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O NARRADOR: CONSIDERAÇÕES SOBRE A OBRA DE NIKOLAI LESKOV (WALTER BENJAMIN) Rafael Silva (POSLIT/ FALE/ UFMG) gts.rafa@hotmail.com VISÃO GERAL DO TEXTO NA OBRA DE BENJAMIN (I) “O Narrador” é um texto mais denso e pessimista do que suas obras anteriores que trataram das mudanças culturais de seu tempo; há um diagnóstico terrível, embora muito pouco de prognóstico. Situando uma crise da humanidade, ele sugere que o romance daria a ver essa crise – enquanto condição de produção da narrativa (oral) seria característica de um modelo de vida diferente, já perdido; a perspectiva de Benjamin é algo nostálgica perante que se perdeu. VISÃO GERAL DO TEXTO NA OBRA DE BENJAMIN (II) Benjamin desenvolve uma série de dicotomias: Narrativa vs. Romance; Experiência vs. Informação; Sabedoria vs. Explicação; Oral vs. Escrita; Comunal vs. Individual; Harmonia com a natureza vs. Dissonância com o natural; Memória [Gedächtnis] vs. Reminiscência [Eingedenken]; Manual vs. Seriado; Companhia, comunhão vs. Isolamento, solidão; Povo vs. Indivíduo. TOM APOCALÍPTICO E ALGO NOSTÁLGICO DO TEXTO “[A] arte de narrar está em vias de extinção. São cada vez mais raras as pessoas que sabem narrar devidamente. É cada vez mais frequente que, quando o desejo de ouvir uma história é manifestado, o embaraço se generalize. É como se estivéssemos sendo privados de uma faculdade que nos parecia totalmente segura e inalienável: a faculdade de intercambiar experiências.” (BENJAMIN, 2012: 213). RAZÕES PARA O FIM DA EXPERIÊNCIA “Uma das causas desse fenômenos é evidente: as ações da experiência estão em baixa. E tudo indica que continuarão caindo em um buraco sem fundo. [...] Com a guerra mundial começou a tornar-se manifesto um processo que desde então segue ininterrupto. Não se notou, ao final da guerra, que os combatentes voltavam mudos do campo de batalha; não mais ricos, e sim mais pobres em experiência comunicável? E o que se derramou dez anos depois, na enxurrada de livros sobre a guerra, nada tinha em comum com uma experiência transmitida de boca em boca. E não havia nada de anormal nisso. Porque nunca houve experiências mais radicalmente desmentidas que a experiência estratégica pela guerra de trincheiras, a experiência econômica pela inflação, a experiência do corpo pela batalha material e a experiência moral pelos governantes. Uma geração que ainda fora à escola num bonde puxado por cavalos encontrou-se desabrigada, numa paisagem em que nada permanecera inalterado, exceto as nuvens, e, debaixo delas, num campo de forças de torrentes e explosões destruidoras, o frágil e minúsculo corpo humano.” (BENJAMIN, 2012: 214). NARRATIVA TRADICIONAL Experiência da narrativa transmitida oralmente, anonimamente, tal como encarnada por dois tipos principais (ainda que de características interpenetráveis) (BENJAMIN, 2012: 214): Viajante (modelo da Odisseia); Trabalhador (modelo de Os trabalhos e os dias). Senso prático, voltado para a utilidade da ação e, portanto, capaz de dar conselhos sábios; Ausência de explicações excessivas, mas recurso a anedotas misteriosas que levam a refletir (BENJAMIN, 2012: 220); O dom de ouvir surge em comunidades onde reina a repetição e o tédio do trabalho manual (BENJAMIN, 2012: 221). ROMANCE MODERNO Experiências incomunicáveis fazem com que o narrador do romance – essa narrativa escrita – não seja capaz de transmitir sabedoria ou ensinamentos práticos, pois, apartado da sua comunidade, mostra-se capaz de informar-se sobre assuntos do mundo, mas não é capaz de fazer uso da experiência em prol da coletividade (BENJAMIN, 2012: 217): O primeiro grande exemplo do romance moderno já o demonstra: Dom Quixote de Cervantes; Romances que tentam transmitir ensinamentos são fundamentalmente estranhos ao gênero, como no caso do Bildungsroman (BENJAMIN, 2012: 218). EVOLUÇÃO DO ROMANCE Desde a descoberta de sua forma entre os greco- romanos, o romance só veio a encontrar o meio propício para seu desenvolvimento com a ascensão da burguesia (BENJAMIN, 2012: 218); Abreviação até mesmo da narrativa, por meio da short story (BENJAMIN, 2012: 223). Importância dos meios de produção da informação em massa (BENJAMIN, 2012: 218); SABER VS. INFORMAÇÃO “Villemessant, o fundador do Figaro, caracterizou a essência da informação com uma fórmula famosa. ‘Para meus leitores’, costumava dizer, ‘o incêndio num sótão do Quartier Latin é mais importante que uma revolução em Madri.’ Essa fórmula lapidar mostra claramente que o saber que vem de longe encontra hoje menos ouvintes que a informação que forneça um ponto de apoio para o que está próximo. O saber que vinha de longe – seja espacialmente, das terras estranhas, ou temporalmente, da tradição – dispunha de um autoridade que lhe conferia validade, mesmo que não fosse subsumível ao controle. A informação, porém, aspira a uma verificabilidade imediata. Para tal, ela precisa ser antes de mais nada, ‘compreensível em si e para si’. Muitas vezes não é mais exata que os relatos antigos. Mas enquanto esses relatos recorriam frequentemente ao miraculoso, é indispensável que a informação soe plausível. Nisso ela se revela incompatível com o espírito da narrativa. Se a arte da narrativa é hoje rara, a difusão da informação tem uma participação decisiva nesse declínio.” (BENJAMIN, 2012: 219). A QUESTÃO DA MORTE (BENJAMIN, 2012: 223) A morte fazia parte do cotidiano das pequenas comunidades, oferecendo a autoridade daqueles que a viam e viviam às narrativas contadas depois; A partir do séc. XIX, a morte torna-se “impura” e é afastada dos olhos de todos; Desvalorização da noção de eternidade, devido ao apagamento da morte. CRONISTA VS. HISTORIADOR “Cada vez que se pretende estudar uma certa forma épica é necessário investigar a relação entre essa forma e a historiografia. Podemos ir mais longe e perguntar se a historiografia não representa uma zona de indiferenciação criadora com relação a todas as formas épicas. [...] O cronista é o narrador da história. [...] O historiador é obrigado a explicar de uma ou outra maneira os episódios com que lida; ele não pode absolutamente contentar-se em representá-los como modelos da história do mundo. É exatamente isso, porém, o que faz o cronista, especialmente em seus representantes clássicos, os cronistas medievais, precursores da historiografia moderna.” (BENJAMIN, 2012: 226). PRESERVAÇÃO DA MEMÓRIA “Não se percebeu devidamente até agora que a relação ingênua entre o ouvinte e o narrador é dominada pelo interesse em conservar o que foi narrado. Para o ouvinte imparcial, o importante é assegurar a possibilidade da transmissão. A memória é a faculdade épica por excelência. Somente uma memória abrangente permite à poesia épica apropriar-se do curso das coisas, por um lado, e resignar-se, por outro, com o desaparecimento dessas coisas, com a violência da morte.” (BENJAMIN, 2012: 227). MUSA DA NARRATIVA VS. MUSA DO ROMANCE “Tal é a memória épica, a musa da narração. Mas a esta musa deve opor-se outra, igualmente mais específica, a musa do romance que, no princípio, isto é, na epopeia, ainda se encontra oculta, indiferenciada da musa da narrativa. Porém ela já pode ser pressentida na poesia épica. Acima de tudo nas invocações solenes das Musas, que abrem os poemas homéricos. O que se anuncia nessas passagens é a memória perpetuadora do romancista, em contraste com a breve memória do narrador. A primeira é consagrada a um herói, uma peregrinação, um combate; a segunda, a muitos fatos dispersos. Em outras palavras, a reminiscência (Eingedenken), musa do romance, surge ao lado da memória (Gedächtnis), musa da narrativa, depois que a desagregação da poesia épica apagou a unidade de sua origem comum na rememoração (Erinnerung).” (BENJAMIN,2012: 228). “MORAL DA HISTÓRIA” VS. “SENTIDO DA VIDA” “Quem escuta uma história está em companhia do narrador; mesmo quem a lê partilha dessa companhia. Mas o leitor de um romance é solitário. Mais solitário que qualquer outro leitor (pois mesmo quem lê um poema está disposto a declamá-lo em voz alta para um ouvinte ocasional). Nessa solidão, o leitor do romance apodera-se da matéria de sua leitura de uma maneira extremamente ciosa.” (BENJAMIN, 2012: 230). Enquanto a narrativa suscita continuações infinitas, sempre ligadas por uma espécie de “moral da história”, o romance sempre chega ao fim e a partir daí propõe considerações sobre o sentido da vida que passou. DIMENSÃO POPULAR DA NARRATIVA A narrativa saída dos extratos mais populares: “O primeiro narrador verdadeiro é e continua sendo o narrador de contos de fadas. Esse conto sabia dar um bom conselho quando ele era difícil de obter, e era o primeiro a ajudar em caso de emergência. Essa emergência era a emergência provada pelo mito. O conto de fadas revela-nos as primeiras medidas tomadas pela humanidade para libertar-se do pesadelo que o mito havia infundido em nossos corações.” (BENJAMIN, 2012: 232). Manifestação dessas dimensões na obra do escritor russo que serve de pretexto para as considerações de Benjamin: Nikolai Leskov. PALAVRAS FINAIS DO TEXTO (I) “A alma, o olho e a mão estão assim inscritos num mesmo contexto. Interagindo, eles definem uma prática. Essa prática deixou de nos ser familiar. O papel da mão no trabalho produtivo tornou-se mais modesto, e o lugar que ela ocupava durante a narração está agora vazio. (Pois a narração, em seu aspecto sensível, não é de modo algum o produto exclusivo da voz. Na verdadeira narração, a mão intervém decisivamente, com seus gestos, aprendidos na experiência do trabalho, que sustentam de cem maneiras o fluxo do que é dito.) A antiga coordenação da alma, do olho e da mão, que transparece nas palavras de Valéry, é típica do artesão, e é ela que encontramos sempre, onde quer que a arte de narrar seja praticada.” (BENJAMIN, 2012: 239). PALAVRAS FINAIS DO TEXTO (II) “Podemos ir mais longe e perguntar se a relação entre o narrador e sua matéria – a vida humana – não seria ela própria uma relação artesanal. Não seria sua tarefa trabalhar a matéria-prima da experiência – a própria e a alheia – transformando- a num produto sólido, útil e único? Talvez se tenha uma noção mais clara desse processo no provérbio, concebido como ideograma de uma narrativa. Podemos dizer que os provérbios são ruínas de antigas narrativas, nas quais a moral da história abraça um gesto, como a hera abraça um muro.” (BENJAMIN, 2012: 239). PALAVRAS FINAIS DO TEXTO (III) “Assim definido, o narrador figura entre os mestres e os sábios. Ele sabe dar conselhos: não para alguns casos, como o provérbio, mas para muitos casos, como o sábio. Pois pode recorrer ao acervo de toda uma vida (uma vida que não inclui apenas a própria experiência, mas em grande parte a experiência alheia. O narrador infunde a sua substância mais íntima também naquilo que sabe por ouvir dizer). Seu dom é poder contar sua vida; sua dignidade é contá-la inteira. O narrador é o homem que poderia deixar a luz tênue de sua narração consumir completamente a mecha de sua vida. Daí a atmosfera incomparável que circunda o narrador, em Leskov, como em Hauff, em Poe como em Stevenson. O narrador é a figura na qual o justo se encontra consigo mesmo.” (BENJAMIN, 2012: 239). REFERÊNCIAS BENJAMIN, Walter. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: ______. Obras Escolhidas. Magia, técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 2012.