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006 - Industria-cultural-e-cultura-de-massas-5

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A “velha sensibilidade” de Drummond, sem querer fazer jogo de palavras e 
já o fazendo, cuja arte não se deixa sufocar pelo mundo da publicidade e do consumo, 
reúne os predicados da nova sensibilidade de que nos fala Susan Sontag, em especial a 
ironia: 
Em minha calça está grudado um nome 
que não é meu de batismo ou de 
cartório, 
um nome... estranho. 
Meu blusão traz lembrete de bebida 
que jamais pus na boca, nesta vida. 
Em minha camiseta, a marca de cigarro 
que não fumo, até hoje não fumei. 
Minhas meias falam de produto 
que nunca experimentei 
mas são comunicados a meus pés. 
Meu tênis é proclama colorido 
de alguma coisa não provada 
por este provador de longa idade. 
Meu lenço, meu relógio, meu chaveiro, 
minha gravata e cinto e escova e pente, 
meu copo, minha xícara, 
minha toalha de banho e sabonete, 
meu isso, meu aquilo, 
desde a cabeça ao bico dos sapatos, 
são mensagens, 
letras falantes, 
gritos visuais, 
ordens de uso, abuso, reincidência, 
costume, hábito, premência, 
indispensabilidade, 
e fazem de mim homem-anúncio 
itinerante, 
escravo da matéria anunciada. 
Estou, estou na moda. 
É doce estar na moda, ainda que a 
moda 
seja negar minha identidade, 
trocá-la por mil, açambarcando 
todas as marcas registradas, 
todos os logotipos do mercado. 
Com que inocência demito-me de ser 
eu que antes era e me sabia 
tão diverso de outros, tão mim-mesmo, 
ser pensante, sentinte e solidário 
com outros seres diversos e conscientes 
de sua humana, invencível condição. 
Agora sou anúncio, 
ora vulgar ora bizarro, 
em língua nacional ou em qualquer 
língua 
(qualquer, principalmente). 
E nisto me comprazo, tiro glória 
de minha anulação. 
Não sou - vê lá - anúncio contratado. 
Eu é que mimosamente pago 
para anunciar, para vender 
em bares festas praias pérgulas 
piscinas, 
e bem à vista exibo esta etiqueta 
global no corpo que desiste 
de ser veste e sandália de uma essência 
tão viva, independente, 
que moda ou suborno algum a 
compromete. 
Onde terei jogado fora 
meu gosto e capacidade de escolher, 
minhas idiossincrasias tão pessoais, 
tão minhas que no rosto se espelhavam, 
e cada gesto, cada olhar, 
cada vinco da roupa 
resumia uma estética? 
Hoje sou costurado, sou tecido, 
sou gravado de forma universal, 
saio da estamparia, não de casa, 
da vitrina me tiram, recolocam, 
objeto pulsante mas objeto 
que se oferece como signo de outros 
objetos estáticos, tarifados. 
Por me ostentar assim, tão orgulhoso 
de ser não eu, mas artigo industrial, 
peço que meu nome retifiquem. 
Já não me convém o título de homem. 
Meu nome novo é coisa. 
Eu sou a coisa, coisamente. 
 
O retrato estampado pela arte de Carlos Drummond e que a sociologia 
chama de reificação, ou mais simplesmente de coisificação, tem a ver com esse 
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processo contraditório, próprio do mundo capitalista, que ao emprestar um caráter 
humano às mercadorias coisificam a humanidade e as relações sociais. Trata-se de um 
processo que ao mesmo tempo em que coisifica nossas relações sociais naturaliza o 
mundo das mercadorias que nos cercam e nos comandam. Tudo como em um grande 
mercado de investimentos, de bens de capital e novidades que, como nos informa sem 
descanso os noticiários escritos e falados, ora está mal humorado, em seguida eufórico, 
instável num dia, depois depressivo... Sempre inconstante, como um amante traiçoeiro... 
Com efeito, o mercado, dotado de “humanidade” comanda agora as nossas 
existências de acordo com o ponto de vista do maior promotor de nossos desejos, gostos 
e sentimentos: a mídia. 
Como uma “quase conclusão” pode-se dizer que separação entre quem olha 
o mundo de forma pessimista ou de forma otimista não é nenhuma novidade histórica e 
acompanha as reflexões de importantes pensadores desde muito tempo. Importante 
marco dessa dualidade é, por exemplo, o Iluminismo francês que reflete um período que 
exaltou a razão na história, as luzes, o progresso. Mas nem naquele período todos os 
ilustrados, pensadores da Revolução Francesa, fizeram igualmente a apologia da 
civilização. Um importante pensador da época, Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), ao 
contrário de seus contemporâneos, já via o progresso do mundo civilizado como 
manifestação de decadência da humanidade e, ao invés de glorificar o futuro, voltou seu 
olhar para o passado perdido, para a vida natural, para as festas, os valores e os 
sentimentos populares. 
Esta reflexão não tem intenção – trata-se apenas de uma breve introdução - 
de resolver as consequências advindas das discussões entre quem enaltece o progresso, 
o avanço industrial, científico e tecnológico, fazendo a apologia do caráter 
democratizante da cultura de massa e quem enxerga no consumismo, na fabricação, na 
indústria da cultura o fim da própria cultura. 
De um lado, há os que apostam num processo que agora disponibiliza os 
recursos tecnológicos necessários à produção e circulação de “trabalhos alternativos” 
(gravações de cds, dvds, vídeos com qualidade técnica jamais imaginada) em rede onde 
qualquer “iniciado” pode trocar informações e desejos ou fazer circular digitalmente 
seus pensamentos e suas criações. De outro lado, há os que acreditam que nunca o 
processo de industrialização e do avanço tecnológico esteve tão a serviço da reprodução 
de um “mundo desencantado”, como diria o sociólogo alemão Max Weber (1864-1920),

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