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Tabela 1 – A distinção entre adaptação e exaptação, de acordo com Gould e Vrba (1982) mediante a criação de dois novos termos numa “taxonomia da morfologia evolutiva” (1982, p. 520): exaptação e aptação. O termo ‘exaptação’ se refere a características previamente moldadas pela seleção natural para uma função particular, mas que foram cooptadas para um novo uso; ou a características originalmente não-funcionais, resultantes de processos não-seletivos, mas que foram cooptadas para um uso corrente. A Tabela 1 apresenta os conceitos propostos por Gould e Vrba. É importante notar que a distinção proposta por eles incorpora uma distinção entre função e efeito similar àquela encontrada emWilliams (1966) e compatível, em nosso entendimento, com a abordagem etiológica das funções proposta por Wright (1998). As penas das aves oferecem um exemplo de cooptação de característica previamente moldada pela seleção natural para uma função anterior ao uso corrente. De acordo com os modelos atualmente mais aceitos, as penas foram inicialmente selecionadas para a função de isolamento térmico em dinossauros ancestrais das aves e, posterior- mente, foram cooptadas para o voo, o que terminou por resultar na seleção posterior de mudanças em características das próprias penas, em características esqueléticas e padrões neuromotores específicos (Figura 2). As penas são, portanto, adaptações para termorregulação e exaptações para o voo. Características das penas, do esqueleto e padrões neuromotores são adaptações secundárias, selecionadas por suas funções no voo. O segundo caso pode ser ilustrado pela cooptação das suturas cranianas não-fusiona- das dos filhotes para o parto em mamíferos placentários, que foram citadas pelo próprio Darwin, em A origem, como exemplo de característica que comumente é confundida com uma adaptação, mas teria se originado por causas independentes da seleção natural: As suturas dos crânios dos mamíferos em idade infantil têm sido interpreta- das como uma bela adaptação destinada a facilitar o parto, o que sem dúvida acontece. Todavia, como tais suturas também aparecem nos crânios dos filho- tes de répteis e de aves, cujo nascimento depende apenas do rompimento das cascas dos ovos, podemos deduzir que essa estrutura surgiu em decorrência de certas leis de crescimento, sendo utilizadas pelos animais superiores no momento do parto (DARWIN, 1985, p. 178). 236 Figura 2: Evolução do voo: sequência de adaptações primárias, exaptações e adaptações secundárias. A. Sinosauropteryx, uma das espécies fósseis mais antigas de dinossauro plumoso (com o corpo revestido de penas). Ao lado, detalhe do membro anterior revestido por proto-penas, que correspondiam a espes- samentos da pele em forma de cones ocos. Trata-se de um dinossauro bípede ancestral das aves, que apresenta componentes esqueléticos com características anatômicas que indicam não terem sido capazes de realizar o tipo de voo que as aves exibem. Diante dessas evidências, sugere-se que originalmente as penas funcionavam como isolante térmico, não sendo usadas no voo. As penas seriam, então, uma adaptação para termorregulação. B. Archaeopteryx, considerada a mais antiga espécie de ave conhecida. Esta espécie reteve características de dinossauros ancestrais, como a longa cauda, a dentição etc., mas apresentava o corpo coberto por penas verdadeiras, com uma ráquis que forma o eixo central da pena e vexilos, formados pelo conjunto de barbas e bárbulas de ambos os lados do eixo central. O membro anterior, mostrado ao lado, apresenta arranjo de penas de voo semelhante ao das aves atuais: uma série distal de penas nos ossos alongados da mão e uma série proximal ao longo da parte externa do braço. Estima-se que Archaeopteryx tinha capacidade de voo por distâncias curtas. C. Ave moderna. As penas exaptadas para o voo passam a ser altamente modificadas e multifuncionais. As penas das asas são penas de contorno modificadas para o voo, os vexilos são arranjados assimetricamente em relação à ráquis etc. Além destas adaptações secundárias relativas às penas de voo, as aves apresentam modificações nos componentes esqueléticos, como o esterno muito expandido, com uma quilha na qual se fixam músculos envolvidos no voo, a presença de ossos pneumáticos, dentre outras mudanças apresentadas na figura (Figura produzida pelos autores do presente capítulo). Assim, o termo ‘exaptação’ designa características que apresentam valor funcional diante das circunstâncias correntes e em consequência de sua forma, mas são distintas de características que foram moldadas diretamente pela seleção natural para a função que desempenham hoje nos organismos que as possuem. Para estas últimas, Gould e Vrba reservam o termo ‘adaptação’. Esses autores recomendam, ainda, que seja empregado o termo ‘aptação’ como um termo descritivo mais geral incluindo exaptação e adaptação como subcategorias. Desse modo, torna-se possível o reconhecimento da distinção crucial entre o processo de cooptação e de modelagem direta por seleção natural, na construção histórica das características (GOULD, 2002, p. 1233). 237