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I RELÓGIO D’ÁGUA A ALMA E O CAOS 100 poemas expressionistas 1 1 'í li<:l u ’S EL E C Ç À.Ô E ■ f R A D^Çà O D E João Barrento A Alma e o Caos 100 poemas expressionistas Selecção, tradução, introdução e notas de JOÃO BARRENTO © Relógio D’Água Editores, Junho de 2001 Poesia io Rebelo, n.° 15 1 Lisboa SBD-FFLCH-USP ■■III 4 1 5 2 6 5impressionistas io Barrento Composição e paginação: Relógio D'Água Editores Impressão: Rainho & Neves, Lda. / Sta. Maria da Feira Depósito Legal n.°: 167026/01 Título: A Alma e o Caos — 100 poemas ex[ Selecção, tradução, introdução e notas: Joãc Capa: Fernando Mateus Rua Sylvic 1000-2821 Telef.: 21 8474450 Fax: 21 8470775 Internet: http://www.relogiodagua.pt mail: relogiodagua@relogiodagua.pt http://www.relogiodagua.pt mailto:relogiodagua@relogiodagua.pt <<^53541 > Introdução Nota DEDALUS - Acervo - FFLCH ■llllllllllll20900202414 A Alma e o Caos — 100 Poemas E actualizada e aumentada da antologia publiquei em 1978. Para a pre ordenação dos poemas, organi; expressionista propostos na nova introdução. Expressionistas é uma versão revista gia de poesia expressionista alemã que aresente edição foi completamente refeita a .lizados agora segundo os núcleos da poesia A alma e o caos: Poetas do Expressionismo Stürz’ein, o Seele, und erwache im Chãos! Afunda-te, oh alma, e desperta no caos! (Alfred Mombert) É preciso ordenar o caos. A «poesia expressionista» é já em si um mar, num oceano de correntes e contra-correntes, entre 1910 e 1920. Aceitamos o arbitrário das datas, e come çamos por limpar o terreno: de nomes laureados então ainda vivos (Rilke, Hofmannsthal, George), de vivos não laureados (Kafka), de neo-românticos irrecuperáveis para a poesia des te século (Hermann Hesse), de puristas e classicistas que se marginalizam ou se insurgem contra os «arautos do novo», mas navegam na mesma onda crítica (Karl Kraus em Viena), de poetas proletários-revolucionários que a Revolução de Outubro fará aparecer na cena alemã e, finalmente, dos Da- daístas que gritam a morte da arte e metem no mesmo saco, a que deliberadamente retiraram o fundo, a burguesia e «os Expressionistas». Não é fácil dispor neste terreno as hostes dos novíssimos por volta de 1910. Os dramaturgos expressionistas aprende ram com Strindberg a organizar as suas peças em «estações», Primeira estação: O fim do mundo 10 11 «De repente ergue-se um corvo a esvoaçar, uma cabeça re luzente olha, sombria, por cima da mesa: Jakob van Hoddis. Diz os seus versos curtos num tom de desafio e arrogância, versos tão nitidamente marcados que poderiamos roubá-los. Quadras — inscrições: deviam ser gravadas em moedas num Estado poético-social!»2. Estamos em Berlim, em 6 de Julho de 1910, no segundo serão literário do recém-fundado «Ca baret Neopatético». Lêem-se, entre outros, textos de Nietz- sche, Wedekind, Georg Heym, Kurt Hiller (o inventor de um «Sensacionisino» alemão muito anterior ao de Pessoa2) e Ja kob van Hoddis, pseudônimo anagramático de Hans David- sohn, poeta judeu e louco. Entre esses poemas, um, com o tí tulo «Fim do mundo», havería de ganhar foros míticos ao ser transformado por alguma história literária, e já pelos con- princípio simultaneamente tectónico e simbólico de que tam- ^bém podemos lançar mão para ordenar a poesia do chamado ( «Expressionismo», um conceito estético e epocal de margens \ esbatidas e que, na fórmula retrospectiva e irônica de um dos seus poetas, Gottfried Benn, é qualquer coisa como «um con- ) glomerado informe, uma serpente marinha, o monstro de í Loch Ness ou uma espécie de Ku-Klux-Klan»1. As estações que esta Antologia percorre são cinco, e a pri meira leva-nos a Berlim, por volta de 1910. Em Portugal nas ciam as doutrinas conservadoras do Saudosismo e do Cria- cionismo. Pessoa, para quem «moderna» era ainda, nessa al tura, a poesia do século XIX, congeminava a reciclagem do simbolismo a que chamará «Paulismo», Sá-Cameiro escrevia poemas-pastiche, à espera do Sensacionismo das primeiras novelas. Como depois diría Almada, o século XX português só havia de nascer em 1915. temporâneos, no «primeiro poema expressionista». Poemas como este, e outros que vão aparecendo pela mesma altura nas duas revistas que dominam a cena literária (Der Sturm e Die Aktion/ de Alfred Lichtenstein ou Emst Blass, ressumam novidade, suscitam discussão, provocam escândalo. Em 1910-11, tais poemas representam um choque estético e, na sua desestruturação, dão expressão a uma consciência escatológica dominante. É a poesia a que alguns chamam «do grotesco» e outros preferem designar de «estilo acumu- lativo» (Reihungsstilj, pensando mais numa técnica constru tiva que vive da acumulação de imagens díspares. Com esta forma de simultaneísmo poético deformador estamos, por as sim dizer, no cerne do que se podería chamar, com Georg Lu- kács, o «método expressionista»: o universo poético 'f configura-se autonomamente como resultado de uma tensão, ’ irônica, cáustica ou sombria, entre a consciência da frag mentação do real e a necessidade de o reconstituir subjecti- \ c vamente numa visão, em lampejos poéticos e fragmentos ab surdos que se fundem para criar uma atmosfera, fundar uma ) Weltanschauung e definir um estilo inconfundível. A atmosfe- ~ raé ada estranheza e alienação do próprio mundo burguês e moderno, a mundividência é a de um niilismo radical, o esti lo o de uma modernidade poética em que o signo, como diría Barthes, ganha peso próprio, renuncia à discursividade e a qualquer suporte referencial lógico, e se apresenta «de pé»4. O novo estilo «expressionista», que a si próprio se não cha-, mava ainda assim, irrompe deste modo na Berlim de 1910, com a força e a luminosidade de uma visão cósmica e meta física, recusando o preciosismo e os clichês simbolistas- -decadentes, o subjectivismo momo do neo-romantismo, a atomização superficial dos impressionismos e, evidentemente, tudo o que soasse a mera descrição ou a resquícios de Natu ralismo. Agora, «não se via, intuia-se, não se fotografava, tinham-se visões», escreve Kasimir Edschmid num conhecido Segunda Estação: O grito pot wi^ 12 13 apelo ao 10e 1920 • seguintes verão desenvolver-se em pà > do sentido ético e existencial ao pr jstétiço, o que corroborará as leituras do Expresi - mo um ideário (Gesinnung) e uma visão do mundo; e a da I abstracçãõ, que se estende do «Simultaneísino» dos poetas do I grotesco ao experimentalismo proto-concretista do círculo da revista Der Sturm (A Tempestade) e que podería legitimar, num sentido muito sui generis, as leituras do Expressionismo como um estilo (que ele, na sua global idade, não foi). Dos muitos poetas desta primeira fase berlinense, a maior parte deu expressão visionária ao universo preferencial, por atracção ou repúdio, dos primeiros anos do Expressionismo alemão: o mundo urbano, a cidade mitificada e transfigurada. Caberíam aqui, em primeiro lugar muitos poemas de temática urbana de Georg Heym, profeta de uma Berlim fantasmagóri ca e ameaçadora, autor, não berlinense mas, como depois lhe chamaram, «sobre-berlinense surrealista»'’. Heym é um vitalis- ta e um intuicionista por atitude, um poeta que a si próprio se vê como revolucionário trágico (leiam-se, por exemplo, os Diá rios), deixando escorrer os seus versos pelos terrenos contra ditórios de uma metafísica nova, servida por um classicismo formal que se choca com a força incontrolável de imagens e metáforas «irracionais», que transformam em matéria mítica o mundo à sua volta, ou também por certos motivos da tradição poética, alemã ou não (Hõlderlin, Rimbaud, Verlaine ou Fran- cis Jammes seriam aqui referências obrigatórias). Em Heym, a força da transfiguração é o que de mais moderno a poesia tem manifesto de 19186. Causalidade, positivismo, psicologia, ce dem o lugar à forma essencial que rejeita o jogo das aparên- ' cias, ao espírito (Geist) que tudo informa, à palavra que, com ■ o um dardo, «penetrano interior do objecto e é animizada . por ele, cristalinizando-se na própria imagem da coisa»6. Cai o acessório, substancializa-se a expressão, e a arte e a litera tura encaminham-se progressivamente para uma dupla via, - que os anos seguintes verão desenvolver-se em paralelo: a da assimilação do sentido ético e existencial ao próprio plano ssionismo co- A negatividade do real favorece e propicia a viragem para as utopias, as crenças messiânicas, os profetismos sociais, os misticismos humanitaristas. Esta será, na verdade, uma ver tente ideologicamente muito forte e representativa, mas poe ticamente menos convincente, do Expressionismo. É para aí que se orienta o percurso, breve, das duas estações seguintes: para o grito da solidariedade e fraternidade universais (em poetas como Franz Werfel, Karl Otten, René Schickele, Lud- wig Rubiner ou Albert Ehrenstein) e para o gesto utópico do apelo — poético, e nisso contraditório — à revolução social e política (em muitos autores da fase da guerra, «activistas» ou não, como Johannes R. Becher, E. W. Lotz, Rubiner, Ha- senclever ou Toller, figura trágica do poeta politicus na Re pública dos Conselhos de Munique, em 1918). O «grito» dos poetas barroquistas da poesia do c Homem universal corresponde a um estilo, entre 191( para oferecer, também em poemas de forma mais livre, como aquele em que a Lua, motivo poético tratado e estafado desde o pré-romantismo, se vê revitalizado pela sua apropriação ex- pressionista, subjectiva, como na pintura de Schmidt-Rottluf, Nolde, Marc ou Klee (cf «Cabeça em bico, lá vem...»). Um outro poeta deste primeiro grupo de Berlim merecería mais atenção do que tem recebido: Em st Blass, companheiro de leitura de Heym no Cabaret Neopatético, andarilho e ob servador da grande metrópole, lugar maldito mas inevitável, metaforizado em pedra e essencializado no eterno retomo dos seus tipos, irreais e febris, sinais de um espaço sem tem po que, por sua vez, será para os poetas expressionistas a mais perfeita encarnação simbólica desse seu «tempo sem al ma» (veja-se um poema como «Fim...»). Terceira Estação: Bandeiras ao vento 14 15 a, diferentemente de Werfel, se icos», num contexto de confor tas da utopia renovadora que, assumem como «poetas políticc mismo social, de guerra ou, mais tarde, de revolução. Entra mos, com eles, na terceira estação, a dos poetas-tribunos, de punho erguido e bandeiras ao vento. A mais aguda contradição da poesia política do Expressio- nismo terá sido a do choque fatal — para a poesia e para a política —, nela manifesto, entre teoria e prática ou, no pla no poético, entre ideologia e linguagem/discurso. As tentati vas de politização da estética levarão — para usar a conhe cida fórmula de Walter Benjamin — a uma total «estetização da política». O modelo «activista» que Kurt Hiller divulga ria, a partir de um influente ensaio de Heinrich Mann, como sendo o da união entre Espírito e Acção (Geist und TatJ — na verdade, sempre mais espírito que acção —, alimenta o ima ginário poético-político de uma plêiade de poetas jovens e generosos, entre o começo da Grande Guerra e a República dos Conselhos de Munique, em 1918-19. O seu suporte lite rário mais importante, a revista Die Aktion, fundada já em 1911, é, ao longo destes anos, um espelho vivo da complexi dade e das contradições do Expressionismo político, se aten tarmos, quer na heterogeneidade dos seus colaboradores, quer na própria evolução política da revista até 1932. A poe sia que canta a revolução — e por vezes fá-lo de forma em polgante e bela — enreda-se num duplo dilema. Por um lado, por exemplo em Johannes R. Becher, quando pretende «su- blevar o povo com frases estilhaçadas» (vd. «O poeta evita acordes radiosos...»), fazendo entrar em conflito uma inten ção que se propõe ser revolucionária e actuante e um enun ciado que se serve em alto grau dos meios, ineficazes, da me- poeticamente retrógrado: o estilo do empolamento patético do enunciado, da hipérbole exclamativa, aqui e ali também já do estilhaçamento da linguagem, mais como emblema de uma emocionalidade desregrada do que espelho de uma consciên cia construtiv(ist)a da linguagem, como acontecerá com os poetas da última estação. Por isso mesmo o grito ficará, nes tes autores, mais como uma atitude ou pose que, poeticamen te, não dará frutos. Não se trata aqui — e é bom que se en- tenda a diferença — daquele outro grito do conhecido quadro ( de Edvard Munch, tantas vezes transformado em paradigma \ do^Expressionismo», e que assume uma dimensão e uma profundidade metafísicas e existenciais (para não falar ago- ', ra da expressão formal) que têm muito mais a ver com poetas / problematicamente «expressionistas». mas certamente mo- \ demos, como Trakl ou Benn. Franz Werfel, o mais lídimo representante desta outra face retórico-religiosa da poesia expressionista, parece ter cons ciência do seu lugar histórico, quando escreve a Alma Mahler-Werfel: «Tudo seria talvez, de uma outra forma, mais original e mais actual, se eu fizesse um esforço para sinteti zar e aligeirar, e não me orientasse tanto para o lado episte- mológico e sentencioso (...) Mas, graças a Deus, sou um reac- cionário estético»6. No contexto dos movimentos modernos, a linguagem de Werfel, o seu tom apelativo e a sua intenção «salvacionista», transformam os seus primeiros livros de poe sia — Der Weltfreund / O Amigo do Mundo (1911), Wir sind /Nós somos (1913) e Einander / Uns para os Outros (1915) — num evangelho místico de fraternidade e comunhão, fun dado na crença última e ingênua de que «o Homem é bom» e de que chegou a hora da sua renovação interior. O resultado, em termos poéticos, é quase sempre algo confrangedor, como no célebre poema de abertura do primeiro livro de Werfel, in titulado (com ecos baudelairianos) «Ao Leitor». O tom e o es tilo não mudarão muito, nem neste nem em muitos outros poe- i, a 16 17 < Quarta Estação: Outono, morte e transfiguração A euforia da revolução política idealizada que aí se ouve \ não encontrará eco naquele outro núcleo de poetas, díspares / mas afins, que constitui o momento mais moderno do Expres- { t sionismo, em termos quer poéticos, quer filosóficos. A am- \ biência dominante nesses autores —fjêorg Trakl, Emst Sta- / dler, Gottfried Benn, mas também Georg Hêyfnõua judia El- í se Lasker-Schüler— será antes disfórica ou, pelo menos, me- \ lancólica, elegíaca, outonal. ( Toda a obra de um poeta como Georg Trakl, tecida numa trama de motivos simbolicamente recorrentes — a decadên cia outonal, a morte, a vida-um-sonho —, transfigura esses táfora hermética, da abstracção, do desvio à norma gramati cal. A outra contradição é a de uma poesia que retoma a crença na palavra como instrumento de comunicação e de re volução espiritual, num tempo de cepticismo generalizado e de niilismo historicamente legitimado, um tempo de guerras e revoluções reais. Emst Toller será, durante a Guerra, mas so bretudo na revolução de Munique, o grande paradigma des sa inexorável conjuntura em que o poeta político se transfor ma em poeta trágico. Mas isso ainda parece estar muito distante de um autor que aqui podería servir de modelo para a poesia da revolução mais típica do Expressionismo: Emst Wilhelm Lotz e poemas- -programa como «Advento da juventude. 1913», em que a re volução dessa juventude se processa por um caminho que vai da intuição à visão, da série de imagens iniciais, meio «ex- pressionistas», meio decadentes, mas de pouco impacto, pas sando por fases de tensão e acção «avermelhadas», até à pro- jecção utópica e messiânica final, num amanhã «embandei- rando em tempestade». motivos por via sensorial, cromática e auditiva. Trakl é um poeta da Áustria-Hungría que se suicida em Novembro de 1914 na frente Leste, e que representa a mais pura expressão I do lirismo no âmbito do chamado «Expressionismo austría- , co». Vive atormentado por uma inclinação incestuosa, pelatoxicodependência, pela guerra e pelas misérias do Império, mas sobretudo por um sentido religioso, dostoievskiano, da existência e da existência poética, que o leva, como poucos / antes dele — Hõlderlin, Rimbaud, ou mais tarde Paul Celan —, a transformar o espaço do poema numa «casa do ser», I num lugar de permanente e desesperado monólogo com o si- \ lêncio. Em dois sentidos: o do «silêncio de Deus» que se aba- \ teu sobre o mundo deste século (já anunciado por Nietzsche e \ mesmo, antes dele, por Kierkegaard), e o daquele outro terrí vel e estimulante silêncio instalado no cerne da própria lin guagem, acenando do fundo de abismos a que o poeta tem de descer, se quiser que o seu dizer se situe para lá do mero fa lar desse mesmo mundo. A forma linguística própria desse di zer poético nos limites do silêncio é em Trakl a das suas me táforas absolutas, que ele põe ao serviço de um universo pur- púreo, nocturno ou branco de morte, por vezes demoníaco, que encontra correspondências pictóricas contemporâneas em Kandinsky, Chagall ou Franz Marc. Mas o trabalho sobre a linguagem nem sempre é tão radi cal e doloroso como em Georg Trakl. Outros casos há, de poetas por vezes ainda designados de «pré-expressionistas», nos quais se sente a proximidade formal e ambiencial da poe sia do Fim-de-Século. É o que acontece, por exemplo, com o «pointillisme» impressionista de alguns textos, de temática novamente urbana, do alsaciano Emst Stadler, tombado logo no primeiro Outono da Guerra, e mais familiarizado do que qualquer outro com a poesia francesa e belga desde o Sim bolismo. Os poemas de Stadler, de medida longa e de arras tada melancolia, a lembrar Cesário Verde, recriam quadros oníricos, Quinta Estação: Ritmo 1918 Mas este tom dificilmente se pode manter por muito tempo. Logo em 1917, no seu terceiro livro, Benn descobre o reverso dessa imagem de cepticismo e cinismo. A palavra abjeccio- nista encontra o seu contraponto, para nunca mais o aban donar, naquilo a que o próprio autor chama a «palavra meri dional» (das südliche Wort): a palavra poética essencial, ou as suas correspondências nas projecções utópicas do Sul, do corpo, do mar, de um primitivismo anímico, enfim, do azul, a cor simbólica dos contramundos do sonho, das nostalgias mediterrânicas atávicas, sempre perpassadas, como teria de ser num poeta moderno (era assim também em Pessoa), pelo espinho doloroso da presença inexorável do intelecto ou do peso da metafísica ocidental (vejam-se poemas como «Com boio rápido» ou «Cariátide»9). de meios tons, ambientes urbanos crepusculares, difusos e um universo algo feminino, de águas e fluidos, que num ou noutro caso ganham também os contornos duros, os traços dissonantes e as manchas agressivas de uma cidade mais caracterizadamente «expressionista». Do ghetto londrino de «Bairro judeu em Londres» (Stadler) à morgue de Berlim vai o espaço que medeia entre um poeta da penumbra, como é Stadler, e a frieza cínica, cortante e to talmente desencantada com que Gottfried Benn, poeta de cor po inteiro e médico de doenças venéreas, vê a condição huma na num tempo de «civilização» e de «progresso». A sua lin guagem e a sua agressividade são, entre 1912 e 1917, e em li vros como Morgue (7972), Filhos (1913) e Carne (1917), as de um verdadeiro estilo abjeccionista: «A coroa da criação, esse porco nojento, o Homem...»; «Acham que foi por um tumor destes que a terra cresceu, / entre o Sol e a Lua?»; «E falam vocês de alma! — O que é a vossa alma» («O médico», 1917);«O cérebro apodrece como o cu...» («Carne», 1917). É o climax de um grito antiburguês e de uma crítica anticiviliza- cional muito generalizados, que Gottfried Benn reforça ainda com toda uma obra ensaística que assume, na esteira de Nietzsche, o niilisino como destino inevitável da cultura oci dental para, numa primeira aproximação, reduzir a ideia do Homem à sua própria negação: a mera existência biológica, no ciclo fatal e fecal de vida e morte, êxtase e decomposição, despido de toda a dignidade e de toda a metafísica. Para Benn, a Europa inteira é, nos começos do século, uma gigantesca morgue, ou um bordel em que se escarnece do espírito, a «rea lidade» não tem consistência, o mundo afunda-se no arrega- nhar de dentes alarve do burguês (para George Grosz o «Ros to da classe dominante»), tal como a pequena flor se afunda no sangue do carroceiro autopsiado em «Pequena sécia» e os res tos do que foi «o Homem» celebram macabramente a orgia do seu próprio «Requiem», no poema com este título. As fronteiras entre as várias tendências estéticas são pou co nítidas no Expressionismo. Mas há neste movimento lite rário alemão uma ilha que, a partir de 1914, emerge com contornos poéticos e teóricos bem definidos nas páginas da revista Der Sturm. O nome desta publicação, farol da van guarda berlinense a partir de 1910, vem, ao que parece, de Else Lasker-Schüler, primeira mulher de Herwarth Walden, director da revista, da galeria e da editora com o mesmo no me, e grande divulgador da pintura moderna (incluindo os Fauves e cubistas franceses, os futuristas italianos, o nosso Amadeu e, evidentemente, os alemães e eslavos que vêm da «Brücke» e do «Blauer Reiter» e mais tarde integrarão a «Bauhaus»). A poética deste círculo de Berlim recebe um no me nas páginas da revista — Wortkunst, a arte da palavra —, os seus produtos são designados de Wortkunstwerk, obra de arte verbal, e o seu poeta maior será August Stramm, a par João Barrento 21 20 de outros, menos presentes e conhecidos: Lothar Schreyer, Otto Nebel, Rudolf Blümner e ainda o dadaísta Kurt Schwit- ters. Aqui, tal como na pintura e na teoria estética de Kan dinsky, e depois na poesia fonética e concreta de Dada e da actualidade, o elemento da linguagem poética que merece to da a atenção é o ritmo. Nas duas colectâneas de poesü livro — Du. Liebesgedichte /Tu. Tropfblut / Sanguegota (1919) — o trai* redução da estrutura frásica aos seus e à palavra em si, para fazer uma poe realidades conceptuais nem mundividências — na verdade, não «comunica» já coisa nenhuma —, mas procura, através da densidade verbal e da qualidade rítmica, criar uma at mosfera de tensão, erótica nos primeiros poemas, e de ame- ça, destruição e morte nos poemas de guerra. «Cada obra da Sturm é um texto mistério», dizia um dos seus autores (Schreyer). A teoria da Wortkunst (arte da pala vra) é uma teoria rítmico-concretista, de teor intuicionista, cujo paralelo mais evidente se encontra no conceito de «rit mo interior» que Kandinsky desenvolve em Über das Geistige in der Kunst (Do Espiritual na Arte). Por sua vez, o pintor pa rece ir beber — como muita desta teorização literária — ao influente livro do historiador da arte Wilhelm Worringer Abs- traktion und Einfühlung (Abstracção e Empatia), publicado já em 1908 (tanto Worringer como Kandinsky são, aliás, co laboradores da revista Der Sturm). A fórmula, aparentemen te óbvia e tautológica, de Herwarth Walden «A arte da poe sia é a arte da palavra» (Dichtkunst ist Wortkunst) deve tomar-se à letra para ser cabalmente entendida. Ela exclui realmente da poesia, quer a expressão de idéias, quer o der rame emocional discursivo, para a fazer regressar às suas raízes mágico-rítmico-verbais. Os três elementos fundamen tais da obra poética (e, por extensão, da arte em geral) serão agora: o ritmo, projecção da visão interior, que assume em cada obra características próprias e vive da exploração dos valores musicais, associativos e simbólicos da palavra isola da; a imagem sonora (Klangbild) sobre a qual se constrói ba sicamente o universo expressivo do poema; e a imagem da palavra (Wortbild), ou seja o equivalente óptico ou acústico da visão interior. Stramm escrevia a Walden, da frente Leste da Guerra, pou co antes de morrer:«Faltam-me sempre as palavras». Mas por detrás da depuração da linguagem e do aparente abs- traccionismo formal de muitos dos poemas de Tropfblut,como no exemplo radical de «Urtod/Primamors», esconde-se a experiência humana de todas as guerras e da morte de sem pre. Este será um exemplo que poderia documentar os limi tes da poesia (quase) nos limites da linguagem. Mas o Expressionismo iria, neste plano, ultrapassar-se a si próprio, já a partir de 1917-18. Nas páginas e nos serões literários da revista berlinense, com os «poemas absolutos» (isto é, con cretos) de Rudolf Blümner, chegar-se-á à dessemantização total da linguagem, ao ritmo puro de uma língua desco nhecida, primitiva e de sugestões africanas, como nos cânti cos negros ou nos poemas ditos por Hugo Bali, Tzara, Janko e Huelsenbeck no «Cabaret Voltaire» de Zurique em 1916-17 (nestes anos existe, aliás, uma estreita relação entre o círcu lo da Sturm em Berlim e os dadaístas em Zurique). Estamos perante uma poesia já propriamente fonética, contemporâ nea da mítica Ursonate (a «sonata em sons primitivos») de Schwitters, como se pode ver no último texto, um excerto do longo poema que Blümner leu na galeria da revista de Ber lim, e a que dá o título, com ecos luso-africanos, de «Ango laína». lesia de Stramm publicadas em ui. Poemas de Amor (1915) e iço mais notório é o da elementos essenciais e tesia que não comunica NOTAS TEXTOS 22 I : esta In- não, Lis- e der /Ber- zefühl» Raabe 1 Expressionismus» (Sobre o ex- imeiros Manifestos), Darmstadt Neopaté- ts e Outra g und Lebensgc Sncia), in: Paul I • Zeitgenossen (Ex- s), Olten/ Freiburg ção a Lyrik des expressionistischen Jahrzehnts (Poe- ), Munique (dtv) 1962, p. 9. Para uma discussão mais histérica e literária do Expressionismo, que e , ver: J. Barrento, A Poesia do Expressionismo Alemc 1 Gottfried Benn, Inlroduçã sia do decênio expressionista), alargada da contextualização históric trodução não comporta. ■ boa (Presença) 1989. 2 Else Lasker-Schüler. «Im Neopathetischen Kabarett» (No Cabaret h tico), in: Der Prinz von Theben und andere Prosa (O Príncipe de Tebas Prosa), Munique (dtv) 1986, p. 190. 3 Cf. J. Barrento, «Ismos em convergência, ou: o sensacionismo português fa la alemão?», in: J.B., O Espinho de Sócrates. Expressionismo e Modernismo, Lis boa (Presença) 1987, pp. 51-83. 4 Roland Banhes, «Y a-t-il une écriture poétique?», in: Le degré zíro de l'écri- ture, Paris (Seuil) 1972, p. 37. 5 Kasimir Edschmid, «Über den dichterischen pressionismo poético), in: Friihe Manifeste (Prir (Luchterhand) 1960, p. 31. 6 ld„ ibid. 7 Heinrich Eduard Jacob, «Berlin — Vorkriegsdichtung (Berlim — Poesia de antes da guerra e sentimento da existêm (Ed.), Expressionismus. Aufzeichnungen und Erinnerungen der z pressionismo. Impressões e Recordações dos Contemporâneos) (Walter Verlag) 1965, p. 17. 8 Franz Werfel, carta a Alma Mahler-Werfel, Outono de 1920, in: Briefe Expressionisten (Cartas dos Expressionistas), ed. por K. Edschmid, Frankfurt/E lim (Ullstein) 1964, p. 14. 9 Sobre esta problemática em G. Benn e Pessoa, ver: J. Barrento, O Espinho de Sócrates. índice 9 TEXTOS Ante-estação: Programas 27 33 35 37 Primeira Estação: Fim do mundo 47 41 43 45 29 31 INTRODUÇÃO João Barrento, A alma e o caos Jakob van Hoddis Fim do mundo {Weltende) O visiotário {Der Visionarr) Animatógrafo {Kinematograph) Paul Scheerbart Sons nocturnos {Abendíõne) Franz Werfel Ao Leitor {An den Leser) Ernst Stadler A sentença {Der Spruch) Forma é volúpia {Fonn ist Wollust) Alfred Wolfenstein A felicidade da comunicação {Glück der Ãufierung) Johannes R. Becher A nova sintaxe {Die neue Syntax) Wilhelm Klemm Programa {Programm) 53 115 Terceira Estação: Bandeiras ao vento 143 Segunda Estação: O grito 147 75 81 83 Quarta Estação: Outono, morte e transfiguração 85 89 93 187 335334 103 105 97 99 77 79 65 67 71 59 61 63 55 57 i (Hymne auf Rosa Luxemburg) Aufruhr) 159 163 171 179 181 183 185 189 195 123 125 131 107 10949 51 151 155 111 113 ’0 à tarde (Sonntagn líiO do manicômio I ( a ponte sobre o Reno em Colônia jlner Rheinbríicke bei Nacht) Ernst Stadler Lover’s seat (Lover's seat) A partida (Der Aufbruch) Bairro judeu em Londres (Judenviertel in Londori) Verão (Sommer) Passagem nocturna da (Fahrt über die KôL Georg Heym Ofélia (Ophelia) As tuas pestanas, as longas... (Deine Wimpern, die langen...) Erich Mühsam O revolucionista (Der Revoluzzer) Ernst Wilhelm Lotz Advento da juventude. 1913 (Aufbruch derJugend. 1913) Walter Hasenclever O poeta político (Der politische Dichter) [Fragmento] A ressurreição de Jaurès (Jaurès' Auferstehung) Johannes R. Becher O poeta evita acordes radiosos... (Der Dichter ineidet strahlende Akkorde...) Hino a Rosa Luxemburgo (1 O eterno motim (Ewig im Ai Despertar! (Auf!) O poeta e a guerra (Der Dichter und der Krieg) Rudolf Leonhard Um morteiro (Ein Schrapnell) Liebknecht morto (Der tote Liebknecht) Iwan Goll O canal do Panamá (Der Panamakanal) Recitativo do Requiem para os caídos da Europa (1917) (Rezitativ aus dem Requiem fiir die Gefallenen Europas. 1917) Lua (Mond) O novo Orfeu (Der neue Orpheus) Ernst Blass A donzela (Die Jungfrau) Fim... (Ende...) Alfred Wolfenstein Citadinos (Stddter) Paul Boldt No terraço do Café Josty (Auf der Terrasse des Café Josty) A mulher-amante (Die Liebesfrau) Alfred Lichtenstein O crepúsculo (Die Dàmmerung) Domingo à tarde (Sonntagnachmittag) A caminho do manicômio I (Die Fahrt nach der Irrenanstalt I) Georg Heym O deus da cidade (Der Gott der Stadt) Umbra vitae (Umbra vitae) A casa da Letônia (Das Lettehaus) Wilhelm Klemm O meu tempo (Meine Zeit) Franz Werfel O Homem belo e radiante... (Der schõne, strahlende Mensch) Quando o teu andar... (Ais mich Dein Wandeln...) Kurt Heynicke Homem (Meu René Schickele Pentecostes (Pfingsterí) Ludwig Rubiner A chegada (Die Ankunft) [Fragmento] Karl Otten Trabalhador! (Arbeiter!) [Fragmento] Johannes R. Becher Homem, ergue-te! (Mensch, stehe auf!) [Fragmento] Paul Zech Rua industrial, de dia (Fabrikstrafie tags) Café (Café) Albert Ehrenstein Sofrimento (Leid) Grito humano (Der Mensch schreit) Quinta Estação: Ritmo çegnung) 297 301 303Biobibliografias dos poetas 327Bibliografia (Antologias de poesia expressionista) 329índice de títulos e primeiras linhas (Alemão) 1 R$ 337 336 /ilhão das cancerosas i die Krebsbaracke) 199 201 203 243 245 247 249 251 253 255 257 259 261 263 265 267 269 291 293 295 273 275 277 279 281 283 285 287 205 207 209 211 213 215 227) 223 225 227 229 231 233 237 239 241 E os cornos do Verão emudeceram... (Und die Hôrner des Sommers verstuinmten...) Meio sono (Halber Schlaf) ~ ibeça em bico, lá vem... (Spitzkõpfig konnnt er...) g Trakl Bib. F ' Aquisição: Doação I Proc. 2014/15904-5 N.F. 001279990 SBD/FFLCH/USP Tombo: 415265 Verba: FAPESP XULTURA_________ 62,50 01/08/2019 August Stramm Bordel (Freudenhaus) Infiel (Untreu) Melancolia (Schwennut) Flor em botão (Bliite) Encontro (Begt Jogo (Spiel) Patrulha (Patrouille) Primamors (Urtod) Kurt Heynicke Despedida (Abschied) Posto de observação (Beobachtungsstand) Canção sombria (Dunkles Lied) Kurt Liebmann Sob paisagem nocturna (Unter nàchtliche Landschafi) Rudolf Blümner Ango laína (Ango laina) (Fragmento] Cat Georg 1 Rondei (Rondei) Melancolia (Melancholie) De profundis (De profundis) Decadência (Untergang) Aos emudecidos (An die Verstununten) Sebastião em sonho (Sebastian im Traum) O Outono do solitário (Der Herbst des Einsanien No Outono (hn Herbst) Os girassóis (Die Sonnenblumen) Um murmúrio pela tarde (In den Nachtnittag gefliistert) O sol (Die Sonne) Vento sul (Fõhn) Ocidente (Abendland) Canto do desterrado (Gesang des Abgeschiedenen) Lamento (Klage) Grodek (Grodek) Else Lasker-Schüler Fim do mundo (Weltende) O meu povo (Mein Volk) Despedida (Abschied) Uma canção (Ein Lied) Gottfried Benn Pequena sécia (Kleine Aster) Bela juventude (Schõne Jugend) Ciclo (Kreislauf) Homem e mulher visitam o pavi (Mann und Frau gehn durch . Requiem (Requiem) Comboio rápido (D-Zug) Cânticos (Gesange) Metropolitano (Untergrundbahn) Cariátide(Karyatide) Síntese (Synthese)