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J Barrento_A Alma e o Caos_2001_Introdução e Índice

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I
RELÓGIO D’ÁGUA
A ALMA E O CAOS
100 poemas expressionistas
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’S EL E C Ç À.Ô E ■ f R A D^ÇÃ O D E
João Barrento
A Alma e o Caos
100 poemas expressionistas
Selecção, tradução, introdução e notas de
JOÃO BARRENTO
© Relógio D’Água Editores, Junho de 2001
Poesia
io Rebelo, n.° 15
1 Lisboa
SBD-FFLCH-USP 
■■III 4 1 5 2 6 5impressionistas 
io Barrento
Composição e paginação: Relógio D'Água Editores 
Impressão: Rainho & Neves, Lda. / Sta. Maria da Feira 
Depósito Legal n.°: 167026/01
Título: A Alma e o Caos — 100 poemas ex[ 
Selecção, tradução, introdução e notas: Joãc 
Capa: Fernando Mateus
Rua Sylvic
1000-2821
Telef.: 21 8474450 Fax: 21 8470775
Internet: http://www.relogiodagua.pt
mail: relogiodagua@relogiodagua.pt
http://www.relogiodagua.pt
mailto:relogiodagua@relogiodagua.pt
<<^53541 >
Introdução
Nota
DEDALUS - Acervo - FFLCH
■llllllllllll20900202414
A Alma e o Caos — 100 Poemas E 
actualizada e aumentada da antologia 
publiquei em 1978. Para a pre 
ordenação dos poemas, organi; 
expressionista propostos na nova introdução.
Expressionistas é uma versão revista 
gia de poesia expressionista alemã que 
aresente edição foi completamente refeita a 
.lizados agora segundo os núcleos da poesia
A alma e o caos:
Poetas do Expressionismo
Stürz’ein, o Seele, und erwache im Chãos!
Afunda-te, oh alma, e desperta no caos!
(Alfred Mombert)
É preciso ordenar o caos. A «poesia expressionista» é já 
em si um mar, num oceano de correntes e contra-correntes, 
entre 1910 e 1920. Aceitamos o arbitrário das datas, e come­
çamos por limpar o terreno: de nomes laureados então ainda 
vivos (Rilke, Hofmannsthal, George), de vivos não laureados 
(Kafka), de neo-românticos irrecuperáveis para a poesia des­
te século (Hermann Hesse), de puristas e classicistas que se 
marginalizam ou se insurgem contra os «arautos do novo», 
mas navegam na mesma onda crítica (Karl Kraus em Viena), 
de poetas proletários-revolucionários que a Revolução de 
Outubro fará aparecer na cena alemã e, finalmente, dos Da- 
daístas que gritam a morte da arte e metem no mesmo saco, 
a que deliberadamente retiraram o fundo, a burguesia e «os 
Expressionistas».
Não é fácil dispor neste terreno as hostes dos novíssimos 
por volta de 1910. Os dramaturgos expressionistas aprende­
ram com Strindberg a organizar as suas peças em «estações»,
Primeira estação: O fim do mundo
10 11
«De repente ergue-se um corvo a esvoaçar, uma cabeça re­
luzente olha, sombria, por cima da mesa: Jakob van Hoddis. 
Diz os seus versos curtos num tom de desafio e arrogância, 
versos tão nitidamente marcados que poderiamos roubá-los. 
Quadras — inscrições: deviam ser gravadas em moedas num 
Estado poético-social!»2. Estamos em Berlim, em 6 de Julho 
de 1910, no segundo serão literário do recém-fundado «Ca­
baret Neopatético». Lêem-se, entre outros, textos de Nietz- 
sche, Wedekind, Georg Heym, Kurt Hiller (o inventor de um 
«Sensacionisino» alemão muito anterior ao de Pessoa2) e Ja­
kob van Hoddis, pseudônimo anagramático de Hans David- 
sohn, poeta judeu e louco. Entre esses poemas, um, com o tí­
tulo «Fim do mundo», havería de ganhar foros míticos ao ser 
transformado por alguma história literária, e já pelos con-
princípio simultaneamente tectónico e simbólico de que tam- 
^bém podemos lançar mão para ordenar a poesia do chamado 
( «Expressionismo», um conceito estético e epocal de margens 
\ esbatidas e que, na fórmula retrospectiva e irônica de um dos 
seus poetas, Gottfried Benn, é qualquer coisa como «um con- 
) glomerado informe, uma serpente marinha, o monstro de 
í Loch Ness ou uma espécie de Ku-Klux-Klan»1.
As estações que esta Antologia percorre são cinco, e a pri­
meira leva-nos a Berlim, por volta de 1910. Em Portugal nas­
ciam as doutrinas conservadoras do Saudosismo e do Cria- 
cionismo. Pessoa, para quem «moderna» era ainda, nessa al­
tura, a poesia do século XIX, congeminava a reciclagem do 
simbolismo a que chamará «Paulismo», Sá-Cameiro escrevia 
poemas-pastiche, à espera do Sensacionismo das primeiras 
novelas. Como depois diría Almada, o século XX português 
só havia de nascer em 1915.
temporâneos, no «primeiro poema expressionista». Poemas 
como este, e outros que vão aparecendo pela mesma altura 
nas duas revistas que dominam a cena literária (Der Sturm e 
Die Aktion/ de Alfred Lichtenstein ou Emst Blass, ressumam 
novidade, suscitam discussão, provocam escândalo.
Em 1910-11, tais poemas representam um choque estético 
e, na sua desestruturação, dão expressão a uma consciência 
escatológica dominante. É a poesia a que alguns chamam 
«do grotesco» e outros preferem designar de «estilo acumu- 
lativo» (Reihungsstilj, pensando mais numa técnica constru­
tiva que vive da acumulação de imagens díspares. Com esta 
forma de simultaneísmo poético deformador estamos, por as­
sim dizer, no cerne do que se podería chamar, com Georg Lu- 
kács, o «método expressionista»: o universo poético 'f 
configura-se autonomamente como resultado de uma tensão, ’ 
irônica, cáustica ou sombria, entre a consciência da frag­
mentação do real e a necessidade de o reconstituir subjecti- \ c 
vamente numa visão, em lampejos poéticos e fragmentos ab­
surdos que se fundem para criar uma atmosfera, fundar uma ) 
Weltanschauung e definir um estilo inconfundível. A atmosfe- ~ 
raé ada estranheza e alienação do próprio mundo burguês e 
moderno, a mundividência é a de um niilismo radical, o esti­
lo o de uma modernidade poética em que o signo, como diría 
Barthes, ganha peso próprio, renuncia à discursividade e a 
qualquer suporte referencial lógico, e se apresenta «de pé»4.
O novo estilo «expressionista», que a si próprio se não cha-, 
mava ainda assim, irrompe deste modo na Berlim de 1910, 
com a força e a luminosidade de uma visão cósmica e meta­
física, recusando o preciosismo e os clichês simbolistas- 
-decadentes, o subjectivismo momo do neo-romantismo, a 
atomização superficial dos impressionismos e, evidentemente, 
tudo o que soasse a mera descrição ou a resquícios de Natu­
ralismo. Agora, «não se via, intuia-se, não se fotografava, 
tinham-se visões», escreve Kasimir Edschmid num conhecido
Segunda Estação: O grito
pot 
wi^
12 13
apelo ao 
10e 1920
• seguintes verão desenvolver-se em pà
> do sentido ético e existencial ao pr 
jstétiço, o que corroborará as leituras do Expresi
- mo um ideário (Gesinnung) e uma visão do mundo; e a da 
I abstracçãõ, que se estende do «Simultaneísino» dos poetas do 
I grotesco ao experimentalismo proto-concretista do círculo da 
revista Der Sturm (A Tempestade) e que podería legitimar, 
num sentido muito sui generis, as leituras do Expressionismo 
como um estilo (que ele, na sua global idade, não foi).
Dos muitos poetas desta primeira fase berlinense, a maior 
parte deu expressão visionária ao universo preferencial, por 
atracção ou repúdio, dos primeiros anos do Expressionismo 
alemão: o mundo urbano, a cidade mitificada e transfigurada. 
Caberíam aqui, em primeiro lugar muitos poemas de temática 
urbana de Georg Heym, profeta de uma Berlim fantasmagóri­
ca e ameaçadora, autor, não berlinense mas, como depois lhe 
chamaram, «sobre-berlinense surrealista»'’. Heym é um vitalis- 
ta e um intuicionista por atitude, um poeta que a si próprio se 
vê como revolucionário trágico (leiam-se, por exemplo, os Diá­
rios), deixando escorrer os seus versos pelos terrenos contra­
ditórios de uma metafísica nova, servida por um classicismo 
formal que se choca com a força incontrolável de imagens e 
metáforas «irracionais», que transformam em matéria mítica o 
mundo à sua volta, ou também por certos motivos da tradição 
poética, alemã ou não (Hõlderlin, Rimbaud, Verlaine ou Fran- 
cis Jammes seriam aqui referências obrigatórias). Em Heym, a 
força da transfiguração é o que de mais moderno a poesia tem
manifesto de 19186. Causalidade, positivismo, psicologia, ce­
dem o lugar à forma essencial que rejeita o jogo das aparên- 
' cias, ao espírito (Geist) que tudo informa, à palavra que, com 
■ o um dardo, «penetrano interior do objecto e é animizada 
. por ele, cristalinizando-se na própria imagem da coisa»6. Cai 
o acessório, substancializa-se a expressão, e a arte e a litera­
tura encaminham-se progressivamente para uma dupla via, 
- que os anos seguintes verão desenvolver-se em paralelo: a da 
assimilação do sentido ético e existencial ao próprio plano 
ssionismo co-
A negatividade do real favorece e propicia a viragem para 
as utopias, as crenças messiânicas, os profetismos sociais, os 
misticismos humanitaristas. Esta será, na verdade, uma ver­
tente ideologicamente muito forte e representativa, mas poe­
ticamente menos convincente, do Expressionismo. É para aí 
que se orienta o percurso, breve, das duas estações seguintes: 
para o grito da solidariedade e fraternidade universais (em 
poetas como Franz Werfel, Karl Otten, René Schickele, Lud- 
wig Rubiner ou Albert Ehrenstein) e para o gesto utópico do 
apelo — poético, e nisso contraditório — à revolução social 
e política (em muitos autores da fase da guerra, «activistas» 
ou não, como Johannes R. Becher, E. W. Lotz, Rubiner, Ha- 
senclever ou Toller, figura trágica do poeta politicus na Re­
pública dos Conselhos de Munique, em 1918).
O «grito» dos poetas barroquistas da poesia do c 
Homem universal corresponde a um estilo, entre 191(
para oferecer, também em poemas de forma mais livre, como 
aquele em que a Lua, motivo poético tratado e estafado desde 
o pré-romantismo, se vê revitalizado pela sua apropriação ex- 
pressionista, subjectiva, como na pintura de Schmidt-Rottluf, 
Nolde, Marc ou Klee (cf «Cabeça em bico, lá vem...»).
Um outro poeta deste primeiro grupo de Berlim merecería 
mais atenção do que tem recebido: Em st Blass, companheiro 
de leitura de Heym no Cabaret Neopatético, andarilho e ob­
servador da grande metrópole, lugar maldito mas inevitável, 
metaforizado em pedra e essencializado no eterno retomo 
dos seus tipos, irreais e febris, sinais de um espaço sem tem­
po que, por sua vez, será para os poetas expressionistas a 
mais perfeita encarnação simbólica desse seu «tempo sem al­
ma» (veja-se um poema como «Fim...»).
Terceira Estação: Bandeiras ao vento
14 15
a, diferentemente de Werfel, se 
icos», num contexto de confor­
tas da utopia renovadora que, 
assumem como «poetas políticc 
mismo social, de guerra ou, mais tarde, de revolução. Entra­
mos, com eles, na terceira estação, a dos poetas-tribunos, de 
punho erguido e bandeiras ao vento.
A mais aguda contradição da poesia política do Expressio- 
nismo terá sido a do choque fatal — para a poesia e para a 
política —, nela manifesto, entre teoria e prática ou, no pla­
no poético, entre ideologia e linguagem/discurso. As tentati­
vas de politização da estética levarão — para usar a conhe­
cida fórmula de Walter Benjamin — a uma total «estetização 
da política». O modelo «activista» que Kurt Hiller divulga­
ria, a partir de um influente ensaio de Heinrich Mann, como 
sendo o da união entre Espírito e Acção (Geist und TatJ — na 
verdade, sempre mais espírito que acção —, alimenta o ima­
ginário poético-político de uma plêiade de poetas jovens e 
generosos, entre o começo da Grande Guerra e a República 
dos Conselhos de Munique, em 1918-19. O seu suporte lite­
rário mais importante, a revista Die Aktion, fundada já em 
1911, é, ao longo destes anos, um espelho vivo da complexi­
dade e das contradições do Expressionismo político, se aten­
tarmos, quer na heterogeneidade dos seus colaboradores, 
quer na própria evolução política da revista até 1932. A poe­
sia que canta a revolução — e por vezes fá-lo de forma em­
polgante e bela — enreda-se num duplo dilema. Por um lado, 
por exemplo em Johannes R. Becher, quando pretende «su- 
blevar o povo com frases estilhaçadas» (vd. «O poeta evita 
acordes radiosos...»), fazendo entrar em conflito uma inten­
ção que se propõe ser revolucionária e actuante e um enun­
ciado que se serve em alto grau dos meios, ineficazes, da me-
poeticamente retrógrado: o estilo do empolamento patético 
do enunciado, da hipérbole exclamativa, aqui e ali também já 
do estilhaçamento da linguagem, mais como emblema de uma 
emocionalidade desregrada do que espelho de uma consciên­
cia construtiv(ist)a da linguagem, como acontecerá com os 
poetas da última estação. Por isso mesmo o grito ficará, nes­
tes autores, mais como uma atitude ou pose que, poeticamen­
te, não dará frutos. Não se trata aqui — e é bom que se en- 
tenda a diferença — daquele outro grito do conhecido quadro 
( de Edvard Munch, tantas vezes transformado em paradigma 
\ do^Expressionismo», e que assume uma dimensão e uma 
profundidade metafísicas e existenciais (para não falar ago- 
', ra da expressão formal) que têm muito mais a ver com poetas 
/ problematicamente «expressionistas». mas certamente mo- 
\ demos, como Trakl ou Benn.
Franz Werfel, o mais lídimo representante desta outra face 
retórico-religiosa da poesia expressionista, parece ter cons­
ciência do seu lugar histórico, quando escreve a Alma 
Mahler-Werfel: «Tudo seria talvez, de uma outra forma, mais 
original e mais actual, se eu fizesse um esforço para sinteti­
zar e aligeirar, e não me orientasse tanto para o lado episte- 
mológico e sentencioso (...) Mas, graças a Deus, sou um reac- 
cionário estético»6. No contexto dos movimentos modernos, a 
linguagem de Werfel, o seu tom apelativo e a sua intenção 
«salvacionista», transformam os seus primeiros livros de poe­
sia — Der Weltfreund / O Amigo do Mundo (1911), Wir sind 
/Nós somos (1913) e Einander / Uns para os Outros (1915) 
— num evangelho místico de fraternidade e comunhão, fun­
dado na crença última e ingênua de que «o Homem é bom» e 
de que chegou a hora da sua renovação interior. O resultado, 
em termos poéticos, é quase sempre algo confrangedor, como 
no célebre poema de abertura do primeiro livro de Werfel, in­
titulado (com ecos baudelairianos) «Ao Leitor». O tom e o es­
tilo não mudarão muito, nem neste nem em muitos outros poe-
i, a
16 17
< Quarta Estação: Outono, morte e transfiguração
A euforia da revolução política idealizada que aí se ouve 
\ não encontrará eco naquele outro núcleo de poetas, díspares 
/ mas afins, que constitui o momento mais moderno do Expres- 
{ t sionismo, em termos quer poéticos, quer filosóficos. A am- 
\ biência dominante nesses autores —fjêorg Trakl, Emst Sta- 
/ dler, Gottfried Benn, mas também Georg Hêyfnõua judia El- 
í se Lasker-Schüler— será antes disfórica ou, pelo menos, me- 
\ lancólica, elegíaca, outonal.
( Toda a obra de um poeta como Georg Trakl, tecida numa 
trama de motivos simbolicamente recorrentes — a decadên­
cia outonal, a morte, a vida-um-sonho —, transfigura esses
táfora hermética, da abstracção, do desvio à norma gramati­
cal. A outra contradição é a de uma poesia que retoma a 
crença na palavra como instrumento de comunicação e de re­
volução espiritual, num tempo de cepticismo generalizado e 
de niilismo historicamente legitimado, um tempo de guerras e 
revoluções reais. Emst Toller será, durante a Guerra, mas so­
bretudo na revolução de Munique, o grande paradigma des­
sa inexorável conjuntura em que o poeta político se transfor­
ma em poeta trágico.
Mas isso ainda parece estar muito distante de um autor que 
aqui podería servir de modelo para a poesia da revolução 
mais típica do Expressionismo: Emst Wilhelm Lotz e poemas- 
-programa como «Advento da juventude. 1913», em que a re­
volução dessa juventude se processa por um caminho que vai 
da intuição à visão, da série de imagens iniciais, meio «ex- 
pressionistas», meio decadentes, mas de pouco impacto, pas­
sando por fases de tensão e acção «avermelhadas», até à pro- 
jecção utópica e messiânica final, num amanhã «embandei- 
rando em tempestade».
motivos por via sensorial, cromática e auditiva. Trakl é um 
poeta da Áustria-Hungría que se suicida em Novembro de 
1914 na frente Leste, e que representa a mais pura expressão I 
do lirismo no âmbito do chamado «Expressionismo austría- , 
co». Vive atormentado por uma inclinação incestuosa, pelatoxicodependência, pela guerra e pelas misérias do Império, 
mas sobretudo por um sentido religioso, dostoievskiano, da 
existência e da existência poética, que o leva, como poucos / 
antes dele — Hõlderlin, Rimbaud, ou mais tarde Paul Celan 
—, a transformar o espaço do poema numa «casa do ser», I 
num lugar de permanente e desesperado monólogo com o si- \ 
lêncio. Em dois sentidos: o do «silêncio de Deus» que se aba- \ 
teu sobre o mundo deste século (já anunciado por Nietzsche e \ 
mesmo, antes dele, por Kierkegaard), e o daquele outro terrí­
vel e estimulante silêncio instalado no cerne da própria lin­
guagem, acenando do fundo de abismos a que o poeta tem de 
descer, se quiser que o seu dizer se situe para lá do mero fa­
lar desse mesmo mundo. A forma linguística própria desse di­
zer poético nos limites do silêncio é em Trakl a das suas me­
táforas absolutas, que ele põe ao serviço de um universo pur- 
púreo, nocturno ou branco de morte, por vezes demoníaco, 
que encontra correspondências pictóricas contemporâneas 
em Kandinsky, Chagall ou Franz Marc.
Mas o trabalho sobre a linguagem nem sempre é tão radi­
cal e doloroso como em Georg Trakl. Outros casos há, de 
poetas por vezes ainda designados de «pré-expressionistas», 
nos quais se sente a proximidade formal e ambiencial da poe­
sia do Fim-de-Século. É o que acontece, por exemplo, com o 
«pointillisme» impressionista de alguns textos, de temática 
novamente urbana, do alsaciano Emst Stadler, tombado logo 
no primeiro Outono da Guerra, e mais familiarizado do que 
qualquer outro com a poesia francesa e belga desde o Sim­
bolismo. Os poemas de Stadler, de medida longa e de arras­
tada melancolia, a lembrar Cesário Verde, recriam quadros
oníricos,
Quinta Estação: Ritmo
1918
Mas este tom dificilmente se pode manter por muito tempo. 
Logo em 1917, no seu terceiro livro, Benn descobre o reverso 
dessa imagem de cepticismo e cinismo. A palavra abjeccio- 
nista encontra o seu contraponto, para nunca mais o aban­
donar, naquilo a que o próprio autor chama a «palavra meri­
dional» (das südliche Wort): a palavra poética essencial, ou 
as suas correspondências nas projecções utópicas do Sul, do 
corpo, do mar, de um primitivismo anímico, enfim, do azul, a 
cor simbólica dos contramundos do sonho, das nostalgias 
mediterrânicas atávicas, sempre perpassadas, como teria de 
ser num poeta moderno (era assim também em Pessoa), pelo 
espinho doloroso da presença inexorável do intelecto ou do 
peso da metafísica ocidental (vejam-se poemas como «Com­
boio rápido» ou «Cariátide»9).
de meios tons, ambientes urbanos crepusculares, difusos e 
um universo algo feminino, de águas e fluidos, que 
num ou noutro caso ganham também os contornos duros, os 
traços dissonantes e as manchas agressivas de uma cidade 
mais caracterizadamente «expressionista».
Do ghetto londrino de «Bairro judeu em Londres» (Stadler) 
à morgue de Berlim vai o espaço que medeia entre um poeta 
da penumbra, como é Stadler, e a frieza cínica, cortante e to­
talmente desencantada com que Gottfried Benn, poeta de cor­
po inteiro e médico de doenças venéreas, vê a condição huma­
na num tempo de «civilização» e de «progresso». A sua lin­
guagem e a sua agressividade são, entre 1912 e 1917, e em li­
vros como Morgue (7972), Filhos (1913) e Carne (1917), as de 
um verdadeiro estilo abjeccionista: «A coroa da criação, esse 
porco nojento, o Homem...»; «Acham que foi por um tumor 
destes que a terra cresceu, / entre o Sol e a Lua?»; «E falam 
vocês de alma! — O que é a vossa alma» («O médico», 
1917);«O cérebro apodrece como o cu...» («Carne», 1917). É 
o climax de um grito antiburguês e de uma crítica anticiviliza- 
cional muito generalizados, que Gottfried Benn reforça ainda 
com toda uma obra ensaística que assume, na esteira de 
Nietzsche, o niilisino como destino inevitável da cultura oci­
dental para, numa primeira aproximação, reduzir a ideia do 
Homem à sua própria negação: a mera existência biológica, 
no ciclo fatal e fecal de vida e morte, êxtase e decomposição, 
despido de toda a dignidade e de toda a metafísica. Para Benn, 
a Europa inteira é, nos começos do século, uma gigantesca 
morgue, ou um bordel em que se escarnece do espírito, a «rea­
lidade» não tem consistência, o mundo afunda-se no arrega- 
nhar de dentes alarve do burguês (para George Grosz o «Ros­
to da classe dominante»), tal como a pequena flor se afunda no 
sangue do carroceiro autopsiado em «Pequena sécia» e os res­
tos do que foi «o Homem» celebram macabramente a orgia do 
seu próprio «Requiem», no poema com este título.
As fronteiras entre as várias tendências estéticas são pou­
co nítidas no Expressionismo. Mas há neste movimento lite­
rário alemão uma ilha que, a partir de 1914, emerge com 
contornos poéticos e teóricos bem definidos nas páginas da 
revista Der Sturm. O nome desta publicação, farol da van­
guarda berlinense a partir de 1910, vem, ao que parece, de 
Else Lasker-Schüler, primeira mulher de Herwarth Walden, 
director da revista, da galeria e da editora com o mesmo no­
me, e grande divulgador da pintura moderna (incluindo os 
Fauves e cubistas franceses, os futuristas italianos, o nosso 
Amadeu e, evidentemente, os alemães e eslavos que vêm da 
«Brücke» e do «Blauer Reiter» e mais tarde integrarão a 
«Bauhaus»). A poética deste círculo de Berlim recebe um no­
me nas páginas da revista — Wortkunst, a arte da palavra —, 
os seus produtos são designados de Wortkunstwerk, obra de 
arte verbal, e o seu poeta maior será August Stramm, a par
João Barrento
21
20
de outros, menos presentes e conhecidos: Lothar Schreyer, 
Otto Nebel, Rudolf Blümner e ainda o dadaísta Kurt Schwit- 
ters. Aqui, tal como na pintura e na teoria estética de Kan­
dinsky, e depois na poesia fonética e concreta de Dada e da 
actualidade, o elemento da linguagem poética que merece to­
da a atenção é o ritmo.
Nas duas colectâneas de poesü 
livro — Du. Liebesgedichte /Tu. 
Tropfblut / Sanguegota (1919) — o trai* 
redução da estrutura frásica aos seus e 
à palavra em si, para fazer uma poe 
realidades conceptuais nem mundividências — na verdade, 
não «comunica» já coisa nenhuma —, mas procura, através 
da densidade verbal e da qualidade rítmica, criar uma at­
mosfera de tensão, erótica nos primeiros poemas, e de ame- 
ça, destruição e morte nos poemas de guerra.
«Cada obra da Sturm é um texto mistério», dizia um dos 
seus autores (Schreyer). A teoria da Wortkunst (arte da pala­
vra) é uma teoria rítmico-concretista, de teor intuicionista, 
cujo paralelo mais evidente se encontra no conceito de «rit­
mo interior» que Kandinsky desenvolve em Über das Geistige 
in der Kunst (Do Espiritual na Arte). Por sua vez, o pintor pa­
rece ir beber — como muita desta teorização literária — ao 
influente livro do historiador da arte Wilhelm Worringer Abs- 
traktion und Einfühlung (Abstracção e Empatia), publicado 
já em 1908 (tanto Worringer como Kandinsky são, aliás, co­
laboradores da revista Der Sturm). A fórmula, aparentemen­
te óbvia e tautológica, de Herwarth Walden «A arte da poe­
sia é a arte da palavra» (Dichtkunst ist Wortkunst) deve 
tomar-se à letra para ser cabalmente entendida. Ela exclui 
realmente da poesia, quer a expressão de idéias, quer o der­
rame emocional discursivo, para a fazer regressar às suas 
raízes mágico-rítmico-verbais. Os três elementos fundamen­
tais da obra poética (e, por extensão, da arte em geral) serão
agora: o ritmo, projecção da visão interior, que assume em 
cada obra características próprias e vive da exploração dos 
valores musicais, associativos e simbólicos da palavra isola­
da; a imagem sonora (Klangbild) sobre a qual se constrói ba­
sicamente o universo expressivo do poema; e a imagem da 
palavra (Wortbild), ou seja o equivalente óptico ou acústico 
da visão interior.
Stramm escrevia a Walden, da frente Leste da Guerra, pou­
co antes de morrer:«Faltam-me sempre as palavras». Mas 
por detrás da depuração da linguagem e do aparente abs- 
traccionismo formal de muitos dos poemas de Tropfblut,como no exemplo radical de «Urtod/Primamors», esconde-se 
a experiência humana de todas as guerras e da morte de sem­
pre. Este será um exemplo que poderia documentar os limi­
tes da poesia (quase) nos limites da linguagem. Mas o 
Expressionismo iria, neste plano, ultrapassar-se a si próprio, 
já a partir de 1917-18. Nas páginas e nos serões literários da 
revista berlinense, com os «poemas absolutos» (isto é, con­
cretos) de Rudolf Blümner, chegar-se-á à dessemantização 
total da linguagem, ao ritmo puro de uma língua desco­
nhecida, primitiva e de sugestões africanas, como nos cânti­
cos negros ou nos poemas ditos por Hugo Bali, Tzara, Janko 
e Huelsenbeck no «Cabaret Voltaire» de Zurique em 1916-17 
(nestes anos existe, aliás, uma estreita relação entre o círcu­
lo da Sturm em Berlim e os dadaístas em Zurique). Estamos 
perante uma poesia já propriamente fonética, contemporâ­
nea da mítica Ursonate (a «sonata em sons primitivos») de 
Schwitters, como se pode ver no último texto, um excerto do 
longo poema que Blümner leu na galeria da revista de Ber­
lim, e a que dá o título, com ecos luso-africanos, de «Ango 
laína».
lesia de Stramm publicadas em 
ui. Poemas de Amor (1915) e 
iço mais notório é o da 
elementos essenciais e 
tesia que não comunica
NOTAS
TEXTOS
22
I
: esta In- 
não, Lis-
e der 
/Ber-
zefühl»
Raabe
1 Expressionismus» (Sobre o ex- 
imeiros Manifestos), Darmstadt
Neopaté- 
ts e Outra
g und Lebensgc
Sncia), in: Paul I
• Zeitgenossen (Ex-
s), Olten/ Freiburg
ção a Lyrik des expressionistischen Jahrzehnts (Poe- 
), Munique (dtv) 1962, p. 9. Para uma discussão mais 
histérica e literária do Expressionismo, que e
, ver: J. Barrento, A Poesia do Expressionismo Alemc
1 Gottfried Benn, Inlroduçã 
sia do decênio expressionista), 
alargada da contextualização históric 
trodução não comporta. ■ 
boa (Presença) 1989.
2 Else Lasker-Schüler. «Im Neopathetischen Kabarett» (No Cabaret h 
tico), in: Der Prinz von Theben und andere Prosa (O Príncipe de Tebas 
Prosa), Munique (dtv) 1986, p. 190.
3 Cf. J. Barrento, «Ismos em convergência, ou: o sensacionismo português fa­
la alemão?», in: J.B., O Espinho de Sócrates. Expressionismo e Modernismo, Lis­
boa (Presença) 1987, pp. 51-83.
4 Roland Banhes, «Y a-t-il une écriture poétique?», in: Le degré zíro de l'écri- 
ture, Paris (Seuil) 1972, p. 37.
5 Kasimir Edschmid, «Über den dichterischen 
pressionismo poético), in: Friihe Manifeste (Prir 
(Luchterhand) 1960, p. 31.
6 ld„ ibid.
7 Heinrich Eduard Jacob, «Berlin — Vorkriegsdichtung 
(Berlim — Poesia de antes da guerra e sentimento da existêm 
(Ed.), Expressionismus. Aufzeichnungen und Erinnerungen der z 
pressionismo. Impressões e Recordações dos Contemporâneos) 
(Walter Verlag) 1965, p. 17.
8 Franz Werfel, carta a Alma Mahler-Werfel, Outono de 1920, in: Briefe 
Expressionisten (Cartas dos Expressionistas), ed. por K. Edschmid, Frankfurt/E 
lim (Ullstein) 1964, p. 14.
9 Sobre esta problemática em G. Benn e Pessoa, ver: J. Barrento, O Espinho de 
Sócrates.
índice
9
TEXTOS
Ante-estação: Programas
27
33
35
37
Primeira Estação: Fim do mundo
47
41
43
45
29
31
INTRODUÇÃO
João Barrento, A alma e o caos
Jakob van Hoddis
Fim do mundo {Weltende)
O visiotário {Der Visionarr)
Animatógrafo {Kinematograph)
Paul Scheerbart
Sons nocturnos {Abendíõne)
Franz Werfel
Ao Leitor {An den Leser)
Ernst Stadler
A sentença {Der Spruch)
Forma é volúpia {Fonn ist Wollust)
Alfred Wolfenstein
A felicidade da comunicação {Glück der Ãufierung) 
Johannes R. Becher
A nova sintaxe {Die neue Syntax)
Wilhelm Klemm
Programa {Programm)
53
115
Terceira Estação: Bandeiras ao vento
143
Segunda Estação: O grito
147
75
81
83
Quarta Estação: Outono, morte e transfiguração
85
89
93
187
335334
103
105
97
99
77
79
65
67
71
59
61
63
55
57
i (Hymne auf Rosa Luxemburg) 
Aufruhr)
159
163
171
179
181
183
185
189
195
123
125
131
107
10949
51
151
155
111
113
’0 à tarde (Sonntagn 
líiO do manicômio I (
a ponte sobre o Reno em Colônia 
jlner Rheinbríicke bei Nacht)
Ernst Stadler
Lover’s seat (Lover's seat)
A partida (Der Aufbruch)
Bairro judeu em Londres (Judenviertel in Londori)
Verão (Sommer)
Passagem nocturna da
(Fahrt über die KôL
Georg Heym
Ofélia (Ophelia)
As tuas pestanas, as longas... (Deine Wimpern, die langen...)
Erich Mühsam
O revolucionista (Der Revoluzzer)
Ernst Wilhelm Lotz
Advento da juventude. 1913 (Aufbruch derJugend. 1913) 
Walter Hasenclever
O poeta político (Der politische Dichter) [Fragmento]
A ressurreição de Jaurès (Jaurès' Auferstehung)
Johannes R. Becher
O poeta evita acordes radiosos... (Der Dichter ineidet
strahlende Akkorde...)
Hino a Rosa Luxemburgo (1
O eterno motim (Ewig im Ai
Despertar! (Auf!)
O poeta e a guerra (Der Dichter und der Krieg)
Rudolf Leonhard
Um morteiro (Ein Schrapnell)
Liebknecht morto (Der tote Liebknecht)
Iwan Goll
O canal do Panamá (Der Panamakanal)
Recitativo do Requiem para os caídos da Europa (1917) 
(Rezitativ aus dem Requiem fiir die Gefallenen Europas. 
1917)
Lua (Mond)
O novo Orfeu (Der neue Orpheus)
Ernst Blass
A donzela (Die Jungfrau)
Fim... (Ende...)
Alfred Wolfenstein
Citadinos (Stddter)
Paul Boldt
No terraço do Café Josty (Auf der Terrasse des Café Josty)
A mulher-amante (Die Liebesfrau)
Alfred Lichtenstein
O crepúsculo (Die Dàmmerung)
Domingo à tarde (Sonntagnachmittag)
A caminho do manicômio I (Die Fahrt nach der Irrenanstalt I) 
Georg Heym
O deus da cidade (Der Gott der Stadt)
Umbra vitae (Umbra vitae)
A casa da Letônia (Das Lettehaus)
Wilhelm Klemm
O meu tempo (Meine Zeit) 
Franz Werfel
O Homem belo e radiante... (Der schõne, strahlende Mensch)
Quando o teu andar... (Ais mich Dein Wandeln...)
Kurt Heynicke
Homem (Meu
René Schickele
Pentecostes (Pfingsterí)
Ludwig Rubiner
A chegada (Die Ankunft) [Fragmento]
Karl Otten
Trabalhador! (Arbeiter!) [Fragmento]
Johannes R. Becher
Homem, ergue-te! (Mensch, stehe auf!) [Fragmento]
Paul Zech
Rua industrial, de dia (Fabrikstrafie tags)
Café (Café)
Albert Ehrenstein
Sofrimento (Leid)
Grito humano (Der Mensch schreit)
Quinta Estação: Ritmo
çegnung)
297
301
303Biobibliografias dos poetas
327Bibliografia (Antologias de poesia expressionista)
329índice de títulos e primeiras linhas (Alemão)
1
R$
337
336
/ilhão das cancerosas 
i die Krebsbaracke)
199
201
203
243
245
247
249
251
253
255
257
259
261
263
265
267
269
291
293
295
273
275
277
279
281
283
285
287
205
207
209
211
213
215
227)
223
225
227
229
231
233
237
239
241
E os cornos do Verão emudeceram... (Und die Hôrner des
Sommers verstuinmten...)
Meio sono (Halber Schlaf)
~ ibeça em bico, lá vem... (Spitzkõpfig konnnt er...)
g Trakl
Bib. F
' Aquisição: Doação
I Proc. 2014/15904-5
N.F. 001279990
SBD/FFLCH/USP
Tombo: 415265 
Verba: FAPESP
XULTURA_________
62,50 01/08/2019
August Stramm
Bordel (Freudenhaus)
Infiel (Untreu)
Melancolia (Schwennut)
Flor em botão (Bliite)
Encontro (Begt
Jogo (Spiel)
Patrulha (Patrouille)
Primamors (Urtod)
Kurt Heynicke
Despedida (Abschied)
Posto de observação (Beobachtungsstand)
Canção sombria (Dunkles Lied)
Kurt Liebmann
Sob paisagem nocturna (Unter nàchtliche Landschafi) 
Rudolf Blümner
Ango laína (Ango laina) (Fragmento]
Cat
Georg 1
Rondei (Rondei)
Melancolia (Melancholie)
De profundis (De profundis)
Decadência (Untergang)
Aos emudecidos (An die Verstununten)
Sebastião em sonho (Sebastian im Traum)
O Outono do solitário (Der Herbst des Einsanien
No Outono (hn Herbst)
Os girassóis (Die Sonnenblumen)
Um murmúrio pela tarde (In den Nachtnittag gefliistert)
O sol (Die Sonne)
Vento sul (Fõhn)
Ocidente (Abendland)
Canto do desterrado (Gesang des Abgeschiedenen)
Lamento (Klage)
Grodek (Grodek)
Else Lasker-Schüler
Fim do mundo (Weltende)
O meu povo (Mein Volk)
Despedida (Abschied)
Uma canção (Ein Lied)
Gottfried Benn
Pequena sécia (Kleine Aster)
Bela juventude (Schõne Jugend)
Ciclo (Kreislauf)
Homem e mulher visitam o pavi
(Mann und Frau gehn durch .
Requiem (Requiem)
Comboio rápido (D-Zug)
Cânticos (Gesange)
Metropolitano (Untergrundbahn)
Cariátide(Karyatide)
Síntese (Synthese)

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