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A semelhança entre o que expõem Sober e Mayr é evidente, principalmente na adjudi- cação de realidade às populações (e na negação de realidade aos tipos essenciais) que, supostamente, faz a teoria darwinista. A formulação direta da relação de identidade entre pensamento populacional e análise estatística é feita por Sober em seu influente The nature of selection (1993). Examinando quais são os alcances da revolução darwi- nista, Sober afirma, enfaticamente, que ela consiste em mudar o foco das perguntas a respeito das características dos organismos. Para este autor, é um erro pensar que a revolução darwinista consiste em dar uma resposta naturalista ao argumento teológico de Paley (1836) a favor de uma origem divina das adaptações. Segundo Sober, o aspecto inovador da teoria da evolução darwinista e seu mecanismo de seleção natural é seu caráter estritamente populacional: a seleção natural explicaria a persistência, difusão e porcentagem particular dos indivíduos e seus traços em uma população, não sua origem (SOBER, 1993; cf. MARTÍNEZ, 2007). Este é o caráter estatístico da evolução. Vale a pena assinalar a coincidência com Peirce a esse respeito: A controvérsia darwiniana é, emgrande parte, umaquestão de lógica. Darwin propôs aplicar o método estatístico à biologia. A mesma coisa foi feita em um ramo muito diferente da ciência: a teoria dos gases. Embora não se possa dizer quais seriam os movimentos de qualquer molécula particular de gás a partir de uma hipótese sobre a constituição dessa classe de corpos, Clausius e Maxwell mesmo assim conseguiram, oito anos antes da publicação da obra imortal de Darwin, pela aplicação da doutrina das probabilidades, prever no longo prazo que uma tal proporção das moléculas iria adquirir velocidades tais sob determinadas circunstâncias; que tal número relativo de colisões aconteceria a cada segundo, etc. E, a partir dessas proposições, conseguiram deduzir determinadas propriedades dos gases, principalmente no que diz respeito às suas relações de calor. De maneira semelhante, Darwin, embora incapaz de dizer qual seria a operação da variação e da seleção natural em cada caso individual, demonstra que, no longo prazo, elas adaptarão, ou adaptariam, os animais às suas circunstâncias. Se as formas animais se devem ou não a essa ação, ou que posição que a teoria deve assumir, é o tema de uma discus- são na qual as questões de fato e as questões de lógica estão curiosamente entrelaçadas (PEIRCE, 1877, p. 2-3, grifos nossos). A concepção subjacente às afirmações de Sober e Peirce é que a frequência e distribuição dos traços de uma população pode ser explicada pela seleção natural, mas ela não pode explicar o próprio aparecimento desses traços. Em outras palavras, para Sober e Peirce não se trata de que Darwin esteja propondo uma resposta naturalista para a pergunta de Paley (ou seja, a pergunta sobre a criação e origem dos traços adaptados); o que Darwin faz é promover uma nova concepção sobre o tipo de perguntas que devem ser respondidas com relação à diversidade: perguntas sobre a persistência e frequência 568 estatística de traços particulares e sobre os indivíduos que são portadores desses traços em uma população. O curioso é que naquela época os genes ainda não haviam sido definidos e, portanto, não existiam unidades em torno das quais fazer as inferências estatísticas5. É importante notar que tanto as ideias de Mayr como as de Sober coincidem com a definição clássica de evolução sustentada na genética de populações: mudanças na frequência de traços (e genes que os produzem) em uma população6. Poderíamos resumir a postura de Mayr e Sober dizendo que, para eles, o grande feito de Darwin foi erradicar o pensamento tipológico da biologia evolutiva, que trata de essências inexistentes, impondo um modo mais acertado de entender a realidade biológica, que consiste em populações compostas por indivíduos não similares (apre- sentando diversidade). Por essa razão, o pensamento populacional, a nova forma de fazer biologia evolutiva deve ser estatística: são as porcentagens de distribuição das variantes de indivíduos e traços na população os aspectos estudados pela evolução. As mudanças nas frequências de genes e traços em uma população definem evolução, e elas são causadas, principalmente, pela seleção natural (e, emmenor medida, por outros fatores, como deriva gênica, migração ou eventos estocásticos). Um enfoque tipológico, em um mundo com tanta variedade e em permanente mudança, só pode estar errado. Nas palavras de Wuketits: A teoria de Darwin [...] significa nada menos do que uma passagem do pensamento estático (essencialista) ao dinâmico, o que pode ser considerado como o próprio sentido do que se chama frequentemente de “Revolução Darwiniana,” dado que Darwin demonstrou que o que é real na natureza não é o “tipo,” e sim a “variação” (WUKETITS, 2005, p. 57). 5 É importante mencionar que a leitura que Sober faz de Darwin, de que ele não tentava dar uma resposta a Paley, vai na contramão do que afirmam os biógrafos de Darwin (OSPOVAT, 1981, cf. ARIEW, 2008). Há um consenso entre eles de que uma das principais motivações de Darwin em A origem das espécies (1859) foi demonstrar a falsidade da teologia natural de Paley (ver também SCHWEBER, 1977; GOULD, 1999, 2002). 6 Em uma interessante análise, Ariew (2008) afirma que Darwin estava muito longe de sustentar uma visão populacional e estatística como a deMayr e Sober. Esta última seria uma abordagemmais próxima do neodarwinismo. De acordo com Ariew, a revolução darwinista consistiria (diferentemente do que pensa Sober) em que o enfoque populacional (a genuinamente darwinista) permite ver como fenômenos que ocorrem no nível de populações (luta pela existência entre espécies, grupos e indivíduos) podem ter efeito causal direto na própria produção das formas biológicas (2008, p. 80-8). Um detalhado desenvolvimento deste último ponto é feito por Martínez (2007) e Martínez & Moya (2009). Para Ariew, mais do que estatística e porcentagens (o que ele documenta de forma exegética e em um contexto histórico), o que faz deDarwin umpensador populacional é a ideia da lei deMalthus sobre o crescimento exponencial da população versus a limitação de recursos. O viés estatístico do pensamento populacional é, de acordo com Ariew, uma característica principalmente neodarwinista, mas não sustentada pelo próprio Darwin. 569 Traduções A contingência dos padrões de organização biológica: superando a dicotomia entre pensamento tipológico e populacional O caráter histórico dos tipos