidade. Com princípios
totalmente diferentes dos que organizavam as cidades pré-modernas, o urbanismo
moderno surgiu como uma nova maneira de conceber e ordenar o espaço e o tempo.
Uma nova perspectiva se mostrava para os homens: terem o poder de planejar e
construir o seu próprio futuro. 
“É no espaço urbano que ganha universalidade o sentido da
cidadania. É na cidade portanto que se discute, se critica e se
vivencia a experiência da modernidade.” (Bomeny; 1991:149)
As cidades modernas são o palco onde se operam todas as principais
transformações sociais que designamos por modernidade. Produto da intervenção
humana sobre a natureza, as cidades modernas registram em sua história os valores e
aspirações da modernidade. Na visão de Bomeny (idem:150), as cidades modernas
representam “uma decisão do espírito de empreendimento que registra na paisagem
virgem a mão do homem.”
Apesar de ser o local privilegiado para o exercício de uma razão planificadora, a
cidade moderna também pode ser percebida como o lugar de manifestação do
inconsciente, uma vez que no mundo contemporâneo os discursos se voltam cada vez
mais para a construção da interioridade pessoal. Basta percebermos a proliferação de
discursos sobre a alma, a psique, durante o decorrer do século XX. Discursos que visam
tratar ou então oferecer soluções para “o mal-estar na civilização”; mal-estar que se
observa principalmente no dia-a-dia das grandes metrópoles. O diagnóstico de Hillman
(1993:110) sobre a polis moderna é muito interessante; ele aponta que:
“Se Torcer Sai Sangue”: Uma Análise das Representações Sobre Religiosidade Afro-Brasileira no Jornal O DIA
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“O que uma vez já foi o ‘inconsciente’, manifestando-se como um ato
falho, agora está na boca do povo. Onde somos mais incapazes,
aquilo do que mais sofremos e pelo que mais nos anestesiamos, isto é
reprimimos – com protetores de ouvido, trancas nas portas, álcool,
aparelhos eletrônicos de alta-fidelidade, café e consumismo -, é o
mundo exterior, a polis. Retiramos a psique de lá e ficamos
inconscientes no que diz respeito a ela; a polis é o inconsciente.
Tornamo-nos pacientes e analistas superconscientes, indivíduos muito
atentos e extremamente interiorizados, e cidadãos muito
inconscientes”. 
Essa inconsciência do cidadão das cidades modernas transforma-o em massa,
esse “referente esponjoso, . . . realidade ao mesmo tempo opaca e translúcida, . . . esse
nada” (Baudrillard; 1993:10), que tem como características principais a de não ser boa
condutora nem do social, nem do político, nem do sentido em geral. “Tudo as
atravessa, tudo as magnetiza, mas nelas se dilui sem deixar traços” (idem). Para
Baudrillard, é enquanto instância que se caracteriza mais pelo que absorve, por ser força
de inércia, neutra, que as massas são vistas como característica da nossa modernidade.
O poder de intervir cada vez mais sobre a natureza torna-se a principal referência
para o habitante da cidade moderna. Um poder que não é, contudo, exercido por esse
habitante enquanto cidadão, mas sim por aqueles que detêm o poder de decidir e de
expressar publicamente sua decisão – dos que falam, em oposição a essa “maioria
silenciosa” de que nos fala Baudrillard (idem). Ainda assim, “o ideal do progresso
considerado em si, afastando os aspectos contraditórios de todo progresso, fez da
dominação da natureza o novo referente maior” (Maffesoli; 1981:141). Portanto a
noção de progresso, tornada a “fábula fundamental do Ocidente” (Durant; 1975 in
Maffesoli; idem:141) vai direcionar toda e qualquer mudança que venha a ocorrer na
cidade, em suas ruas e construções. Não é sem razão que o século XX pode ser visto
como o período que apresenta um enorme crescimento das cidades em todo o mundo.
A complexa organização das cidades modernas reside basicamente na divisão do
trabalho. A interdependência dos homens torna-se vital nas sociedades industriais
modernas. Cada indivíduo exerce sua especialização e ocupa o seu lugar a partir das
suas atividades. “O século XVIII exigiu a especialização funcional do homem e seu
“Se Torcer Sai Sangue”: Uma Análise das Representações Sobre Religiosidade Afro-Brasileira no Jornal O DIA
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trabalho; essa organização torna um indivíduo incomparável a outro e cada um deles
indispensável na medida mais alta possível. Entretanto, esta mesma especialização
torna cada homem proporcionalmente mais dependente de forma direta das atividades
suplementares de todos os outros” (Simmel; 1976:11). 
Para Lévi-Strauss (1980:62) a definição da noção de progresso pode ser feita
observando-se que os “saltos não consistem em ir sempre mais longe na mesma
direção”; não é tanto um somatório de avanços contínuos, de ganhos crescentes, mas
sim - à maneira do jogo de xadrez - lances que quando dados implicam ao mesmo
tempo em ganhos e perdas.
A noção de progresso vai intervir não só sobre a nossa percepção do espaço
urbano, mas também (e principalmente) sobre a nossa percepção e vivência das relações
humanas. O “outro” urbano é sempre referido, de alguma forma, ao grau de integração
com as próprias atividades exercidas pelo eu. “Os relacionamentos e afazeres do
metropolitano típico são habitualmente tão variados e complexos que, sem a mais
estrita pontualidade nos compromissos e serviços, toda a estrutura se romperia e cairia
num caos inextrincável. Acima de tudo, esta necessidade é criada pela agregação de
tantas pessoas com interesses tão diferenciados, que devem integrar suas relações e
atividades em um organismo altamente complexo” (Simmel;1976:14-15).
A cidade moderna tem muitas vozes, “uma multiplicidade de vozes autônomas
que se cruzam, relacionam-se, sobrepõe-se umas às outras, isolam-se ou se
contrastam” (Canevacci; 1993:17). Ela é polifônica, e como conseqüência permite
diversos e diferentes modos de percebê-la, segundo a posição no tempo e no espaço do
observador. Isto acaba por gerar uma multiplicidade de representações possíveis; entre
elas temos, por exemplo, as que são difundidas através dos meios de comunicação de
massa (jornais, rádios, televisão, etc).
É possível dizer que existe nas cidades modernas uma “fé no futuro” que mede
todas as coisas (e pessoas) através do grau de utilidade na realização desta mesma fé. O
progresso é apreendido como a manifestação, “até as últimas conseqüências, da razão
humana na construção da cidade” (Maffesoli; 1981:146). Na cidade moderna, a divisão
do trabalho implica em que todos dependem em algum grau do outro.
“O ideal de cidade moderna constrói-se sobre um princípio de
autonomização de relações, e inclusive no fato de que seu
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habitante é um homem que não supre suas necessidades com o
cultivo próprio.” (Bomeny; 1991:149).
Através da transformação das coisas em redor e da autotransformação pessoal, a
modernidade perpassa todas as dimensões da existência social; “um tipo de experiência
vital - experiência de tempo e espaço, de si mesmo e dos outros, das possibilidades e
perigos davida” (Berman; 1986:15). Ao mesmo tempo que desejamos a mudança, se
possível uma mudança contínua, nos sentimos por diversas vezes invadidos pelo terror
de um mundo que se desfaz diante de nossos olhos. O panorama da modernidade é
muito bem desenhado por Berman (idem:16) na introdução de seu livro “Tudo que é
sólido desmancha no ar” com as seguintes palavras:
“O turbilhão da vida moderna tem sido alimentado por muitas
fontes: grandes descobertas nas ciências físicas, com a
mudança da nossa imagem do universo e do lugar que
ocupamos nele; a industrialização da produção, que transforma
conhecimento científico em tecnologia, cria novos ambientes
humanos e destrói os antigos, acelera o próprio ritmo da vida,
gera novas formas de poder corporativo e de luta de classes;
descomunal explosão demográfica, que penaliza milhões de
pessoas arrancadas de seu habitat ancestral, empurrando-as
pelos caminhos do mundo em direção a novas vidas; rápido e
muitas vezes catastrófico crescimento urbano; sistemas de
comunicação de massa, dinâmicos em seu desenvolvimento, que
embrulham e amarram, no mesmo pacote, os mais variados
indivíduos e sociedades; Estados nacionais cada vez mais
poderosos, burocraticamente estruturados e geridos, que lutam
com obstinação para expandir seu poder; movimentos sociais
de massa e de nações, desafiando seus governantes políticos ou
econômicos, lutando por obter algum controle sobre suas vidas;
enfim, dirigindo e manipulando todas as pessoas e instituições,
um mercado capitalista mundial, drasticamente flutuante, em
permanente expansão.”
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Segundo a concepção de Balandier (1991:24-25), a modernidade é produzida
pelo movimento de “uma passagem aos extremos”, ela “embaralha as cartas”, isto é,
ela é desconcertante por tudo aquilo que ela faz surgir de inédito, ao mesmo tempo que
reage ao passado. Ela (a modernidade) faz coexistir formações sociais e culturais de
idades diferentes, porque acelera as mudanças e os processos que regem a vida das
sociedades. Os “geradores de mudança” da ordem social (tecnologia; ciência;
organização; cultura), tornam-se cada vez mais operantes, ao mesmo tempo em que
impõe-se a necessidade de constantemente escolher um dentre os futuros possíveis
(Idem; 1976).
No decorrer do século XX, esse conjunto de circunstâncias que caracterizam a
modernidade assumiram contornos específicos em relação à diferentes nações. De uma
forma geral o capitalismo mundial se expandiu vorazmente e levou as transformações e
os problemas do mundo moderno para os países periféricos, alterando suas estruturas
sócio-culturais. 
No Brasil do final do século XIX e começo do século XX, mais especificamente
na sua Capital Federal, profundas transformações foram realizadas no ambiente urbano.
Abertura de amplas avenidas, derrubada de morros para realização de aterros,
demolição de prédios, transferências de populações para áreas mais afastadas do centro
comercial e financeiro; tudo isso com o objetivo de dar a cidade do Rio de Janeiro uma
imagem dita moderna. É o tempo dos grandes projetos urbanísticos.
 “. . . os grandes alargamentos, rasgos e transformações que
deram ao Centro a cara que tem hoje aconteceram neste
século.” (Torres; 1996:30).
Fleiuss (1928:227), historiador do Instituto Histórico Brasileiro, descrevia o Rio
de Janeiro do final do século passado como um lugar “maravilhoso”, “pintado pelo
próprio Architecto da Natureza”, mas que possuía “ruas estreitas e tortuosas e as
antigas casas de estylo feio e forte”. Do ponto de vista do referido autor, após passar
por todas as reformas, “tantos foram os melhoramentos, que a cidade do Rio de Janeiro
ficou inteiramente transformada, embellezada e saneada”.
O Rio de Janeiro, como nos diz Fleiuss (1928:227-228), com uma população de
811.443 habitantes em 1906 (censo de setembro de 1906), em 1920 atingia a marca de
1.157.873 habitantes (censo de setembro de 1920). Ou seja, de 1906 para 1920 a
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população havia aumentado em 43%. Deste total, 790.874 habitantes residiam na zona
urbana em 81.312 domicílios; 356.874 residiam nos subúrbios, em 48.487 domicílios; e
10.876 residiam a bordo de navios da marinha mercante e da marinha de guerra.
No período de um século, a população total do Rio de Janeiro havia se tornado
dez vezes maior. Somente algumas capitais norte-americanas - New York e Chicago -
realizaram o mesmo feito. Cidades como Paris e Londres, no mesmo período,
multiplicaram a sua população quatro vezes. A cidade do Rio de Janeiro, porém, não
acompanhava o crescimento de sua população, deixando de oferecer serviços básicos ao
seu bem estar. 
A população economicamente ativa (segundo dados do Censo 1920), cerca de
482.365 pessoas (41,6% da população), se distribuía nesta época entre as seguintes
atividades: Indústria - 154.397 (32%); Comércio - 88.306 (18%); Serviços Domésticos -
71.572 (14,9%); Transportes - 44.107 (9,1%); Administração - 35.355 (7,3%);
Exploração do Solo e Subsolo - 30.664 (6,4%); Profissões Liberais - 27.219 (5,6%);
Força Pública - 24.835 (5,2%); Capitalistas e pessoas que viviam de rendimentos -
5.910 (1,2%) .
O número de ruas e edificações também crescia rapidamente. “Em 1922, ao ser
commemorado o primeiro centenário da Independência, as ruas da cidade, que em
1828, eram em numero de 90, attingiram a cerca de 3.000. Em 1920, estavam
edificados 129.632 prédios, contra 84.375 existentes em 1906” (Fleiuss; idem:231). 
A cidade era o principal porto exportador de matérias-primas do país, além de
sede industrial, comercial e bancária. As reformas que seriam realizadas durante as
administrações dos prefeitos Pereira Passos, Amaro Cavalcanti, Paulo de Frontin e
Carlos Sampaio, foram na perspectiva de Fleiuss (idem:226), “as mais fecundas, pela
importancia e extensão das obras emprehendidas e realizadas em período
relativamente exíguo”. Estas obras visavam transformar a estrutura da cidade,
capacitando-a para receber investimentos de capital financeiro internacional que aqui
chegariam na forma de investimentos industriais.
Além de ser considerada “atrasada” para cumprir seu papel na administração
federal, a cidade do Rio de Janeiro era um foco constante de epidemias. As péssimas
condições de moradia de grande parte da população que residia nos cortiços do centro
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constituíam um ambiente propício ao desenvolvimento e à propagação de doenças
infecto-contagiosas.
Desde o ano de 1850, a febre amarela estava presente e matando na cidade do
Rio de Janeiro. Segundo ainda Max Fleiuss (idem:228), a febre amarela aqui chegou à
bordo de um navio americano procedente de Nova Orleans. No exterior, o Rio de
Janeiro se fazia conhecido como uma cidade insalubre e cheia de doenças.
O número de óbitos por febre amarela no Rio de Janeiro no ano de 1894 foi de
4.892 mortes. Esse número permite visualizar um pouco a situação precária das
condições sanitárias da cidade. Em 1903 o número de óbitos por febre amarela já tinha
diminuído para 584 pessoas. No ano de 1909 já não existiam mais mortos por febre
amarela na cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. 
As obras realizadas no início do século na cidade do Rio de Janeiro,
popularmente conhecidas como “bota-abaixo”, tinham como objetivos principais:
“. . . à remodelação do porto da cidade, facilitando seu acesso
pelo prolongamento dos ramaisda Central do Brasil e da
Leopoldina; à abertura da avenida Rodrigues Alves; à
construção da Avenida Central, atual Rio Branco, unindo
diagonalmente, de mar a mar, as partes sul e norte da península
e atravessando o centro comercial e financeiro do Rio, que seria
reconstruído e redefinido funcionalmente como parte das
transformações; a melhoria do acesso à Zona Sul, que se
configura definitivamente como local de moradia das classes
mais prósperas, com a construção da avenida Beira-Mar; a
reforma do acesso à Zona Norte da cidade, assegurada pela
abertura da avenida Mém de Sá e pelo alargamento das ruas
Frei Caneca e Estácio de Sá. Além disso, inúmeras ruas
menores são abertas ou alargadas, a reforma da cidade se
completando com a ampliação dos serviços urbanos, com a
pavimentação da cidade, e com a realização de uma importante
campanha de saneamento e combate epidêmico realizada por
Osvaldo Cruz, conjugada com grandes demolições realizadas
principalmente nos bairros centrais.” (Moura; 1995:47)
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Antônio Torres (1996) também relaciona as principais transformações por que
passou esta região da cidade na primeira metade do século XX. Entre 1903-1906
ocorreu a abertura da avenida Central (atual avenida Rio Branco) com a conseqüente
desapropriação de mais de 600 prédios e o desalojamento de cerca de 14 mil pessoas. É
desse período o surgimento das primeiras favelas na cidade. Durante os anos de 1920-
1921 é derrubado o Morro do Castelo com o objetivo de realizar aterros. Em 1940 se
deu a abertura da avenida Presidente Vargas, onde também são demolidos mais de 600
prédios, tornando-se uma obra rival da avenida Rio Branco. 1955 foi o ano da derrubada
do morro de Santo Antônio. Muitas obras com um único objetivo: tornar o Rio de
Janeiro uma cidade “moderna”, um centro econômico e político atrativo aos
investimentos internacionais. A reforma do centro da cidade estava diretamente
associada com essa idéia de construção e implementação de uma sociedade “moderna”.
A proposta de tornar o Rio de Janeiro uma cidade moderna implicava
necessariamente na expulsão de grande parcela da população que residia no centro da
cidade. População essa percebida como “potencialmente perigosa, . . . eram ladrões,
prostitutas, malandros, desertores do Exército, da Marinha e dos navios estrangeiros,
ciganos, ambulantes, trapeiros, criados, serventes de repartições públicas, ratoeiros,
recebedores de bondes, engraxates, carroceiros, floristas, bicheiros, jogadores,
receptadores, pivetes . . . E, é claro, a figura tipicamente carioca do capoeira . . .
Morando, agindo e trabalhando, na maior parte, nas ruas centrais da Cidade Velha,
tais pessoas eram as que mais compareciam nas estatísticas criminais da época,
especialmente as referentes às contravenções do tipo desordem, vadiagem, embriaguez,
jogo” (Carvalho; 1987:18).
As reformas do Centro do Rio de Janeiro também expressavam o desdém com
que o Governo Republicano concebia a população. Percebida como uma multidão
agitada e propensa a tumultos, “socialmente heterogênea, indisciplinada, dividida por
conflitos internos não podia dar sustentação a um governo que tivesse de representar
as forças dominantes do Brasil agrário” (Idem; 1987:33). O governo se preocupava
especialmente com as possibilidades dessa população vir a mobilizar-se contra ele.
Carvalho (idem:38-39) aponta justamente para essa “outra” cidade que existia
“ao largo do mundo oficial da política”, uma cidade com múltiplas faces, fragmentada,
e que podia ser encontrada nas grandes festas populares ou então nas comunidades
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étnicas, locais ou habitacionais. Dá como exemplo a vida cotidiana dos cortiços, com
suas regras próprias, quase uma “pequena república”, e que não se via integrada em
uma “república maior que abrangesse todos os cidadãos da cidade”.
As reformas que foram feitas acabaram dando à cidade do Rio de Janeiro um ar
de belle époque, de cidade francesa nos trópicos, sonho e desejo da elite local. “Com a
eficiência e rapidez permitidas pelo estilo autoritário e tecnocrático inaugurado pela
República” (Idem; 1987: 40), as reformas foram executadas e a população teve que se
deslocar para áreas mais afastadas do centro da cidade.
O senso comum do século XX recorrentemente estabelece relações entre a
estrutura urbana e o grau de modernidade de uma determinada sociedade. Como aponta
Helena Bomeny (1991:150), as “cidades são expressões de estágios de modernidade.
Se sujas, sinuosas, apertadas, em caracóis (e por que não dizer barrocas?), revelam o
quão distantes podem estar do ideal de infinitude e universalismo próprio dos centros
metropolitanos”.
As mudanças ocorridas na estrutura urbana do Rio de Janeiro eram também uma
forma de apaziguar ânimos contrários à manutenção da capital de uma república que se
pretendia moderna em uma cidade cujo ambiente era percebido pelas elites do país
como “poluído e amoral”. O surgimento de largas avenidas e o desaparecimento dos
cortiços com seus miseráveis habitantes, eram sinais (para essa mesma elite) de que a
“Cidade Maravilhosa” estava se modernizando.
A modernização de uma parte da cidade - Centro e Zona Sul em expansão - de
acordo com padrões da “grande cidade ocidental moderna”, ou seja, das cidades
européias, caminha junto com a favelização de uma outra parte da cidade, que retirada
de seus antigos locais de moradia sobe os morros em torno do Centro, espalha-se pelas
zonas Sul, Norte e Oeste, pelas localidades servidas pela Central do Brasil e pela
Leopoldina, assim como pelo território hoje denominado de Baixada Fluminense.
É deste período o surgimento de uma hierarquização do espaço público que vai
classificar aqueles que sobem os morros ou se deslocam para a periferia em oposição
aos que moram nas partes mais privilegiadas da cidade. Segundo Velloso (1991:126) a
ideologia que surge neste período vem até os dias de hoje, incorporando-se ao nosso
quotidiano de uma maneira tão “natural” que temos dificuldades em percebê-la como
uma elaboração política.
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“Retomando a distinção que opõe alto e baixo, temos ainda um
outro aspecto interessante: a hierarquização do espaço público.
Explicando melhor: constrói-se uma espécie de topografia da
cidade, onde se delimita o espaço a ser ocupado pelo ‘baixo’ e
pelo ‘alto’.”
A população que habita o alto dos morros e áreas periféricas, marginalizada e
discriminada, passa a ser percebida como produtora de um modo de vida que não se
adequa às exigências da modernidade nos trópicos. Suas formas de expressões culturais
serão relacionadas ao “atraso”, ao “corporal”, ao “baixo”, com uma valorização
extremamente negativa. 
“Essa hierarquização do espaço estava diretamente ligada à
oposição que se pretendia estabelecer entre a chamada arte
“espiritual” e a arte “sensorial”. A primeira pertencia ao alto
domínio - incluindo-se aí os artistas e os intelectuais -, enquanto
a segunda era alocada no “baixo”, no puramente corporal, que
diz respeito ao mundo da matéria (pernas, rostos, malícia).”
(idem:127).
Uma outra região que também começava a abrigar essa população praticamente
expulsa de suas casas eram os subúrbios da cidade. A melhoria dos transportes
caminhou junto com a ocupação dessas áreas pela população mais carente. E é ao redor
das estações de trem que se formaram os principais núcleosurbanos da periferia. Sobre
a vida no subúrbio, são de Lima Barreto as palavras do livro “Feiras e Mafuás” citadas
em Moura (1995:59):
“Na vida do subúrbio, a estação da estrada de ferro representa
um grande papel: é o centro, é o eixo dessa vida. . . é em torno
da estação que se aglomeram as principais casas de comércio
do respectivo subúrbio”.
 Os loteamentos multiplicavam-se por toda a periferia, constituindo-se até hoje
no local de moradia para a grande massa de trabalhadores que quotidianamente se
deslocam para seus trabalhos na região do centro da cidade e proximidades.
Nascendo sem um plano urbanístico, a cidade do Rio de Janeiro e mais
particularmente o seu centro passou por diversas transformações até chegar ao aspecto
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que tem hoje em dia. Todas essas transformações se realizaram basicamente atendendo
e correspondendo ao ethos e à visão de mundo das camadas dominantes (profissionais
liberais, intelectuais, políticos, etc).
Se no começo deste século as atenções estavam voltadas para a remodelação da
cidade/capital do Rio de Janeiro, a década de 50 vai ser marcada por uma outra
cidade/capital; a construção de Brasília. Surgindo no meio do planalto central, Brasília,
assim como o Rio de Janeiro anteriormente, mobilizou toda a vida nacional para a
realização de um projeto específico e influenciou as noções básicas e o estilo de vida
nas e das cidades brasileiras. Utopia tornada concreto, Brasília foi a concretização de
um sonho (para uns) e de um pesadelo (para outros).
De qualquer forma a década de 50 ficou gravada na memória coletiva como os
“anos dourados”5. Período associado a um “projeto de crescimento e “modernização”
econômica do país, conhecido como “desenvolvimentismo”” (Gomes; 1991:03). Uma
das pré-condições para a realização de tal projeto, era que tudo aquilo que estivesse
relacionado com as “forças do atraso” fosse sobrepujado. O governo JK, através do seu
Programa de Metas, tinha como objetivo principal modernizar o país principalmente
através da implantação de indústrias de base e de bens de consumo duráveis. 
O projeto desenvolvimentista de JK pretendia também construir uma nova nação
afinada com a modernidade dos países industrializados e contraposta ao seu recente
passado agrário. Essa polarização moderno/tradicional, urbano/rural, vai se infiltrar em
todos os setores da sociedade, permeando os diversos discursos que se produzem sobre
o significado do termo do “nacional”.
O Rio de Janeiro do começo da década de 50 era uma cidade com 2.303.063
habitantes. No começo da década de 60 ela já tinha cerca de 3.307.163 habitantes. Uma
grande parte desta população era composta de migrantes de diversas regiões do país,
atraídos para a cidade grande através da expectativa de “melhorar de vida” (Dias;
1993:72). Apesar de exercer um enorme fascínio sobre a população em geral, com sua
imagem sempre sendo relacionada à “alegria” e ao “movimento” (Dias; idem:72), a
cidade do Rio de Janeiro já era uma metrópole com grandes problemas. O poeta Ferreira
Gullar escrevia em uma crônica sua no ano de 1958: “Os ônibus farfalham, tilintam,
5 Essa expressão nomeou uma novela de enorme audiência no início da década de 90 na qual se pode
perceber as diferentes representações associadas a esse período por parcela significativa da população
urbana carioca. Um período que é caracterizado como sendo de ingênua e radiante esperança no futuro.
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rosnam; bondes chiam e estridem; buzinas, explosões, batidas, apitos - estou em plena
cidade brasileira. Sair de casa cansa mais que trabalhar. Uma cidade de 3 milhões de
habitantes, perdoem o paradoxo, é inabitável” (Ventura; 1994:34).
Os dados sobre a época indicam o aumento populacional das cidades grandes
(Rio de Janeiro e São Paulo principalmente), e o crescimento das indústrias com o
conseqüente aumento de empregos.
“Em 1950, 36% da população viviam nas cidades, a década
terminará com 45% da população aglomerada nas zonas
urbanas. Este processo - industrialização/urbanização - fôra
deflagrado já na década de 40. Entre 1940 e 1950, o aumento
geral de empregos foi de 17%, sendo que o aumento específico
de mão-de-obra industrial foi de quase 80%. Enquanto a
população aumentou em 45%, as indústrias de bens de consumo
no mesmo período tiveram um aumento de 196%. Em 1940,
80% da mão de obra empregada trabalhava na agricultura; em
1950 este número reduziu-se para 72,6%, e a indústria passa
para 18% da mão-de-obra empregada. Estes dados explicitam a
grande virada industrial que se deu no período.” (Dias;
1993:72). 
Apesar do crescimento da indústria e do aumento da mão-de-obra empregada
nessas indústrias, o mercado de trabalho deixava de absorver grande parte da população
que vinha do interior, assim como das novas gerações urbanas. 
“Para uma população ativa que cresceu em cerca de 40%, entre
as décadas de 50 e 60, o número de autônomos aumentou em
65%. Tais dados indicam-nos que as empresas não puderam
absorver o afluxo ao mercado de trabalho urbano” (Dias;
1993:80)
O processo de exclusão social que vimos ocorrer no Rio de Janeiro de fins do
século XIX e começo do século XX, com a expulsão de parcela significativa de sua
população mais carente para áreas afastadas do centro comercial e financeiro da cidade,
é um fenômeno que tem continuidade durante as décadas de 50 e 60. Novas áreas da
periferia do Rio, genericamente conhecidas como Baixada Fluminense, absorvem neste
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período uma população de baixa renda que migrando de diversas regiões do país vem
“tentar a sorte” na cidade grande.
“Grande parte da população do Distrito Federal passa a ser
formada por nordestinos (205.000), mineiros (192.000),
paulistas (47.000), paranaenses (16.000) e migrantes do
próprio Estado (102.108)”. (Dias; 1993:73)
 Esses migrantes habitavam principalmente esta região improvisada que é a
Baixada Fluminense, com falta de serviços básicos para a população (como calçamento,
água, esgotos, luz, educação, segurança). A Baixada Fluminense era uma região de
grandes fazendas produtoras e exportadoras de laranja, que durante e após a segunda
grande guerra entra em crise. A multiplicação de loteamentos clandestinos fez esta
região crescer enorme e desordenadamente, criando uma série de problemas para a
população que aí reside. Considerada como uma das regiões mais pobres e violentas do
país, a Baixada Fluminense tem em 1953 uma população de cerca de 300 mil pessoas,
que se distribuem nos municípios de Duque de Caxias, Nilópolis, Nova Iguaçu, São
João do Meriti e Belford Roxo.
Outras regiões também recebem migrantes: as favelas no alto dos morros que
pontilham os diferentes bairros da cidade. Em 1950 a população das favelas representa
7% da população total do município do Rio; no final da década ela já é mais de 9% da
população total. “A favela é encarada como quisto, algo que deve ser extirpado da
paisagem urbana, e sua população é estigmatizada, vista como marginal e bandida”
(Dias; 1993:78). No ano de 1952 a Comissão Nacional de Bem-Estar Social concluía
que “as favelas constituíam um problema nacional, e deveriam ser vistas a partir de
seu aspecto social, econômico e legal” (Leeds; 1978:205). Apesar disso, já era moda
entre uma certa parcela da classe média e alta subir os morros para se divertir nas rodas
de samba e consultar os “especialistas religiosos” (mães e pais-de-santo) afro-brasileiros
(Teixeira; 1986).
A percepção da violência

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