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9 A “velha sensibilidade” de Drummond, sem querer fazer jogo de palavras e já o fazendo, cuja arte não se deixa sufocar pelo mundo da publicidade e do consumo, reúne os predicados da nova sensibilidade de que nos fala Susan Sontag, em especial a ironia: Em minha calça está grudado um nome que não é meu de batismo ou de cartório, um nome... estranho. Meu blusão traz lembrete de bebida que jamais pus na boca, nesta vida. Em minha camiseta, a marca de cigarro que não fumo, até hoje não fumei. Minhas meias falam de produto que nunca experimentei mas são comunicados a meus pés. Meu tênis é proclama colorido de alguma coisa não provada por este provador de longa idade. Meu lenço, meu relógio, meu chaveiro, minha gravata e cinto e escova e pente, meu copo, minha xícara, minha toalha de banho e sabonete, meu isso, meu aquilo, desde a cabeça ao bico dos sapatos, são mensagens, letras falantes, gritos visuais, ordens de uso, abuso, reincidência, costume, hábito, premência, indispensabilidade, e fazem de mim homem-anúncio itinerante, escravo da matéria anunciada. Estou, estou na moda. É doce estar na moda, ainda que a moda seja negar minha identidade, trocá-la por mil, açambarcando todas as marcas registradas, todos os logotipos do mercado. Com que inocência demito-me de ser eu que antes era e me sabia tão diverso de outros, tão mim-mesmo, ser pensante, sentinte e solidário com outros seres diversos e conscientes de sua humana, invencível condição. Agora sou anúncio, ora vulgar ora bizarro, em língua nacional ou em qualquer língua (qualquer, principalmente). E nisto me comprazo, tiro glória de minha anulação. Não sou - vê lá - anúncio contratado. Eu é que mimosamente pago para anunciar, para vender em bares festas praias pérgulas piscinas, e bem à vista exibo esta etiqueta global no corpo que desiste de ser veste e sandália de uma essência tão viva, independente, que moda ou suborno algum a compromete. Onde terei jogado fora meu gosto e capacidade de escolher, minhas idiossincrasias tão pessoais, tão minhas que no rosto se espelhavam, e cada gesto, cada olhar, cada vinco da roupa resumia uma estética? Hoje sou costurado, sou tecido, sou gravado de forma universal, saio da estamparia, não de casa, da vitrina me tiram, recolocam, objeto pulsante mas objeto que se oferece como signo de outros objetos estáticos, tarifados. Por me ostentar assim, tão orgulhoso de ser não eu, mas artigo industrial, peço que meu nome retifiquem. Já não me convém o título de homem. Meu nome novo é coisa. Eu sou a coisa, coisamente. O retrato estampado pela arte de Carlos Drummond e que a sociologia chama de reificação, ou mais simplesmente de coisificação, tem a ver com esse 10 processo contraditório, próprio do mundo capitalista, que ao emprestar um caráter humano às mercadorias coisificam a humanidade e as relações sociais. Trata-se de um processo que ao mesmo tempo em que coisifica nossas relações sociais naturaliza o mundo das mercadorias que nos cercam e nos comandam. Tudo como em um grande mercado de investimentos, de bens de capital e novidades que, como nos informa sem descanso os noticiários escritos e falados, ora está mal humorado, em seguida eufórico, instável num dia, depois depressivo... Sempre inconstante, como um amante traiçoeiro... Com efeito, o mercado, dotado de “humanidade” comanda agora as nossas existências de acordo com o ponto de vista do maior promotor de nossos desejos, gostos e sentimentos: a mídia. Como uma “quase conclusão” pode-se dizer que separação entre quem olha o mundo de forma pessimista ou de forma otimista não é nenhuma novidade histórica e acompanha as reflexões de importantes pensadores desde muito tempo. Importante marco dessa dualidade é, por exemplo, o Iluminismo francês que reflete um período que exaltou a razão na história, as luzes, o progresso. Mas nem naquele período todos os ilustrados, pensadores da Revolução Francesa, fizeram igualmente a apologia da civilização. Um importante pensador da época, Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), ao contrário de seus contemporâneos, já via o progresso do mundo civilizado como manifestação de decadência da humanidade e, ao invés de glorificar o futuro, voltou seu olhar para o passado perdido, para a vida natural, para as festas, os valores e os sentimentos populares. Esta reflexão não tem intenção – trata-se apenas de uma breve introdução - de resolver as consequências advindas das discussões entre quem enaltece o progresso, o avanço industrial, científico e tecnológico, fazendo a apologia do caráter democratizante da cultura de massa e quem enxerga no consumismo, na fabricação, na indústria da cultura o fim da própria cultura. De um lado, há os que apostam num processo que agora disponibiliza os recursos tecnológicos necessários à produção e circulação de “trabalhos alternativos” (gravações de cds, dvds, vídeos com qualidade técnica jamais imaginada) em rede onde qualquer “iniciado” pode trocar informações e desejos ou fazer circular digitalmente seus pensamentos e suas criações. De outro lado, há os que acreditam que nunca o processo de industrialização e do avanço tecnológico esteve tão a serviço da reprodução de um “mundo desencantado”, como diria o sociólogo alemão Max Weber (1864-1920),