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Categorias Ricardo Santos (Ed )

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Colecção lilt.t.M-mt.i.-j Porto Editora
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Categorias I
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~Tradução, introdução e comentário de Ricardo Santos
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Editor:
Categorias, de Aristóteles
Ricardo Santos •
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Quatro Cqr;es Design
Porto Edit6ra,
índice Geral
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Capítulo 1
Capítulo 2
.Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
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Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
.A vidá de Aristóteles
A obra de Aristóteles
'OOrganon
As Categorias
A estrutura da obra
A primazia das substâncias individuais
A pergunta «O que é ... ?»
Sinonímia, homonímia e paronímia
A caracterização das diversas categorias
O método dialéctico
Método de citação
O texto
ISBN 972.0.41076.0
. @ para a língua portuguesa: "
PORTO EDITORA. LDA. -.: 1995
Rua da Restauração, 365
4099 PORTO CODEX ...:..-'PORTUGAL
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Esta publicação não pode ser reproduzida, nem transmitida, no todo ou em parte, por qualquer
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Livrarias Av. Almirante Gago Coutinho, 59 - OI Ruada Madalena, 145 ...LISBOA 'Ir 1011B4B6192/.l 'B 10118871166
Capítulo11
Capítulo12
Capítulo13
Capítulo14
Capítulo15
Anexos
Comentário
Glossário
Bibliografia
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1.--
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69
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183
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As Categorias ocupam, na ordenação tradicional dos tratados aristoté-
liCbS,o primeiro lugar. A este facto está associada a convicção de que é~
por esta obra que deve começar o estudo da filosofia de Aristóteles.
Responsável pela enorme influência que as Categorias exerceram ao
longo de toda a história da filosofia, esta convicção é ainda hoje parti-
lhada por alguns. A presente edição pretend,~~,por isso, ser aces&ívelao
leitor não especializado e não pressupõ~ qualquer contacto prévio~com as
doutrinas aristotélicas. Também nos pareceu preferível apresentm;,ao lei-
tor uma interpretação da obra, sem o sobrecarregar com as numerosas'"
controvérsias entre interpretações divergentes a que qualquer texto com.
valor filosófico dá origem. A interpretação é, assim, inteiramente assu-
mida por nós; tendo sido subtraídas todas as referências aos comentadores
de que discordamos ou àqueles com que concordamos e em que nos
apoiámos. O leitor interessado em aprofundar o assunto e conhecer outras
perspectivas encontrará no final do volume indicações bibliográficas
que poderão orientar a sua pesquisa. É, no entanto, indispensável registar
o valioso apoio que encontrámos na tradução e notas de J. L. AcleriU
(Afistotle' s Categories and De lnterpretatione, Oxford, 1963). O livro de
AcleriUconstitui desde há muito um verdadeiro «clássico» dos estudos
aristotélicos e foi responsável pelo interesse renovado de que as
Categorias têm sido objecto nos últimos anos. A compreensão das
Categorias como uma obra de metafísica - que predomina actualmente e
que aqui támbém perfilhamos - foi por ele decisivamente reforçada.
Ricardo Santps
Sintra, 18 de Maio de 1995
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Introdução
A vida de Aristóteles
Embora tenha passado a maior parte da sua vida em Atenas,
Aristóteles era natural de Estagira, pequena cidade do Norte da Grécia,
onde nasceu em 384 a. C. º-~l:<Q.:Rª1J"U.çómàço,era médico pessoal_<:lorei
Amintas da Macedónia. Aº~J] anos, v!~j2y.p_arª~At~ri~~:~]!ill~~j!!~£S-
iar'na'J:\caaemla-deFlatão. NôS~Y-~~!£_.ªI1_º-s._l!mque" foi membro da
A£ª4~ii11ã~dlSímgliiu':se-p~!.o._s~~j~lento, prim~iTo"cõmõ'e'stüdante e,
º~pº-i~,~bémcomÕ professor e autõr~-'Sal:)e~se-qüe-ãrensmoüaiã1eéilcã
e retórica,'ecjtie'''escreveuepublicouUma série de obras, na sua maioria
sob a forma de diálogos, que o tomaram reconhecido pela excelência do
seu estilo. Infelizmente, a maior parte destas obras perderam-se e restam-
-nos apenas alguns fragmentos. Destinadas a um público alargado, o
Q.pjecíLvQ.de muitas delas er-ª.des{>ertar o interesse pela filosofia e captar
novQs:::~studffiltespara a ÁcadeIDi~~'--" '- ...--.... ----. .. --.... ------ ...
.- Em341,=quand(fP@!ãômorreu e Espeusipo,.~!L~.Qrinho, lhe tomou
o Jugar,na.direcçãQ._MA~ademi~,Ari~tÓteles d~ixou Ate~iãjõU;Pri-
~eiroL:Rara.as,colóniªs,gregª,ª_<:la Asiâ-M~~-;;;"(Assõ"g'eT,esbos )e~:.aepõis,
~'c~º'ú!~.de Filipe,_.\'iY£!l ...ªlgUu:s:=;m;:S=iiU.2rte em Pela (caPitã!- da
"1Víãcedónia5;'comoj;receptor do futuro imperadmA1exandre. Só voltaria
~".~\tenas'.clQ~~"~ãnói=a:epºis'::'~~;{3~('d~_sij~.~e.~~~~:ª=~~. re~ressar à
Acad~ºÜª,J)1as ..-pa[ª.funºªr..uma._nQ.y:a .escola, o \Liç~.!1•..As obrãsaé
Àri~tÓteles que conhecemos são o prod~i;--dã-fnvestigação e do ensino
que desenvolveu, com o auxílio de diversos colaboradores, não só na
época do Liceu, mas já durante a sua estadia na Ásia Menor e em Pela e,
talvez, também durante os últimos anos em que esteve na Academia.
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Categorias Prólogo.
A obra de Aristóteles
o pensamento que nelas se eXEressa, cobrindo as mais diversaS áreas do
conhecimento, diferencia-se claramente da filosofa platónica, rejeitando
mesmo algumas das suas principais ideias (como a teoria das Formas e a
teoria da reminiscência). Pretendendo, no entanto, ser fiel à inspiração
básica do platonismo (que considerava ser, afinal, a de toda a filosofia),
Aristóteles desenvolveu um pensamento autónomo, que procura respon-
der melhor aos problemas - muitas vezes os mesmos com que se debateu
Platão - que dificultam a nossa compreensão do mundo e de nós mesmos.
Dirigiu o Liceu até 323, ano em que morreu Alexandre. O ambiente
em Atenas era, nessa altura, fortemente hostil à Macedónia, e Aristóteles,
considerado um «amigo da Macedónia», não ,era uma presença desejada.
Foi acusado por um conjunto de atenienses, num processo idêntico ao
que, em 399, condenara Sócrates à morte, e decidiu fugir de Atenas, para
evitar, segundo se conta, que os atenienses cometessem um segundo
crime contra a filosofia. Morreu um ano depois, em Cálcis, cidade natal
da sua mãe.
Como veremos mais adiante; existem fortes razões para considerar
que a colocação das Categorias como primeira tratado do Organôn está
OOrganon
Aristóteles, mas devem-se a editores posteriores. Cada obra, ou q:atado, é
muitas vezes composta por diversos livros (cuja extensão deverá corres-
ponder aproximadamente à dos originais rolos de papiro). É provável que
muitos destes livros existissem separadamente e terão sido aqueles editores
a decidir quais os livros que deveriam ser reunidos sob um mesmo título.
Para dar uma ideia das matérias abordadas na obra conhecida de
Aristóteles, podemos dividir os tratados em c~co grandes grupos: no pri-
meiro, temos os tratados que, editados conjuntamente sob o nome de
Organon (a que nos referiremos adiante com mais pormenor), constituem o
que é habitualmente conhecido como a lógica aristotélica; num segundo
grupo, temos um vasto conjunto de obras que versam sobre a filosofia da
natureza, onde se incluem tratados de física, cosmologia, psicologia e bio-
logia; em terceiro lugar, vem o que o próprio Aristóteles designa por filoso-
fia primeira, e que é também por ele definidacomo a ciência que estuda o
ser em geral (a qual constitui o objecto do conjunto de livros editados sob o
título de Metafísica); no quarto grupo, incluem-se as obras que tratam da
ética e da política (sobretudo a Ética Nicomaqueia e a Política); e, por fim,
o último grupo é constituído pelos tratados de retórica e de poética.
Durante muito tempo, a obra de Aristóteles foi encarada e estudada
como constituindo uma totalidade completamente coerente e sistemática.
Os diversos tratados distinguir-se-iam pela diferença de tema e de objec-
tivo, mas não haveria entre eles diferenças significativas de doutrina. No
nosso século, pelo contrário, tem predominado uma abordagem que consi-
dera haver, ao longo da obra, sinais de mudança de doutrina e reformula-
ção de perspectivas, os quais parecem testemunhar uma evolução no
pensamento do autor. De acordo com isto, tornou-se necessário procurar
determinar, pelo menos de modo aproximado, a ordem cronológica por
que terão sido compostos os diversos tratados. Deste estudo, embora
tenham resultado alguns avanços importantes, não foi ainda possível obter
uma solução global, solidamente "fundamentada e consensual. Para o que
aqui principalmente nos interessa, refira-se, no entanto, que a generali-
dade dos intérpretes concordam que as Categorias constituem uma das
primeiras obras de Aristóteles.
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As obras escritas por Ari~tóteles dividem-se em dois grupos:
1. as obras que foram c9'mpostas para ser publicadas e que o foram de .
facto em vida de Aristóteles (na sua maioria são diálogos; destinados a
,_~ __ ,_ .. '!I!1jJ~~l!~º_y'~!q)~....
2. as obras compostas para uso interno da escola, constituídas na
maior parte por manuscritos a partir dos quais Aristóteles dava as sua,s
lições e evidentemente destinadas a uma audiência especializada de filó-
sofos e estudantes de filosofia.
Ao contrário do que seria o mais natural, as obras publicadas perde-
ram-se e delas conhecem-se apenas alguns fragmentos, enquanto as que
chegaram até nós pertencem ao segundo grupo, dos escritos esColares. Não
estando originalmente destinados a ser publicados, a J;ristória da transIID~'s-
são destes manuscritos foi atribulada e a primeira edição completa de que
temos notícia foi realizada, em Roma, em meados do século I a. C. s'
sucessivas edições e cópias a que desde então foram sujeitos. se represen-
tam, por um lado, a condição de possibilidade de hoje os lermos, por outro
lado, representam também outras tantas interferências, que dificultam por
vezes o nosso conhecimento do texto original. Apenas como exemplo,
refira-se que os títulos das obras não são, na generalidade, da autoria de
re-
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. Categorias
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I
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Universidade de Brasilia
BIBLIOTECA
Prólogo
baseada num equívoco. Todavi~, uma vez que é esse o seu lugar tradicio-
nal e que este facto determinou toda a filosofia posterior, começaremos
por uma apresentação sumária do conteúdo e da estrutura do Organon.
Sob o título de Organon encontram-se editadas (mas não, como
vimos, por Aristóteles) um conjunto de obras, nas quais é habitUal consi-
derar-se que se encontra exposta a lógica aristotélica. Na verdade, a pala-
vra «lógica», com o. sentido que tem hoje; não era conhecida de
Aristóteles. Quando pretendia designar aquilo que, para nós, são os estu-
dos lógicos, Aristóteles referia-se a «os analíticos»; e, provavelmente,
com esta expressão, o que visava eram os doi_stratados que constituem a
parte central e, sem dúvida, a mais importante do Organon - os Analíticos
Anteriores e os Analíticos Posteriores. De qualquer modo, a questão de
saber se os tratados que compõem o Organon são ou não tratados de
lógica, apesar de inevitável, é um pouco anacrónica, pois foi o Organon
que determinou aquilo que durante muito tempo se entendeu como sendo
a lógica.
O Organon é uma colecção de cinco tratados que, apesar de terem evi-
dentes relações entre si e de, por vezes, se referirem uns aos outros, não
obedecem a um'plano ordenado de conjunto. Aliás, é muito provável que
os tratados que o compõem ténham sido escritos em datas bastante dife-
rentes e que a ordem pela qyialforam escritos não corresponda àquela com -
que foram editados. Não se sabe ao certo quem terá sido o responsável _
__pelaleunião destes tratados numa única colecção, mas o sentido com que
foi realizada parece ser-nos indicado pela palavra «organon», cujo signifi-
cadó. é «instrumento». Além disso, um comentador antigo das obras de
Aristóteles explica que «a lógica ocupa na filosofia o lugar de um instru~
mento (organon)>> (Alexandre, in Top., 74.29). Isto significaqi.Ie os trata-
dos' do Organon constituem um estudo cujo estatuto é diferente dó dos
outros estudos filosóficos. Os conhecimentos facultados pela lógica são
utilizados por todas as outras disciplinas filosóficas e, por isso, são por
elas pressupostos. De acordo com isto, Aristóteles afirma na Metafísica
que «é necessário conhecer os analíticos antes de abordar qualquer ciên-
cia» (1105b4-5). O conhecimento da lógica seria, portanto, uma condição
ou um requisito prévio para iniciar o estudo de qualEluerdisciplina filosó-
fica.
Os tratados que compõem o Organon são cinco, e a sua ordem é a
seguinte: 1. Categorias, 2. De Interpretatione, 3. Analíticos Anteriores,
4. Analíticos Posteriores, 5. Tópicos.
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....
É nos Analíticos Anteriore~ que se encontra exposta aquel3;,que é a
principal contribuição de Aristóteles para a investigação lógica...,.a teoria
do silogismo. «Um silogismo», diz Aristóteles, «é um discurso no qual;
sendo assumidas certas coisas, alguma coisa diferente delas resulta neces-
sariamente do facto de elas serem tais» (24bI9-20). Esta definição é
muito geral e, por isso, pode dizer-se que abrange toda e qualquer inferên-
Ciaválida, isto é, uÇllquerargumento no qual, 'a partir de certas premissas
(qualquer que eja a sua forma e número),se segue uma.conclusão que é
uma sua con equência necessária. Uma conclusão é uma consequência
necessária das premissas quando, se as premissas são verdadeiras, a con-
clusão t~m de ser também verdadeira. O objectivo de Aristóteles é então,
nos Analíticos Anteriores, estabelecer «por que meios, quando e como é
que são efectuados todos os silogismos» (25b26-27). O projecto é ambi-
cioso, pois implicaria desenvolver um sistema no qual todas as inferências
válidas, sem excepção, pudessem ser expressas ..Uma das principais des-
cobertas de Aristóteles foi a de que isso só pode ser realizado atrayés de
um sistema formal, isto é, de um sistema no qual se faz completa abstrac-
ção do significado dos termos que 9correm nas diversas inferências e que,
portanto, não pressupõe qualquer conhecimento acerca do conteúdo,des-
sas inferências. É aliás este seu carácter formal que toma.'o sistema lógico
utilizável por todas as disciplinas filosóficas, qualquer que seja o seu
objecto de estudo.
Outro aspecto importante na silogística aristotélica é a distinção entre
inferências perfeitas e imperfeitas. Uma inferência é perfeita quando a sua
validade é imediatamente evidente, isto é, quando não é preciso mais
nenhuma premissa além das que são expressas para tomar evidente que a
conclusão é uma sua consequência necessária. Aristóteles considera per-
feitas as seguintes inferências:
Todo oAé B TodooAéB
TodooB éC Nenhum B é C
Logo Todo o AéC NenhumAéC
AlgumAéB AlgumAéB
Todo o B éC NenhumBéC r
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Logo AlgumAéC Algum A não é C I, II t, (, -
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Categorias
As inferências imperfeitas são aquelas cuja validade não é imediatamente
evidente, sendo preciso acrescentar urna ou mais premissas (que, na reali-
dade, são consequências necessárias das premissas expressas) para tornar.
evidente que a conclusão resulta necessariamente das premissas. Esta defini-
ção mostra que Aristóteles considera que todas as inferências imperfeitas
podem ser tornadas perfeitas, ou seja, que todas elas são perfectíveis. Ora,
, urna vez que, para Aristóteles, as. inferências perfeitas são as quatro. que
mencionámos, e que todas as inferências válidassão ou perfeitas ou imper-
feitas, isso significa que todas as inferências válidas ou são formalmente
idênticas àquelas quatro ou podem ser reduzidas a uma que o seja. Por isso é
que Aristóteles considera que o sistema lógico que apresenta é suficiente
para testar a validade de toda e qualquer inferência, sem excepção.
Na realidade, ao fazer este juízo, Aristóteles sobrestima o resultado
que atingiu. Existem muitas inferências válidas que não poqem ser
expressas pelo seu sistema silogístico e que, de acordo com ele, teriam de
ser. declaradas inválidas. Todavia, a sua tentativa foi de uma enorme
importância histórica. Sobretudo, se tivermos em consideração que, por
um lado, como ele próprio diz, se tratou de uma investigação para a qual
não pôde apoiar-se em nenhuns resultados anteriores (cf. Refutações
Sofísticas, 183b15-184b8) e que, por outro lado, a silogística aristotélica é
urna das teorias com maior 19ngevidade na história da ciência, pois, ape~
sar de ter sido objecto de s)lcessivas correcções e melhoramentos, o seu
lugar de paradigma dos estridos lógicos só foi seriamente posto em dúvida.
. ..~partir do final do século XIX ..
O que levou Aristóteles a ocupar-se do silogismo foi o seu interesse
pela ciência. Os Analíticos Posteriores seriam hoje classificados como
um tratado de epistemologia. Possuem, em comum com os Analíticos
Anteriores, um mesmo carácter formal: abstraindo do objecto de estudo
das diversas ciências, procura-se analisar a forma comum a todas elas,
isto é, a forma do conhecimento científico. Essa forma é a demonstração.
O que defme o conhecimento científico é ser um conhecimento demons-
trativo e, por isso, o objectivo dos Analíticos Posteriores é apresentar uma
teoria da demonstração. Ora, toda a demonstração é um silogismo,
embora nem todo o silogismo seja uma demonstração. Por isso é que se
tornava necessário, antes de estudar a demonstração, realizar um estudo
mais geral sobre o silogismo.
Nem toda a inferência válida produz conhecimento científico.
Aristóteles considera que o conhecimento científico de uma coisa obedece
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Introdução
a duas condições principais: por um lado, temos de conhecer a razão de
ser dessa coisa e, por outro, temos de reconhecer que essa coisa ~ão pode
ser diferente do que é. A relação entre a coisa conhecida e a sua razão de
ser corresponde à relação, numa inferência, entre a conclusão e as premis-
sas.Mas, para poder constituir um conhecimento científico, esta relação
tem de ser mais forte do que a da simples validade. Por isso, o silogismo
demonstrativo é uma inferência que, além de s.er válida, obedece a condi-
ções suplementares, que dizem sobretudo respeito à natureza das premis-
sas.
As premissas de uma demonstração têm de ser verdadeiras. Esta con-
dição ilustra bem a diferença que há entre demonstração e inferência
válida. Uma inferência pode ser válida' tendo premissas falsas; e, além
disso, é possível, partindo de premissas falsas, inferir validamente uma
conclusão verdadeira. Mas uma inferência que conclui uma verdade a par~
tir de. premissas falsas não pode ser considerada uma demonstração, pois
a razão ou explicação que apresenta para essa verdade é falsa. Contudo, é
necessário que 'as premissas sejam não só verdadeiras, mas também ver-
dadeiramente explanatórias da conclusão. Se pretendemos demonstrar
que todos os objectosde urna certa classe A possuem umà propriedade B,
temos de apoiar-nos em premissas que digam, acerca de A e B, J?ão ape-
nas coisas verdadeiras, mas a verdadeira razão (C) por que todqs os A
possuem a propriedade B. Relacionada com esta encontra-se uma outra
condição: as premissas de uma demonstração têm de ser melhor conheci-
das do que a conclusão. Pois se, por hIpótese, é por serem C que todos o~
A são também B, só teremos conhecimento demonstrativo desse facto
quando a ordem do nosso conhecimento for idêntica à ordem da própria
realidade. Ou seja, uma vez que a relação A-C é a causa da relação A-B, o
nosso conhecimento só será demonstrativo e científico quando o conheci-
mento que temos da relação A-C ..for também a causa de conhecermos a
relação' A-B. Aquilo que é anterior na realidade tem de tornar-se também
anterior no nosso conhecimento. As verdades anteriores são, segundo
Aristóteles, as mais universais. Ora, não é por elas que, geneticamente,
começa o nosso conhecimento. Todavia, uma vez conhecidas, elas deve-
rão tomar-se primeitas no nossó conhecimento, isto é,. ao conhecê-las
devemos compreend6r que é delas que dependem os conhecimentos que
já possuíamos e não o inverso .
Esta diferença entre .a ordem pela qual os conhecimentos são desco-
bertos e a ordem pela qual são demonstrados mostra que as ciências só
podem atingir uma forma demonstrativa num estádio avançado do seu
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seja, padrões de argumentação que podem ser u.sados na discussão de
qualquer assunto. Efectivamente, a maior parte do tratado é p;~encli.ida
com uma extensa enumeração dessas formas argumentativas. O tratado
termina com um apêndice So.bre as Refutações Sofísticas, que constitui
um estudo dos principais tipos de paralogismos (ou falácias) - argumen-
tos que, sendo inválidos, possuem contudo uma enganosa aparência de
validade. .
Apesar' de terem sido escritos em períodos provavelmente distintos e
segundo uma ordem que não é exactamente conhecida, os principais trata-
dos do Organon possuem contudo uma certa unidade sistemática, pois ao'
estudo geraI do silogismo (nos Analíticos Anteriores} segue-se o estudo
específico dos seus principais tipos: o silogismo demonstrativo (nos
Analíticos Posteriores) e o silogismo dialéctico (nos Tópicos).
Precedendo estes três tratados surgem, no Organon, dois outros que, com
uma dimensão bastante mais reduzida; constituiriam uma espécie de pre-
paração para o estudo do silogismo: as Categorias e oDe Interpretatione.
A intenção que terá presidido à colocação destes dois tratados antes da
abordagem do silogismo parece ser clara: sendo os silogismos formados a
partir de proposições (tais como «Todo o homem é mortal», «Algum
homem não é grego», etc.) e as proposições constituídas por um relação
entre termos (tais como «homem», «mortal», «grego», etc.), deve ter
parecido necessário inserir antes dos Analíticos um estudo das proposi-
ções (o De Interpretatione) e, antes deste, um estudo dos termos (as
Categorias).
De facto, a análise das proposições efectuada no De Interpretatione é
um dos elementos que toma possível a formalização do sistema silogís-
tico dos Analíticos Anteriores. Começando por defInir proposição como
uma frase que pode ser verdadeira ou falsa, Aristóteles examina em
seguida as diversas propriedades possíveis das proposições (afIrmativas,
negativas, universais, particulares, etc.), obtendo assim uma classificação
dos seus diferentes tipos. Esta classifIcação permite então analisar as rela-
ções existentes entre as diversas espécies de proposições. Aristótelesinte-
ressa-se especialmente pelas rt<laçõesde oposição, distinguindo dois tipos
.principais de oposição - a contradição e a contrariedade. Duas proposic
ções são contraditórias quando uma tem de ser verdadeira e a outra falsa
(como, por exemplo, as proposições «Todo o homem é branco» e «Algum
homem não é branco»), enquanto as proposições contrárias são aquelas
que, n,ãopodendo ser ambas verdadeiras, podem contudo seI:ambas falsas
r...--.
! Categorias
desenvolvimento, quando se encontra já adquirido um corpo relativa-
mente completo de conhecimentos.
Se todos os nossos conhecimentos dependem das verdades primeiras,
de que é que, por sua vez, dependem estas? O nosso conhecimento acerca
da natureza, para tomar-se científico, tem de ser demonstrado a partir das
verdades primeiras, isto é, dos princípios básicos. O conhecimento destes
princípios é o problema com que terminam os Analíticos Posteriores.
Estes princípios, uma vez que são básicos, não podem ser demonstrados
(pois não há princípios anteriores a eles que lhes possam servir de premis-sas). Por isso, a derradeira condição de uma demonstração é que as suas
premissas sejam ou indemonstráveis ou demonstradas a partir de premis-
sas indemonstráveis. A indemonstrabilidade dos princípios de todo o
conhecimento científico deverá resultar, por um lado, de serem imediata-
mente inteligíveis e, por outro, de expressarem realidades absolutamente
primeiras, que, sendo causas de todas as outras coisas, não são elas pró-
prias causadas por nada.
Nem todo o silogism(), como vimos, é uma demonstração. Nos
Tópicos é analisado o silogismo dialéctico, que se defme por ser um tipo
de inferência cujas premissas s~o opiniões aceites ou por toda a gente ou
pela maioria ou pelosholTlens reconhecidos como mais sabedores.
O objectivo do tratado é ensinar a raciocinar e argumentar, a partir deste
tipo de opiniões, acerca de qualquer assunto que :;enos apresente. O argu- .
mento dialéctico é adequado sobretudo para aquele tipo de assuntos
acerca dos quais não parece ser possível nem sequer razoável exÍgir
demonstrações, como é o caso, por exemplo, no domínio da ética e da
política. Aristóteles menciona três actividades para as quais o conheci-
mento do modo dialéctico de argumentar pode ser especialmente útil: o
treino intelectual, as conversas ou discussões casuais e as ciêndas fIlosó-
ficas. No que respeita a estas últimas, é sublinhada a necessidade de os
princípios de cada ciência (uma vez que não podem, como vimos, ser
demonstrados) serem discutidos dialecticamente. A discussão dialéctica_é
sempre determinada pelo carácter particuhr do interlocutor que se tem
pela frente. Os Tópicos propõem preceitos para guiar a prática corrente de
discussões públicas, efectuadas segundo o esquema de pergunta e res-
posta, cuja melhor ilustração se encontra porventura nos diálogos socráti-
cos.
O título do tratado é derivado de uma palavra cuja tradução literal é
<~lugares»,mas cujo significado çorrente é o de «lugares-comuns», ou
16 CA-2 17
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Categorias
(como, por exemplo, as proposições «Todo o homem é branco» e
«Nenhum homem é branco»). Os exemplos com que Aristóteles ilustra a
sua análise são geralmente proposições assertóricas acerca de factos pre-
sentes. Todavia, o De lnterpretatione ocupa-se também das proposições
acerca do passado e do futuro e, além disso, das proposições acerca do
possível e do necessário (conhecidas como proposições modais) ..
As proposições simples afirmam ou negam alguma coisa de alguma
coisa. Aquilo que é afirmado ou negado constitui o predicado, enquanto
aquilo de que o predicado é afirmado ou negado constitui o sujeito da pro-
posição. O sujeito e o predicado são então os termos que compõem a pro-
posição simples. Pensou-se frequentemente que as Categorias seriam um
estudo dos termos a partir de cuja combinação as proposições são forma-
das. Esta ideia era confmnada, em primeiro lugar, pelo facto de a obra
anteceder o De lnterpretatione (que analisa as proposições e.que,por sua
vez, antecede a análise dos silogismos), mas também, em grande medida,
pelo seu próprio título. De facto, «categoria» é a transliteração de uma
palavra grega que significa predicado, de modo que, a fazer fé no seu
título, as Categorias seriam uma obra acerca dos predicados. Obviamente,
isto levantava a questão de saqer por que é que, aparentemente, seriam
excluídos de consideração o~/sujeitos. Mas esta questão podia ser facil~
mente respondida, mostrandó que aquilo a que em sentido mais estrito se
chama «as categorias» (a lista de dez categorias apresentada no cap.4 da
_'0 ....0~!~9.são,.n~().predic~dos quaisquer, mas os predicados últiinos de todos
os termos (sujeitos e predicados) possíveis. Simplesmente, nem a inclusão
das Categorias no Organon nem a escolha do seu título são da responsa-
bilidade de Aristóteles. Pelo contrário, a conjunção destas duas opções
indicia uma interpretação (de quem tenha sido o seu editor) que não é
suportada pelo conteúdo da obra.
\7 Efectivamente, aquilo de que Aristóteles primariamente se ocupa nas
---- Categorias não são as patavras ou expressões que constituem os termos
das proposIções, mas ant~s as coisas existentes. O objecto de que trata a
obra é, em primeiro lugar, o que existe. Aristóteles não pretende fazer
uma enumeração completa de tudo o que existe, pois isso seria, evidente-
mente, uma tarefa interminável e pouco proveitosa. O seuobjectivo é
antes o de elaborar uma classificação, tão completa quanto.possível, dos
tipos de coisas que existem, agrupando-as em espécies e Ílltegrando estas
espécies em géneros; até chegar à determinação dos géneros supremos.
Estes géneros supremos serão não só diferentes uns dos outros, mas
••
, Introdução
também irredutíveis, isto é, tais que não haja nenhum génerosuperior de
cuja divisão eles resultem. A lista de dez «categorias» apresentada por
Aristóteles pretende ser precisamente o resultado desta classificação: são
determinados dez géneros supremos, de tal modo que cada coisa que
existe deverá pertencer a um deles. O principal interesse desta classifica-
ção reside em permitir, uma vez determinados os géneros supremos, ana-
lisar as propriedades de cada um deles e as suas possíveis relações.
Na antiguidade, além do título Categorias, eram atribuídos à mesma
obra outros títulos alternativos. Entre estes, encontrava-se o título Sobre
os Géneros de Ser, o qual seria talvez mais adequado ao conteúdo da obra
do que aquele que acabou por ser adoptado.
As Categorias não constituem, portanto, um estudo linguístiéo, nem
sequer um estudo lógico, devendo antes ser consideradas como'perten-
cendo ao domínio da metafísica. Aliás, é precisamente a Metafísica a
outra obra de Aristóteles com a qual as Categorias possuem maior afini-
dade (embora aquela apresente um nível de elaboração muito superior).
Isto não significa que a teoria aí exposta não possua consequências para
outro tipo de estudos, nem impede que haja nela frequente recurso a con-
siderações de carácter linguístico. Mas, para compreender o papel que a
linguagem e as considerações linguísticas desempenham nas Categorias,
é necessário obter, primeiro, uma visão de-conjunto da obra, identificando
os seus principais temas e o tipo de metodologia por ela adoptado, o que
faremos na secção seguinte.
As Categorias
A estrutura da obra
Tal co.mo chegaram até nós, as Categorias são uma obra num único
livro, dividido em 15 capítulos. No entanto, parece muito provável que a
obra tenha resultado da junção de dois textos originalmente independentes:
por um lado, os caps. 1-9, que constituem o tratado original sobre os mais
elevados géneros de ser ou «categorias», o qual se encontra incompleto; e,
.por outro, os caps. 10-15, que compõem um texto a que falta unidade, onde
são analisadas uma série de noções (oposição, anterioridade, simultanei-
dade, etc.), mas sem que esta análise siga um fio condutor ou qualquer
ordem lógica. A passagem llblOc16, que procura fazer a transição entre os
dois textos, deverá ter sido inserida Pelo editor responsável pela sua junção.
), . . 18 19
r-,
Categoriás
Os tratados aristotélicos costumam começar com uma introdução,
onde se explica o tema e o objectivo da investigação, se apresenta o plano
e também o método a seguir. Nada disto se encontra nas Categorias, que.
começam de imediato com a exposição de certos conceitos, sem Q devido
enquadramento. Por outro lado, é também habitual em Aristóteles que o
tratamento de um tema seja antecedido por uma revisão crítica das posi-
çõesque. foram defendidas por pensadores anteriores. Ora, não só isto não
ocorre nas Categorias, como não há, em todo o texto, nenhuma menção a
perspectivas - diferentes ou condordantes - de outros filósofos.-' .
Embora incompleto, o texto dos caps. 1-9 possui uma unidade evi-
dente. O seu núcleo estruturador encontra-se !;lO capo 4, onde é apresen-
tada a lista das dez categorias: substância, quantidade, qualidade, relação,
lugar, tempo, posição, posse, acção e paixão (estas são as designações tra-
dicionais, mas não as que Aristóteles efectivamente utiliza). Aesta enu-
meração das categorias segue-se, nos capítulos seguintes, a análise
detalhada de cada uma delas. O capo 5 trata da substância, o capo 6 da
quantidade, o capo 7 da relação (mais exactamente: dos relativos) e o
capo8 da qualidade. O texto deveria continuar com o tratamento das res-
tantes seis categorias, mas, em vez disso, o capo9 dá início a uma exposi-
ção sobre as duas últimas da/lista (acção e paixão) e é subitamente
interrompido, ao fim de poucils linhas, em 11b8. Os três capítulos iniciais,
de reduzida extensão, contêm' uma apresentação preliminar de certas
noções cuja importância s6 posteriormente se torna evidente. O capo 1
expõe as noçÕes de homoníinia, sinonímia e paronímia. O capo2 distingue
expressões simples de expressões complexas e introduz as noções de pre-
dicação e inerência, atraves das quais se obtém uma classificação das coi:
sasexistentes em quatro grupos. E o capo3 estabelece a transitividade da
relação de predicação e introduz a noção de diferença ..
Os caps. 10-15 funcionam como uma espécie de apêndice das
. Categorias. Devido a isso, os opostos (caps. 10-11), o anterior (cap. 12),
o simultâneo (cap. 13), a mudança (cap. 14) e o ter (cap. 15) foram deno-
minados pela tradição «pós-predicamentos». Aristóteles distingue e caraé~
teriza quatro géneros de oposição: entre relativos, entre contrários, entre
privação e posse, e entre afirmação e negação. Dos diversos sentidos de
anterioridade e simultaneidade, aquele que Aristóteles considera ser o
mais próprio é o sentido temporal. Além deste, há contudo outros que
possuem especial importância: dadas duas coisas A e B, se A pode exi,stir.
sem B, mas B não pode existir sem A, A é anterior a B; se nenhuma delas
pode existir sem a outra, mas A é causa da existência de B, então A é
20
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I
Introdução
ainda anterior a Bi' pelo contrário, se nenhuma delas podeexis.tii sem a
outra e nenhuma delas. é causa da existência da outra, então A e B são
simultâneas. Quanto -à mudança, Aristóteles distingue seis espécies .:....
geração, destruição, aumento, diminuição, alteração e mudança de lugar -
e procura determinar o contrário de cada uma delas. No último capítulo,
são distinguidos os diversos sentidos do verbo.«ter».
A primazia das substâncias individuais
Das dez categorias, é à substância que cabe o primeiro lugar.
«Substância» é a tradução tradicional de uma palavra que, literalmente,
significa «realidade» ou «entidade». As coisas a que Aristóteles chama
«substâncias» não são as únicas coisas reais, mas são as mais importantes,
eé por isso que esta designação lhes é atribuída. A distinção entre a subs-
tância e as restantes nove categorias, que é uma distinção entre o principal
género de ser e os géneros secundários, constitui um dos pontos capitais
da teoria aristotélica. Ela é efectuada através da noção de inerência
(<<existirnum sujeito»), introduzida no capo2: todas as coisas que não são
substâncias (v.g. cores, conhecimentos, tamanhos, etc.) existem em algum
sujeito, enquanto as substâncias (v.g. homens, árvores e outros seres
vivos) não existem em nenhum sujeito. Aristóteles procurará provar no
capo5 que as substâncias, não existindo em nenhum sujeito, são elas pró-
prias os sujeitos em que as não-substâncias existem. E isto implica 'que a
existência destas se encontra dependente daquelas: é porque existem
homens que existem conhecimentos, é porque existem corpos que existem
cores, etc. Ora, é neste sentido que as restantes nove categorias consti-
tuem géneros secundários de ser: .
Paralelamente à noção de inerência, é também introduzida no capo2 a
noção de _predict;lção (<<serdito de um sujeito» ou «ser predicado de um
'sujeito»). Esta noção é utilizada sobretudo para distinguir dois tipos de
substâncias: as substâncias individuais e as substâncias universais. Um
homem .individual (v.g. Sócrates) e um cavalo individual (v.g. Relâm-
pago) são ambos substâncias e, por isso, sujeitos em que' existem cores,
. conhecimentos, tamanhos, etc. Porém, alémdis'so, estas duas substâncias
pertencem a espécies diferentes de um mesmo género, pois o primeiro é
um homem e o segundo é um cavalo e homens e cavalos são ambos ani-
mais. As' substâncias universais são, então, as'espécies eos géneros a que
as substâncias individuais pertencem. Os géneros predicam-se das
21
Categorias
espécies e dos indivíduos que lhes pertencem, as espécies predicam-se
somente dos indivíduos, enquimto estes não se predicam de nenhum
sujeito. As sy.bstânciasindividuais são, então, os sujeitos de que todas as .
substâncias universais se predicam. E, como a predicação é uma.relação
que envolve também dependência ontológica,'Aristóteles chama aos indi-
víduos «substânciasprimeiras» e às suas espécies e géneros «substâncias
segundas», pois estas só existem porque existem aquelas.
As noções de inerência e predicação, e as correspondentes distinções
entre substâncias e não-substâncias e entre substâncias primeiras e segun-
das, as quais envolvem relações de dependência ontológica, permitem então
.\ a Aristótelesformular aquela que é a principal tese das Categorias: as subs-
tâncias primeiras são sujeitos de todas as outras coisas e, por isso, se não
existissemsubstânciasprimeiras, nenhuma outra coisa poderia existir.
Embora, como referimos, não haja nas Categorias nenhum outro f1ló-
sofo com quem Aristóteles estabeleça um diálogo explícito, é muito pro-
vável que Platão seja o principal visado por esta tese. De facto, Platão
considerava que o principal tipo de realidade (a «substância primeira»)
seriam as Formas inteligíveis, tais como o Homem, a Virtude, o Bem,
etc., e não os seres individuais e sensíveis de que elas se predicam. O ser
das coisas sensíveis ser-lhes~ia conferido pela sua participação nas
Formas. Em oposição a esta .perspectiva, Aristóteles argumenta que uni-
versais como Homem e ~nimal não constituem coisas singulares
(nenhum deles é um «isto»), mas apenas qualificações. A sua existência
~__.....__~2.I}~~st~,~~~~!.e~~it()s,de 'muitas coisas e, por isso, não podem subsistir
separadamente destas, pois são estas' que lhes servem de suporte ontoló-
gico, isto é, de sujeito.
, A pergunta «O que é...?»
Se as' sub~tâncias individuais são o suporte de todas as outras coisas,
há no entanto doi,smodos irredutivelmente distintos de estas serem supor-
tadas por aquelas: as outras coisas ou existem nas substâncias primeiras
.ou são ditas delas. Mas qual é o critério que permite distinguir a predica-
ção da inerência? Por que é que, por exemplo, o homem é dito de Cálias,
mas não existe em Cálias, enquanto o conhecimento existe em Cálias,
mas não é dito de Cálias?
É conhecida a imp~rtância que a pergunta «O que é...?» desempenha
nos diálogos socráticos. Neles, Sócrates interroga diversos interlocutores
22
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;
Introdução
acerca da virtude e refuta-os, demonstrando asua,incapacidade ..para res-
ponder à pergunta «O que é..~(a coragem, a justiça, a temperança, etc.)?»
De acordo com isto, Aristóteles diz na Metafísica que Sócrates foi o pri-
meiro a ocupar-se das definições (cf. 987bl-4, 1078b17-30), sendo que a
defmição é precisamente o que a pergunta «O que é...?» pede como res-
posta. Ora, esta pergunta, que foi crucial para o desenvolvimento da filo-
sofia, desempenha também uma importante função nas Categorias e é
numa sua interpretação que assenta a:distinção entre predicação d inerên-
cia.
A definição, enquanto resposta à pergunta «O que é...?», deverá ser
expressa através de uma frase predicativa, isto é, uma frase da forma «S é
P» (ou simplesmente «S P», nos casos em que «P» é um verbo). Todavia,
Aristóteles considera que nem todas as frases predicativas que têm «S»
como sujeito são susceptíveis de constituir uma definição de S. No cap..S,
é dado um exemplo significativo. Imagine-se que a pergunta «O que é...?»
é feita acerca de um homem - Cálias, por exemplo. Aristóteles diz então
que, a esta pergunta, pode responder-se «Cálias é (um) homem» ou«Cálias é (um) animal» (o grego não possui artigo indefinido), enquanto
respostas como «Cálias é branco» ou «Cáliai corre» já não são aceitáveis
(cf. 2b31-36). Pois, ao dizer que Cálias é branco, estamos apenas a indicar
uma qualidade - a cor branca ou a brancura - que ele possui, mas Cálias
não é uma cor nem uma qualidade. E, do mesmo modo, ao dizer que
Cálias corre, estamos a indicar uma acção - a acção de correr - que ele
realIza, mas Cálias não é uma acção. Por isso, a brancura e o correr, ape-
sar de serem propriedades ou atributos de Cálias, não dizem o que ele é.
São coisas que existem em Cálias, mas que não são ditas dele. Pelo con-
trário, o homem e o animal são, respectivamente, a espécie e o género a
que o indivíduo Cálias pertence e a definição de uma coisa é feita pela
indicação da sua espécie ou do seu género.
No el}tanto,a brancura pode também ser indicada numa resposta à
perguntá «O que é...?», se esta pergunta for feita, não acerca de um
homem, mas acerca de uma cor. Esta possibilidade está presente numa
importante passagem dos Tópicos (cap. 19), onde Aristóteles introduz as
categorias, relacionando-as direétamente com a pergunta «O que é.;.?». '
. Diz ele que «a pessoa que significa o que uma coisa é significa por vezes
uma substância, por vezes uma qualidade e por vezes um dos outros' pre-
dicados. Pois quando se está a discutir sobre um homem e uma pessoa diz
que o que está sob discussão é um homem ou que é um animal, está a
dizer ,o que é e a significar uma substância; mas quando se está a discutir
23
Categorias
uma cor branca e uma pessoa ~iz que o que está sob discussão é um
branco ou que é uma cor, está a dizer o que é e a signifIcar uma qualidade.
E, de modo semelhante, se se está a discutir uma grandeza de um côvado
e uma pessoa diz que o que está sob discussão é uma grandeza de. um
côvado, estará a dizer o que é e a significar uma quantidade. E o mesmo
se verifica com os outros predicados». Conclui-se daqui que a pergunta
«O que é ... ?» pode ser feita acerca de diversos tipos de coisas, mas
quando é feita acerca de uma substância a resposta deverá indicar também
uma substância, quando é feita acerca de uma qualidade a respósta deverá
indicar uma qualidade, e assim por diante. A predicação é, portanto, uma
relação intracategorial: substâncias predicam-se de substâncias, qualida-
des de qualidades, etc. Aristóteles sublinha este ponto quando diz que
«cada uma destas coisas, se é dita acerca de si mesma ou se o seu género
é dito acerca dela, significa o que é». Mas, de seguida, Aristóteles reco-
nhece outra possibilidade; que corresponde antes à relação intercategorial
de inerência: «mas quando ela é dita acerca de uma outra coisa, não signi-
fIca o que é, mas sim uma quantidade ou uma qualidade ou algum dos
outros predicados». Ou seja, se os predicados «branco» e «de um côvado»
forem afirmados, não acerca de uma cor e de uma grandeza, mas acerca
de um homem, neste caso já não significarão o que é, mas antes uma qua-
lidade e uma quantidade dess~homem - coisas que existem nele, mas não
se predicam dele.
Sinonímia, homonímia e paronímia
A distinção entre sinonímia e homonímia compreende-se facilmente
em ligação com a pergunta «O que é...?». Efectivamente, sempre que a
pergunta «O que é ...?» é feita acerca de um género G, a definição que da{
resulta deverá ser predicável de tudo aquilo de que o nome «G» se pre-
dica. Ora, isto implica que todas as coisas que pertencem a esse género
serão sinónimas, pois possuem em comum um mesmo nome e a mesma'
definiçãà. É o que se passa, por ex~mplo, com tudo o que pertence ao
género animai: o nome «animal» e a definição de animal (seja, por exem-
plo, «ser vivo dotado de percepção») predicain-se de todas as espécies e
indivíduos que pertencem ao género animal, sejam eles homens, cavalos
ou cães. .
Todavia, existem casos em que isto não se verifIca. Se, por exemplo, à
pergunta «O que é o lilás?» for dada como resposta «uma flor», esta
24
IntrodiJção
defInição não será predicáyel de tudo aquilo de que o nome «lilás» se .pre-
dica, pois «lilás» é também o nome de uma cor. Este é um caso deliomo-
nímia, em que flores e,cores possuem o mesmo nome, mas não admitem a
mesma definição. A homonímia é uma situação excepcional, mas a sua
identificação é importante, pois revela a necessidade de, antes de pergun-
tar «O que é G?», examinar se o nome «G» tem ou não sentidos diferen-
tes. É no prolongamento desta ideia que Aristóteles afirma na Metafísica
que «procurar os elementos dos seres, sem distinguir os diversos sentidos
segundo os quais eles são chamados seres, não pode resultar em nenhuma
descoberta» (992b18-19). Por isso, a investigação acerca do ser tem de ser
precedida por uma análise dos seus diferentes sentidos, pois animais,
cores, grandezas, conhecimentos, acções, etc., são todos eles seres, mas
não no mesmo sentido - uns são substâncias, outros qualidades, outros
quantidades, etc.
As diversas coisas que pertencem a um mesmo' género ou a uma
mesma espécie são, portante, sinónimas. Mas a sinonímia verifica-se tam-
bém entre cada coisa e a espécie ou o género a que pertence, pois estes
são ditos dela e Aristóteles afirma, em 2aI9-21, que «o nome e a defIni-
ção das coisas que são ditas de um sujeito predicam-se necessariamente
do sujeito». Assim, se uma coisa P se predica de um sujeito S, o nome e a
defInição de P, que se predicam de P, predicam-se também de S e, por-
tanto, S e P serão coisas sinónimas. Por exemplo: animal predica-se de
homem e o nome e a definição de animal predicam-se tanto de animal
como de homem, pelo que estes são sinónimos. Isto mostra que a sinoní-
mia é uma propriedade necessária da relação predicativa.
Mas sea predicação é sempre sinonímica, a inerência, pelo contrário,
nunca o é. Quando uma coisa P existe num sujeito S, não é nunca o caso
de o nome e a defInição de P se predicarem de S (cf. 2a27-31). Por exem-
plo, a coragem existe em Cálias, mas nem o nome «coragem» nem a defI-
nição «uma virtude» se podem predicar de Cálias. A sinonímia fornece,
então, um teste para distinguir a predicação da inerência. Quando a rela-
ção entre S e P é de predicação, S será tudo o que P é (v.g. se o homem 'é
um animal e o animal é um ser vivo, então o homem é também um ser
vivo); mas quando. a relação entre S e P é de inerência, S não será nunca o
. que Pé (v.g. a coragem existe no homem e a coragem é uma virtude, mas
o homem não é uma virtude).
A inerência é acompanhada, na maior pMte dos casos, por uma relação
paronímica. Vimos que, qUando a coragem existe em Cálias, nem o nome
nem a defmição de coragem se predicam de Cálias. Nesse caSo, o que se
25
Categorias
"o
~.-
r'
c.
29
Introduça,o
famíliar, e é por aí que qualquer investigação deve começareM. V.g.
Física, 184aI6-21). ' ,";
Mas, além disso, estas crenças comuns dão frequentemente dp.gem a
dificuldades ou «aporias», cuja resolução é também uma das: tarefas
essenciais do método dialéctico. Tais dificuldades resultam do conflito
entre argumentos que, embora pareçam ser igualmente convincentes e
igualmente baseados em crenças comuns, sustentam, no entanto, conclu-
sões que são contrárias (cf. Tópicos, 145bI6-20). Embora haja outras
obras de Aristóteles onde o método de resolução de aporias (também cha-
mado «método diaporemático») está presente de uma forma bastante mais
explícita do que nas Categorias, também aqui existem numerosos exem-
plos da sua utilização. É o caso da passagem [mal do capo 5,. onde, depois
de afirmar que a capacidade de receber contrários é própria das substân-
cias, Aristóteles enfrenta a objecção de que também as opiniões e as
declarações são capazes de receber valoreS de verdade corttráhos (cf.
4a21-bI8). É também o caso, no capo 6, da passagem onde se discute. se é
ou não verdade que nenhuma quantidade tem contrário; pois grande e
pequeno, muito e pouco, parecem ser quantidades e também contrários
(cf. 5bll-6all e também 6all-15). No capo 7 encontram-se três exemplos
maiores, em três importantes discussões: sobre areciprocidade (cf. 6b36-
-7bI4) e, a simultaneidade (cf. 7bI5-8aI2) dos correlativos, e sobre a
impossibilidade de quaisquer substâncias serem relativos (cf. 8a13cb21).
Significativamente, o capítulo termina com uma observação sobre a utili-
dade de analisar cada uma destas dificuldades (cf. 8b21-24). No final do
capo 8 é analisada a aporia resultante da inclusão dos estados e das dispo-
sições na categoria dos relativos e também na da qualidade (cf. lla20-
-38). Poderiam acrescentar-se outros exemplos (cf. 3a29-32, 3bl0-23,
lOb30-11aS,'13bI2-16, 15a17-33), mas estes são sem dúvida os mais sig-
nificativos e fornecem uma ilustração suficiente de um dos aspectos do
método dialéctico utilizado por Aristóteles nas Categorias. "
Mas, mais ainda do que a resolução de aporias, o recurso à indução é o
que sobretudo caracteriza as Categorias. A indução é uma forma de argu-
mento dialéctico que Aristóteles define como «a passagem das co~sas par-
ticulares para as universais» (cf. -Tópicos, I 12). Precisamente porque as
, coisas particulares são as que se encontram mais próximas da nossa expe-
riêncÍli, a indução é uma forma argumentativa bastante acessível e convin"
cente, que procura fixar a nossa atenção sobre aquilo que, nessa mesma
experiência, nos pode conduzir a conhecimentos universais. Seria fasti-
dioso fazer uma enumeração dos diversos argumentos indutivos que
1. Na maior parte dos casos, a predicação das qualidades envolve
paronímía, mas existem excepções (lOa27-bll);
2. Algumas qualidades têm contrário, mas nem todas (lObI2-25);
3. Algumas qualificações admitem mais e menos, mas nem todas
(lOb26-11aI4);
4. É em virtude da qualidade que as coisas são ditas semelhantes ou
dissemelhantes (característica própria) (llaI5-19).
1. Alguns relativos têm contrário, mas nem todos (6bI5-19);
2. Alguns relativos admitem mais e menos, mas nem todos (6bI9-27);
3. Todos os relativos são ditos em relação a correlativos que 'recipro-
cam (6b28-7bI4);
4. A maior parte dos relativos são simultâneos, mas existem excepções
(7bI5-8aI2).
o método característico das obras filosóficas de Aristóteles é dialéc"
tico e as Categorias confirmam também esta regra. O método dialéctico
(descrito, nos seus traços gerais, nos Tópicos, 11-4 e 10-12) é um método
de investigação que toma como ponto de partida as opiniões ou crenças
comuns, ou seja, aquilo que parece a toda a gente ou à maioria das pes-,
soas ou ainda aos homens reconhecidos' como sabedores. Aristóteles atri-
bui grande importância a estas crenças comuns, uma vez que elas
constituem a base a partir da qual o nosso próprio conhecimento pode ser
aumentado. Pois toda a aquisição de novos conhecimentos se efectua a
partir de um conhecimento preexistente (cf. Analíticos Posteriores, 71al-
-2) e as crenças comuns são precisamente aquilo que pensamos já saber.
Elas constituem aquilo que é mais claro para nós, ou que nos é mais
Fazer e ser afectado (cap. 9):
1. Faz~r e ser afectado tê,Iric.ontrário (llbl-4);
2. Fazer e ser afectado ádmítem mais e menos (lI b4-8).
o método dialéctico
Qualidade (cap. 8):
Relativos (cap. 7):
'\
'...,,~ 28
..,
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1-
I
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Categorias
ocorrem nas Categorias, tão elevado é o seu número. Qualquerleitor da
obra'se apercebe de imediato qúe a maioria dos princípios nela afirmados
como universais são apoiados pela inspecção de um número limitado de.
casos particulares, apresentados como exemplos. Aliás, por vezes,
Aristóteles utiliza mesmo fórmulas do tipo «isto é evidente pelos casos
particulares que se nos apresentam» (2a35-36) ou «isto é manifesto por
indução a partir dos casos particulares» (13b36-37). A título ilustrativo,
sublinhe-se o carácter claramente indutivo daquele que é talvez o prinêi~
paI argumento das Categorias: para estabelecer que as substâncias primei-
ras são sujeitos de todas as outras coisas, Aristóteles considera dois
exemplos - o animal e a cor - e mostra como eles só se predicam de, ou
existem em, outros sujeitos, porque se predicam de, ou existem em, subs-
tâncias primeiras (cf. 2a34-b5); espera-se então destes exemplos que tor-
nem evidente que o mesmo acontece em todos os outros casos.
O uso que as Categorias fazem da indução possui, contudo; uma parti-
cularidade: as «coisas particulares» que lhe servem de ponto de partida
são, na sua maior parte, exemplos do uso linguístico de determinadas
expressões. O método das Categorias não é um método de investigação
empírica, mas sim dialéctica. Por isso, o seu ponto de partida não são as
observações empíricas ou os dados da percepção (como acontece, por
exemplo, nas obras que tratam de biologia ou de astronomia), mas shu as
«crenças comuns». Simples,mente, neste caso, as «crenças comuns» em
que Aristóteles se baseia nao são tanto opiniões expressas pelas pessoas
acerca de diversos assuntos, mas sobretudo a sua prática lfuguística e a
estrutura conceptual que nela se encontra implícita (aquilo a que se pode-
ria chamar o saber de que a própria língua é depositária). Daí o constante
recurso, ao longo de toda a obra, àquilo que é dito. Vejamos alguns dos
exemplos mais significativos.
Para provar que grande e pequeno são relativos, Aristóteles apoia-se
no uso qu~ fazemos dos predicados «grande» e «pequeno»: «se uma coisa
fosse dita pequena ou grande por si mesma, nunca a montanha seria dita
pequena, enquanto o grão de milho é dito grande» (5b20-22). Do mesmo
modo, «dizemos também haver muitos homens numa aldeia e poucos em
Atenas, embora estes sejam muito mais numerosos» (5b22-24), o que
prova que muito e pouco são igualmente relativos ..É, aliás, recorrendo
também a um critério linguístico que Aristóteles descreve os relativos
como «aquelas coisas que são ditas ser o que são de outras coisas» (6a36-
-37). Pois aquilo em que esta descrição se apoia é o facto de a predicação
de termos como «o dobro», «escravo», «conhecimento», etc., ter de ser
30 .
lo
Introdução
complementada por um genitivo: A é o dobro. de B, A é escravo de B,
A tem conhecimento de B, etc. Inversamente, por e~emplo, a gramática e
a música não são relativos, pois «a gramática não é dita gramática de .
alguma coisa, nem a música, música de alguma coisa» (11a27-28).
Também a distinção entre estado e disposição é suportada pelo uso
linguístico: «É evidente que as pessoas pretendem chamar estados àquelas
coisas que são mais duráveis e mais difíceis de mudar. Pois, daqueles que
não dominam completamente um conhecimento e são fáceis de mudar,
não se diz que têm um estado; embora estejam certamente em alguma dis:
posição - pior ou melhor -em relação ao conhecimento» (9a4-8). E o
mesmo se verifica com a distinção entre qualidade e afecção: «Pois nem
a pessoa que fica vermelha por se envergonhar é dita avermelhada, nem a
pessoa que empalidece por se atemorizar é dita pálida, mas diz-se antes
que foram afectadas de algum modo. Por conseguinte, chama-se a isto
afecções, mas não qualidades» (9b30-33).
Todos estes exemplos revelam que Aristóteles toma a linguagem
como uma base segura a partir da qual se podem concluir determinadas
propriedades e características da própria realidade. Quando observa, por
exemplo, que «se tivermos de dizer quão longa é uma acção, determi-
namo-lo pelo tempo, dizendo que é de um ano ou qualquer coisa deste
tipo» (5b4-6), Aristóteles não pretende apenas registar um facto linguís-
tico. Ele examina este tipo de factos linguísticos porque considera que
eles revelam importantes propriedades da realidade extralinguística; neste
caso, trata-se de um uso linguístico que revela o facto de as acções não
serem por si mesmas quantidades. De modo idêntico, o facto de à per-
gunta «O que é Cálias?» se poder responder «Cálias é um homem», mas
não «Cálias é branco» (cf. 2b31-36), mostra que o homem e o branco são
coisas de tipos diferentes.
Porém, este procedimento metodológico foi muitas vezes tomado
como prova de que as Categorias constituiriam uma investigação essen-
cialmente linguística. O principal vício desta interpretação reside em con-
fundir o método com o objecto. Oobjecto de que tratam as Categorias é
expressamente nomeado em lalO: «as coisas que existem». A função das
considerações linguísticas a que a'obra frequentemente recorre tem de ser
.enquadrada numa compreensão do método dialéctico adoptado por
Aristóteles. Ao mesmo tempo, ela pressupõe uma determinada posição
filosófica acerca das relações entre a linguagem e a realidade, entre as
palavras e as coisas. Aristóteles considera que, em geral, aquilo que dize-
mos expressa correctamente o que as coisas são. É esta confiança geral na
31
l..!.;•.•'...•. ,."!,
I
Categorias
correcção da linguagem que lhe permite usá-la como forma de acesso à
realidade, apoiando-se frequentemente em factos linguísticos e usando-os
para testar as conclusões a que chega. No entanto, o intuito original da
investigação é alargar o nosso conhecimento acerca das coisas e não das
palavras com que as significamos (embora uma coisa deva muito prova- .
velmente implicar a outra).
A referida correcção da linguagem admite, no entanto, excepções.
E, por isso, li confiança nessa meSma correcção não exclui a necessidade
de vigilância. Aristóteles não se considera obrigado a aceitar tudo o que
a linguagem institui e, por diversas vezes, vemo-lo a argumentar para lá
da linguagem, corrigindo-a e apontando as suas deficiências. A sua preo-
cupação com a homonímia (cf. 1a1-6) é um claro exemplo disso: trata-se
de evitar ser enganado pela frequente equivocidade das palavras. Também
quando argumenta contra o erro de tratar os universais como seres auto~
-subsistentes (como constituindo um «isto»), Aristóteles reconhece que
esse erro é de certo modo induzido pela própria linguagem (pela forma
substantiva como são nomeados) (cf. 3b13-18). Além disso, são diversas
as passagens das Catego.rias onde Aristóteles se refere a coisas para as
quais não existem nomes'(cf. 7a13, 10a32-b2, 12a21-25). E, em 7a5 e
segs., chega mesmo a proporque, em certos casos, se inventem nomes.
Perante tais factos, dific~eÍ1te se pode continuar a sustentar o carácter
essencialmente linguístico/da investigação levada a cabo nas Categorias.
~. Introdução
;1"
,O texto
o texto que serviu de base à presente tradução é o estabelecÍdopor
L. Minio-Paluello em 1949, com as correcções introduzidas em 1956
(publicado na colecção Oxford Classical Texts, da Oxford University
Press).
Adoptamos, contudo, as seguintes alterações propostas por J. L.
Ackrill (1963): .
• em 1b16, ler «heterôn genôn» em vez~e«heterogenôn» (V\lriante
suportada pelos manuscritos); . "
• omissão das linhas 2b6-6c (que são uma simples repetição de '2b3-6);
,. em 8h18-19, ler «ouk anankaion estin eidenai hôrismenôs» 'dm vez
de «ouk estin eidenai hôrismenôs» (conjectura de Ackrill).
33
;
,;
CA.332
""2.
~- )
[(--- --M:~:::~i:~::er p""agemda,obrasdeAristótelesfaz~, rm
regra, indicando a página, a coluna e a linha da edição do texto grego rea-
lizada por Immanuel Bekker (Berlim, 1831). Assim, por exemplo, com a
indicação «3b10» .referimo-nos à linha 10 da coluna bda página 3 dessa
edição. São estes os números que aparecem à margem da tradução.
Assinale-se, porém, que numa tradução a correspondência do número da
linha não éexacta, mas apenas aproximada (pois cinco linhas no texto
grego podem resultar em seis ou sete linhas na tradução portuguesa).
Além disso, as obras de Aristóteles são habitualmente divididas em
livros (embora não seja o caso das Categorias) com diversos capítulos.
A numeração romana é usada para os livros e a árabe para os capítulos.
Assim, por exemplo, «Tópicos, IV 3» indica o capítulo 3 do livro IV dos
Tópicos. .1
Categorias
Tradução de Ricardo Santos
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I .j ,u..._-__.:
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III
Aristóteles
Capítulo 1
Categorias
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..•
.Chamam-se homónimas as coisas que só têm o nome em cqmum,la
el}quanto a definição do ser que corresponde ao nome é diferente, Assim,
por exemplo, um homem e um desenho são ambos animais(l),Mas eles só
têm o nome em comum, enquanto a definição do ser que corresponde ao
nome é diferente; pois se tivermos de dizer o que é para cada um deles ser 5
um animal, daremos urna definição diferente para cada um. ..,
Chamam~se sinónimas as coisas que têm o nome em comum e em que
a definição do ser que corresponde ao nome é a mesma, Assim, por exem-
plo, um homem e um boi são ambos animais. Cada um deles é chamado
pelo nome comum «animal», e a definição do ser é a mesma; pois se 10
tivermos de dizer qual é a definição de cada um - o que é para cada um
deles ser um animal.:...,daremos a mesma defmição.
Chamam-se parónimas as coisas que recebem o seu nome de alguma
outra coisa, com l,lma diferença de terminação, Assim, por exemplo, o
gramático recebe o seu nome da gramática e o corajoso recebe o seu.
nome da coragem. 15
(1) O exemplo dado por Aristóteles não funciona em português, porque a palavra grega qUe
traduzimos por «animal» tanlo significa (a) anima/como (b) figura ou imagem art(stica; por isso,
ela tanto pode ser aplicada a um h6mém (no primeiro sentido) como a um desenho (no
segundo sentido). '
37
1 1 ••~ ;:~......Categorias CapItulo 5fi', la ,j lb
ji
Capítulo 2 :1 renças de géneros subordinado~ uns aos outros sejam as mesma9;pois os,I'I I
I I mais elevados predicam-se dos géneros abaixo deles, de modo que todas as
'j Das expressões que dizemos, umas são ditas por combinação e outras I ~ diferenças do género predicado serão também diferenças do sujeito.
! são-no sem combinação. As que são ditas por combinação são, por exem- I',1
I
pIo, «o homem corre», «o homem vence»; as que o são sem .combinação J
são, por exemplo, «homem», «boi», «corre», «vence». "i ,Capítulo 4
20 j Das' coisas que existem, [Uumas são ditas de algum sujeito, mas não ...i
:1 existem em nenhum sujeito. Por exemplo, homem é dito de um sujeito, a •. 'ri Das expressõe~ que são ditas sem qualquer combinação, cada uma sig-" 25
I saber, de um certo homem, mas não existe em nenhum sujeito. [2] Outras ',!I nifica ou uma substância, ou uma quantidade, oU uma qualificação, ou umr
,~
existem num sujeito, mas não são ditas de nenhum sujeito (com «nUm i relativo, ou onde, ou quando, ou estar numa posição, ou ter, ou fazer, ou"
sujeito» quero dizer aquilo que existe em alguma coisa, não como uma sua
':r
ser afectado. Para dar apenas uma ideia, uma substância é, por exemplo::i
parte, e que não pode existir separadamente daquilo em que eifste). Por
"j
«homem», «cavalo»; uma quantidade: «de dois côvados», «de três côva-25 ,
exemplo, um certo conhecimento gramatical existe num sujeito, a saber, na <1 dos»; uma qualificação: «branco», «gramatical»; um relativo: «o dobro»,
alma, mas não é dito de nenhum sujeito; e um certo branco existe nUJR «metade», «maior»; onde: «no Lice~», «na praça»; quando: «ontem», «o 2a
sujeito, a saber, no corpo (pois toda a cor existe num corpo), mas não é dito 'í ano passado»; estar numa posição: «está deitado», «está sentado»; ter:
lb de nenhum sujeito. [3] Outras são ditas de um sujeito e existem num sujeito. I «está calçado», «está armado»; fazer: «cortar», «queimar»; ser afectado:Por exemplo, o conhecimento existe num sujeito, a saber, na ahÍl.a, e é dito de «ser cortado», «ser queimado».
um sujeito, a saber, da gramática. [4] Outras ainda nem existem num sujeito ,I Nenhuma destas expressões dita por si mesma é uma afIrmação, mas é 5
nem são ditas de um sujeito. Por exemplo, um certo homem ou um certo lj antes pela combinação de umas com as outràs que se produz uma, afIrma-
5 cavalo; pois nenhum destes eXiste num sujeito nem é dito de um sujeito. Em ' 'I: ção. Pois toda a afirmação parece ser ou verdadeira ou falsa; mas nenhuma
geral, as coisas individuais'~ numericamente umas não são nunca ditas de um
. <i'
das expressões que são ditas sem qualquer combinação (como, por exem-j.'1
'I sujeito, mas nada impedé qüe algumas existam num sujeito; pois um certo T pIo, «homem», «branco», «corre», «vence») é verdadeira ou falsa. 10'-, conhecimento gramatical, é algo que existe num sujeito.
i _1I. ...-__ ,.
,h Capítulo 5I. A,1I Capítulo 3 r Substância - aquilo a que chamamos substância de modo mais pró-I
:1 Sempre que uma coisa se predica de uma outra como de um sujeito, l\10 I prio, primeiro e principal - é aquilo que nem é dito de algum sujeito nem
i1 todas ás coisas que são ditas daquilo que é predicado serão também ditas
i., existe em algum sujeito, como, por exemplo, um certo homem ou um
li do sujeito. Por exemplo, homem predica-se de um certo homem e animal I z. certo cavalo/Chamam-se substâncias segundas as espécies a que as coisas" j" predica-se de homem e, por isso, animal predicar-se-á também de um primeiramente chamadas substâncias pertencem e também os génerosI 15i :!I;:! certo homem;. pois um certo homem é um homem e também um ~al. dessas espécies. Por exemplo, um certo homem pertence à espécie
"
15
i; As diferenças degéneros distintos(2) e não subordinados uns aos outros -- . i. homem, e animal é o género da e.spécie; por conseguinte, homem e ani-l' í.li são elas também de tipos distintos. Por exemplo, animal e conhecimento: I mal são chamados substâncias segundas.lj,-,
pedestre, voador, aquático e bípede são diferenças de animal, mas nenhuma ;~. / É evidente, pelo que foi dito antes, que o nome e a definição das coisasIr L 3
11
delas é uma diferença de conhecimentO; pois um conhecimento não ctifere .' que são ditas de um sujeito se predicam necessariamente do sujeito. Por 20
I: 20 de outro conhecimento por ser bípede. No entanto, nada impede que as dif~~ exemplo, homem édito de um sujeito, a saber, de um certo homem, e é claroque o nome se predica (pois prediCarás «homem» de um certo homem); e a
(2) Adoptamos a leitura helerôn genôn, em vez de helerogenôn (1b16). definição de homem predicar-se-á de um certo homem (pois um certo /'
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Categorias :f Capítulo'S
41
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substância do que outra; pois um certo homem não é mais substância do
que um certo boi.
É então com razão que, além das substâncias primeiras, as espécies e os
géneros são as únicas outras coisas que são chamadas substâncias segundas. 30
Pois elas. são as únicas, entre as coisas que se predicam, que revelam a subs-
tância primeira. Pois se tivermos de dizer de UlJl certo homem o que ele é,
será adequado responder indicando a espécie ou o género (e mais informa-
tivo fazê-lo com «homem» do que com «animal»); mas indicar qualquer das
outras coisas será deslocado - por exemplo, dizer «branco» ou «corre» ou. 35
qualquer destas coisas. Deste modo, é com razão que estas são as únicas
outras coisas que são chamadas substâncias. Além disso, é porque as subs-
tâncias primeiras são sujeitos de todas as outras coisas que elas são mais pro-
priamente chamadas substâncias. Mas tal como as substâncias primeiras
estão para todas as outras coisas, assim as espécies e os géneros das sqbstân-
cias primeiras estão para tudo o resto; pois tudo o resto se predica delei Pois
se chamasa'um certo homem «gramático», então também chamas ~<rtainá-.
tico» ao homem e ao animal; e do mesmo modo para as outras coisas ..:
'É comum a todas as substâncias não existir num sujeito. Pois a stibstân-
cia primeira nem é dita de um sujeito nem existe num sujeito. Da mesma
maneira, também é evidente que as substâncias segundas não existem num
sujeito. Pois homem é dito de um sujeito, a saber, de um certo homeDJ, mas
não existe num sujeito (pois o homem não existe num certo homem) ..E, do
mesmo modo, também animal é dito de um' sujeito, a saber, de u~' certo
homem, mas o animal não existe num certo homem. Além disso, enquanto
nada impede que o nome das coisas que existem num sujeito seja por vezes
predicado do sujeito, é impossível que a defmição o seja. Mas tantó o nome
como a defInição das substâncias segundas se predicam do sujeito; Bois pre-
dicarás a defInição de homem de um certo homem, e também a definição de
animal. Portanto, nenhuma substância existe num su'eito. 20
Todávia, isto não é próprio da substância, uma vez que também a dife-
rença não existe num sujeito. Pois pedestre e bípede são ditos de um sujeito, a
saber, do homem, mas não existem num sujeito (nem o bípede nem o pedes-
tre existem no homem). E a definição da diferença predica-se daquilo de que 25
a diferença é dita. Por exemplo, se pedestre é dito do homem, também a defI-
.nição de pedestre se predicará do homem; pois o homem é pedestre.
O facto de as partes das substâncias existirem nos respectivos todos
como em sujeitos não deve perturbar-nos, nem devemos recear ser força- 30
dos a ad.rD.itirque elas não são substâncias. Pois não foi como coisas que
existem em algo como suas partes que definimos as coisas em um sujeito.
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I
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i
1
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. (3).. Omitimos as linhas 2b6-6c, que são uma repetição.
2a
25 homem é também um homem). De modo que tanto o nome como a defini-
\.{ ção predicar-se-ão do sujeito,fÍ1as quanto às c~isas que exi,stem nu~ ~ujeito,
na maioria dos casos, nem o nome nem a defuução se predIca do sUJeIto.Em
alguns casos, nada impede que o nome se predique do sujeito, m~, quanto à
30 defInição, isso é impossível. Por exemplo, o branco, existindo num sujeito, a
saber, no corpo, predica-se do sujeito (pois um corpo é dito bnmco); mas a
definição de braiIco jamais se predicará do corpo.
"$ / Todas as outras coisas ou são ditas das substâncias primeiras como de
35 sujeitos ou existem nelas C0mo em sujeitQs. Isto é evidente pelos casos parti-
culares que se nos apresentam. Por exemplo, animal predica-se do homem e,
portanto, também de um certo homem; pois 11enão se predicasse de nenhum
2b 6 dos homens individuais, não seria de todo predicado do homem/Do mesmo
í . -modo, a cor existe no corpo e, portanto, também num certo corpo; pOISse nao
existisse em nenhum dos corpos individuais, não poderia de todo existir no
corpo. Assim, todas as outras coisas ou são ditas das substâncias primeiras
5 como de sujeitos ou existem nelas como em sujeitos. Por conseguinte, se as
substâncias primeiras não existissem, nenhuma 'outra coisa poderia existir.(3)
4- - Das substâncias segundas, a espécie é mais substância do qae o
género,' pois está mais prÓximo da substância primeira. Pois se tivermos.
de dizer de uma substância 'primeira o que ela é, será mais informativo e
10 mais adequado indicar a ~spécie do que indicar o género. Por exemplo, de
um certo homem será q1~lis'informativo dizer qu~ é um homem do que
dizer que é um animal (pois o primeiro é mais próprio de um certo
,_, ..h.QD)em,enquanto o segundo é mais comum); e, para dizer o que é um
certa árvore, será mais informativo dizer que é uma árvore do que dizer
15 que é uma planta. Além disso, é porque as substâncias primeiras. são
sujeitos de todas as outras coisas, e todas as outras coisas ou se predieam
delas ou existem nelas, que elas são principalmente chamadas substân-
cias. Mas tal como as substâncias primeiras' estão para as outras coisas,
assim está também a espécie para o género (pois a espécie, é sujeito do
20 género, uma vez que os géneros. se predicam das espécies, mas as espécies
não se predicam reciprocamente dos géneros). De. modo que, também por
isto, a espécie é mais substância do que o género.
Mas das próprias espécies - daquelas que não .são géneros -, nenhuma
é mais substância do que outra; pois nãbé mais adequado dizer de um
25 certo homem que é um homem do que dizer de um certo cavalo que é um
cavalo. E, do mesmo modo, também nenhuma substârÍcia primeira é mais
..'~.
I ~
Categorias
,3a
43
",o"
.I'"' .
3b
CaplluloS
A substância, ao que parece, não admite mais, e menos.Nã,o quero
dizer com isto que uma substância não s4a mais substância do que outra
(pois foi dito que assim é), mas que .sada substância não é dita mais oU 35
menos aquilo que elal:., Por exemplo, se esta substância é um homem, ele
não será mais ou menos homem do que ele mesmo ou do que outro
homem. Pois um homem não é mais homem do que outro, como uma
coisa branca é mais branca do que outra e uma coisa bela é mais bela do 4a
que outra. E uma coisaé dita mais ou menos do que ela mesma, como por
exemplo o corpo que, sendo branco, é dito mais branco agora do que
antes e, sendo quente, é dito mais ou menos quente. Mas da substância 5
nada disto se diz. Pois um homem não é dito mais homem agora do' que
antes, nem nenhuma outra coisa que seja substância. Portanto, a substân-
cia não admite mais e menos.
O que principalmente parece ser próprio da substância é, sendo nume- 10
ricamente uma e a mesma, ser capaz de receber contrários. Não há
nenhuma outra coisa que se possa l;lpresentare que, sendo numericamente
uma, seja capaz de receber contrários. Por exemplo, uma cor que é nume-
ricamente. uma e a mesma não poderá ser branca e negra; nem uma
mesma acção, numericamente uma, poderá ser má e boa; e do mesmo 15
modo para as outras coisas que não sejam substâncias. No entanto, a subs-
tância, sendo numericamente uma e a mesma, é capaz de receber contrá-
rios. Por exemplo, um certo homem, que é um e o mesmo, toma-se ora
branco ora moreno, ora quente ora frio, ora mau ora bom. Em nenhuma 20
outra coisa se verifica o mesmo, a não ser que alguém objeete, afirmando
que as declarações e as opiniões são também assim. Pois a mesma decla-
ração parece ser verdadeira e falsa. Por exemplo, se é verdadeira a decla-
ração de que uma certa pessoa está sentada, depois de a pessoa se 25
levantar, esta mesma declaração será falsa. E o mesmo se passa também
com as opiniões. Pois se alguém, tem a opinião verdadeira de que uma
certa pessoa está sentada, depois de a pessoa se levantar, tendo a mesma
opinião acerca dela, esta opinião será falsa. Todavia, ainda que admitísse-
moS esta objecção, há uma diferença no modo como os contrários são
recebidos. Pois, no caso das substâncias, é mudando elas mesmas que as 30
substâncias são capazes de receber os contrários. Pois aquilo que se tor-
nou frio em vez de quente, ou moreno em vez de branco, ou bom em vez
de mau, mudou (uma vez que se alterou). Do mesmo modo, também nos
outros casos é sofrendo ela mesma uma mudança que cada coisa é capaz
de receber contrários. Enquanto as declarações e as opiniões se mantêm
elas mesmas completamente sem mudança de qualquer tipo; é por a 35 i;;'
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1
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42
É uma característica das substâncias e das diferenças que tudo o que é
chamado a partir delas o sejâ sinonimicamente. Pois todos os predicados
35 formados a partir delas predicam-se ou dos indivíduos ou das espécies: a
partir da substância primeira não se forma nenhum predicadQ (uma vez
que não é dita de nenhum sujeito); das substâncias segundas, a espécie
predica-se do indivíduo e o género predica-se da espécie e do indivíduo;
3b e, do mesmo modo, também as diferenças se predicam das espécies e dos
indivíduos. E as substâncias primeiras admitem a definição das espécies e
a dos géneros, e a espécie admite a do género (pois tudo o que é dito
daquilo que é predicado também será dito do sujeito); do mesmo modo,
também as espécies e os indivíduos admitem a definição das diferenças.
Mas sinónimas eram precisamente aquelas coisas com o nome em comum
e a mesma definição. Portanto, tudo o que é chamado a partir dassubstân-
cias e das diferenças é-o sinonimicamente.
10 Todas as substâncias parecem significar um certo isto. No que res-
peita às substâncias primeiras, é incontestavelmente verdade que elas
significam um certo isto; pois a coisa revelada é individual e numerica-
mente uma. Mas, quanto às substâncias segundas, embora pareça, pela
fOITI)acomo são nomeadas - quando dizemos «homem» ou «animal» -,
15 que significam igualmente u,m certo isto, isso não é de facto verdade. O
que elas significam é ant~s uma certa 9-~ pois o sujeito não é
um como a substância primeira, mas homem e animal são ditos de muitas
coisas. No entanto, não ~ignificam simplesmente uma ceI1aqualificação,
como «branco» o faz. Pois branco não significa nenhuma outra coisa
senão a quaIlt'icação, enquanto a espécie e o género determinam a quali-
,ficação da substância ~ significam uma substância de um certo tipo. Com
o género, a determinação que é feita é mais vasta do que com a espécie,
pois ao falar de animal abrangemos mais coisas do que ao falar de
homem. '
Uma outra característica das substâncias é não terem qualquer contrá-
rio. Pois qual seria o contrário de uma substância primeira? Um certo
homem, por exemplo, não tem qualquer contrário; assim como homem
ou animal também não têm qualquer contrário. Contudo, isto não é pró-
prio da substância, mas verifica-se também a respeito de muitas outras
coisas, como, por exemplo, da quantidade. Pois- dois côvados não tem
qualquer contrário, nem dez, nem nenhuma destas coisas, a não ser que
se diga que muito é o contrário de pouco ou que grande é o contrário de
pequeno. Mas, ainda assim, nenhuma quantidade definida tem qualquer
contrário.
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15
Categorias
4a
própria coisa mudar que o contrário lhes advém. Pois a declaração de que
uma certa pessoa está sentâda mantém-se a mesma; é pela mudança na
própria coisa que ela se torna ora verdadeira ora falsa. O mesmo se passa
também com as opiniões. Portanto, pelo. menos o m~do como é capaz de
receber os contrários - através de uma mudança em si mesma - seriapró~
prio da substância, ainda que admitíssemos que as opiniões e as declara-
çõessãOc;apazes. de receber contrárias. Na entanto., isto. não.l verdade.
Pois nãa.é par receberem elás meSmàS alguma caisa que se diz que as
opiniões e as declarações são.capazes de recebercantrárias; mas sim pela
que acantece a alguma autra coisa. Pais é par a própria caisa ser au não
ser que a declaração é dita ser verdadeira au falsa, e não. par ela mesma
ser capaz de receber as contrárias. Na realidade, as declarações e as api-
niões não são mudadas em nada por nenhuma caisa, de madaque elas
não são. capazes de receber cantrárias, uma vez que nada acantece em si
mesmas. Mas a substância, por receber ela mesma os contrárias, é dita
capaz de receber cantrários. Pais ela recebe daença e saúde, brancura e
negrura, e porque ela mesma recebe cada uma. destas caisas, ela é dita ser
capaz de receber con~rárias. Partanta, é própria da substância, senda
numericamente urna e a mesma, ser capaz de receber cantrárias. Sabre a
substância, então, dissemas 9 suficiente.
Capítulo 6
Das quantidades, umas são. discretas e autras cantínuas; e umas são.
campos tas por partes que têm pasição umas em relação. às outras,
enquanto autras não. são compostas por partes que têm posição. _
São. quantidades discretas, por exemplo., a número. e a linguagem; são
quantidades contínuas a linha, a superfície, o carpa e, além destas, o
tempo e o lugaL Pois as partes do número não. têm nenhum limite
comum onde se unam. Se, par exemplo., cinco é uma parte de dez, as
dois cincos não se unem em qualquer limite camum, mas estão. separa"
dos; nem o três e a sete se unem em qualquer limite camum. Nem, em
geral, será possível.encontrar, no casa do número., um limite comum das
suas partes, mas elas estão sempre separadas. Par isso, a número. é uma
quantidade discreta. Do mesmo modo, também a linguagem é uma quan-
tidadediscreta (que a linguagem é uma quantidade, isso é evidente: pois
ela é medida por sílabaS langas e breves; refira-me aqui à linguagem
falada). Pois as suas partes não. se unem em qualquer limite camum. Pois
44
.-
Capítulo 6
4b
não. há nenhum limite camum onde as sílabas se unam, mas cada uma
está separada em si mesma. A linha, por seu lado., é uma quantiaade can-
tínua. Pais é passível encantrar um limite camum, a saber, um panta,
onde as suas partes se unem. E, para as partes da superfície,. uma linha;
pois as partes de um plana unem-se num certa limite camum. Da .mesmo
mada, também no casa da carpa é possível encantrar um limite camum,
a saber, uma linha au uma superfície, onde as partes do carpa se unem.
E a tempo. e a lugar são. também deste tipo.. Pois a tempo. presente une-se
ao tempo. passada e ao. tempo.futuro.

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