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Desafios do Ensino de Biologia para Surdos

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DESAFIOS AO ENSINO DE BIOLOGIA NA INCLUSÃO DO SURDO 
GOMES, Paulo César1 
FRIGERO, Maria Luisa Passos2 
Eixo Temático: Políticas Públicas de Inclusão Educacional. 
RESUMO 
Este texto busca relacionar e discutir diante do panorama atual da legislação de inclusão dos 
surdos, da valorização de uma cultura surda, do reconhecimento legal da LIBRAS como 
forma de expressão e da recente regulamentação da profissão do intérprete; com aspectos 
considerado relevantes na aprendizagem dos conteúdos biológicos pautados como relevantes 
para a construção de uma cidadania e inserção do surdo na cultura científica. São 
apresentados dois relatos de experiência da inclusão escolar de alunos surdos em turmas de 
ciências naturais nos anos finais do Ensino Fundamental em duas distintas cidades. Apesar 
das garantias legais, um tipo improvável e perverso de exclusão escolar continua a 
marginalizar e segregar alunos e alunos com necessidades educativas especiais. De outro lado, 
a participação ativa da comunidade escolar pode alterar significativamente os rumos da 
inclusão escolar do aluno surdo. 
 
Palavras-Chave: Ensino de Biologia. Inclusão Escolar de Surdos. LIBRAS. 
 
1 INTRODUÇÃO 
Este texto trata do relato de experiência acerca da inclusão do aluno surdo em turmas 
das disciplinas Biologia e Ciências. Primeiramente, são apresentadas visões de ciência 
bastante difundidas e aceitas atualmente e que interferem diretamente nas escolhas que os 
professores fazem em sua prática educativa. O texto buscar relacionar aspectos recentes 
apontados para a construção de uma cidadania e sua relação com o ensino de ciências. 
Primeiramente são apontados dados recentes sobre os aspectos legais e dados estatísticos 
sobre a surdez no Brasil. 
No ano de 2010, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou que 
5,1% ou, aproximadamente, dez milhões de pessoas no Brasil possuem alguma deficiência 
auditiva. Deste número, 1,7 milhão possuem grande dificuldade para ouvir e outros 344.200 
são surdos. As maiores densidades populacionais com alguma dificuldade auditiva 
concentram-se nas regiões Nordeste e Centro-oeste, mas também nos estados do Rio Grande 
do Sul, Santa Catarina e Minas Gerais. Cerca de 1.000.000 de pessoas com este perfil 
possuem até dezenove anos de idade e encontram-se, portanto, em idade escolar (BRASIL, 
2013). 
 
1 Universidade Estadual Paulista – UNESP, Instituto de Biociências de Botucatu – IBB, Departamento de 
Educação. Doutor em Educação para a Ciência. Contato: pcgomes21@ibb.unesp.br. 
2. Graduanda em Ciências Biológicas. Instituto de Biociências de Botucatu, Universidade Estadual Paulista – 
UNESP. 
2 
 
Existe amparo na legislação brasileira para a inclusão do estudante com as 
Necessidades Educativas Especiais (NEE) em escolas públicas e privadas, dentre estas se 
podem apontar: (1) Constituição Federal do Brasil, Art. 206, inciso I e Artigo 208; (2) Lei de 
Diretrizes e Bases da Educação Nacional — LDBEN, Lei 9394 de 1996, Artigo 59, incisos I e 
III; (3) Estatuto da Criança e do Adolescente — ECA, Lei 8069 de 1990, Art. 53, inciso I; 
Artigo 54, Inciso III; (4) Decreto n.° 5.626, 22/12/2005 que propõe a inclusão da Língua 
Brasileira de Sinais, doravante, LIBRAS como objeto de ensino, pesquisa e extensão; e (5) 
Especificamente aos alunos deficientes auditivos — DA, cf. Lei n.° 10.436, 24/04/2002, 
decorrente do Decreto n.° 5.626/2005, sobre o incentivo do uso e da difusão da LIBRAS. Em 
nível mundial, vale destacar ainda a Declaração de Salamanca , adotada pela Organização das 
Nações Unidas em evento na cidade espanhola de mesmo nome, ocorrido de 7 a 10 de junho 
de 1994, a qual busca a equidade de oportunidades para pessoas com deficiência. Entretanto, 
apesar de todo o aparato legal mencionado, há muito preconceito e restrição ao acesso e à 
permanência do aluno deficiente em escolas públicas e privadas por parte de pais, professores, 
gestores e alunos (GOMES, MINGUILI, 2014). 
Especificamente no que se refere à situação dos surdos no Brasil, das suas inúmeras 
conquistas e dos avanços legais que as possibilitaram, estes alunos e cidadãos continuam 
segregados pelas barreiras linguísticas em aulas de Ciências e Biologia. Seja porque seus 
professores nada sabem sobre LIBRAS e não preparam aulas com recursos visuais adequados 
e suficientes ou, porque, apesar das garantias presentes na legislação, a presença do intérprete, 
segundo relato de professores, não é constante em suas salas de aulas (GOMES, BASSO, 
2014; QUADROS, 2007). Compreende-se que os alunos surdos devem desenvolver ao 
máximo suas capacidades cognitivas, de compreensão e de raciocínio em distintas 
possibilidades de aprendizagem no curso de biologia necessariamente mediada pela LIBRAS 
e considerando, simultaneamente, quais concessões e adaptações curriculares deverão ser 
adotadas pela escola e pelo professor no contexto da inclusão escolar. O desenvolvimento do 
surdo se dá mediado pela aquisição da linguagem de sinais e a consequente inserção no 
mundo da cultura (SACKS, 2010) (compreendendo também integrante deste mundo, a cultura 
científica). 
Considerando as diferenças existentes entre os termos Integração e Inclusão, 
explicitados abaixo, acredita-se que a inclusão, que deve ocorrer de forma real e não 
demagógica, contemple necessariamente a aquisição de novos repertórios linguísticos em 
LIBRAS nos processos de ensino-aprendizagem de biologia possibilitando uma verdadeira 
inserção social e cultural do surdo para o pleno exercício de sua cidadania. 
3 
 
Assim, o processo de Integração de pessoas com necessidades educativas especiais 
consiste em “um processo de educar/ensinar crianças ditas normais junto com crianças 
portadoras de deficiência, durante uma parte ou na totalidade do seu tempo de permanência na 
escola” (CARVALHO, 1999, 36). De outro lado, a Inclusão escolar é entendida como 
“processo de educar conjuntamente e de maneira incondicional, nas classes do ensino comum, 
alunos ditos normais com alunos — portadores ou não de deficiências - que apresentem 
necessidades educacionais especiais” (idem, 1999, p.38, grifo nosso). 
A definição de inclusão, apresentada por Carvalho (1999) é coerente com a 
apresentada na Declaração de Salamanca, na qual, advoga que “as escolas devem se ajustar a 
todas as crianças, independentemente das suas condições físicas, sociais, lingüísticas e outras” 
(ONU, 1994). Também coerente com Carvalho é o texto presente em documentos oficiais, 
nos quais a inclusão escolar não se trata meramente da: “permanência física desses alunos 
junto aos demais educandos, mas representa a ousadia de rever concepções e paradigmas, 
bem como desenvolver o potencial dessas pessoas, respeitando suas diferenças e atendendo 
suas necessidades” (BRASIL, 2001, p. 28, grifo nosso). 
No mesmo documento e, num raciocínio que também se estende às aulas de biologia e 
ciências, que “em vez de procurar, no aluno, a origem do problema, define-se pelo tipo de 
resposta educativa e de recursos e apoios que a escola deve proporcionar-lhe para que obtenha 
sucesso escolar” (idem, 2001, p. 33, grifo nosso). 
De modo complementar, a Inclusão Escolar não pode tornar-se uma justificativa para 
ampliar os cortes orçamentários nos parcos recursos destinados à Educação brasileira, pelo 
contrário. Uma verdadeira e genuína inclusão escolar, não se trata de mera inserção de alunos 
deficientes em classes regulares de ensino. Trata-se de processo que também prevê aporte 
financeiro adequado para a formação de professores e garantia de melhores salários, 
reestruturação profunda das escolas — que não se restringe unicamente a alterações no 
mobiliário, na infraestrutura dos prédios e no material didático adaptado —; além de apoio 
psicológico para alunos, familiares e suporte financeiro para a contratação permanente da 
chamada rede deapoio (STAINBACK, STAINBACK, 1999; GOMES, MINGUILI, 2014). 
Quaisquer propostas distantes das apresentadas por estes autores é apenas demagogia inócua 
que certamente levará a Educação brasileira a um grau de calamidade ainda maior em relação 
ao panorama atual. 
Dois importantes fatos ocorreram nos últimos dez anos. O primeiro deles foi a 
regulamentação da profissão de intérprete de LIBRAS é recente no Brasil, ocorreu em 1.° de 
setembro de 2010, com a promulgação da Lei Federal n° 12.319 que estabeleceu as 
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atribuições do tradutor e intérprete para o exercício de suas competências. Outro aspecto bem 
recente é o reconhecimento oficial pelo poder público da LIBRAS como meio legal de 
comunicação e expressão (cf. Lei Federal n° 10.436, de 24 de abril de 2002). Aliás, esta 
mesma Lei define LIBRAS como “forma de comunicação e expressão, em que o sistema 
lingüístico de natureza visual-motora, com estrutura gramatical própria, constituem um 
sistema lingüístico de transmissão de idéias e fatos, oriundos de comunidades de pessoas 
surdas do Brasil” (BRASIL, 2002). Muitas pesquisas e estudos em nível de mestrado e 
doutorado têm contribuído consistentemente com a cultura surda, entre eles, pode-se citar 
brevemente o trabalho da lingüista Margot Latt Marinho (2007), Skliar (2005; 2004) e os 
inúmeros trabalhos de Ronice Müller Quadros e seus colaboradores (2007; 2004; 2003). O 
segundo fato é que no ano de 2012 venceu o prazo de dez anos para que as Instituições de 
Ensino Superior (IES) atendam à Lei n.° 10.436, de 24 de abril de 2002 regulamentada pelo 
Decreto n° 5.626, de 2005, para que incorporem a LIBRAS como componente curricular em 
seus cursos de Licenciaturas (inclusive as Ciências Biológicas), Fonoaudiologia, Normal 
Superior, Educação Especial e Pedagogia. 
Neste sentido e apesar de a inclusão escolar do aluno com surdez estar na pauta dos 
educadores desde a década de 1990, há especificidades para o ensino de biologia que 
infelizmente ainda mantêm o aluno alijado dos processos de ensino e de aprendizagem. 
Marinho (2007) destacou que isto se dá, em parte, por alguns aspectos principais: (a) pela 
falta de classificadores ou de sinais suficientes (e necessários) acerca da interpretação seja do 
texto escrito de biologia, seja da explicação oral do professor deste curso; (b) apesar da 
fluência em LIBRAS, a enorme dificuldade que os alunos surdos têm diante do texto escrito, 
inclusive o texto biológico, com seus termos e vocabulário da área; (c) da dependência que o 
aluno surdo tem de um mediador (do professor ou do intérprete) para a compreensão da 
biologia, já que os dicionários de LIBRAS invariavelmente são muito básicos e, porque o 
dicionário em língua portuguesa possui enunciado incompreensível para os surdos; (d) do 
empobrecimento do material de apoio e visual das salas de aulas e da (e) forma como 
professores planejam e estruturam suas aulas. De outro lado, existem iniciativas que buscam 
divulgar o trabalho com pessoas surdas no Ensino de Biologia para alunos surdos como os 
divulgados pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Um dos principais 
problemas enfrentados é a ausência de sinais ou classificadores para termos e nomes de uso 
corrente no curso de Biologia (ROSA et al, 2014; GOMES, BASSO, 2014; MARINHO, 
2007). A seguir serão apresentados alguns aspectos do ensino de ciências e biologia. 
2. CIÊNCIA E ENSINO DE CIÊNCIAS 
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O ensino de ciências e biologia remete diretamente à compreensão de Ciência, que 
seus professores têm, dos valores conferidos a ela e os seus muitos atributos. Bizzo (2012a) 
divide as visões de Ciência em diferentes pontos de vistas de grandes grupos distintos: (a) 
visão de ciência eficiente: o primeiro grupo acredita que a ciência é uma maneira 
privilegiada, preditiva e eficiente de ver e conhecer o mundo, percebendo como ele é e 
funciona; (b) visão de ciência universal: o segundo, percebe a ciência como um 
conhecimento consensualmente confiável, que é chancelado pelos pares e pelo crivo da 
comunidade científica; (c) visão de ciência subjetiva: o terceiro e último ponto de vista 
percebe e acredita na ciência como um ou muitos discursos construídos pelas diferentes 
sociedades em seu tempo histórico, cumpre um papel principal, o de reproduzir (o autor diz 
refletir) valores sociais (BIZZO, 2012a). Este autor percebe maior relação entre a primeira e a 
segunda visão de Ciência e que tais visões de ciência refletem diretamente nas escolhas que 
professores de ciências e biologia fazem em suas salas de aula, em suas estratégias de ensino, 
na forma como percebem as aprendizagens e como as avaliam. 
O que é consensual entre todas estas visões de ciência, no contexto deste trabalho, é 
que a Ciência foi feita por e para uma sociedade de ouvintes. A inserção docente em uma ou 
outra visão modifica a forma como o profissional da Educação que atua no ensino de ciências 
percebe o Homo sapiens sapiens enquanto ser humano e histórico, sobre os processos de 
construção desta humanidade e identidade, sua inserção e a relação com a sociedade e mesmo 
na relação homem-natureza. Uma visão que contempla o ensino de ciências para todos 
também contempla a inclusão de alunos com Necessidades Educativas Especiais (NEE) 
dentro dos limites de suas especificidades e possibilidades. 
Neste contexto de difusão do conhecimento científico [realmente para todos], a 
Declaração de Budapeste (UNESCO, 1999) destacou que, 
 
A educação em ciência em sentido amplo, sem discriminação e abrangendo todos os 
níveis e modalidades, é um requisito fundamental da democracia e também do 
desenvolvimento sustentável. Nos últimos anos, medidas de abrangência mundial 
foram adotadas, visando promover a educação fundamental para todos (idem, p34). 
 
No mesmo sentido do documento da UNESCO, os autores Krasilchik e Marandino 
(2004) e Delizoicov et al (2002) também alertaram sobre a importância da apropriação dos 
conhecimentos oriundos da ciência pelos diferentes segmentos da população, classes sociais e 
culturas além da transição de um ensino pautado na transmissão e de um saber enciclopedista 
para a aquisição de um saber escolar contextualizado, que pautado em pesquisas no ensino de 
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ciências e biologia, possibilitasse que os alunos relacionassem também aspectos históricos e 
culturais na apreensão de conhecimentos desta natureza. 
Processos de ensino-aprendizagem de conhecimentos biológicos devem minimamente 
considerar que os alunos possam: (i) se apropriar da lógica interna da biologia enquanto 
ciência, seus códigos intrínsecos, (ii) se instrumentalizar na compreensão de problemas 
contemporâneos; (iii) questionar verdades sedimentadas na explicação de fenômenos naturais; 
(iv) se posicionar diante de questões provenientes de crenças pessoais, seus aspectos místicos, 
míticos e religiosos; (v) compreender historicamente o papel da necessidade e da curiosidade 
na busca do conhecimento; (vi) entender as manifestações de diferentes formas de vidas, as 
interações e modificações ao longo do tempo e espaço; além de (vii) discutir, de modo 
fundamentado, questões polêmicas de nossa história recente. (SONCINI, CASTILHO 
JÚNIOR, 1992, p. 21). No âmbito deste trabalho, é questionado se estes aspectos das 
aprendizagens dos conteúdos biológicos poderiam ser estendidos verdadeiramente [e em igual 
teor] aos alunos surdos? 
Krasilchik (2008) salientou que os professores que ensinam a Biologia falam, sem 
dialogar, em 85% do tempo de suas aulas. Aulas desta natureza, isto é, uma quase palestra 
unidirecional e centrada no professor ou como prefere a autora, um “ensino informativo”; 
caminham no sentido contrário dos recentes resultados de pesquisas em ensino de ciências, 
pois seus professores não tomam conhecimento sobre o que pensam e como pensam seus 
alunos e tampouco possibilitam aos estudantes o desenvolvimento de sua capacidade de 
expressão. Éconsenso entre diferentes autores que o ensino de biologia não pode se restringir 
a conteúdos fragmentários, pouco significativos, enciclopédicos, episódicos ou anistóricos e, 
até mesmo apresentados na forma de curiosidades, regrinhas e definições a serem 
memorizadas (MARANDINO et al, 2009; KRASILCHIK, 2008; LEVINAS, 2007; 
DELIZOICOV et al, 2002; SONCINI; CASTILHO JÚNIOR, 1992). Aliás, as escolhas de 
professores acerca da forma como ensinam biologia podem 
 
Privilegiar um ensino que valoriza apenas a acuidade dos conhecimentos de 
referência, em detrimento da importância destes para o desenvolvimento cognitivo 
dos estudantes e/ou para a vida prática. Se, de modo distinto, nos afastamos 
demasiadamente do universo acadêmico, corremos o risco de descaracterizar os 
conhecimentos que pretendemos socializar, a tal ponto que deixamos de ensinar as 
Ciências Biológicas (MARANDINO et al, 2009, p. 87/88). 
 
Este dualismo presentes no interior dos componentes curriculares Ciências e Biologia 
contemplam a ideia inicial ou as visões de ciência apresentadas por Bizzo (2012a), ora mais 
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academicista, como nas duas primeiras visões, ora mais subjetiva, utilitarista e com cunho 
social, como na última visão de ciência apresentada. Marandino et al (2009) sustentam que a 
caracterização de um ensino de ciências e biologia “exclusivamente” com cunho social atende 
objetivos curriculares específicos e que muito pouco tem, em matéria de pertencimento, à área 
de referência originária. São exemplos destes os projetos acerca de “gravidez e aborto, 
sexualidade e homossexualismo, racismo, drogas, fome, de questões ambientais e religiosas; 
de aspectos relativos à biotecnologia, tais como transgênicos, clonagem e células tronco”. 
(idem, p. 51). 
3. PARA QUÊ AFINAL ENSINAR CIÊNCIAS PARA SURDOS? 
O texto científico é repleto de conceitos interligados, tão imbricados, que dependem 
uns dos outros para a sua compreensão (MARANDINO, 2002, LEMKE, 1997). A forma 
como o professor traduz e transpõe estes conceitos para seus alunos pode, e muito, 
comprometer os significados efetivamente elaborados [ou construídos] pelos alunos. Certa 
vez, um professor de física ensinava os conceitos de energia cinética e potencial a seus alunos 
e percebeu que não sabiam o que era a energia; e que eles entendiam que potencial e potência 
eram a “mesma coisa”. Uma alternativa e estratégia de ensino utilizada por muitos professores 
é a busca num dicionário pela definição da palavra. No caso da energia, a palavra remete a 
muitos significados. Na Física é entendida como a “capacidade que um corpo ou sistema 
físico tem de produzir trabalho (símbolo: E)”3, mas há outras definições como: vigor, 
firmeza, segurança, energia elétrica e fonte energética. Quando se restringe à definição física 
e, especialmente quando se ensina alunos dos anos iniciais do Ensino Fundamental, eles 
passam a questionar o que é “capacidade”, “corpo”, “sistema físico” e “trabalho”. Cada um 
destes descritores possui significados próprios e que, se considerados separadamente, podem 
se afastar do conceito de energia. Quando se pensa em valorização da cultura surda e da 
educação de surdos por meio da Linguagem Brasileira de Sinais – LIBRAS se almeja que os 
surdos tenham acesso ao saber sistematizado e historicamente acumulado assim como ocorre 
com alunos ouvintes. Um aspecto garantido por Lei, mas que poderia ser inibido e repelido 
por mitos e crenças docentes sobre a aprendizagem de surdos acerca do texto escrito. Farias 
(2006) relata a existência de mitos acerca da aprendizagem de alunos surdos. O primeiro mito 
reflete a crença que a aprendizagem da língua escrita se dá pela simples inserção do surdo no 
contexto de alfabetização das salas de aulas regulares de ouvintes. O segundo, que os surdos 
não aprendem porque têm restrições e limitações cognitivas de aprendizagem e, por último, 
 
3 Em web: <http://www.priberam.pt/dlpo/energia> 
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que suas interpretações não são capazes de relacionar e interpretar aspectos polissêmicos4 da 
linguagem. 
4. RELATO DE EXPERIENCIAS COM ALUNOS SURDOS 
A seguir foram apresentados dois relatos de experiências em duas diferentes turmas do 
6.º ano do Ensino Fundamental em duas diferentes escolas públicas de cidades distintas. 
RELATO I 
Após concurso público, efetivei-me em dois cargos, um de biologia e outro de ciências na região 
metropolitana da cidade de São Paulo. Tinha jornada de quarenta horas semanais. Estava lotado numa escola da 
periferia da cidade e que atendia quatro mil alunos em três turnos diferentes. Os colegas disseram que existira 
um quarto turno para atender toda a demanda de alunos. Todo o bairro localizava-se em área de proteção 
ambiental, ainda em situação irregular, invadida pelos moradores da comunidade. Era uma periferia violenta com 
homicídios, tráfico de drogas, roubo de veículos, estupros... Apesar da dura realidade, adaptei-me a situação de 
comecei a trabalhar em algumas manhãs e noites e todas as tardes. Nas manhãs e noites ministrava aulas de 
Biologia para turmas do Ensino Médio e lecionava para todas as sete turmas de sextos anos, no período da tarde 
(que ia da letra A à G). As turmas eram superlotadas, uma média de quarenta alunos por sala. A única exceção 
era o sexto ano G que tinha “apenas” doze alunos. O que inicialmente parecia estranho e contraditório, em 
relação às demais turmas, revelou-se de maneira bastante peculiar. O 6.º ano G era o que os colegas docentes 
chamavam de “classe montada”, isto é, uma turma repleta de alunos com toda a sorte de problemas. Eram alunos 
com problemas comportamentais, alunos com deficiências físicas e intelectuais, com atrasos na aprendizagem, 
repetentes ou que tinham abandonado a escola por um dado período e os alunos que eram LA ou liberdade 
assistida oriundos da Fundação Casa, um órgão público responsável pela educação, guarda e reabilitação de 
menores infratores. Os LA’s assistiam aulas e retornavam à referida fundação. Todos foram inseridos 
arbitrariamente numa mesma sala de aula: o 6.º ano G. A turma era difícil, pois os alunos perambulavam o tempo 
todo pela sala, saíam para o pátio e aprontavam traquinagens. Um mês após o início das aulas recebi nesta turma 
uma aluna completamente surda. Em conversa com a mãe, esta disse que ficaria muito feliz se a filha apenas 
socializasse com os outros alunos e com a rotina da escola. Não havia intérprete de LIBRAS na escola, material 
adaptado e nenhuma alternativa que pudesse auxiliar a aluna de alguma forma nas aulas de ciências. Além da 
surdez, a aluna apresentava uma conduta sexual socialmente inadequada para o contexto escolar: exibia 
frequentemente as mamas aos demais colegas da sala durante as aulas e apalpava o órgão genital dos meninos 
assim que tinha oportunidade. A turma, nestas condições, era um desafio e ao mesmo tempo uma ofensa aos 
demais educadores. Um desafio porque exigia uma ação educativa pautada em uma prática educativa 
diferenciada e fundamentada em conhecimentos não adquiridos nos cursos de formação inicial. Era também uma 
ofensa porque resultava em prejuízos aos próprios alunos, que poderiam estar distribuídos em todas as demais 
turmas, o que provavelmente facilitaria o trabalho educativo realizado com todos os alunos. Algumas escolas 
públicas infelizmente ainda adotam esta postura e lógica perversa da “classe montada” no sentido de poupar os 
professores efetivos ou mais antigos e que já conhecem as políticas segregacionistas da escola antes mesmo da 
atribuição oficial das turmas. A aluna surda era copista. Ela registrava os conteúdos da lousa e só. A 
comunicação com os outros alunos e com o professor era bastante limitada. Apesar de utilizar experimentos 
durantes as aulas (fizemos o “estragando o mingau” e outros) e partir de situações problemas para que os alunos 
resolvessem, o desempenho dos alunos era sempre aquém do esperadona turma dos excluídos. Tudo o que foi 
apresentado em ciências ao longo do ano letivo, para o contexto desta turma, era muito chato, entediante ou 
desinteressante na visão destes alunos “precocemente amadurecidos” pela vida. 
 
RELATO II 
Logo no início do ano letivo, recebi em minhas aulas de ciências dois alunos surdos: Marcelo e João 
(nomes fictícios). A turma era um 6.º ano do Ensino Fundamental. Era assustador porque eles não falavam 
absolutamente nada. Faziam ruídos e gritavam. Fiquei bastante apreensivo e temeroso com a notícia que eles 
seriam meus alunos em função da dificuldade de comunicação. Antes de as aulas começarem, a direção da escola 
entrou em contato com a Prefeitura Municipal da cidade e solicitou com urgência um intérprete da linguagem 
 
4 Vale lembrar que há vertentes de estudos acadêmicos que tratam: (a) de processos de ensino-aprendizagem de 
ciências e biologia mediados pelo usos de analogias e metáforas; (b) uso da chamada transposição didática na 
produção do texto escolar de ciências para diferentes públicos e (c) uso de “elementos didatizantes” em textos de 
vulgarização científica e popularização da ciência. 
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brasileira de sinais (LIBRAS) para atuar de forma permanente na escola, pois era a primeira vez que a situação 
de incluir alunos surdos ocorria. A turma era composta por vinte e cinco alunos, todos frequentes, doze meninas 
e treze meninos. A escola era numa área central de uma cidade de pouco mais de 150.000 habitantes localizada 
no interior do Estado de São Paulo. No geral era uma turminha boa. Eram bons alunos, pois participavam 
ativamente das aulas, faziam perguntas bem pertinentes ao conteúdo ministrado com frequência e eram 
disciplinados. Os colegas de sala receberam bem Marcelo e João. Em pouco tempo estes dois alunos fizeram 
várias amizades e até arranjaram namoradas. No que se refere às aulas de ciências, eu, enquanto professor tinha 
sérias dúvidas se Marcelo e João estavam realmente aprendendo ciências. Eu não sabia nada de LIBRAS. Sabia 
um pouco do alfabeto e recebi um DVD com distribuição gratuita pelo Governo Estadual. As aulas contavam 
com a participação ativa e efetiva da intérprete que fazia a tradução em LIBRAS dos conteúdos ministrados. A 
intérprete tinha experiência e sempre me dava bronca nas ocasiões que falei, explicando o conteúdo, mas sem 
olhar para o rosto dos alunos. Algumas vezes falei olhando para a lousa porque explicava meus esquemas e 
desenhos. Ela explicitou a importância do contato visual com os alunos surdos. O grande nó na sala teve início 
com uma unidade didática que tratava de conhecimentos físicos acerca de pressão, densidade, massa, volume, 
força e peso. O material adotado trazia um questionamento que foi apresentado aos alunos. Era mais ou menos 
assim: “Por que um bloco maciço de 10T afunda no oceano e um barco de massa equivalente e sem defeitos 
flutua?” As dúvida começaram de Marcelo, de João e da própria intérprete. As dúvidas eram tantas que passei a 
duvidar se o que eu de fato o que eu queria ensinar estava sendo aprendido. A intérprete admitiu que não sabia 
muita coisa de ciências e que estava aprendendo muitas coisas durante a aula mesmo. Quando os alunos surdos 
não sabiam o significado de alguma coisa, a intérprete utilizava de maneiras diversas para explicar os sentidos da 
explicação dada. Ela utilizava bastante o “português sinalizado”, soletrava a palavra desconhecida com o uso do 
alfabeto em LIBRAS, por exemplo, D-E-N-S-I-D-A-D-E e fazia uso de classificadores para ensinar os conceitos 
científicos e amenizar as dúvidas. Uma situação bastante difícil era quando ela faltava. João e Marcelo se 
dirigiam ao professor e gesticulavam “dizendo” coisas sobre os outros alunos, para perguntar suas dúvidas e 
pediam para ir ao banheiro: era quase tudo incompreensível. Os outros alunos, os ouvintes tiveram uma 
participação fundamental no processo de inclusão de João e Marcelo, não apenas em ciências, mas em todos os 
outros componentes curriculares, pois mais da metade da turma empenhou-se em aprender LIBRAS e a utilizar 
os classificadores para se comunicar com os surdos. Este “pequeno” grande gesto fez toda a diferença quando se 
pensa em inclusão do surdo no contexto escolar. Depois do meio do ano letivo, mesmo se a intérprete faltava ou 
se ausentava da sala, os colegas auxiliavam durante todo o tempo. Foi um passo certo no processo de inclusão de 
ambos. 
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS 
A prática de justaposicionar alunos em “classes montadas” é inclusão excludente, 
como descrito no Relato I. Infelizmente é prática que existe apenas para legitimar o discurso 
oficial da inclusão escolar de alunos deficientes, mas que na prática não ocorre. Os alunos da 
turma no relato II revelaram que incluir o surdo em aulas de ciências é possível, no entanto, 
há de se considerar o seguinte questionamento: a educação científica do surdo só um 
problema de adequação da linguagem, tradução ou de transposição didática? 
6. REFERÊNCIAS 
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