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FAMÍLIA, SAÚDE E LUTO: A ESCOLHA DO CUIDADOR FAMILIAR DE PORTADORES DE DOENÇAS CRÔNICO-DENEGERATIVAS E SUAS IMPLICAÇÕES 1 Ludymilla Zacarias Martins Gonzaga Rodrigo Sanches Peres RESUMO A assistência domiciliar tem sido preconizada pelas políticas públicas de saúde brasileiras devido, sobretudo, à crescente prevalência de doenças crônico-degenerativas, as quais comumente demandam o suporte de cuidadores familiares. Porém, portadores dessas doenças muitas vezes vivenciam uma morte previamente identificável e que tende a ocorrer na presença da família, fato esse que pode ter desdobramentos para o luto dos cuidadores familiares. Tendo em vista o que precede, desenvolvemos uma pesquisa qualitativa com o intuito de investigar a vivência do luto em cuidadores familiares. O presente estudo é um recorte dessa pesquisa e contempla o processo de escolha do cuidador familiar e suas implicações. Participaram seis cuidadoras familiares de pacientes que evoluíram a óbito por doenças crônico-degenerativas. O instrumento adotado foi um roteiro semiestruturado de entrevista elaborado especialmente para o presente estudo e aplicado individualmente. As entrevistas foram gravadas em áudio, transcritas e então submetidas à análise temática de conteúdo. Os resultados revelam que as participantes atribuíram o fato de terem assumido o papel de cuidadoras familiares ao vínculo que as unia aos pacientes dos quais cuidaram. Não obstante, expectativas sociais que ensejavam um “dever ético” também se revelaram operantes. Assumir o papel de cuidadoras familiares foi motivo de satisfação e subsidiou a constituição de uma nova identidade para as participantes. Contudo, problemas de saúde, físicos ou psíquicos, se afiguraram como implicações do cuidado. Constata-se, portanto, a necessidade de se dedicar atenção especial ao luto dos cuidadores familiares no contexto das políticas públicas de saúde. 1 O presente estudo é um recorte da dissertação de mestrado desenvolvida pela primeira autora e orientada pelo segundo autor, a qual foi defendida junto ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Uberlândia. 1. Introdução Os avanços científicos, econômicos e industriais das últimas décadas contribuíram para a transformação do perfil epidemiológico da população, na medida em que, conforme Barreto e Carmo (1995), promoveram um aumento da expectativa média de vida tanto nos países desenvolvidos quanto nos países em desenvolvimento. A transição demográfica, por sua vez, tem levado a uma evolução progressiva de altas taxas de mortalidade por doenças infecciosas para altas taxas de mortalidade por doenças crônico-degenerativas. Trata-se de um cenário irreversível levando-se em conta que, em 2025, os idosos representarão 15% da população brasileira, ou seja, somarão mais de 32 milhões de indivíduos (BRASIL, 1999). As doenças crônico-degenerativas perduram, em média, por um período que varia de quinze a vinte anos (MELO; SAINTRAIN, 2009). Além disso, demandam cuidados especiais, muitos dos quais podem ser realizados, na perspectiva de substituição da assistência hospitalar pela assistência domiciliar, na residência do próprio paciente. Carleti e Rejani (1996) destacam que a assistência domiciliar – ou home care – abrange ações de saúde desenvolvidas por equipe multiprofissional na residência do paciente com base na realidade em que o mesmo se encontra inserido. A assistência domiciliar tem se difundido de forma significativa na última década, o que traduz uma valorização do âmbito familiar como espaço para o atendimento em saúde originalmente observada a partir dos anos 1960 (ALBUQUERQUE, 2001). Por outro lado, a assistência domiciliar não deixa de ser uma alternativa à superlotação dos leitos hospitalares e à elevação dos custos dos tratamentos, assim como uma medida de prevenção de infecções (SMELTZER; BARE, 1998). O fato é que, hoje, a assistência domiciliar faz parte das políticas públicas de saúde no Brasil – sendo, portanto, disponibilizada pelo Sistema Único de Saúde (SUS) – e está prevista como uma modalidade de atenção à pessoa idosa pela Portaria nº 73/2001 da Secretaria do Estado de Assistência Social (KAWASAKI; DIOGO, 2001). O êxito da assistência domiciliar demanda o suporte de cuidadores familiares, os quais, conforme Kawasaki e Diogo (2001), geralmente não possuem formação específica para tanto. Os cuidadores familiares auxiliam os pacientes a superar dificuldades ou incapacidades cotidianas e deveriam, em tese, ser orientados para tanto pela equipe multiprofissional responsável pela assistência domiciliar. Assumir a tarefa de cuidar, entretanto, transforma o cotidiano dos cuidadores familiares de modo radical. Ocorre que os mesmos passam a se ocupar com uma série de atividades que exigem tempo e dedicação e, muitas vezes, deixam de se preocupar com a própria saúde. É nesse sentido que Couto (2004) defende que, comumente, cuidadores familiares se tornam “pacientes ocultos”, posto que tendem a apresentar sequelas físicas ou psíquicas. Silva e Neri (1993) destacam que de 80% a 90% dos cuidados recebidos por portadores de doenças crônico-degenerativas são dispensados por cuidadores familiares. Tal dado se torna compreensível tendo-se em vista que a família representa a primeira e mais importante unidade de saúde para seus membros. Contudo, é preciso esclarecer que, na maioria dos casos, um único familiar assume integralmente a função de cuidador, o que acontece devido a uma opção pessoal, a uma decisão conjunta entre os demais familiares ou até mesmo por falta de alternativas. E essa motivação inicial tende a influenciar tanto o cuidado a ser oferecido quanto o desgaste vivenciado pelo cuidador familiar. Vale destacar ainda que portadores de doenças crônico-degenerativas tipicamente vivenciam uma “morte anunciada”. Trata-se da morte previamente identificável por meio da presença de um conjunto de sinais e sintomas, a qual tende a ocorrer na presença da família (FONSECA; FONSECA, 2002). Tal fato pode ter desdobramentos para o luto dos cuidadores familiares, ou seja, para o conjunto de reações emocionais, intelectuais, físicas, espirituais e sociais apresentado por um sujeito em decorrência de uma perda por morte. Afinal, como salienta Kovács (2003), a atitude do homem diante da morte na atualidade tende a ser de distanciamento, o que desencoraja as manifestações de luto. Tendo em vista o que precede, desenvolvemos uma pesquisa qualitativa com o intuito de investigar a vivência do luto em cuidadores familiares de portadores de doenças crônico- degenerativas que evoluíram a óbito após receber assistência domiciliar prolongada. O presente estudo é um recorte dessa pesquisa e contempla, mais especificamente, o processo de escolha do cuidador familiar e suas implicações. Trata-se de um processo complexo, que tende tanto a refletir os relacionamentos familiares prévios do cuidador quanto a influenciar os futuros. Além disso, assumir a função de cuidador, como já mencionado, pode causar uma sobrecarga intensa a ponto de levar à eclosão de sequelas físicas ou psíquicas. 2. Desenvolvimento Participaram do presente estudo seis cuidadoras familiares (três filhas, uma nora, uma esposa e uma sobrinha) selecionadas por atenderem, basicamente, aos seguintes critérios de inclusão: a) ter idade acima de 18 anos; b) não apresentar antecedentes psiquiátricos, suspeita de déficit intelectual, quadros demenciais ou distúrbios da comunicação capazes de comprometer a interação com os pesquisadores e c) ter exercido o papel de cuidador familiar de paciente que evoluiu a óbito há no mínimo três e no máximo quatro meses quando da coleta de dados. Vale destacar que o critério de saturação foi adotado para a definição do número de participantes.Deve-se mencionar também que todos os participantes foram recrutados a partir de consultas realizadas com a devida autorização institucional junto aos arquivos do Programa de Assistência Domiciliar do Hospital de Clínicas da Universidade Federal de Uberlândia (PAD- HCUFU). O ingresso de um paciente no PAD-HCUFU exige a definição de um responsável no contexto familiar para ser o receptor das orientações da equipe multidisciplinar e colocá- las em prática. Ou seja, demanda a definição de um cuidador familiar. O PAD-HCUFU cumpre assinalar, está alinhado às políticas públicas de saúde no Brasil, de modo que foi incluído no Sistema de Informações Hospitalares do Sistema Único de Saúde (SIH-SUS) por meio da Portaria no. 2416/1998 e conta com os seguintes profissionais: médicos, psicólogos, enfermeiros, técnicos de enfermagem, fisioterapeutas, farmacêutico, assistente social e nutricionista. A coleta de dados foi agendada em horários de comum acordo e realizada na residência das participantes com a anuência do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Uberlândia. Todas elas assinaram um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, por meio do qual os pesquisadores apresentaram os objetivos e procedimentos do estudo e se comprometeram a manter em sigilo a identidade das mesmas. Por esse motivo, serão usados nomes fictícios ao longo do presente estudo. Ressalte-se ainda que o instrumento adotado para a coleta de dados foi um roteiro semiestruturado de entrevista elaborado especialmente para o presente estudo e aplicado individualmente. De acordo com Turato (2003), o emprego de um roteiro semiestruturado de entrevista em um estudo qualitativo tem como principal vantagem viabilizar a coleta de dados no contexto da relação que se estabelece entre o pesquisador e os participantes da pesquisa. E um estudo qualitativo prioriza justamente os significados que se expressam pela linguagem comum, na medida em que revelam nuances de experiências de indivíduos que vivenciaram uma determinada situação (MINAYO; SANCHES, 1993). As entrevistas foram gravadas em áudio e tiveram duração média de 50 minutos, ocorrendo ao longo de um único encontro com cada participante. As gravações foram transcritas e submetidas à análise temática de conteúdo proposta por Bardin (1977/1979), a qual se destaca como uma das principais técnicas de tratamento de dados no campo das pesquisas qualitativas por viabilizar a identificação de significados latentes manifestos em uma comunicação. Antes de mais nada, é preciso comentar o fato de terem participado do presente estudo apenas mulheres. Esse resultado é compatível com aqueles reportados por outros autores – tais como Brondani (2008) e Braz e Ciozak (2009) – que verificaram que cuidadores familiares tipicamente são do sexo feminino. Possivelmente isso ocorre em função de determinantes sócio-culturais que definem a mulher como a responsável pelo cuidado e o situam como mais um dos afazeres da esfera doméstica. Os referidos determinantes, porém, se apoiam em fatores biológicos, como se o papel de cuidador correspondesse, em algum sentido, ao papel de mãe. Feita essa observação inicial, deve-se salientar que os resultados obtidos referentes especificamente à questão da escolha do cuidador familiar revelam que todas as participantes expressaram afeto positivo com relação ao paciente do qual cuidaram, a despeito de algumas delas terem tido problemas com o mesmo em outras fases da vida. Todas interpretaram positivamente o fato de cuidar, sendo que essa escolha foi atribuída pelas mesmas ao “carinho” e/ou a uma espécie de “dever ético”. A participante Zoraide, para não permitir que a paciente – sua tia – da qual cuidou fosse encaminhada para uma instituição asilar, assumiu a tutela que anteriormente estava em posse de outra tia que havia adoecido. Esta iniciativa teve como plano de fundo o “dever ético” de continuar cuidando da tia no âmbito familiar, pois essa era bastante dependente e fora cuidada anteriormente pela avó e pela mãe da participante, conforme o Relato 1. Relato 1: [...] era assim...eu e mamãe sempre morava junto e minha mãe cuidou dela (da paciente) e da mãe até falecer, [...] eu quis mesmo cuidar dela porque eu tinha dó. Porque a Tia N. (outra tia da participante) não queria mais cuidar dela (da paciente) e queria colocar ela num abrigo... [...] E eu não queria porque minha mãe nunca ia deixar... então não entrava na minha cabeça [...] Então... eu falei que não era pra pôr num asilo, que eu ia tomar conta, ela (Tia N., outra tia da participante) entrou no advogado, aí depois de um ano o juiz me chamou, aí eu fui para audiência [...] Eu que quis pegar, por livre e espontânea vontade. Zoraide, em vários momentos de sua entrevista, demonstrou sentimentos negativos com relação à família devido ao que foi interpretado por ela como abandono. Para essa participante, a família deveria se comportar como um clã, coeso e autossustentável, como ocorria anteriormente à morte de sua avó e de sua mãe. A possibilidade de asilamento da tia da qual cuidou pode ter sido sentida por Zoraide como uma traição ao clã de origem, do qual ela era fiel, conforme relatou em diversos momentos da entrevista. Couto (2004) faz referência a uma hierarquia do cuidado, de acordo com a qual se a primeira cuidadora – no caso, a mãe – fique impossibilitada de desenvolver a tarefa de cuidar, a filha ou a irmã, comumente a mais velha, a deve assumir. Sendo feminino e de responsabilidade da família, o cuidado é tido como uma obrigação do que a referida autora chama de “código de direitos e deveres entre os integrantes da família consanguínea” (2004, p.89). Em todos os casos, as participantes do presente estudo relataram que optaram por ser cuidadoras. A despeito da necessidade de certos arranjos, a responsabilidade foi acatada. A participante Andréa relatou que sua mãe, a paciente da qual cuidou, morava com o marido, ou seja, seu pai. Andréa anteriormente morava com o seu companheiro e filhos, e, segundo relatou, era a filha mais atuante no cuidado. De acordo com essa participante, seu pai e seus irmãos pediram que ela assumisse o cuidado e, devido a uma combinação financeira com seus irmãos, isso de fato ocorreu e resultou em muita satisfação para a mesma, como se vê no Relato 2. Relato 2: Eu passei a morar com ela (paciente). Antes eu passava aqui, cuidava e ia embora, mas meu pai reclamava todos os dias e passou a me convidar pra morar com eles, porque mulher seria melhor, que ele não tinha jeito para cuidar e ela foi ficando mais dependente [...] Eu sempre fui visitar e era mais presente. Daí meu pai pediu para eu vir pra cá, os irmãos disseram que pagariam o salário que eu tinha como doméstica para ficar cuidando. Como filha, também sentia obrigação e muito amor [...] Mudou pra melhor (o vínculo), porque aí fiquei mais perto dela, mais junto, pude dar mais carinho pra ela. Ela se sentiu muito amada por mim, eu tenho certeza. A participante Elena também referiu prazer em cuidar de sua sogra e destacou que a relação com ela era harmoniosa. Tal participante mencionou que teve dificuldades quando do agravamento dos sintomas de sua sogra, mas que faria tudo outra vez, como exemplifica o relato 3. Elena afirmou ainda que aceitava a ajuda das cunhadas, mas que gostava de ser a cuidadora principal, ou seja, ela preferia ter a sogra em seu domicílio e receber ajuda dos familiares que se revezavam para o cuidado. Relato 3: ela (paciente) tinha eu mais do que uma filha.... [...] se eu tivesse que fazer tudo de novo, eu faria [...] Eu lutei muito por ela, eu fiz tudo que eu pude. Segundo Silva (2007), certos padrões de comportamento são desenvolvimentos sob a influência de expectativas sociais. Nesse sentido, determinadas atitudes são esperadas dos membros de uma família frente a situações de crise.Cattani e Girardon-Perlini (2004), assumindo essa assertiva, defendem que a família, ao se deparar com o adoecimento de um de seus membros, se responsabiliza pelo mesmo essencialmente devido a questões culturais ou a laços afetivos. Os relatos de Zoraide, Andréa e Elena o atestam. Ser protagonista deste tipo de história é um processo que envolve, portanto, aspectos externos e internos. Dentre os aspectos externos, tem-se a expectativa de que a família exerça a tarefa do cuidado, se responsabilizando perante a sociedade pela proteção de seu membro. Já dentre os aspectos internos tem-se a qualidade dos vínculos afetivos que impulsionam – ou não – o familiar a executar a tarefa do cuidado. Deve-se levar em conta ainda que Bennett, Gibbons e Mackenzie-Smith (2010) relatam que muitos enlutados se empenham em participar de novas atividades, mas somente aqueles que encontram um sentido real sobre si e, com isso, criam novos papéis, novas identidades e/ou novos relacionamentos, atingem um melhor ajustamento psicológico. Se aplicarmos este raciocínio às participantes do presente estudo, ampliando-o para o momento anterior à perda, podemos observar que as mesmas, ao assumirem a função de cuidadoras, se envolveram em uma nova atividade e, como consequência, de alguma forma começaram a forjar para si próprias uma nova identidade. Todas elas demonstraram satisfação com essa nova identidade, o que pode estar as auxiliando a lidar com a perda vivenciada. Não obstante, os resultados obtidos, referentes especificamente às implicações do cuidado, revelam que, de acordo com a opinião de todas as participantes, a tarefa de cuidar gerou algum problema de saúde, físico ou psíquico, tanto antes quanto após a perda. O relato 4 é um exemplo desse achado, pois é representativo de uma alteração importante do humor apresentada por Zoraide diante de um comportamento da paciente da qual a mesma cuidava. Relato 4: A minha maior [dificuldade]... foi que ela começou o estágio pior...antes de pôr a sonda...dela segurar no meu braço, a comida ficava na boca e ela não engolia eu ficava assim...tinha dia que ela não engolia. Quando ela queria engolir, ela engolia, tinha dia que ela jogava os remédios tudo pra fora. [...] Ela só segurava assim e não te soltava, uma força, eu ficava era doida na hora da comida. Marques, Rodrigues e Kusumota (2006) esclarecem que esse tipo de problema ocorre porque o sistema familiar passa por modificações quando um de seus membros adoece. Essas modificações, para o cuidador familiar, podem se fazer sentir em diversas dimensões, inclusive desencadeando sintomas físicos ou psíquicos capazes de impedir a tarefa de cuidar. Fonseca e Fonseca (2002) afirmam que, para muitos familiares, certos sintomas aumentam consideravelmente com a extensão da iminência da perda. Mas a impotência perante a evolução de uma doença crônico-degenerativa também contribui para tanto, pois eventualmente ocorre uma identificação dos familiares com o paciente, o que pode, segundo os referidos autores, gerar medo de que a doença que acometeu o paciente possa também vir a acometer outros familiares. Para Gratão (2010), há que se considerar também que o cuidador familiar, mesmo não estando treinado para desempenhar a tarefa de cuidar, o faz como se ela fosse uma missão. Tamanho envolvimento acaba por promover a negligência do autocuidado e, com isso, o cuidador se torna vulnerável. Pereira e Dias (2007) apontam, nesse sentido, que a doença que demanda longo tempo de acompanhamento consolida-se como um peso para a família e promove dificuldades como desgaste físico e psíquico, este tipicamente associado a sentimentos de culpa e inadequação. As participantes do presente estudo relataram ainda que, após a perda do paciente do qual cuidavam, apresentaram sintomas físicos como sonolência, fraqueza, tremores e dor de cabeça e sintomas psíquicos como irritação e ansiedade. Mencionaram ainda prejuízos sociais, posto que, por um período variável, deixaram de frequentar eventos e reuniões de família. Em suma: todas elas relataram algum desdobramento – em termos físicos, psíquicos ou sociais – da morte do ente querido. A participante Araci mencionou, inclusive, que, em função disso, se automedicou com ansiolíticos, como se vê no relato 5. Relato 5: [...] então, ela (irmã da participante) me dava aquele remédio (ansiolítico) para experimentar nas horas de mais necessidade e eu dei certo com esse negócio. Ele é bom [...] Você dorme um sono gostoso, tirava aquela dor imensa, assim, de mim, sabe? Esse tipo de achado é preocupante, posto que, para Mazorra (2009), o abuso de substâncias químicas é prejudicial ao curso do enlutamento, na medida em que funciona como um anestésico da dor e pode aumentar o risco de luto crônico ou luto inibido. O luto crônico é definido por Parkes (1998) como aquele que se perpetua por muitos anos, provocando intenso sofrimento emocional por manter o indivíduo excessivamente ligado a lembranças. Já o luto inibido, ainda segundo o referido autor, tem como principal característica a negligência da vivência da perda, sendo que implica em um acentuado prejuízo do ajustamento psicológico. 3. Considerações finais O presente estudo revela que as participantes atribuíram o fato de terem assumido o papel de cuidadoras familiares ao vínculo que as unia aos pacientes dos quais cuidaram. Não obstante, expectativas sociais que ensejaram um “dever ético” também se revelaram operantes. Assumir o papel de cuidadoras familiares foi motivo de satisfação para as participantes e subsidiou a constituição de uma nova identidade para as mesmas. Contudo, problemas de saúde, físicos ou psíquicos, desencadeados tanto antes quanto após a perda, se afiguraram como implicações do cuidado. Revelando preocupação com esse tipo de situação, a Organização Mundial de Saúde (2002) determinou que o luto dos familiares deve ser foco de atenção e assistência por parte das políticas públicas de saúde, tanto antes quanto após o óbito de pacientes acometidos por doenças crônico-degenerativas. Essa preocupação se justifica levando-se em consideração que intervenções em situação de luto representam, em última instância, medidas de saúde pública capazes de contribuir tanto com a promoção e manutenção da saúde quanto com a prevenção de doenças. REFERÊNCIAS ALBUQUERQUE, Sandra Márcia Ribeiro Lins de. Assistência domiciliar: diferencial na qualidade de vida do idoso portador de doença crônica. 2001. 180f. Dissertação (Mestrado em Fisiopatologia Experimental). Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2001. SILVA, Letícia Andrade. Desvelos: trajetórias no limiar da vida e da morte - cuidados paliativos na assistência domiciliar. 2007. 199f. Tese (Doutorado em Serviço Social). Faculdade de Serviço Social, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2007. BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. Tradução de Luís Antero Reto. 2ª ed. Lisboa: Edições 70, 1979. 229 p. BARRETO, Maurício Lima; CARMO, Eduardo Hage. 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