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GASTRONOMIA BRASILEIRA I Rosa Virginia Wanderley Diniz A formação da cozinha brasileira Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: � Reconhecer as relações entre história e formação gastronômica. � Identificar regionalismos culinários ao analisar receitas. � Analisar os fatores socioambientais que interferem nos hábitos alimentares. Introdução A compreensão da formação da cozinha brasileira é indispensável para dominar as práticas culinárias regionais visando a atender às demandas de mercado que prezam pela tradição, mas buscam inovação. Neste capítulo, você vai estudar como a formação da cozinha brasi- leira ocorre de acordo com aspectos ambientais, geográficos, históricos e econômicos brasileiros, constituindo uma pluralidade de cozinhas brasileiras, sem que haja uma marca homogênea. Além disso, você verá quais são os principais aspectos regionais que constituem essa marca e permanecem consolidados em nossa cultura alimentar. Onde estão a história, a formação e a cozinha brasileira? Em um primeiro momento, é preciso entender que, embora as expressões história da cozinha brasileira, formação da cozinha brasileira e cozinha bra- sileira estejam inter-relacionadas, elas não são equivalentes ou sinônimas. No entanto, é importante esclarecer que é a partir da história que se dá a formação da cozinha brasileira. Por história, deve-se considerar o proposto por Silva e Silva (2009, p. 9) como uma “[...] forma de conhecimento e de explicação dos fenômenos sociais [...]”. Assim, ao considerar o contexto gastronômico e culinário brasileiro, pode-se definir a história da cozinha brasileira como um conjunto de conhecimentos e explicações que fundamentam os fenômenos sociais gastronômicos ocor- ridos no Brasil, os quais contribuíram para a formação das práticas culturais culinárias de preparar e consumir alimentos. Ou seja, a formação da cozinha brasileira está historicamente contextualizada, enquanto a história, por sua vez, é orientada por aspectos geográficos, ambientais, sociais, econômicos e políticos que a regem. Nesses termos, Sonati, Vilarta e Silva (2009) destacam que, além do caráter biológico, a alimentação envolve formas e tecnologias de cul- tivo, manejo, coleta, armazenamento e formas de preparo do alimento, constituindo-se em um processo social e cultural. Botelho (2015), por sua vez, sugere que a partir de uma engenharia reversa, desconstruindo receitas, é possível descobrir produtos agrícolas, técnicas de cultivo e temperos regionais. Dados esses fundamentos iniciais, uma questão se impõe e esta diz respeito às bases históricas da cultura alimentar brasileira. Mas quais seriam elas? Essas bases se sustentam nos processos históricos fundados pelas relações entre índios, portugueses e negros do período colonial e passam a delinear todo o entrelaçamento posterior ao nosso momento de fundação como nação (Figura 1). A formação da cozinha brasileira2 Figura 1. O Jantar, de Jean-Baptiste Debret (1829). Fonte: Voyage Pittoresque et Hist (1829). Somos afro-indígenas-lusitanos em cores e sabores, os quais determinam nossa identidade culinária que, posteriormente, passou a receber outras influ- ências. Portanto, a cozinha brasileira é resultante das influências recebidas, das peculiaridades de sua dimensão continental e da diversidade cultural implantada pelos imigrantes que aqui se instalaram (SONATI; VILARTA; SILVA, 2009). Muitas das técnicas culinárias e muitos ingredientes têm origem indígena, com diversas adaptações por parte dos escravos e dos portugueses. As levas de europeus que chegavam ao Brasil trouxeram algumas novidades para o cardápio, fortalecendo o consumo e a grande diversidade de alimentos. 3A formação da cozinha brasileira Comida brasileira e cozinhas do Brasil Botelho (2015, p. 62) esclarece como se dá a relação entre um modelo de cozinha e uma nação nos seguintes termos: [...] formas culturalmente estabelecidas que fazem parte de um sistema ali- mentar composto por um conjunto de técnicas, produtos, hábitos e com- portamentos relativos à alimentação. Porém, não se trata de algo estático, pois os intercâmbios entre os distintos povos são constantes e cada vez mais intensos, e as sociedades que geram suas culinárias também se modificam ao longo do tempo. Tais considerações permitem compreender que o jogo de influências e relações sociais estabelecidas em um país se configura de diferentes formas, e, no caso do Brasil, dadas as condições geográficas, as diferentes dispersões de influências acabam por estruturar modelos culturais diversos, com fortes regionalismos e cozinhas típicas peculiares. Essa enorme diversidade impos- sibilita a homogeneização de uma única cozinha brasileira. Desse modo, não se pode dizer que há uma única cozinha típica brasileira, assim como não há como apontar um brasileiro típico apenas por seus atributos físicos. Quanto às peculiaridades alimentares regionais, vários recortes de análise são possíveis. De um modo bastante generalista e considerando os aspectos socioambientais, é possível observar uma distribuição de influências culturais na constituição culinária do Brasil da seguinte maneira: � nas regiões amazônicas dominam as influências culturais indígenas; � as regiões fronteiriças apresentam forte interferência das culturas hispano-americanas, sendo esta também observada na região centro- -sul, junto com as influências italianas e alemãs; � na região nordeste há influências africanas e portuguesas; � nos grandes centros urbanos são observadas influências múltiplas, sem que se possa balizar uma dominância. Nota-se que a divisão é bastante simplória e tem finalidade didática, não correspondendo à divisão geopolítica brasileira, uma vez que as influências historicamente construídas não obedecem a categorias pré-determinadas, mas a fluxos contextuais que ocorrem sem controles específicos. Dória (2014), por outro lado, propõe outra divisão e traz a concepção de manchas culinárias descontínuas, estabelecendo como padrão a culinária amazônica (mandioca e seus derivados), a culinária da costa (peixes, frutos A formação da cozinha brasileira4 do mar e leite de coco), a culinária meridional (milho, carnes variadas e in- gredientes típicos), a culinária do recôncavo baiano (óleo de dendê e a cozinha de santo) e a culinária caipira (milho, carnes de porco e de frango, vegetais e legumes da horta). Vê-se que, na estruturação proposta pelo autor, o recorte é determinado por aspectos da cultura alimentar e não pelas influências históricas determinantes. Sonati, Vilarta e Silva (2009), no entanto, apresentam um recorte gastro- nômico mais tradicional, retomando a concepção geopolítica para apontar as tendências alimentares regionais (Quadro 1). Região Base alimentar Heranças principais Alimentos típicos Norte Mandioca e peixe Cultura dos índios nativos Tacacá, maniçoba, açaí com tapioca, carnes de jacaré e tartaruga assadas, frutas silvestres, manga, castanha-do- -brasil, guaraná e abacate Nordeste Região litorânea: farinha de mandioca, feijão, carne de sol, milho, rapadura, peixes e frutos do mar Portuguesa, africana e indígena Angu, cuscuz, abóbora com leite, queijo com rapadura, batata-doce com café, doce de leite com banana, polenta com leite, acarajé, vatapá, abará, caruru e galinha à cabidelaRegião sertaneja: carnes bovina e caprina, leite, manteiga, feijão, batata-doce, mandioca, legumes e frutas nativas Centro- -Oeste Produtos da pesca e da caça Migrantes de outras regiões do país Peixe na telha, peixe com banana, carne com banana, costelinha, bolinhos de arroz, pamonha, feijão tropeiro, carne seca, toucinho e banha de porco Quadro 1. Tendências alimentares regionais (Continua) 5A formação da cozinha brasileira Fonte: Sonati, Vilarta e Silva (2009). Quadro 1. Tendências alimentares regionais Região Base alimentar Heranças principaisAlimentos típicos Sudeste Carboidratos Diversificação considerável pelas características metropolitanas dos estados RJ e SP Moqueca capixaba, feijão tropeiro, tutu, torresmo, angu com quiabo, couve à mineira, canjiquinha com carne, curau, pamonha, broa, pão de queijo (referem-se apenas aos estados Espírito Santos e Minas Gerais) Sul Carnes e massas Italianas, alemãs, polonesas e ucranianas Repolho à moda, pão de leite, salames, massas em geral, batata, centeio, carnes defumadas, cerveja, linguiça, cuca, torta de maçã, bolo de frutas, peixes, frutos do mar, arroz de carreteiro e churrasco gaúcho (Continuação) Dadas as possibilidades de se sistematizar as peculiaridades alimentares regionais, vê-se que qualquer tentativa de enquadramento é apenas uma forma de interpretar um fenômeno social bastante complexo, oferecendo apenas uma perspectiva possível de análise que sempre comportará suas falhas. Além disso, uma divisão regional acaba por esconder as potenciais integrações e diferenças existentes entre estados, por exemplo, como se pode ver a seguir. A formação da cozinha brasileira6 Quebe com vinho de açaí: já provou alguma dessas iguarias? As raízes indígenas são, indiscutivelmente, a base da gastronomia do Norte do Brasil, também entendido como Região Amazônica, além de ser também a principal influência cultural dessa região. Como visto, a alimentação típica se baseia em mandioca e pescados. Embora o Pará seja frequentemente destacado como legítimo representante da região, existem peculiaridades próprias de cada estado que os torna singulares. Quinzani, Capovilla e Corrêa (2016), ao ponderar essa questão, apresentam uma série de especificidades alimentares e ilustram, como exemplo, o Acre, cuja cultura local é praticamente desconhecida do resto do país. Você sabia que, além das influências indígenas, esse estado recebeu forte contri- buição árabe? Tal influência gerou pratos típicos que podem ser saboreados apenas ali, como exemplo disso, podemos citar o quebe, uma derivação acreana do quibe, que é feita de mandioca ou arroz e vinho de açaí, o qual é elaborado a partir da polpa do fruto extraída e misturada em uma diluição de água e mandioca (QUINZANI; CAPOVILLA; CORRÊA, 2016). Cozinha regional: multiplicidade de modelos Inspirada na proposta de Botelho (2015), que sugere uma engenharia reversa das receitas regionais como base de interpretação das características da forma- ção culinária de cada ponto do país, bem como a sua ideia de conjunto como sendo uma forma de constituir a cozinha brasileira, optou-se por elencar uma série de cinco pratos populares, apresentar seus ingredientes e observar, pela comparação, as suas peculiaridades. Assim, para esse exercício analítico, foram observados os ingredientes dos seguintes pratos: pato no tucupi, galinha à cabidela, galinhada, frango com pequi e marreco recheado, os quais, forçosamente, poderiam ser apontados como representações da culinária de cada uma das regiões do país. Apesar disso, como citado anteriormente, uma separação puramente geopolítica não seria capaz de refletir as interações gastronômicas, uma vez que é possível encontrar cada um desses pratos em diversos lugares. 7A formação da cozinha brasileira Portanto, a partir das receitas que correspondem a um prato principal, cuja base é a carne de ave, é possível se realizar a seguinte análise, conforme o Quadro 2. Prato Ingredientes gerais Principais influências Pato no tucupi Pato, tucupi, jambu, alho, cebolas, chicória do Pará, tomates, limões, manteiga, azeite, sal, pimenta-do- -reino e pimenta de cheiro Indígena Galinha à cabidela Sangue de galinha fresco, galinha inteira, cebola, alho, cheiro-verde, colorau, água, amido de milho, óleo, pimentão, tomate e sal Portuguesa Frango com pequi Frango picado, pequi, milho verde, cebola, alho, óleo, colorau, cheiro- -verde, sal e pimenta Indígena e portuguesa Galinhada Frango caipira picado, arroz, cebolas, alho, óleo, sal, pimenta-do-reino, cheiro-verde e manjericão Portuguesa Marreco recheado Marreco (com miúdos), lombinho suíno, maçã, ovo, farinha de trigo, bacon, cebola, alho, pão, tomate, sal, pimenta- -do-reino e cebolinha Alemã Quadro 2. Pratos principais com aves, seus ingredientes e suas influências Vê-se que, nos exemplos ilustrados no Quadro 2, há diversas intervenções, inclusive de cunho regional, como o uso do tucupi, do pequi e do marreco. É possível, ainda, observar algumas das interferências históricas ocorridas, A formação da cozinha brasileira8 como a portuguesa, por exemplo, enquanto outras passam completamente despercebidas. É possível notar que não há estranheza quanto à adição de pimentas no tempero da maioria dos pratos, sendo um hábito comum na culinária brasileira, embora isso tenha forte interconexão com a culinária africana, uma das nossas mais importantes raízes gastronômicas. Por outro lado, é preciso destacar a existência de releituras regionais das receitas tradicionais da cozinha brasileira. Assim, a galinhada, por exemplo, pode encontrar nuances diversas se preparada em Minas, com seus toucinhos, da proposta em Goiás, a partir da guariroba. Outro exemplo que pode ser citado são os diversos tipos de moqueca, os quais são preparados ao longo da costa brasileira e têm uma diversidade de temperos. Você conhece o Tacacá? Talvez um dos pratos que mais tenha conservado suas raízes na culinária brasileira seja o Tacacá, uma receita indígena, cuja base se elabora a partir de um caldo de mandioca — o tucupi —, camarões e jambu, que proporciona uma experiência gastronômica rústica e, ao mesmo tempo, sofisticada. Quer experimen- tar? Para conhecer a receita, acesse o link a seguir. https://goo.gl/ygh8pv Cozinha regional e caráter ambiental O caráter continental que estrutura nosso país permite uma importante in- tervenção dos aspectos ambientais nas práticas culinárias regionais, uma vez que a diversidade de biomas determina e rege nossa capacidade de adaptação e resistência. Ou seja, nossas características culturais também são orientadas pelas limitações de ordem ambiental. No caso do Brasil, especificamente, o país é delineado por seis biomas distintos, sendo eles: floresta amazônica, mata atlântica, cerrado, pantanal, caatinga e pampas (Figura 2). 9A formação da cozinha brasileira Figura 2. Biomas do Brasil. Fonte: Cunha (2017, documento on-line). BIOMA CERRADO BIOMA AMAZÔNIA BIOMA PANTANAL BIOMA CAATINGA BIOMA MATA ATÂNTICA BIOMA PAMPA Você já se perguntou como a interface entre os hábitos alimentares e os biomas se estruturam? Para pensar nisso, é necessário, primeiro, retomar o conceito de bioma, a partir de Grisi (2007, p. 38), como sendo “[...] a maior unidade de comunidade terrestre com flora, fauna e clima próprios [...]”. Ou seja, trata-se de uma larga faixa ambiental que conserva as mesmas carac- terísticas, oportunizando o surgimento de um tipo peculiar de interações ambientais e, consequentemente, culturais. Por essa razão, o entorno do bioma Cerrado cria condições alimentares e forma uma gastronomia diversa daquela instituída a partir do bioma Amazô- nico, embora possa haver interações na intersecção entre ambos. Nesses termos, retomando o recorte gastronômico proposto por Sonati, Vilarta e Silva (2009) e o confrontando com a ilustração do mapa na Figura 2, faz sentido observar que a região Nordeste do Brasil comporta uma base alimentar dividida. A formação da cozinha brasileira10 Assim, é possível distinguir a base alimentar da região litorânea, que é composta por pescados, por exemplo, os quais são pertencentes ao bioma da Mata Atlântica, da região sertaneja, cujas características ambientais contem- pladas correspondem ao bioma da Caatinga e a base alimentar proteica se estrutura na caprinocultura. Lembrando a máxima da literatura de Euclides da Cunha (1985, p. 115), quando este compara o homem sertanejo ao litorâneo e diz: “O sertanejoé, antes de tudo, um forte. Não tem o raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos do litoral [...]”. BOTELHO, A. Geografia dos sabores: ensaio sobre a dinâmica da cozinha brasileira. Caderno Brasil, São Paulo, out. 2015. Disponível em: <https://edisciplinas.usp.br/plu- ginfile.php/452088/mod_resource/content/1/BOTELHO.%20Geografia%20dos%20 sabores%20ensaio%20sobre%20a%20dinamica%20da%20cozinha%20brasileira%20 28.04.pdf>. Acesso em: 30 abr.2018. CUNHA, A. Entenda o que são os biomas e saiba como preservá-los. 2017. Disponível em: <https://noticias.cancaonova.com/brasil/entenda-o-que-sao-os-biomas-e-veja- -dicas-sobre-como-preserva-los/>. Acesso em: 06 jun. 2018. CUNHA, E.. Os sertões. São Paulo: Brasiliense, 1985. DÓRIA, C. A. Formação da culinária brasileira. São Paulo: Três Estrelas, 2014. GRISI, B. M. Glossário de ecologia e ciências ambientais. João Pessoa: UFPB, 2007. QUINZANI, S. S. P.; CAPOVILLA, V. M.; CORRÊA, A. A. A pluralidade gastronômica da região amazônica: sabores acreanos, paraenses e do Alto Rio Negro. Revista Hospi- talidade, São Paulo, v. 13, n. 2, p. 248-271, ago. 2016. Disponível em: <https://www. revhosp.org/hospitalidade/article/viewFile/645/708>. Acesso em: 01 maio 2018. SILVA, K. V.; SILVA, M. H. Dicionário de conceitos históricos. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2009. SONATI, J. G.; VILARTA, R.; SILVA, C. C. Influências culinárias e diversidade cultural da identidade brasileira: imigração, regionalização e suas comidas. In: MENDES, R. T.; VILARTA, R.; GUTIERREZ, G. L. (Org.). Qualidade de vida e cultura alimentar. Campinas: IPES, 2009. v. 1, p. 137-147. Disponível em: <https://www.fef.unicamp.br/fef/sites/ uploads/deafa/qvaf/cultura_alimentarcap14.pdf>. Acesso em: 30 abr. 2018. VOYAGE Pittoresque et Hist. 1829. Disponível em: <https://digitalcollections.nypl.org/ collections/voyage-pittoresque-et-historique-au-brsil-ou-sjour-dun-artiste-franais- -au-brsil#/?tab=about&scroll=150>. Acesso em: 31 maio 2018. 11A formação da cozinha brasileira Conteúdo: