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Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público: reflexões sobre as relações entre religião e sociedade Fabrício Roberto Costa Oliveira Reinaldo Azevedo Schiavo Ramon da Silva Teixeira Mauro Rocha Baptista Luiz Ernesto Guimarães Cáio César Nogueira Martins (Orgs.) Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público: reflexões sobre as relações entre religião e sociedade 1° Edição Editora Campinas / SP 2020 Copyright D7 Editora Copyright Organizadores Proibida reprodução total ou parcial. Os infratores são processados na forma da lei. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Oliveira, Fabrício Roberto Costa, Schiavo, Reinaldo Azevedo, Teixeira, Ramon da Silva, Baptista, Mauro Rocha, Guimarães, Luiz Ernesto, Martins, Cáio César Nogueira Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público: reflexões sobre as relações entre religião e sociedade/ Campinas, SP: D7 Editora 1 - Ciências sociais ISBN - 978-65-86317-81-7 65-86317 CDD - 300 1º Edição www.d7livros.com.br Fone: 3273.1426 R. Th omas Alves Brown, 151 - Vila João Jorge Campinas - SP - 13041-316 Fabrício Roberto Costa Oliveira Reinaldo Azevedo Schiavo Ramon da Silva Teixeira Mauro Rocha Baptista Luiz Ernesto Guimarães Cáio César Nogueira Martins (Orgs.) “(...) quando se considera uma religião apenas como uma ‘força política’ entre outras, sem levar em conta o simbolismo verbal e ritual que encerra, não é possível compreender o peso e o lugar da religião na política”. Regina Reyes Novaes. SUMÁRIO APRESENTAÇÃO........................................................................... 9 1. Ensino Religioso e Estado laico: a tensão entre o STF e a BNCC ............................................................................................................ 16 Mauro Rocha Baptista 2. A Romaria dos Trabalhadores e Trabalhadoras: a ressignificação de práticas do catolicismo como espaço para mobilizações sociais.......................................................................... 35 Luiz Ernesto Guimarães; Fábio Antônio da Silva & Alexandre Rodrigues Faria 3. O ativismo político na Dimensão Sociopolítica da Arquidiocese de Mariana/MG................................................................................ 52 Edson Lugatti S. Bissiati; Lara B. Leporati & Gustavo Antonio O. dos Santos 4. Transmissão do saber fazer via comunidade e família: o caso do Mobon na Zona da Mata mineira................................................... 71 Lívia Rabelo 5. Movimento da Boa Nova e a lógica simbólica da comunicação popular entre missionários sacramentinos e católicos de comunidades rurais.......................................................................... 90 Ramon da Silva Teixeira 6. Religião e política na Renovação Carismática Católica: análise de um grupo de oração em ano não eleitoral..................................109 Luiz Ernesto Guimarães; Jamile A. da Costa Moreira & Deomario L. Machado 7. Entre Religião e Política: As especificidades de uma candidatura evangélica à Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro.................124 Willelm Martins Andrade Jardim 8. Religião e Política na IURD: Um estudo da Folha Universal no ano eleitoral de 2018........................................................................140 Caio César Nogueira Martins & Fabrício Roberto Costa Oliveira 9. Memória e religião: Uma análise sobre o papel da religião na socialização de refugiados venezuelanos........................................161 Caroline Nascimento Lehmann & Juliana da Silva Santos 10. O Espiritismo em Ponte do Cosme: um estudo de caso............188 Vitor Cesar Presoti & Reinaldo Azevedo Schiavo Autoras e autores.............................................................................207 Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público | 9 APRESENTAÇÃO Fabrício Roberto Costa Oliveira Ramon da Silva Teixeira Reinaldo Azevedo Schiavo Este livro é fruto de esforços coletivos de pesquisadoras e pesquisadores do Grupo de Estudos da Religião da Universidade Estadual de Minas Gerais (UEMG) - Unidade Barbacena. Crendo que é com o intercâmbio de conhecimentos e de perspectivas entre estudiosas e estudiosos que a pesquisa social avança, é importante mencionar também que alguns dos capítulos que o leitor terá em mãos foram escritos por parceiras e parceiros de nosso Grupo de Estudos, que frequentemente mantém o diálogo conosco e contribuem para nossas pesquisas. O Grupo de Estudos foi formado em 2014, por iniciativa do professor Reinaldo Azevedo Schiavo e estudantes da UEMG. Naquele contexto, Reinaldo chegava à Universidade como docente e doutorando. Como pesquisador, está empenhado em investigações sobre o campo da religião desde a graduação. Deste modo, o intuito de Reinaldo foi estimular entre seus estudantes a iniciação em pesquisas e experiências acadêmicas que fossem instigantes e catalisadoras de novas oportunidades de aprendizado, distintas das experiências de sala de aula e, ao mesmo tempo, conectadas a elas, potencializando-as. Além dos estudos no grupo, o professor considerava fundamental que estudantes da UEMG divulgassem as pesquisas e possuíssem experiências de intercâmbios acadêmicos. Com tal propósito, convidou o professor Fabrício Roberto Costa Oliveira, que participava de um grupo de estudos da religião na Universidade Federal de Viçosa (UFV), para que propusessem um Grupo de Trabalho (GT) no âmbito do I Congresso Nacional de Ciências da Religião (CONACIR), organizado pelo Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora (PPCIR / UFJF), em 2015, no campus da UFJF. O GT sob o título “Cristianismo e Espaço Público: aspectos políticos e sociais” desde então fez parte de todas as edições do evento. Isto é, como espaço de diálogo e troca de ideias, pontos de vistas, 10 | Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público reflexões e pesquisas, o GT promoveu intercâmbio entre estudantes de diversas regiões do país nos anos de 2015, 2016, 2018 e 2019. Em todas as edições contamos com a participação de estudantes de graduação, pós-graduação e professores de diversas universidades brasileiras. Neste período, diversos estudantes que passaram pelos grupos de pesquisas de ambos os professores e pelo mencionado GT do CONACIR ingressaram em cursos de pós- graduação para darem continuidade às suas pesquisas. Nessa esteira de bons frutos, não poderíamos deixar de mencionar que o GT rompeu as fronteiras de Minas Gerais e, sob a coordenação de Lívia Rabelo e Ramon Teixeira, o mesmo foi aprovado e então realizado durante a XIII Jornada de alunos do Programa de Pós- graduação em Antropologia da Universidade Federal Fluminense (PPGA/UFF), em 20191. No segundo semestre de 2017, coincidentemente o ano em que não houve o CONACIR, foi o período em que a Unidade Barbacena recebeu um reforço importante em sua frente de ensino e pesquisa das Ciências Humanas e Sociais. Em outras palavras, o professor Fabrício, que já estabelecia interlocuções junto à UEMG, tornou-se professor efetivo da Unidade Barbacena. No mesmo concurso, tivemos a sorte de ter aprovado o professor Luiz Ernesto Guimarães, que também desenvolvia pesquisas sobre as relações entre religião e política, além dos professores Reinaldo e Mauro Rocha Baptista, que já atuavam na UEMG, também terem se tornado professores efetivos da instituição. Assim, no início de 2018 nos reunimos junto ao Grupo de Estudo com o objetivo de estimularmos a produção acadêmica e a reflexões sobre religião, algo que redundou em diversas iniciações científicas e trabalhos de conclusão de curso. A qualidade dos trabalhos e a dedicação do grupo são ratificadas com a publicação deste livro. Destarte,este livro é a materialização da potencialidade do grupo em promover reflexões a respeito de problemáticas relacionadas à religião. O livro possui dez capítulos com temáticas diversificadas – que, em maior ou menor medida, abordam questões sobre Cristianismo no plural e suas relações com a sociabilidade e o espaço público. Em 1 Com o tema “Reflexões antropológicas: contribuições e desafios na construção de saberes”, o evento ocorreu entre os dias 11 a 14 de novembro de 2019, no campus da UFF, em Niterói. Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público | 11 suma, todos os textos possuem o propósito comum de apresentar reflexões densas sobre problemáticas contemporâneas, tendo a religião como foco analítico. Ressalta-se que todos os trabalhos foram plenamente apresentados, analisados e discutidos entre os pares, seja no âmbito do próprio Grupo de Estudo da UEMG, seja no âmbito do CONACIR2. O capítulo 1, intitulado “Ensino Religioso e Estado laico: a tensão entre o STF e a BNCC” traz uma reflexão pautada na necessidade de abordarmos a temática da laicidade e suas implicações para o ensino básico no Brasil contemporâneo. Trata-se de um texto que revela como o Ensino Religioso (ER) é compreendido por diferentes segmentos da sociedade brasileira. Por um lado, revela a maneira com que o judiciário brasileiro aborda tal problemática, por outro, como a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) tem definido as diretrizes do ER. Enfim, trata-se de uma importante contribuição para a reflexão sobre o ensino de religião e suas consequências para a formação do alunado, e para a sociedade como um todo. O capítulo 2, “A Romaria dos Trabalhadores e Trabalhadoras: a ressignificação de práticas do catolicismo como espaço para mobilizações sociais”, de Luiz Ernesto Guimarães, Fábio Antônio da Silva e Alexandre Rodrigues Faria, insere-se no campo dos estudos sobre as relações entre fé e política por meio da observação- participante da referida romaria, organizada pela Dimensão Sociopolítica e diversos grupos ligados às Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e à Teologia da Libertação da Arquidiocese de Mariana/MG. No texto, ao refletirem sobre a prática litúrgica – que mistura “elementos das romarias tradicionais, passeatas de protesto e novas formas de espiritualidade em torno das comunidades de base (CEBs), todas marcadas, mais ou menos, pela união de dois pólos: a fé e a política” (ADAM, 2002, p.53), trata-se de um texto interessante ao revelar como um evento desta espécie, mais ligado ao catolicismo popular e “da libertação”, recebe e integra a presença de agentes católicos “mais conservadores”, ligados a um catolicismo mais 2 Isto é, os trabalhos reunidos neste livro foram submetidos ao escrutínio de diversos pesquisadoras e pesquisadores, dos mais variados níveis, durante o IV CONACIR, com o tema “Religião e Democracia: desafios no espaço público”, ocorrido de 8 a 10 de outubro de 2019, em Juiz de Fora. Assim, versões preliminares dos textos foram publicadas nos anais do evento. 12 | Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público tradicional. Todo esse movimento de observação e análise dos pesquisadores nos faz refletir sobre a complexidade que envolve a prática litúrgica. Ainda nesse contexto da Arquidiocese de Mariana, o capítulo 3, “O ativismo político na Dimensão Sociopolítica da Arquidiocese de Mariana/MG”, escrito por Edson Lugatti Silva Bissiati, Lara Bortolusci Leporati e Gustavo Antônio Oliveira dos Santos, aborda a III Assembleia da Dimensão Sociopolítica da Arquidiocese em busca da análise da complexidade das interações entre os diferentes agentes e grupos católicos envolvidos na realização e na participação no evento. Especificamente, utilizando a abordagem dramatúrgica (GOFFMAN, 1985) para enquadrar os “dados”, os pesquisadores partem da partição observante do referido evento, considerando todos os seus momentos programados para demonstrar como a atuação religiosa e política de agentes da Arquidiocese de Mariana estão imbricadas em processos complexos, que associa fé e realidade concreta. Enfim, a contextualização do referido evento e a descrição e análise de suas atividades revelam interessantes associações entre aspectos materiais e simbólicos, que envolvem expressão da fé e atuação política de um grupo que possui proximidades com o Partido dos Trabalhadores (PT). O capítulo 4, “Transmissão do saber fazer via comunidade e família: o caso do Mobon na Zona da Mata mineira”, de Lívia Rabelo traz um estudo minucioso da constituição de agentes sociais engajados na militância político religiosa do Movimento da Boa Nova (Mobon). Ancorada em conceitos antropológicos a autora demonstra como o saber fazer, com o qual as lideranças religiosas e políticas da Zona da Mata tiveram contato através do Mobon, transmitido de geração em geração, tanto dentro de casa quanto nas comunidades de base formadas, revelam-se fundamentais para a construção social destas pessoas e fundamentais para o desenvolvimento de suas práticas. Também analisando atividades do Mobon, o capítulo 5, “Movimento da Boa Nova e a lógica simbólica da comunicação popular entre missionários sacramentinos e católicos de comunidades rurais”, de Ramon da Silva Teixeira, é um estudo detalhado e profícuo de como o Mobon tem, na utilização da linguagem popular, um de seus principais mecanismos de transmissão de concepções religiosas aos agentes do meio rural. Trata-se de um texto Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público | 13 com descrição profunda, recheado de imagens e interessantes reflexões analíticas. O capítulo 6, “Religião e política na Renovação Carismática Católica: análise de um grupo de oração em ano não eleitoral”, de Luiz Ernesto Guimarães, Jamile Aparecida da Costa Moreira e Deomario Lauriano Machado, trata-se de uma reflexão sobre um Grupo de Orações vinculado à Renovação Carismática Católica (RCC), que procura não revelar suas simpáticas e/ou vínculos políticos partidários. Embora, as reflexões atentas dos pesquisadores revelaram uma sintonia entre as concepções religiosas do grupo e pautas mais moralistas e grupos mais à direita no espectro político brasileiro. O fato da análise estar focada em um período fora do tempo da política (PALMEIRA; HEREDIA, 2010), isto é, terem sido realizadas a partir de situações ocorridas em um ano não eleitoral, torna o texto ainda mais instigante. O capítulo 7, “Entre Religião e Política: As especificidades de uma candidatura evangélica à Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro”, de Willelm Martins Andrade Jardim, é fruto de uma reflexão atenta e fecunda a respeito da candidatura de uma mulher evangélica da IURD, no Rio de Janeiro. Texto que parte de uma análise complexa do discurso da candidata, em um contexto eleitoral, torna-se útil como mais um estudo que revela as tensões existentes entre os campos político e religioso. Em síntese, como o próprio autor escreve, com a observação da atuação da candidata durante sua campanha para deputada estadual “podemos acompanhar como a articulação dos discursos é elaborada, como [ela] lida com os constrangimentos de sistemas diferenciados (político e religioso), e com as fronteiras antagônicas construídas no contato com os demais sujeitos envolvidos na disputa”. O capítulo 8, “Religião e Política na IURD: Um estudo da Folha Universal no ano eleitoral de 2018”, é uma reflexão de Caio Cesar Nogueira Martins e Fabrício Roberto Costa Oliveira. O texto fornece ao leitor uma análise de notícias do jornal “Folha Universal”, um dos veículos de divulgação das concepções religiosas e morais da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD). Devido a amplitude do jornal, os pesquisadores focaram nos Editoriais e nas reportagens diretamente vinculadas às eleições presidenciais de 2018. Assim, analisaram ao todo 51 edições do jornal, publicados durante o período pré-eleitoral, eleitoral (1º e 2º turnos) e pós-eleitoral. Deste modo, o texto revelacomo o posicionamento de agentes do jornal frente às 14 | Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público candidaturas e o conteúdo do jornal vai se transformando ao longo do período estudado. Os autores são produtivos em demonstrar, a partir de uma questão preeminente no debate atual – quais fatores explicam a eleição de Jair Messias Bolsonaro a presidente –, como as matérias do referido jornal constituem um forte capital político, econômico e político, que podem ter contribuído com este fato. O capítulo 9, “Memória e religião: Uma análise sobre o papel da religião na socialização de refugiados venezuelanos”, de Caroline Nascimento Lehmann e Juliana da Silva Santos, é muito interessante ao revelar processos sociais complexos que envolvem religião e sociabilidade de refugiados venezuelanos que procuram se estabelecer em solo brasileiro. As narrativas dos atores enriquecem o texto e mostram importantes dilemas humanitários transnacionais que implicam em fenômenos locais. Ao fim, refletindo sobre outra interessante faceta da religiosidade em Barbacena/MG, Vitor Cesar Presoti e Reinaldo Azevedo Schiavo apresentam o capítulo 10, “O Espiritismo em Ponte do Cosme: um estudo de caso”. O texto trata-se de uma reflexão interessante sobre a presença de um histórico centro espírita em um pequeno distrito rural do município de Barbacena. Notadamente, os pesquisadores abordam a formação do centro “Amor a Verdade, que se confunde com a história da consolidação formal do espiritismo kardecista no Brasil, e revelam importantes aspectos da trajetória do grupo do distrito onde está situado o centro em um contexto majoritariamente católico. Nossa expectativa, assim, é que esse livro possa contribuir para os estudos sobre religião e suas mais diversas intersecções, além de colaborar com reflexões sobre a nossa sociedade. Esperamos também que tal inciativa seja inspiração para que outros pesquisadores divulguem seus trabalhos e potencializem o debate e as reflexões sobre o campo das ciências humanas e sociais, colocando em evidência a importância das Universidades e do ensino público para o pensamento reflexivo e crítico. Boa leitura! Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público | 15 Referências Bibliográficas ADAM, Júlio Cézar. Liturgia como prática dos pés: A Romaria da Terra do Paraná: reapropriação de ritos litúrgicos na busca e libertação dos espaços de vida. Estudos teológicos, v. 42, n.3, p. 52-69, 2002 GOFFMAN, Erving. A Representação do Eu na Vida Cotidiana. Petrópolis: Vozes, 1985. PALMEIRA, Moacir; HEREDIA, Beatriz M. de. Política ambígua. Rio de Janeiro, Relume-Dumará: NUAP, 2010. 16 | Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público 1 Ensino Religioso e Estado laico: a tensão entre o STF e a BNCC Mauro Rocha Baptista Introdução A história recente do componente curricular de Ensino Religioso (ER) tem reproduzido a mesma tensão social que podemos observar em outros ambientes públicos no que se refere à relação entre a religiosidade dos indivíduos e a laicidade do Estado. O legislativo, por exemplo, discute temas conturbados como a legalização do aborto, a partir de um choque entre os argumentos conservadores da chamada “bancada da Bíblia” e as propostas laicas do feminismo. O debate não atende ao princípio laico de afastamento entre os interesses religiosos e as necessidades estatais, creditando à religião funções superiores às destinadas, por exemplo, à saúde pública. Enquanto isso na gestão da cultura se enfrenta com resistência à possibilidade de uso de recursos públicos para promover shows gospéis, como os estipulados pela prefeitura do Rio de Janeiro no réveillon. A virada do ano é assumida como um evento tipicamente pagão, para o qual não poderiam ser destinados recursos que não para rituais profanos. Paradoxalmente, a sociedade brasileira ainda recorre aos conceitos religiosos para formular sua legislação básica, mas, parece se assustar com a destinação de recursos para entidades religiosas. Como se ao vetar a legalização do aborto não se estivesse destinando recurso público para valorização de ideais religiosos. Essa relação demonstra o quanto nos falta de amadurecimento social para compreender o sentido de um Estado realmente laico. O ER tem vasta história na educação brasileira, contudo sua presença na constituição cidadã de 1988 (BRASIL, 2017a, art. 210) não foi um ponto pacífico. Neste caso o embate foi vencido pelos mais tradicionalistas, fiéis à ideia de um ER catequético, que conseguiram manter a sua obrigatoriedade no ensino público como uma condição para a plena formação moral dos cidadãos, derrotando os mais Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público | 17 progressistas que desejavam que a educação pública não tivesse qualquer vínculo com valores religiosos. Porém, essa vitória foi condicionada a que a matrícula não fosse compulsória. Facultando a matrícula o legislador tentava garantir que o Estado laico não estaria obrigando os discentes a se vincularem a uma formação de cunho religioso. A realidade educacional, infelizmente, não possibilita que esta garantia seja assumida em sua plenitude. Em geral, apesar da facultatividade ser garantida, a ausência de opções para quem escolha não se matricular no ER acaba desmotivando essa hipótese. Embora não obrigatório ao aluno, ele é de oferta obrigatória e acaba se tornando a única opção disponibilizada pela escola. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN, mais conhecida como, LDB) de 1996, acrescenta um limite ao formato do ER que é a vedação de quaisquer formas de proselitismo (BRASIL, 2017b, art. 33). O ER, que tradicionalmente estava vinculado ao catecismo das confissões cristãs, deve deixar de ser confessional. Ao formular as diretrizes gerais para a educação, a LDB define o direcionamento que deve ser seguido pelo ER, porém, não indica quais devem ser os conteúdos abordados. Na prática a LDB qualifica o método e não o currículo. Negando o proselitismo a LDB nega o confessionalismo como método de ensino, mas ao mesmo tempo também indica que a proposta ecumênica, ou inter-religiosa, na qual as religiões buscam suas interfaces, também mantém uma defesa proselitista, sobretudo, da cristandade. O ideal de um Estado laico passa a ser exigido efetivamente no ER a partir dessa vedação metodológica, uma vez que, ao não poder ser proselitista, nenhuma temática é negada, o que se nega é o tratamento dogmático dos temas. Tratar de religião de forma não proselitista significa tratá-la como tema a partir de um método laico. Neste sentido cresce a importância da Ciência da Religião enquanto metodologia própria para esse tratamento laico da religião. Embora a LDB não apresente essa discussão metodológica, ela pode ser compreendida como pano de fundo do processo de amadurecimento do papel do ER em um Estado laico. Enquanto a área se reconfigurava para assumir um papel mais afim à laicidade proposta pela constituição cidadã, um acordo entre o Brasil e a Santa Sé em 2010 reascendeu o debate sobre o confessionalismo no ER. Conforme esse acordo seria garantido pelo Brasil o ER católico e de outras confissões religiosas (BRASIL, 2017e, 18 | Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público art. 11). Contra essa posição o ministério público entrou com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) que passou a ser debatida no Supremo Tribunal Federal (STF). Concomitante a esse debate no STF, a área avançava em seu ímpeto de formatar um método embasado na Ciência da Religião, que culminaria na proposta presente na Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Dito isto, a intenção deste texto é apresentar uma revisão cronológica das disparidades entre a forma como o STF tratou o tema e a síntese gerada pela área na BNCC. Com este intuito retomaremos uma série de artigos publicados a partir de pesquisas feitas no âmbito da Universidade do Estado de Minas Gerais e colocadas em práticana Escola Estadual Adelaide Bias Fortes entre 2017 e 2020. Desta forma, nesse capítulo, primeiramente será apresentado o contexto do debate estabelecido no STF a partir de 2010, objeto central do artigo “O Ensino Religioso em questão”, publicado em 20183. Em seguida organizaremos em tabela a perspectiva social desenvolvida em audiência pública de 2015 sobre o tema, fruto de análise apresentada em 2019, no Congresso Nacional de Ciência da Religião4. No terceiro tópico apresentaremos suscintamente as propostas das duas primeiras versões da BNCC, de 2015 e 2016, – analisadas nos artigos “O Ensino Religioso e a nova Base Comum Curricular (BNCC)”5, a partir de sua relação com o Currículo Básico Comum de Minas Gerais (CBC); e, no ainda inédito, “Espaço da religião na educação básica no contexto da nova BNCC”, escrito em parceria com o professor Fabrício Roberto Costa Oliveira. O item seguinte é dedicado ao voto do ministro-relator Luís Roberto Barroso em 2017, já discutido no artigo da Paralellus (BAPTISTA, 2018), no qual o relatório é confrontado com o voto contrário do ministro Ricardo Lewandowski. Na sequência contrapomos o relatório ao acórdão desenvolvido pelo ministro Alexandre de Moraes, ainda não analisado em nossas pesquisas. Então é apresentada a versão final da BNCC homologada em 20 de dezembro de 2017 e sua discrepância com a decisão do STF findada três meses antes. 3 Cf. Baptista (2018). 4 Cf. Baptista (2020). 5 Cf. Baptista (2019). Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público | 19 1. Ensino Religioso no STF O Supremo Tribunal Federal foi provocado a se manifestar sobre a forma do ER pela ADI 4.439/DF, impetrada pelo Ministério Público Federal em 30 de julho de 2010 (BRASIL, 2017f) contra o artigo 11 do decreto nº 7.107 de 11 de fevereiro de 2010, que firma acordo entre o Brasil e a Santa Sé. O que é questionado pela ADI é a posição de que, pelo acordo com a Santa Sé, seria garantido o ER público como confessional, o que feriria a laicidade do Estado. Conforme o texto do decreto: A República Federativa do Brasil, em observância ao direito de liberdade religiosa, da diversidade cultural e da pluralidade confessional do País, respeita a importância do ensino religioso em vista da formação integral da pessoa. §1º. O ensino religioso, católico e de outras confissões religiosas, de matrícula facultativa, constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, assegurado o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil, em conformidade com a Constituição e as outras leis vigentes, sem qualquer forma de discriminação (BRASIL, 2017e) . Ao apresentar o ER vinculado ao pensamento católico, ou ao de outras confissões, o acordo indica que o objetivo do ER estaria vinculado a uma formação dos alunos para um maior desenvolvimento de sua fé. No contexto do decreto, o ER é pensado exclusivamente como algo associado às confissões da qual provêm o alunado, devendo reafirmar estes valores originais. Neste sentido a confessionalidade do ER estaria distante de tudo o que seria posteriormente proposto pela nova BNCC (BRASIL, 2018a), a qual prevê um contato mais direto com a diversidade. A ADI, historicamente anterior aos debates da BNCC, é bastante incisiva ao negar a possibilidade de um ER confessional: A escola pública não é lugar para ensino confessional e também para interconfessional ou ecumênico, pois este, ainda que não voltado à promoção de uma confissão específica, tem por propósito inculcar nos alunos princípios e valores religiosos partilhados pela maioria, 20 | Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público com prejuízo das visões ateístas, agnósticas, ou com religiões com menor poder na esfera sócio-política (BRASIL, 2017f). Muito longe de representar uma crítica à existência do ER a ADI demonstra conhecimento do desenvolvimento desta disciplina e prescreve que o que não pode ser tolerado são os modelos catequéticos e ecumênicos do ER, porque estas metodologias não podem evitar o proselitismo. Uma crítica que vai em direção à posição assumida pela BNCC ao negar o “viés confessional ou interconfessional” em favor de um modelo associado aos avanços da Ciência da Religião a partir do qual se visa atender “a abordagem do conhecimento religioso e o reconhecimento da diversidade religiosa no âmbito dos currículos escolares” (BRASIL, 2018, p. 432). À sua forma a ADI conclui que “a única forma de compatibilizar o caráter laico do Estado brasileiro com o ER nas escolas públicas é através da adoção do modelo não confessional” (BRASIL, 2017f). Por isso seria inconstitucional o decreto que fala em ER católico, uma vez que o ER só poderia se realizar plenamente sendo não confessional. 2. A Audiência Pública sobre ER Para emitir seu parecer a respeito da ADI, o ministro Luís Roberto Barroso convocou em 15 de junho de 2015 uma audiência pública com a participação de 31 entidades selecionadas entre 227 instituições religiosas, educativas e políticas, que se cadastraram. No quadro expositivo abaixo procuramos indicar de forma sintética as entidades envolvidas, seus representantes e sua posição quanto ao ER, sendo esta última dividida entre (i) “nenhum ER deveria existir no Estado” – neste caso algumas entidades se manifestaram inicialmente dessa forma e depois indicaram o que seria a posição mais desejável entre as outras duas possibilidades, a saber –, o (ii) ER “confessional” e (iii) “não confessional”. Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público | 21 Entidade/ Representante Posição com relação ao ER Nenhum Confessional Não confessional Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação / Roberto Franklin de Leão https://www.youtube.com/watch?v=mN mrmjzN5-c&t=872s A disciplina poderia ser absorvida pelas humanidades. Contra o ER em espaço público Conselho Nacional de Secretários de Educação / Eduardo Deschamps https://www.youtube.com/watch?v=cO7 UqCsV2CI Com ênfase na formação de professores Confederação Israelita do Brasil / Roseli Fischmann https://www.youtube.com/watch?v=4s34 N8bT5Yc Sem ônus para o Estado Conferência Nacional dos Bispos do Brasil / Antônio Carlos Biscaia https://www.youtube.com/watch?v=od- dLovtA3A Diferença entre o espaço paroquial e o escolar Convenção Batista Brasileira / Vanderlei Batista Marins https://www.youtube.com/watch?v=tC_ RZT9Hg8I O ER é uma herança do colonialismo e império. Federação Espírita Brasileira / Alvaro Chrispino https://www.youtube.com/watch?v=lH3B hQTFHzU Melhor seria nenhum... ...De cunho moral Federação das Associações Muçulmanas do Brasil / Ali Hussein El Zoghbi https://www.youtube.com/watch?v=Dvp z8kI9ri8 Com ênfase na formação dos professores Federação Nacional do Culto Afro- Brasileiro e Federação de Umbanda e Candomblé de Brasília e Entorno / Antônio Gomes da Costa Neto https://www.youtube.com/watch?v=inMi 7bXO2ok&t=21s Com ênfase na formação dos professores Igreja Assembleia de Deus – Ministério de Belém e Convenção Geral da Assembleia de Deus no Brasil / Abiezer Apolinário da Silva Douglas Roberto de Almeida Baptista https://www.youtube.com/watch?v=Dy4 PCkWH14Q Frisando a necessidade da matrícula facultativa Convenção Nacional das Assembleias de Deus – Ministério de Madureira / Ivan Bomfim da Silva https://www.youtube.com/watch?v=kRK XD57Vnn0 O espaço mais próprio para o ER seriam as próprias igrejas Liga Humanista Secular do Brasil / Thiago Gomes Viana https://www.youtube.com/watch?v=Jf3q nKuwXT8 Preferencial- mente... ...Na impossibilidade Sociedade Budista Brasileira / João Paulo Nery Rafael Optou por não se manifestar, mas indicou uma necessária tolerância entre os credos. QUADRO 1 – POSICIONAMENTO INSTITUCIONAL NA AUDIÊNCIA PÚBLICA 22 | Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público https://www.youtube.com/watch?v=mA3 6vaReRLs Centro de Raja Yoga Brahma Kumaris / Tereza Cristina Bernardes de Carvalho https://www.youtube.com/watch?v=cyJPyB2cAl4 Ensino de valores no lugar do ER... ...Além das várias religiões, também os valores Igreja Universal do Reino do Deus / Renato Gugliano Herani https://www.youtube.com/watch?v=x6V zAAtXN9c Ensino sobre, e não da religião ANIS – Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero / Débora Diniz https://www.youtube.com/watch?v=Jba- jz_1dtA Com maior regulamenta- ção pelo MEC Observatório da Laicidade na Educação / Luiz Antônio da Cunha https://www.youtube.com/watch?v=hLo KUQnyMFc&t=43s Preferencial-mente não... ...Mas sua existência é um retrocesso Amicus DH– Grupo de Atividade de Cultura e Extensão da Faculdade de Direito da USP / Virgílio Afonso da Silva https://www.youtube.com/watch?v=GEp epUJ3RPg Somente para crianças acima de 12 anos Conectas Direitos Humanos / Oscar Vilhena Vieira https://www.youtube.com/watch?v=jnpe hM5sL_E Contra um loteamento que poderia acontecer com o conf. Comissão Permanente de Combate às Discriminações e Preconceitos de Cor, Raça, Etnia, Religiões e Procedência Nacional da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro / Carlos Minc https://www.youtube.com/watch?v=1Rj0 7c21Vko O confessional seria fonte de intolerância Ação Educativa Assessoria, Pesquisa e Informação / Salomão Barros Ximenes https://www.youtube.com/watch?v=bzfp K9ZIKsk&t=9s Conteúdo poderia ser absorvido por outras disciplinas... ...De toda forma não pode ser proselitista Fórum Nacional Permanente do Ensino Religioso / Leonel Piovezana https://www.youtube.com/watch?v=RVn cSfYEhy8 Em prol de uma convivência pacífica Associação Inter-Religiosa de Educação e Cultura (Assintec) / Elói Correa dos Santos https://www.youtube.com/watch?v=aEF 4x4MFZYk Com ênfase na formação dos professores Conselho Nacional de Educação do Ministério da Educação / Luiz Roberto Alves https://www.youtube.com/watch?v=weE XFfWKwHo Parte integrante da formação básica Comitê Nacional de Respeito à Diversidade Religiosa da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República / Gilbraz Aragão https://www.youtube.com/watch?v=Nzt9 8xB9Fv0 Parte da formação do cidadão Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público | 23 Esta consulta pública demonstrou que em sua significativa maioria, ao optar por uma relação entre ER confessional ou não confessional, as entidades se manifestam pelo não confessional (22). Do total daqueles que assumiram a posição majoritária, 6 fizeram essa opção diante da impossibilidade de uma reforma constitucional que retirasse o ER de uma obrigatoriedade no Ensino Público. Nestes casos o ER não confessional se apresenta como um mal menor. É necessário ressaltar ainda o número considerável de entidades que se manifestaram pela necessidade de trabalhar a formação dos profissionais que atuariam nessa forma não confessional do ER. Como as audiências são anteriores à estruturação da BNCC, ainda não existia uma implicação direta sobre o conteúdo que estes profissionais deveriam trabalhar, mas já existia a compreensão de que essa atuação não deveria repetir o que vinha sendo trabalhado até o momento. Outro aspecto a ser observado é o do pequeno número de entidades – apenas 5 – que se apresentaram como favoráveis ao ensino confessional. Número menor do que as que optaram por nenhum (9). FONTE: O Autor (2020). Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação e Pesquisa em Teologia e Ciências da Religião / Wilhelm Wachholz https://www.youtube.com/watch?v=Par4 OMPaNMs Respeito à diversidade Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB) / Gilberto Antonio Viana Garcia https://www.youtube.com/watch?v=- z70ZIeYrBA O Estado não pode financiar o ensino de religiões específicas Associação Nacional de Advogados e Juristas Brasil-Israel (Anajubi) / Carlos Roberto Schlesinger https://www.youtube.com/watch?v=hhyc l_5doC0 Não deveria existir... ...Evitar a intolerância Frente Parlamentar Mista Permanente em Defesa da Família / Pastor Eurico https://www.youtube.com/watch?v=PUni clRAfGs De forma geral para ensinar o respeito Arquidiocese do Rio de Janeiro / Luiz Felipe de Seixas Corrêa https://www.youtube.com/watch?v=3Yq _VGg9Dvk Autor da proposta que gerou a ADI Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados / Manoel Morais https://www.youtube.com/watch?v=m1h JIsATuEM Como forma de manter a paridade com as escolas particulares Clínica de Direitos Fundamentais da Faculdade de Direito da UERJ / Daniel Sarmento https://www.youtube.com/watch?v=wqV YSEtA9Fo Autor da representação que gerou a ADI Totais 1 Abstenção 9 (Sendo 3 sem segunda opção) 5 22 (Sendo 6 como segunda opção) 24 | Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público Estas entidades que aprovaram a confessionalidade frisaram o aspecto facultativo da matrícula e a necessidade de ofertar opções conforme a confessionalidade do aluno, ou outras opções para os que não possuem confissão própria ou prefiram outras atividades. Cabe ainda destacar que nesse sentido as instituições de cunho educacional (Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação, Conselho Nacional de Secretários de Educação e Conselho Nacional de Educação) são críticas ao que é considerado como uma impossibilidade do ER se realizar em um contexto plenamente livre das interferências das instituições religiosas. Sendo assim os argumentos giram em torno da incapacidade de uma realização plena da disciplina. Argumento que se levado a cabo deveria contestar todas as disciplinas, uma vez que todas elas poderiam passar pelos mesmos questionamentos da impossibilidade da passagem do teórico para o prático. Uma formação em Língua Portuguesa que ultrapasse a simples alfabetização e forme de fato para um letramento de mundo é tão complexa quanto a exigência de formar o cidadão para a tolerância, mas as instituições não questionarão as disciplinas, pelo contrário indicarão processos e encaminhamentos para os docentes, assim também se espera que seja feito com o ER. 3. As duas primeiras versões da BNCC Concomitante a esta discussão no STF estava sendo discutida a primeira versão da BNCC, publicada em setembro do mesmo ano. Nela se fazia constar um primeiro esboço nacional de currículo para a área de ER, uma das reinvindicações mais reincidente nos discursos das diversas entidades. Conforme essa primeira proposta da BNCC (2017c) seriam indicados três eixos fundamentais para a discussão do ER: 1) Ser humano – Eixo que apresenta uma característica mais filosófica; 2) Conhecimentos religiosos – No qual a abordagem plural das religiosidades está destacado; 3) Práticas religiosas e não religiosas - Eixo que insere a necessidade de se pensar a vida religiosa como dotada de lugares e práticas específicas, ao mesmo tempo em que exige também o respeito ao universo não religioso, mas igualmente dotado de um ethos próprio que também deve ser abordado no ER. Esta interpretação do ER abre espaço para que ele seja pensado como uma parte fundamental do desenvolvimento da personalidade humana, estando assim de acordo com as ponderações assumidas pelas Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público | 25 diversas entidades que participaram da audiência de junho. Neste sentido o ER assume, de fato, um papel filosófico de atuar na formação da identidade dos educandos, não se restringindo a repassar uma série de valores como a antiga disciplina de Moral e Cívica pretendia. Pensar sobre o ambiente religioso e arreligioso é fundamental para se formar uma verdadeira tolerância ao diverso. Obviamente, esta postura está distante de representar a confessionalidade. A segunda versão da BNCC (2017d), vem à público em maio de 2016, apresentando uma análise mais detalhada da função do ER e renomeando os eixos: 1) Identidade e diferenças - formato de título que demarca mais claramente a fase em que os alunos estão, um período de descobertas e distanciamentos, mas, sobretudo, um período em que é necessário trabalhar com o respeito a essadiversidade, para que a formação da identidade não signifique uma necessidade de violenta contraposição ao diverso; 2) Conhecimentos dos fenômenos religiosos/não religiosos –nesta segunda versão a relação entre elementos religiosos e não religiosos é ainda mais ampliada de forma a se compreender que as “perspectivas seculares de vida” são modos de pensar a vida que se associam ao século, mas que não podem ser pensadas sem se relacionar a um movimento de transformação de pressupostos, ritos e mitos em estruturas secularizadas; 3) Ideias e práticas religiosas/não religiosas – neste eixo com a inclusão das ideias juntamente com as práticas se abre caminho para uma maior discussão das “instituições religiosas e sua relação com a cultura, política, economia (...)” (BRASIL, 2017d, p. 173), ou seja, é criado o espaço para a compreensão que o mundo secular não prescinde da religião, assim como, a religião não se isola do mundo secular. O ER não pode se furtar de tratar de religião porque a religião é um tema inerente à constituição de nosso tempo, ainda que esse tempo se pretenda secular. E a Educação carece de um ER consciente de sua função em tratar da religião porque ele é o único espaço em que a perspectiva secular não irá se sobrepor à religiosa. O espaço próprio para que as diferenças sejam respeitadas como diferenças, não como uma relação de saberes hierarquizados. Contudo, essa postura enfática ao destaque do objeto religioso não se confunde com uma posição confessional. O que é destacado nas duas primeiras versões da BNCC é que o ER precisa ser espaço de contato com o diverso. O que demarca um ambiente conciliador com a postura majoritária da audiência de 26 | Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público 2015. O cenário para o julgamento do STF indicava um caminho claro pela valorização de um ER não-confessional. 4. Parecer do relator O voto do ministro-relator Luís Roberto Barroso (BRASIL, 2017g), proferido em 30 de agosto de 2017, coerentemente com as manifestações da audiência convocada por ele e com as primeiras versões da BNCC, foi favorável à ADI. Suas considerações se formulam a partir da noção de que a religião se desenvolveu ao longo dos anos, perdendo a sua função de centralidade na organização da realidade, mas sem perder a sua relevância no mundo secular. Ou seja, embora a religião não assuma mais o papel de guiar o Estado, tampouco pode ser alijada dele. Concluindo seu argumento inicial o ministro Barroso afirma que: Diante desta realidade, o Estado deve desempenhar dois papeis decisivos na sua relação com a religião. Em primeiro lugar, cabe-lhe assegurar a liberdade religiosa, promovendo um ambiente de respeito e segurança para que as pessoas possam viver suas crenças livres de constrangimento ou preconceito. Em segundo lugar, é dever do Estado conservar uma posição de neutralidade no tocante às diferentes religiões, sem privilegiar ou desfavorecer qualquer uma delas. É nesse ambiente que se insere o debate a respeito do ensino religioso nas escolas públicas. O que está em jogo, na presente ação direta de inconstitucionalidade, é a definição do papel do Estado na educação religiosa das crianças e adolescentes brasileiros. Cumpre, portanto, estabelecer qual a melhor forma de prepará-los, com valores e informações, para que possam fazer as suas próprias escolhas na vida (2017g, p. 10). Garantir o Estado laico não significaria segregar uma parte da vida para fora do Estado, mas acolher esta esfera e trabalhá-la da melhor forma a favorecer a sua verdadeira inclusão. Uma vez que a religião faz parte da realidade ela deve ser tratada não como um tabu, mas a partir dos mesmos critérios adotados para as outras partes da realidade, como a biologia e a física. A maior demonstração de respeito ao tema é não restringi-lo apenas aos iniciados, ou seja, deve-se trazê-lo para dentro Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público | 27 do ambiente da formação crítica, a Escola. A questão, então, não é a da exclusão de uma temática porque ela é propiciadora de conflitos e divergências, mas o uso destes conflitos e divergências para crescer humana e filosoficamente. O voto do ministro deixa claro que o ER deve estar submisso ao papel do Estado laico de garantir a liberdade religiosa e se manter neutro diante da variedade. A conciliação necessária entre laicidade estatal e ensino religioso afasta a possibilidade de o Estado optar pela modalidade confessional (de uma religião específica) ou pela modalidade interconfessional (de algumas religiões, a partir do seu denominador comum). Note-se que a simples presença do ensino religioso em escolas públicas já constitui uma cláusula constitucional de exceção (ou de limitação) ao princípio da laicidade, pelo fato de aproximar, em alguma medida, as ordens estatal e religiosa (BRASIL, 2017g, p. 14). Uma vez que a presença do ER nas escolas públicas já se manifesta como uma exceção à regra da laicidade, esta presença deve ser trabalhada de modo a não comprometer o pressuposto constitucional de um Estado laico. A conclusão do ministro é de que apenas o método não confessional, embasado na Ciência da Religião, pode manter essa laicidade e garantir que a exceção não seja totalmente danosa. Retomando os resultados da audiência pública, Barroso indica que: A grande maioria dos representantes de denominações religiosas, dos especialistas e das entidades da sociedade civil participantes defenderam a impossibilidade prática de conciliar os modelos confessional e interconfessional de ensino religioso confessional com a laicidade do Estado. Em síntese, dos 31 participantes da audiência, 23 defenderam a procedência da ação. Ainda, do total de participantes, 12 eram entidades de caráter religioso (incluindo posições não religiosas), representativas da diversidade religiosa do país. Destes, 8 defenderam a procedência da ação (BRASIL, 2017g, p. 18). Com o apoio desta maioria o ministro propõe ainda uma modificação do artigo 33 da LDB, “de modo a estabelecer que o ensino 28 | Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público religioso em escolas públicas deve ostentar necessariamente natureza não confessional, com proibição de admissão de professores na qualidade de representantes de confissões religiosas” (BRASIL, 2017g, p. 18). Esta exigência faz com que o ministro conclua seu voto apresentando as dificuldades desta realização e exemplificando com o caso do estado do Rio de Janeiro que fez concurso público exigindo a manifestação da confissão religiosa a que o candidato era vinculado. Sendo que neste caso a vaga do professor estava submissa a sua entidade religiosa e, mesmo sendo concursado, ele poderia perder sua vaga caso a entidade compreendesse que ele não estava mais comprometido com os ideais da instituição. Caso extremo que manifesta a dificuldade de se implantar um legítimo ER laico. O ER não confessional garantiria a laicidade do Estado a partir das suas condições especiais, todas conforme a legislação vigente e os pronunciamentos das entidades ouvidas na audiência pública. Isto é, 1) Deve ser mantido seu caráter facultativo, exigência recorrente entre as entidades consultadas na audiência; 2) Não deve ser permitida a matrícula automática, ou seja, apesar de ser ofertado obrigatoriamente, os responsáveis pelos alunos devem ser consultados sobre a matrícula dos filhos nessa disciplina; 3) Para que essa consulta seja efetivamente respeitada deve ser garantida a oferta de alternativa igualmente relevante para a formação cultural dos discentes, caso os responsáveis prefiram não matricular os filhos no ER; 4) A oferta precisa ser em disciplina própria não transversal, ou seja, não se pode trabalhar o ER transversalmente à outras disciplinas para não prejudicar aqueles que optem por não se matricular, mas também não se pode apenas trabalhar as temáticas religiosas em outras disciplinas e chamar a isso de ER; 5) E, por fim, deveser garantida a possibilidade de o aluno se desvincular da matéria a qualquer momento do ano letivo (BRASIL, 2017g, p. 24- 25). 5. O acórdão Encerrado em 27 de setembro de 2017, o julgamento definiu postura contrária à do relatório do ministro Barroso. Apesar de amplamente fundamentado e de estar de acordo com o resultado da audiência pública e da BNCC em desenvolvimento, o argumento do relator foi voto vencido em resultado apertado de seis a cinco. Com o voto pelo ensino confessional dos ministros Alexandre de Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público | 29 Moraes, Edson Fachin, Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Cármen Lúcia, e favorável ao não confessional dos ministros Luís Roberto Barroso, Rosa Weber, Luiz Fux, Marco Aurélio e Celso de Mello. O principal motivo de discordância se encontra na interpretação do caráter facultativo do ER, o que, para os contrários à posição da ADI, permitiria manter a confessionalidade sem ferir a crença dos discentes, uma vez que não seriam obrigados a se matricular na disciplina. O acórdão (BRASIL, 2020) explicita sete aspectos. Primeiro, que a relação histórica entre o Estado e as religiões deve garantir a liberdade religiosa dos indivíduos e a independência do Estado em relação aos dogmas e princípios de qualquer crença. Elemento que retoma o voto vencido do relator de forma a reforçar as garantias mínimas para a laicidade do Estado. Segundo, a valorização da facultatividade da matrícula como forma de garantir que o ER se manifeste como a “própria liberdade de expressão de pensamento sob a luz da tolerância e diversidade de opiniões” (BRASIL, 2020, p. 3. Grifos do autor). Ainda em conformidade com o voto do relator, o friso na tolerância e no contato com o diverso são reafirmados como elementos garantidos pela facultatividade da matrícula, encaminhando o curso do acórdão para o aceite da confessionalidade. Em terceiro lugar, a complementaridade entre a liberdade de expressão e o contato com o diverso, ainda que este diverso possa “causar transtorno, resistência, inquietar”, implicam na “tolerância de opiniões e do espírito aberto ao diálogo” (BRASIL, 2020, p.3). Todos estes elementos estariam presentes também, e, preferencialmente, em um ER não confessional. O transtorno do contato com o diverso não parece ser o foco da confessionalidade, apesar disso estes são os argumentos iniciais para esta postura metodológica. A partir do quarto destaque se inicia a defesa propriamente dita do ER confessional. Isto é, deve ser garantida a igualdade de condições para o ensino das diversas crenças. Independentemente de qualquer discussão teórica sobre a impossibilidade dessa garantia, o ensino das diversas crenças na educação pública não parece uma conclusão automática dos argumentos anteriores sobre tolerância e diálogo. Ainda que fosse possível oferecer em igualdade de condições o ensino da crença confessada pelo aluno, essa oferta parece mais valorizar a segregação que o debate e o diálogo. Em quinto lugar, é retomado o caráter facultativo da matrícula para frisar que a sua disponibilidade nos 30 | Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público horários normais da escola torna a disciplina algo corrente no currículo do aluno que deve ser baseado “nos dogmas da fé, inconfundível com outros ramos do conhecimento científico, como a história, filosofia ou ciência das religiões” (BRASIL, 2020, p. 4). Neste item o aspecto metodológico do ER confessional é finalmente apresentado. Ele não deve ser confundido com outras formas de reflexão sobre a realidade social, inclusive com formas que analisam a própria religião. Segundo o acórdão o objetivo não é estudar as religiões, mas reforçar os dogmas de fé do aluno. Logo se amplia a disparidade entre os elementos destacados nos três primeiros itens e esse reforço da fé em espaço público. Ao refutar a proximidade entre ER e a ciência das religiões o ER é novamente tratado em seu caráter catequético, como o era nos primórdios de sua história. Encaminhada a divergência clara entre a posição majoritária da audiência pública, as primeiras versões da BNCC e o voto do relator, o sexto aspecto escancara o conflito de interpretações. Em outras palavras, em nome do binômio Laicidade do Estado/Consagração da Liberdade Religiosa, constantemente retomado pelo redator, são feitas duas determinações: (i) a garantia de respeito às posições dos alunos por meio da matrícula voluntária; (ii) o impedimento “que o Poder Público crie de modo artificial seu próprio ensino religioso, com um determinado conteúdo estatal para a disciplina” (BRASIL, 2020, p. 4, grifos do autor). Ou seja, todo o esforço de confecção de um conteúdo do ER para a BNCC deveria ser relegado ao esquecimento, uma vez que o Estado não deveria se comprometer com um ER “artificial”. O redator compreende que “artificial” seria um ER metodologicamente ordenado com base na ciência da religião, sendo inversamente “natural” um ER fundamentado nos dogmas da fé. Certamente este é o ponto no qual a divergência entre a posição do STF e as discussões sociais e acadêmicas alcança seu ápice. Ainda que em seguida se questione a hierarquia entre as posições religiosas, o que também seria questionado por uma postura não confessional, a postura é diametralmente oposta a uma formação de consciência para o debate com o diverso. Por fim, o último item apenas reafirma o formato estrutural desse ER, como confessional, de matrícula facultativa e disposto nos horários normais para o ensino fundamental. Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público | 31 6. Versão final da BNCC Em meio às discussões no STF o ER não apareceu na primeira publicação da terceira versão da BNCC, parecendo que a área da educação acataria a decisão de não formular um ER “artificial”. Contudo, a área de ensino é disposta na versão final do documento homologado em 20 de dezembro de 2017 (BRASIL, 2018), ampliando ainda o seu escopo também para os anos iniciais do ensino fundamental. São apresentados como objetivos gerais da área: a) Proporcionar a aprendizagem dos conhecimentos religiosos, culturais e estéticos, a partir das manifestações religiosas percebidas na realidade dos educandos; b) Propiciar conhecimentos sobre o direito à liberdade de consciência e de crença, no constante propósito de promoção dos direitos humanos; c) Desenvolver competências e habilidades que contribuam para o diálogo entre perspectivas religiosas e seculares de vida, exercitando o respeito à liberdade de concepções e o pluralismo de ideias, de acordo com a Constituição Federal; d) Contribuir para que os educandos construam seus sentidos pessoais de vida a partir de valores, princípios éticos e da cidadania (BRASIL, 2018, p. 434, grifos nossos). Frisa-se a necessidade de compreender as manifestações religiosas que estão no entorno do educando para que a liberdade de crença não seja falsamente produzida na ignorância da crença do outro. Ou seja, todos os plurais utilizados para definir as manifestações, perspectivas e o pluralismo de ideias, reafirmam que a metodologia a ser utilizada no ER depende da valorização do debate dessa pluralidade. Logo se reafirma o seu caráter não confessional, ainda que em franca divergência com o resultado do julgamento concluído três meses antes. Outro confronto direto com o proposto pelo STF se encontra no embasamento da disciplina a partir das “Ciências Humanas e Sociais, notadamente da(s) Ciência(s) da(s) Religião(ões)” (BRASIL, 2018, p. 434). Enquanto o STF pretende distanciar o ER e a ciência da religião, a BNCC reforça que esta é o método adequado para tratar aquele. Além 32 | Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público de assumir a artificialidade de criar um currículo próprio para a área, a BNCC ainda repele a ideia de reafirmar os dogmas de fé de cada discente e confirma o ER como espaço de debate da diversidade. A primeira unidade temática desta versão, “Identidadese Alteridades”, atende especialmente aos três primeiros anos do ensino fundamental, período não abrangido pelas versões anteriores da BNCC. Nos primeiros anos de formação educacional dos alunos se enfatiza a constituição da subjetividade, mas, mesmo neste caso, já está previsto como objeto de conhecimento também a discussão de conceitos religiosos como a relação entre “Imanência e Transcendência” (BRASIL, 2018, p. 440). O cerne do conteúdo curricular se desenvolve em duas unidades: “Manifestações Religiosas” e “Crenças religiosas e filosofias de vida”. Ambas demarcam novamente o plural como escopo prioritário da formação em ER. O estudo das variadas religiões de forma não confessional pode ser traduzido pelo conteúdo “ideia(s) de divindade(s)” (Idem, p. 446), no qual devem ser trabalhadas as habilidades de “Identificar nomes, significados e representações de divindades nos contextos familiar e comunitário” e “Reconhecer e respeitar as ideias de divindades de diferentes manifestações e tradições religiosas” (idem, p. 447). De acordo com a BNCC o respeito da diferença passa necessariamente pelo conhecimento do diferente. Considerações finais A história recente do ER nos coloca diante de um contexto em que o STF define o ER como confessional e veta a possibilidade de o Estado definir uma proposta curricular para a disciplina. E no mesmo ano desta decisão o Estado homologa uma BNCC em que, pela primeira vez, a disciplina possui um currículo definido. Por um lado, o STF afirma a necessidade de o ER se embasar nos dogmas de fé em uma metodologia catequética; por outro, a BNCC define que a ciência da religião é o método para garantir o debate escolar sobre a diversidade de crenças. A decisão do STF foi por maioria simples, 6 votos pelo confessionalismo contra 5 pelo não confessionalismo. Uma decisão que reverte a posição das diversas entidades que se manifestaram em audiência pública majoritariamente pelo não confessional, uma proporção de 22 para apenas 5 favoráveis ao confessional. Em sua Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público | 33 decisão o STF a um só tempo divergiu das representações da sociedade civil convocadas por ele próprio e da formulação estatal na BNCC. Na prática as instituições de ensino têm seguido a BNCC e desconsiderado a decisão do STF, inclusive promovendo adaptações estaduais para este conteúdo em seus currículos de referência. Até quando a tensão entre estas duas posições permanecerá velada e a área desacatará impunimente a decisão do STF é um aspecto a ser observado. Referências Bibliográficas BAPTISTA, M. R. O Ensino Religioso em questão. Paralellus: Revista eletrônica em Ciência da Religião, Recife. v.9, n.21, p. 459-478, maio/ ago. 2018. BAPTISTA, M. R. Ensino Religioso e Estado Laico: análise da audiência pública de 15 de junho de 2015. CONGRESSO NACIONAL DE CIÊNCIA DA RELIGIÃO, 4, 2019, Juiz de Fora. Anais... Juiz de Fora: UFJF, 2020, p. 213-223. Disponível em: <https://drive.google.com/file/d/1bcuNHyW9AX7DV8GAOVAylgtva 3Cep3NZ/view>. Acesso em: 22 ago. 2020. BAPTISTA, M. R. O Ensino Religioso e a nova Base Comum Curricular (BNCC). Religare. v.16, n. 1, p.228-263, ago. 2019. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil (1988). Disponível em: <http://www.senado.gov.br/atividade/const/con1988/CON1988_05.10 .1988/ art_210_.asp>.Acesso em: 16 de mar.2017a. BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de Dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9394.htm>. Acesso em: 16 de mar. de 2017b. BRASIL. Base Nacional Comum Curricular. 1ª versão. Brasília: MEC, 2015. Disponível em: <http://basenacionalcomum.mec.gov.br/#/site/conhecaDisciplina?disci plina=AC_CIH&tipoEnsino=TE_EF>. Acesso em: 15 de mar. 2017c. 34 | Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público BRASIL. Base Nacional Comum Curricular. 2ª versão. Brasília: MEC, 2016. Disponível em: <http://basenacionalcomum.mec.gov.br/documentos/versao-2/areas- componentes/10%20%20%20A%20%C3%81REA%20DE%20ENSI NO% 20RELIGIOSO.pdf>. Acesso em:15 de mar. 2017d. BRASIL. Base Nacional Comum Curricular. Brasília: MEC, 2018. Disponível em: <http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_20dez_site.pdf >. Acesso em: 09 fev. 2018. BRASIL. Decreto nº 7.107, de 11 de fevereiro de 2010. Promulga o Acordo entre o Governo da República Federativa do Brasil e a Santa Sé relativo ao estatuto jurídico da Igreja Católica no Brasil, firmado na cidade do Vaticano, em 13 de novembro de 2008. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato20072010/2010/decreto/d7 107.htm>. Acesso em: 02 de out. 2017e. BRASIL. Ministério Público Federal. ADI 4.439/DF. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/geral/verPdfPaginado.asp?id=635016&ti po=TP&descricao=ADI%2F4439>. Acesso em: 02 de out. 2017f. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 4.439/DF – voto do ministro Luís Roberto Barroso (Relator). Disponível em: https://d2f17dr7ourrh3.cloudfront.net/wpcontent/uploads/2017/08/VA LEESTEADI-4439-2-Ensino-religioso-Voto-30-ago2017-VF-22.pdf>. Acesso em :02 de out. 2017g. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 4.439/DF – Acórdão: Redator Alexandre de Moraes. Disponível em: https://ipfer.com.br/wpcontent/uploads/2018/06/Ac%C3%B3rd%C3% A3o-4439-Ensino-Religioso-STF.pdf>. Acesso em: 20 de jun. 2020. Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público | 35 2 A Romaria dos Trabalhadores e Trabalhadoras: a ressignificação de práticas do catolicismo como espaço para mobilizações sociais. Luiz Ernesto Guimarães Fábio Antônio da Silva Alexandre Rodrigues Faria Introdução Este trabalho aborda a 29ª Romaria dos Trabalhadores e Trabalhadoras ocorrida no dia 1º de maio de 2019, Dia do Trabalhador, na cidade de Carandaí/MG. A Romaria é um evento organizado pela Dimensão Sociopolítica da Arquidiocese de Mariana, sendo Carandaí parte da Região Pastoral Sul6. De acordo com o Censo de 2010 (IBGE, 2010), Carandaí possui aproximadamente 23 mil habitantes, destes 84% são católicos e 12% evangélicos. O município fica às margens da BR- 040, distante 135 quilômetros da capital Belo Horizonte. A pesquisa foi realizada a partir da observação participante, além de entrevistas semiestruturadas e conversa informal. Dois pesquisadores, estudantes da Universidade do Estado de Minas Gerais (Campus Barbacena), participaram ativamente das reuniões preparatórias para a realização do evento juntamente com a comissão organizadora. Eles viajaram para Carandaí na segunda-feira, dia 29 de abril, ou seja, dois dias antes do evento, o que possibilitou a participação nas atividades que aconteceram na cidade nesses dias que antecederam a Romaria. Importante salientar que um destes pesquisadores já conhecia os organizadores, em razão de ter participando de cursos de formação e encontros realizados por essas lideranças e por já ter participado da organização de um evento junto à Dimensão 6 A Arquidiocese de Mariana se divide em cinco regiões pastorais: Região Pastoral Norte, postas pelos municípios de Barão de Cocais, Catas Altas, Itabirito, Mariana, Ouro Preto e Santa Bárbara; Região Pastoral Sul, composta por 19 municípios, entre eles Carandaí, Alto Rio Doce e Barbacena; Região Pastoral Leste, formada por 33 município, entre eles Raul Soares, Ponte Nova e Viçosa; Região Pastoral Oeste, composta por 12 municípios, entre eles Congonhas, Entre Rios de Minas e Conselheiro Lafaiete e Região Pastoral Centro, formada por 9 pequenos municípios, sendo uma área predominantemente rural. 36 | Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público Sociopolítica da Arquidiocese de Mariana, que é a responsável pela promoção da Romaria dos Trabalhadores e Trabalhadoras. Este pesquisador participa, desde a adolescência, da Pastoral da Juventude (PJ), ligada também à citada Dimensão. Já o terceiro pesquisador, professor da mesma instituição, partiu de Barbacena em uma van com outros romeiros de algumas paróquiasda mesma cidade. 1. A Romaria dos Trabalhadores e Trabalhadoras Em resposta à Campanha da Fraternidade organizada pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) em 1991, lideranças da Igreja católica, em especial membros da Pastoral Operária da Arquidiocese de Mariana/MG, organizaram a 1ª Romaria dos Trabalhadores e Trabalhadoras na cidade de Urucânia/MG, situada na Região Mariana Leste. Sentindo a necessidade de se posicionar diante das injustiças cometidas contra os trabalhadores e trabalhadoras das usinas de açúcar daquela região, escolheram o 1º de maio pela importância histórica desta data para os trabalhadores e como um contraponto às grandes festas que os empresários ofereciam aos seus empregados e empregadas neste dia, mascarando os problemas com comida, bebida, presentes e shows. A partir de então, a cada ano um tema é escolhido para pautar os trabalhos e debates, sempre alinhados com o cotidiano dos trabalhadores e das trabalhadoras e ao tema da Campanha da Fraternidade organizada pela (CNBB). De 2005 para 2006, contando com a presença de movimentos populares, pastorais sociais, romeiros e romeiras das demais regiões da Arquidiocese de Mariana, decidiu-se torná-la itinerante com objetivo de espalhar a iniciativa e viabilizar a reflexão das demandas particulares de cada região pastoral. No ano de 2006, iniciando a descentralização, a Romaria foi realizada na cidade de Viçosa/MG, no ano seguinte foi a vez de Piranga/MG, na Região Mariana Centro, dando sequência ao rodízio de cidades e regiões a receber o evento. Este processo de descentralização da Romaria visava atingir uma Arquidiocese que compreende 79 municípios mineiros e 135 paróquias. A primeira Diocese criada em Minas Gerais (1745), precisou se organizar para atender toda esta população de fiéis espalhada numa área de 22 mil Km². Este processo teve início com a chegada de D. Luciano Pedro Mendes de Almeida, Bispo responsável também pelo grande aumento de pastorais sociais nesta igreja particular, em 1988. Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público | 37 No processo de organização pastoral se decidiu pela criação das cinco regiões pastorais, a partir das quais iniciativas como a da Romaria dos Trabalhadores e Trabalhadoras são realizadas. Como forma de atender a cada região, a Romaria vai incorporando novas características, se moldando e tornando-se próxima à realidade local, visto que as demandas pautadas para a reflexão são trabalhadas previamente nas bases, tanto da paróquia que sedia o evento quanto das demais que são convidadas a participar. No decorrer da história da Romaria ela percorreu diversas localidades da arquidiocese. Isto é, após 15 anos sendo realizada em Urucânia, as cidades de Viçosa, Granada (Abre Campo), Piranga, São Braz do Suaçuí, Mariana, Conselheiro Lafaiete, Barbacena já receberam a romaria. Importante salientar que num período de 3 anos ela aconteceu paralelamente em duas regiões, em Urucânia, Região Mariana Leste, congregando as regiões Leste, Centro e Norte e em Barbacena, região Mariana Sul, reunindo as Regiões Sul e Oeste. Isto para atender aos fiéis que participam do Jubileu de São José Operário, que acontece na mesma data, na cidade de Barbacena. Em 2014, a Romaria retorna à Urucânia para celebrar os 24 anos e preparar a celebração dos 25 anos de sua realização, em 2015, permanecendo no município também nos anos de 2016 e 2017. Em 2018, após negociação entre os movimentos sociais e lideranças da cidade de Urucânia e da Região Mariana Leste e membros da Dimensão Sociopolítica da Arquidiocese, a Romaria volta a ser itinerante. As romarias debatem algo recorrente em quase todas as edições, ou seja, a questão das mineradoras e suas barragens. Mais do que o ocorrido em Bento Rodrigues em 2015, o debate acontecido na realização da 28ª Romaria em Congonhas/MG Região Mariana Oeste, vinha de encontro a um problema que os moradores daquela cidade sentem na pele: a iminência do rompimento de uma barragem que devastará, se acontecer, boa parte da cidade e região. Neste contexto, acontece a 29ª Romaria dos Trabalhadores e Trabalhadoras na cidade de Carandaí, região Mariana Sul. Herdando toda uma bagagem histórica, a romaria transcende o aspecto puramente religioso inspirado na Bíblia sagrada, em especial no Livro do Êxodo, quando o Povo de Deus, cansado da exploração e domínio dos Faraós do Egito, sai em caminhada em busca da Terra Prometida, agregando também, trabalhadores e trabalhadoras de outras confissões religiosas, setores diversos da sociedade civil, povos tradicionais, movimentos 38 | Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público populares, pastorais sociais, se propondo a dialogar, trocar experiências, refletir e buscar alternativas frente aos problemas enfrentados. 2. As romarias e seus sentidos: a 29ª Romaria dos Trabalhadores e Trabalhadoras A cidade de Carandaí respirou a Romaria desde quando foi anunciado que a 29ª edição seria realizada na paróquia da cidade. Diversas equipes foram montadas a fim de dar apoio à organização arquidiocesana. Nestas equipes participaram pessoas de várias cidades da arquidiocese, todas distantes umas das outras. Após várias reuniões preparatórias, para escolha do tema a ser abordado e divisão das tarefas, ficou definido que haveria atividades na cidade nos dias que antecederiam a Romaria. Estas atividades tinham objetivo de preparar a população para receber a Romaria e refletir melhor sobre o tema proposto. Desta forma, missas, participação de membros da comissão organizadora em programas de rádio da cidade, realização de rodas de conversa e visita às escolas foram iniciativas que a organização local realizou nestes dias. Durante estas atividades preparatórias já era perceptível que esta Romaria trazia elementos diferentes do que vimos em romarias tradicionais. A roda de conversa, por exemplo, contou com a participação de membros de conselhos de direitos da cidade, movimentos sociais e religiosos, pastorais, estudantes, trabalhadores rurais, trabalhadores autônomos, aposentados e desempregados e pautou o trabalho como algo necessário à vida, que dignifica o homem. A conversa discutiu o trabalho como um problema social, pautou a questão do aumento do desemprego, que de acordo com IBGE já atingia quase 14 milhões de brasileiros; as reformas trabalhistas e da previdência, e; sobre o êxodo rural. Esta mesma discussão foi levada para as entrevistas nas rádios, num tom mais descontraído e com intuito de mobilizar e convidar a população de Carandaí para participar da Romaria. Nas escolas, uma liderança da PJ conversou com os alunos sobre as condições do trabalho e emprego levantando questões referentes ao salário e segurança dos trabalhadores a partir de uma chave de interpretação pautada pelo materialismo histórico, que foi colocado como base para que os alunos pensassem o tema. Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público | 39 Muito alunos relataram as experiências passadas por seus pais em seus respectivos locais de trabalho. A questão do salário dividiu a opinião deles. Por exemplo, alguns acreditavam que o salário era justo e outros não. A discussão sobre a expectativa de ingresso no mercado de trabalho foi de longe o momento em que as desilusões encontraram uma uniformidade de opiniões, isto porque todos que se propuseram a falar foram céticos. Todavia, ao responderem "quem aqui vai procurar um emprego depois de se formar?” houve uma expectativa positiva por parte de alguns pela busca de uma formação superior, principalmente no ingresso em alguma universidade pública. No dia 1º de maio, dia escolhido para a romaria, a recepção foi feita por fiéis de Carandaí. Havia alguns galpões onde eram servidos café, suco e bolachas. Como havia caravanas de várias cidades da Arquidiocese de Mariana, o objetivo era receber esses romeiros com mesa farta e com produção da própria região. Várias pessoas ligadas às pastorais da paróquiapassaram dias preparando os alimentos, que chegaram também de municípios vizinhos. Antônio Braga (2014), a partir da dinâmica da dádiva de Marcel Mauss, estudou os fluxos migratórios de moradores do Piauí à procura de trabalho em São Paulo. Após certo período na capital paulista, o regresso ao nordeste é marcado por uma refeição especial, na presença de familiares, marcada pela noção de “fartura”. Fartura, afirma o antropólogo, não é sinônimo de excesso. “Entre aqueles que estão ali presentes, o que está em questão não é aquilo que excede, mas aquilo que se celebra e aquilo que não falta” (BRAGA, 2014, p. 321). Essa refeição da qual Braga aborda não diz respeito apenas à união familiar, celebrando o regresso de um parente que estava distante. A fartura também está associada aos valores compartilhados pelo grupo, sempre havendo espaço para mais um (BRAGA, 2014). O momento de partilha, portanto, contribuiu para envolver os romeiros presentes nos objetivos propostos pelos organizadores do evento. Aos poucos foram chegando fieis, cujas camisetas, bandeiras, bonés, faixas etc., demonstravam o pertencimento a diversos organismos da Igreja Católica. Foi possível constatar a presença de fieis ligados à Pastoral Carcerária, Pastoral Familiar, Encontro de Adolescentes com Cristo, Encontro da Juventude com Cristo, grupos da Renovação Carismática Católica da região, Pastoral da Criança, Vicentinos, Pastoral da Sobriedade, Movimento de Fé e Política, Escola 40 | Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público de Fé e Política Dom Luciano e Pastoral Afro Brasileira. Havia também diversos segmentos da sociedade civil organizada: Movimento Pela Soberania Popular na Mineração (MAM), Federação dos Trabalhadores Rurais da Agricultura Familiar de Minas Gerais (FETAEMG), Movimento Negro, Federação dos Trabalhadores e Trabalhadoras rurais de Minas Gerais, Centro de Tecnologias Alternativas da Zona da Mata (CTA- ZM), Associação Mineira das Escolas Famílias Agrícolas (AMEFA). Entre os participantes, havia também uma mulher com camiseta da CUT e com a imagem do ex-presidente Lula. No início da manhã o tempo estava um pouco frio, cerca de 16 graus, além do céu nublado. Aos poucos o sol começou a surgir e, no final da romaria, por volta das 13 horas, já estava bem quente. O espaço de recepção também contava com um caminhão de som, com algumas pessoas cantando músicas populares, sem cunho religioso. Algumas pessoas se aproximavam do caminhão para acompanhar de perto as músicas. No entanto, a maioria ficava um pouco mais afastada, conversando em grupos. Muitas aproveitavam para rever pessoas conhecidas que moravam em cidades diferentes. De acordo com Wagner Diniz Chaves, a música ou o canto “pode ser concebido como um modo raro e incomum de discurso, distinto das falas ordinárias” (CHAVES, 2014, p. 254). Embora o autor se refira especificamente às folias de reis, no contexto desta pesquisa os cantos possuem a facilidade de memorização e, assim, compreensão do que se pretende transmitir. Complementam-se, dessa forma, aos demais discursos, tornando, de certa forma, um próprio tipo de discurso. Entre uma música e outra que eram cantadas no carro de som, eram feitas falas sobre temas sociais da atualidade. A pessoa que conduzia as músicas, cantando e tocando violão, demonstrava conhecimento desses assuntos, mesmo porque, havia concorrido a uma vaga na eleição de 2018 como deputado estadual, sem obter sucesso. Filiado ao PT, possui uma atuação significativa na Arquidiocese de Mariana, sobretudo a partir de temas como o da habitação e da agricultura familiar. Dessa maneira, a animação inicial não se pautava apenas na música como forma de criar um ambiente mais convidativo, mas já havia a abordagem de temas sociopolíticos sob o viés popular. A reforma da previdência foi o tema que mais foi pautado, buscando demonstrar os prejuízos que provocará junto aos trabalhadores, caso Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público | 41 seja aprovada no Congresso Nacional. Em alguns momentos foi pronunciado: “Reforma da previdência, aqui não!”. Havia também uma faixa carregada por um romeiro com a seguinte frase: “Somos contra a reforma da previdência”. Entre uma música e outra, entre um assunto e outro abordado, eram pronunciadas frases, como: “Marielle, vive!” e “Dom Luciano, vive!”. Assim, o principal bispo da Arquidiocese de Mariana era colocado ao lado da vereadora do PSOL assassinada na cidade do Rio de Janeiro em 2018, juntamente com seu motorista, até o momento sem desfecho para as investigações. A cantora Beth Carvalho, também defensora de causas populares, falecida no dia anterior à romaria, também foi lembrada: “Beth Carvalho, vive!”. Um pouco depois, já durante a caminhada, foi cantada uma música da cantora. O nome do evento, “Romaria dos Trabalhadores e Trabalhadoras”, confere um sentido de valorização da mulher, em uma sociedade com profundas marcas deixadas pelo patriarcado, presentes ainda hoje. O uso do substantivo feminino é uma tentativa de efetuar tal proposta, tendo em vista que a imersão da mulher no mercado de trabalho é significativa, ocupando cargos que no passado era exclusivamente reservado aos homens. Além de lembrar nomes como o da vereadora Marielle e da cantora Beth Carvalho, em alguns momentos era dito no caminhão de som: “água, mulher e energia não são mercadoria”. As músicas cantadas no caminhão de som foram selecionadas a partir da proposta da romaria, que era, principalmente, abordar o tema do trabalho. Uma das músicas cantadas foi “Pai nosso dos mártires”7. É uma paráfrase feita a partir do conhecido texto bíblico do Pai nosso. Relaciona o Deus cristão com os pobres marginalizados, mártires e torturados. É também descrito como revolucionário, parceiro dos pobres e oprimidos. Dessa forma enfatiza diversos problemas sociais presentes no mundo do trabalho e que pouco são refletidos no cotidiano, muitas vezes marcado pela presença de injustiças na relação trabalhador/empregador. Outra música cantada foi “Negro nagô”8, que trata sobre a luta do negro por reconhecimento social, contra as mazelas de três séculos 7 A música “Pai nosso dos mártires” tem como autoria Zé Vicente. Há outras composições que também desenvolvem uma dimensão social na fé cristã. 8 Pastoral da Juventude. 42 | Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público de escravidão, que persistem ainda hoje. A questão racial está diretamente relacionada ao mundo do trabalho, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua) feita pelo IBGE no 4º trimestre de 2018 o número de desempregados no Brasil totalizava 12,2 milhões de pessoas das quais 51,7% eram de autodeclarados pardos e 12,9% de autodeclarados pretos. O número de negros na universidade é menor que o número de brancos, segundo o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), que no Educacenso, realizado em 2016, aponta que no curso superior somente cerca de 28% dos estudantes são autodeclarados negros e pardos. O que, consequentemente, impacta na renda, de forma que uma pessoa negra ganhe em média 1,2 mil a menos que uma pessoa branca, isto no 4º trimestre de 2017, segundo pesquisa do IBGE. Após o período de recepção e concentração dos romeiros, deu- se início à caminhada. O caminhão de som ia à frente, seguido pelos fiéis. O mesmo líder popular que cantou várias músicas durante o momento de chegada, foi o principal responsável pela condução do trajeto, com o uso do microfone. As músicas e frases de ordem continuaram, parando vez ou outra para abordar o tema principal da romaria. Durante o trajeto houve quatro paradas onde lideranças ligadas a movimentos, sindicatos e pastorais se revezavam ao microfone a fim de chamar atenção – tanto dos romeiros e romeiras quanto dos moradores da cidade que acompanhavam durante o percurso, seja das janelas de casa seja das calçadas – para problemas pontuais, ligando