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PDF gerado a partir de XML Redalyc JATS4R Sem fins lucrativos acadêmica projeto, desenvolvido no âmbito da iniciativa acesso aberto Base Revista de Administração e Contabilidade da UNISINOS ISSN: 1984-8196 RFDECOURT@unisinos.br Universidade do Vale do Rio dos Sinos Brasil Accountability ou Prestação de Contas, CGU ou Tribunais de Contas: o exame de diferentes visões sobre a atuação dos órgãos de controle nos municípios brasileiros. Fernandes, Gustavo Andrey Almeida; Teixeira, Marco Antonio Carvalho Accountability ou Prestação de Contas, CGU ou Tribunais de Contas: o exame de diferentes visões sobre a atuação dos órgãos de controle nos municípios brasileiros. Base Revista de Administração e Contabilidade da UNISINOS, vol. 17, núm. 3, 2020 Universidade do Vale do Rio dos Sinos, Brasil Disponível em: https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=337264550005 PDF gerado a partir de XML Redalyc JATS4R Sem fins lucrativos acadêmica projeto, desenvolvido no âmbito da iniciativa acesso aberto 456 Base Revista de Administração e Contabilidade da UNISINOS, vol. 17, núm. 3, 2020 Universidade do Vale do Rio dos Sinos, Brasil Recepção: 12 Dezembro 2018 Aprovação: 14 Setembro 2020 Redalyc: https://www.redalyc.org/ articulo.oa?id=337264550005 Accountability ou Prestação de Contas, CGU ou Tribunais de Contas: o exame de diferentes visões sobre a atuação dos órgãos de controle nos municípios brasileiros. Accountability or Prestação de Contas, CGU or Courts of Accounts: examining different views on the role of regulatory agencies in Brazilian municipalities Gustavo Andrey Almeida Fernandes gustavo.fernandes@fgv.br Fundação Getúlio Vargas de São Paulo – EAESP_FGV, Brasil Marco Antonio Carvalho Teixeira marco.teixeira@fgv.br Fundação Getúlio Vargas de São Paulo – EAESP_FGV, Brasil Resumo: A falta de modelos cognitivos que expliquem o conceito de accountability pode ser sintetizada na ausência de um termo único na língua portuguesa. Com efeito, o impacto de modelos cognitivos nas formas de auditoria é profundo. No entanto, o termo mais próximo - prestação de contas é considerado impreciso. Os Tribunais de Contas, cuja criação em alguns casos se deu na República Velha tendem a usar uma compreensão mais antiga do que a da Controladoria Geral da União (CGU), criada em 2003. Aproveitando-se dessa característica, analisamos as diferenças de concepção de fiscalização dos municípios pelos Tribunais de Contas, contrastando com a atuação da CGU. A despeito de muitas ações municipais receberem uma dupla fiscalização, os dados confirmam a hipótese de uma grande divergência de atuação entre o respectivo Tribunal e a Controladoria. A atuação da última se aproxima mais de uma auditoria de performance, relatando em média um número maior de irregularidades nos municípios, ao passo que, nos Tribunais de Contas, predomina a auditoria de compliance, sendo o número de achados relativamente menor. Palavras-chave: Accountability, Tribunais de Contas, Controladoria, Auditores. Abstract: e lack of cognitive models to explain the concept of accountability can be synthesized in the absence of a single term in the Portuguese language since Accountability is usually considered a word whose meaning is incomplete. e impact of cognitive models in the form of audit is taken is very important. Courts of Accounts were established in Brazil since Old Republic while CGU was created in 2003. In this paper, we analyze the conceptual differences between the Courts of Accounts and Federal Comptroller General regarding accountability. Despite many municipal actions receive a dual inspection, data shows a wide divergence between the results obtained by respective TCE and CGU. e performance of the latter is closer to an audit of performance, reporting on average a larger number of irregularities in the cities, whereas in the Courts of Accounts, it is usually done audit of compliance, with relatively minor findings. Keywords: Accountability, Courts of Accounts, Comptroller, Audit. Gustavo Andrey Almeida Fernandes, et al. Accountability ou Prestação de Contas, CGU ou Tribunais de Contas: o exame de diferentes visões sob... PDF gerado a partir de XML Redalyc JATS4R Sem fins lucrativos acadêmica projeto, desenvolvido no âmbito da iniciativa acesso aberto 457 Introdução Em um país de língua inglesa a frase “I’ll hold you accountable for that” não é rara de ser escutada em uma conversa íntima. Em geral, a expressão indica a responsabilização por um ato considerado relevante pelos falantes. Em nações anglófonas, o termo accountability é natural, sendo utilizado desde os primeiros anos de vida, inclusive, em âmbito pessoal[1]. No Brasil, de outro lado, cujo idioma é o português, o termo accountability é um vocábulo importado, não sendo, logo, de definição facilmente compreendida pelas pessoas no seu uso comum. Essa questão não é mero detalhe. A linguagem é parte fundamental da vida humana. Palavras nomeiam as estruturas que alicerçam a visão de mundo das pessoas, delimitando os conceitos fundamentais que estruturam a própria comunicação e, inevitavelmente, seus atos. Não é por menos que o aperfeiçoamento do controle da administração pública no Brasil está diretamente relacionado à incorporação do termo accountability ao léxico administrativo brasileiro. Não obstante, apesar dos enormes avanços na direção do controle, não existe um único termo equivalente em língua portuguesa (Abrúcio & Loureiro, 2004). Como ponto de partida, accountability pode ser entendida como um processo permanente de avaliação e responsabilização dos agentes públicos, pelo uso do poder que lhes é concedido pela sociedade, incluindo assim alguma forma sanção (enforcement), de natureza legal ou moral (O’Donnel, 1998; Abrúcio & Loureiro, 2004; Mainwaring, 2003; Rocha, 2013). No idioma português, as palavras controle e transparência são também frequentemente utilizadas, mas Rocha (2013) ressalta que a forma mais usual de verbalizar o termo é a expressão “prestação de contas”, ainda que com sentido distinto ao de accountability. Raupp (2011), por exemplo, usam três dimensões para tratar da accountability: a prestação de contas, a transparência e a participação dos cidadãos, evidenciando com isso a incompletude semântica do primeiro termo. Para Ceneviva e Farah (2012), há na literatura brasileira uma sugestão aproximando as ideias de transparência das informações governamentais e prestação de contas com o termo accountability, faltando, porém, a responsabilização dos agentes públicos. Não importando a definição adotada, a inexistência de uma clara convergência a um termo único ou mesmo a uma coleção precisa de vernáculos indica que o termo não é natural expressão em língua nacional, o que implica inevitável imprecisão conceitual. Nesse sentido, sobre o peso das definições conceituais, Barzelay (1997) dá importante contribuição para avaliar o peso dos vocábulos utilizados por meio da teoria de conceito e categorias proposta por Lakoff (1987), explicando que modelos cognitivos são importantes para caracterizar um conceito e, logo, viabilizar sua aplicação. Pensando no caso brasileiro, a falta de modelos adequados que deem conta de explicar o conceito de accountability implicaria, inevitavelmente, a desconsideração de um eixo importante no tratamento da fiscalização da administração pública. Base Revista de Administração e Contabilidade da UNISINOS, 2020, vol. 17, núm. 3, Julio-Septiembre, ISSN: 1984-8196 PDF gerado a partir de XML Redalyc JATS4R Sem fins lucrativos acadêmica projeto, desenvolvido no âmbito da iniciativa acesso aberto 458 Em outras palavras, o sentido incompleto do termo prestação de contas limitaria a definição legal e, com isso, da própria atuação dos mecanismos de accountability existentes no país. O conteúdo ausente na definição utilizada por um determinado órgão de controle, por exemplo, afeta logicamente a sua forma de atuação, visto que, não será convertido em uma prática. Desconsiderando questões linguísticas, o conceito de accountability como uma condiçãonecessária para o Estado democrático pode ser derivada da teoria da agência (Eisenhardt, 1989). Neste artigo, contudo, adota-se uma concepção mais ampla. Seguindo Olsen (2018), accountability é uma forma de pensar a ordem política e um princípio de organização das relações entre governados e governantes. A despeito da diversidade de interpretações, o conceito está relacionado “a ser responsável perante alguém, sendo obrigado a explicar e justificar a ação – por exemplo, como mandatos e contratos foram tratados, como a autoridade e os recursos foram aplicados, e com quais resultados” (Olsen, 2018, p. 70). A accountability e o controle, portanto, estão embutidos nas instituições e o os órgãos de controle se inserem justamente nessa relação entre o povo e instituições de governo, pois têm destacadamente a função, ou o objetivo, de dirimir os conflitos decorrentes de tal relação. O exercício do controle pode ocorrer pela atuação de estruturas pertencentes à instituição, o chamado controle interno, assim como por parte de estruturas não pertencentes, autônomas, o chamado controle externo. Trata-se, na literatura, da chamada accountability horizontal (Abrúcio & Loureiro, 2004). Do ponto de vista formal, o controle da Administração Pública Federal brasileira (APF) está a cargo de diversos órgãos e entidades, compondo um complexo sistema, constituído por diferentes órgãos com distintos poderes e esferas de atuação. Entre eles estão o Congresso Nacional (CN), o órgão de controle externo (Tribunal de Contas da União - TCU), a agência de controle interno (Controladoria Geral da União – CGU), o órgão responsável pela defesa e assessoria jurídica ao Poder Executivo (a Advocacia Geral da União – AGU), o Ministério Público Federal (MPF), e o próprio Poder Judiciário. Em outras palavras, o sistema de controle é composto por órgãos internos e externos ao Executivo, o que reflete o sistema presidencialista e a separação de poderes. Tanto o Legislativo quanto o Executivo têm instituições controladoras próprias. O Legislativo exerce o clássico controle político sobre o Executivo, com auxílio do TCU. O Executivo, por sua vez, mantém um sistema de controle interno centralizado na Secretaria Federal de Controle Interno (SFC) que está vinculada atualmente à CGU. Embora prevaleça no Brasil o controle da legalidade, a Constituição Federal de 1988 estabelece que a fiscalização deve ser feita também no que toca à legitimidade e à economicidade. Assim, aos poucos cresce a concepção de que o controle deve envolver igualmente a eficiência e os resultados da ação governamental. No Brasil, os Tribunais de Contas possuem o formato napoleônico (World Bank, 2001), quase-judicial (Santiso, 2009), comum nos países Gustavo Andrey Almeida Fernandes, et al. Accountability ou Prestação de Contas, CGU ou Tribunais de Contas: o exame de diferentes visões sob... PDF gerado a partir de XML Redalyc JATS4R Sem fins lucrativos acadêmica projeto, desenvolvido no âmbito da iniciativa acesso aberto 459 da América Latina e Europa Continental, em que os órgãos de controle têm autoridade judiciária e administrativa, além de serem autônomos ao legislativo. No entanto, a despeito da rigorosa estrutura jurídica, moldada à luz das cortes judiciais, a falta de um conceito abrangente de accountability é acompanhada pela ausência de uma atuação convergente de todo o sistema de controle externo ou interno, visto que a Constituição Federal, nos artigos 70 a 75, dispõe apenas algumas determinações básicas de suas atividades. Uma consequência imediata dessa indefinição e incompletude seria a existência de diversas modalidades de auditoria empregadas pelas instituições de controle que, no entanto, estariam ainda aquém da accountability democrática, no sentido amplo democrático definido, por exemplo, por Olsen (2018). Com efeito, no tocante aos tipos de auditoria, os modelos adotados pelos órgãos de controle podem ser sintetizados em três grandes tipos: a auditoria financeira, que fiscaliza o balanço dos recursos aplicados, a auditoria de legalidade ou compliance, que verifica o cumprimento das normas na aplicação desses recursos, e a auditoria de desempenho ou performance, que busca avaliar a eficiência operacional do governo e a efetividade dos programas aplicados (World Bank, 2001). O impacto dos modelos cognitivos nas formas de auditoria é profundo, sendo relatadas diferenças significativas entre os países. Barzelay (1997), por exemplo, analisando países da OCDE, mostra que a auditoria de performance[2] possui uma maior ligação com o campo das avaliações de programas, já que tem o objetivo de aperfeiçoar práticas organizacionais e de produção, enquanto que as demais formas auditorias tradicionais estariam mais próximas de verificação de informações, e, portanto, da categoria compliance. A atuação, portanto, dos mecanismos de controle sobre o setor público seriam influenciados diretamente pelos modelos mentais empregados e, logo, pelo conjunto de definições vigentes. Não obstante, a avaliação dos fatores que influenciam o desempenho do sistema de controle é ainda inconclusiva. Segundo World Bank (2001), o bom funcionamento dos órgãos de controle decorre de fatores como o ambiente institucional, mandatos claros para os auditores, garantias de independência, recursos e estrutura adequados, intercâmbio de experiência com os demais países e adequação a padrões internacionais. Blume e Voigt (2011), por seu turno, relacionam a falta de efetividade com a ausência de um sistema de incentivo para os auditores. No entanto, a literatura sobre o assunto ainda é escassa a respeito do impacto dos modelos cognitivos utilizados no sistema de controle brasileiro. Apenas com a criação da Controladoria Geral da União (CGU), com o objetivo expresso de avaliar a execução de programas e do orçamento da União, surgiu uma forma alternativa de fiscalização de recursos públicos, que pode ser contrastada com a visão de prestação de contas utilizada pelos Tribunais de Contas. Além de ser criada após a reforma administrativa de 1998, que introduziu o princípio da eficiência no art. 37 da Constituição Federal, ação da CGU nos municípios possibilitou uma dupla fiscalização, dado que as transferências voluntárias Base Revista de Administração e Contabilidade da UNISINOS, 2020, vol. 17, núm. 3, Julio-Septiembre, ISSN: 1984-8196 PDF gerado a partir de XML Redalyc JATS4R Sem fins lucrativos acadêmica projeto, desenvolvido no âmbito da iniciativa acesso aberto 460 realizadas pelo governo federal para municípios demandam, em regra, a existência de contrapartida de recursos locais e, logo, também são controladas pelos Tribunais. Dessa forma, o programa de sorteios da CGU, ao viabilizar auditorias de performance em municípios de todos os estados brasileiros, permite cobrir uma importante lacuna da literatura, dado que, até o momento, nenhum estudo se voltou a analisar a atuação de cada órgão fiscalizador, comparando seus modelos cognitivos. Com efeito, nenhum ente federativo brasileiro é fiscalizado por diversos tribunais de contas a respeito de suas principais atribuições. Contudo, com o programa de sorteios da CGU, passou-se a ter políticas públicas auditadas por dois órgãos de controle, criados em momentos distintos da história do país, o que permite inferir as disparidades de modelos cognitivos de um para outro. Com este propósito de inferir o impacto da inexistência de um modelo claro de accountability no sistema de controle brasileiro, este artigo é divido em seis seções. Após esta introdução, a metodologia utilizada é discutida. Em seguida, é detalhado o funcionamento da Controladoria Geral da União e dos Tribunais de Contas, demonstrando-se assim como diferentes concepções sobre prestação de contas são refletivas em suas ações. Na quinta parte, o problema da definição de métrica para as diferentes formas de auditoria e como este processo se reflete nos órgãos envolvidos são examinados. Na parte seguinte, os resultados principais são apresentados, concluindo-se na sexta seção.Metodologia Para testar a influência dos modelos cognitivos relacionados com accountability e com prestação de contas, buscou-se contrastar a atuação da Controladoria Geral da União e dos Tribunais de Contas. Como colocado por Barzelay (1997), a existência de conceituações distintas produz modelos divergentes de auditoria. O ponto de partida é que, por serem instituições com inspiração judiciária e quase centenárias, os Tribunais de Contas representam melhor o conceito tradicional em língua portuguesa de prestação de contas. O Tribunal de Contas da União, por exemplo, foi criado em 1890, ao passo que o Tribunal de Contas do Estado de São Paulo, em 1924, sendo o último a ser instituído o Tribunal de Contas do Estado de Tocantins, estabelecido em 1989, no início da Nova República. Por sua vez, a CGU, órgão de controle do governo federal, foi criada em 2003, estando, logo, potencialmente mais próxima de uma visão mais nova, influenciada pelo conceito anglo-saxão de accountability. Assim, para averiguar os efeitos dessa divergência de modelos cognitivos entre os órgãos de controle e os potenciais efeitos na sua atuação, procurou-se, inicialmente, investigar a sua própria organização, por meio da análise da legislação envolvida, da coleta de informação diretamente dos Tribunais de Contas e Controladoria Geral da União. Nesta primeira etapa, usou-se como documentos as respectivas Leis Gustavo Andrey Almeida Fernandes, et al. Accountability ou Prestação de Contas, CGU ou Tribunais de Contas: o exame de diferentes visões sob... PDF gerado a partir de XML Redalyc JATS4R Sem fins lucrativos acadêmica projeto, desenvolvido no âmbito da iniciativa acesso aberto 461 Orgânicas e Regimentos Internos dos Tribunais, assim como, normativas internas que definam o cronograma institucional e o processo de auditoria. Todos documentos estão disponíveis nos respectivos sítios eletrônicos. Em virtude de a CGU não possuir a mesma estatura legal dos Tribunais de Contas, que são órgãos previstos na Constituição, também se realizou uma entrevista com o principal implementador do programa à época, visando complementar a investigação realizada com a análise documental. Com esta estratégia foi possível identificar o conceito de prestação de contas utilizados, assim como, qual o conjunto de procedimentos utilizados pelo respectivo órgão. Em seguida, vencida a análise do desenho institucional, contrastamos a forma de atuação dos órgãos de controle, tendo como base os sorteios aleatórios da CGU.[3] A estratégia foi selecionar gestões municipais já julgadas pelos seus respectivos Tribunais de Contas, tornando possível uma comparação de atividades entre os órgãos. Com este propósito, foram consultados dois relatórios por estado a partir do sorteio 33, realizado em 2010. O ano foi escolhido para garantir que houvesse tempo necessário para cada Tribunal de Contas auditar o município sorteado. Ademais, caso houvesse mais de dois municípios de cada estado num mesmo sorteio, a metodologia empregada foi de utilizar os primeiros em ordem alfabética para garantir a aleatoriedade do processo. Além disso, se o estado não possuísse dois relatórios naquele sorteio, repetiu-se o procedimento nos sorteios anteriores. Assim, buscou-se contrastar a análise das gestões municipais pela CGU a efetuada pelo respectivo pelo Tribunal de Contas Estadual responsável. A hipótese é que a diferente abordagem entre os órgãos de controle decorre de apreensões distintas da ideia de accountability. Este ponto pode se justificar a partir da diferença de modelos institucionais entre os órgãos de controle, que se refletem no teor dos resultados produzidos. A lista de municípios analisados é detalhada na Tabela 1. Uma importante limitação do método escolhido é a impossibilidade de se avaliar a cultura organizacional das instituições. Trata-se de uma importante dimensão onde modelos cognitivos são percebidos. Base Revista de Administração e Contabilidade da UNISINOS, 2020, vol. 17, núm. 3, Julio-Septiembre, ISSN: 1984-8196 PDF gerado a partir de XML Redalyc JATS4R Sem fins lucrativos acadêmica projeto, desenvolvido no âmbito da iniciativa acesso aberto 462 Tabela 1. Municípios Analisados Gustavo Andrey Almeida Fernandes, et al. Accountability ou Prestação de Contas, CGU ou Tribunais de Contas: o exame de diferentes visões sob... PDF gerado a partir de XML Redalyc JATS4R Sem fins lucrativos acadêmica projeto, desenvolvido no âmbito da iniciativa acesso aberto 463 Fonte: CGU e elaboração dos autores Análise Institucional dos Tribunais de Contas e da CGU Os Tribunais de Contas Os Tribunais de Contas são órgãos autônomos que operam como um braço técnico do Legislativo, sem submissão a esse Poder, conforme definido na Constituição Federal de 1988. Estão submetidos ao julgamento deste órgão todos aqueles envolvidos na administração direta e indireta bem como em valores, bens e dinheiros públicos, podendo aplicar sanções àqueles que não atendem aos critérios de legalidade. Do ponto de vista legal, possuam longa tradição no sistema jurídico brasileiro, tendo sofrido poucas alterações na história republicana brasileira, inclusive após a promulgação da Constituição de 1988. De fato, os Tribunais de Contas surgem já na primeira constituição republicana brasileira, promulgada em 1891 (Brasil, 1891). Em 1946, o contexto político de redemocratização, houve um fortalecimento do sistema de controle, retomando mecanismos introduzidos na Carta de 1934, com a competência de o Legislativo julgar as contas do Chefe do Executivo (Brasil, 1934; Brasil, 1946). A Carta de 1967, já durante a ditadura militar, repete em linhas gerais as constituições anteriores, ainda que o contexto político tenha mudado radicalmente, pelo caráter autoritário do Estado brasileiro (Brasil, 1967). Finalmente, em 1988, com a chamada ‘Constituição Cidadã’, pela primeira vez se menciona de forma direta os Tribunais de Contas Estaduais e Municipais, definindo suas competências como controle externo das esferas de governo subnacionais (Brasil, 1988). A despeito de algumas modificações na forma de escolha dos membros, destacadas por Loureiro et al. (2009), no sentido de um maior peso técnico nos seus membros, Hidalgo, Canello e Lima-de-Oliveira (2016) e Weitz- Shapiro et al. (2015) apresentam fortes evidências da manutenção prática dos modelos previamente existentes de escolha e decisão política, enfraquecendo a accountability horizontal. De todo modo, existem atualmente no Brasil 34 tribunais, sendo 27 destinados aos estados, seis dedicados apenas a municípios e um para a União. Desses Tribunais, dois são dedicados exclusivamente ao exame das contas de apenas um município; são os casos dos TCMs de São Paulo (TCM-SP) e Rio de Janeiro (TCM-RJ). Os outros quatro tribunais se dedicam ao exame das contas de todos os municípios daqueles estados a que correspondem, sendo outro órgão estadual o responsável pelas contas do governador do estado. São os casos da Bahia, Ceará, Goiás e Pará. O sistema de controle externo foi desenhado no Brasil de forma independente e não conectada. Em linhas gerais, as Constituições estaduais seguem o modelo federal, em que a titularidade do controle externo é do Legislativo, deixando, porém, para a legislação infraconstitucional as demais normatizações, incluindo competência, jurisdição, organização, bem como os modelos de auditoria (Brasil, 1988). Base Revista de Administração e Contabilidade da UNISINOS, 2020, vol. 17, núm. 3, Julio-Septiembre, ISSN: 1984-8196 PDF gerado a partir de XML Redalyc JATS4R Sem fins lucrativos acadêmica projeto, desenvolvido no âmbito da iniciativa acesso aberto 464 A despeito da titularidade dos Legislativos, o funcionamento de seus mecanismos de controle da ação estatal é definido internamente nos Tribunais. Assim, tanto os prazos para apresentação dos resultados das auditorias às Assembleias estaduais e municipais, as recomendações, bem como as regras de publicidade do seu conteúdo, são definidas pelos próprios órgãos de controle,podendo ser alteradas a qualquer momento (Brelàz et al., 2014). Não obstante, como observado em todas as leis orgânicas dos Tribunais de Contas, o seu objetivo primordial é a realizada de auditoria contábil financeira, concentrando-se com isso na verificação da legalidade das ações governamentais. Ademais, pela própria longevidade das instituições, praticamente centenárias, é inegável atribuir aos Tribunais a expressão mais próxima do modelo cognitivo de prestação de contas presente na administração pública brasileira. Em síntese, a estrutura dos relatórios de contas municipais é retratada na Tabela 2. Tabela 2. Síntese das Variáveis de Análise dos Relatórios Fonte: elaborada pelos autores com base nos municípios analisados A título de ilustração, o manual “Os Cuidados do Prefeito com o Mandato”, publicado pelo Tribunal de Contas do Estado de São Paulo (São Paulo, 2008), evidencia a ênfase na auditoria de compliance, como critério fundamental para o resultado da auditoria. Com efeito, segundo o documento, são motivos para o parecer desfavorável, a não aplicação dos mínimos constitucionais na educação e na saúde, o déficit orçamentário excessivo, o insuficiente pagamento de precatórios judiciais, repasses acima do limite constitucional para o legislativo municipal, bem como o não pagamento de precatórios ou de encargos sociais, além de vedações de gasto no último ano de mandato. Mais recentemente, materiais como “Gestão Financeira de Prefeituras e Câmaras Municipais com as regras do Gustavo Andrey Almeida Fernandes, et al. Accountability ou Prestação de Contas, CGU ou Tribunais de Contas: o exame de diferentes visões sob... PDF gerado a partir de XML Redalyc JATS4R Sem fins lucrativos acadêmica projeto, desenvolvido no âmbito da iniciativa acesso aberto 465 último ano de mandato e da legislação eleitoral”, publicado pela mesma instituição repetem os mesmos achados (TCE-SP, 2020). Inequivocamente, tais fatores são resultados contábeis, não podendo ser diretamente associado a qualquer métrica de auditoria de performance. Nesse sentido, tendo em vista o desenho institucional, assim como as normas procedimentais editadas, o conceito de prestação de contas empregado pelos Tribunais apresenta um conteúdo menos abrangente do que a accountability democrática. A Controladoria Geral da União A Controladoria Geral da União é o centro do controle interno do governo federal brasileiro (CGU), tendo sida criada por meio da Lei 10.683 de 28 de maio de 2003. É responsável por assistir direta e imediatamente ao Presidente da República quanto aos assuntos de defesa do patrimônio público e incremento da transparência da gestão, todos em âmbito do Executivo. Isso se dá através de atividades integradas de auditoria pública, ouvidoria, correição, controle interno e prevenção e combate à corrupção. Além disso, o órgão exerce a supervisão técnica dos órgãos que compõem o sistema de controle interno, de correição, além das unidades de ouvidoria do Poder Executivo Federal. Em 2006, a estrutura da CGU foi alterada por meio do Decreto n° 5.683, tendo sido criada a Secretaria de Prevenção da Corrupção e Informações Estratégicas (SPCI), com objetivo de estabelecer mecanismos de antecipação ao ato da corrupção, indo além de seu combate e criando meios para sua prevenção. Em 2013, com o Decreto n° 8.109, outras mudanças foram feitas: a SPCI passou a ser chamada Secretaria de Transparência e Prevenção da Corrupção, incorporando as atribuições previstas pelas Leis de Acesso à Informação (LAI), de Conflito de Interesses e de Anticorrupção, que entraram em vigor após 2006. A fiscalização de municípios por sorteio é realizada pela Secretaria Federal de Controle Interno (SFC). Até 2015, havia sido realizados 40 sorteios públicos, num total de mais de 2.000 municípios brasileiros[4]. A responsabilidade da execução das auditorias nos municípios é descentralizada, sendo o planejamento de atividades realizado pelas unidades regionais da CGU, que organizam o efetivo que irá a campo, composto em média por 6 ou 7 servidores, assim como fazem o planejamento prévio e a produção do relatório de auditoria. Geralmente, se gasta uma semana planejando, duas na visita de campo, e mais uma na produção do relatório, totalizando um mês para o processo completo. A propósito, conforme entrevista realizada, não é comum conflito com os gestores durante o processo de fiscalização, embora haja às vezes interesse da Câmara Municipal pelo objeto da fiscalização – motivada, geralmente, por questões políticas em relação ao prefeito. Além de casos de corrupção, também foram relatadas algumas irregularidades identificadas decorrentes de falta de infraestrutura ou orçamento inadequado. Estes casos tendem a ser relatados de forma menos pronunciada nos relatórios de auditoria o que já não ocorre com casos evidentes de descaminho. Base Revista de Administração e Contabilidade da UNISINOS, 2020, vol. 17, núm. 3, Julio-Septiembre, ISSN: 1984-8196 PDF gerado a partir de XML Redalyc JATS4R Sem fins lucrativos acadêmica projeto, desenvolvido no âmbito da iniciativa acesso aberto 466 De acordo com o relato, o encaminhamento dos relatórios produzidos aos Ministérios é geralmente seguido de pressão popular para que se tomem iniciativas com vistas de corrigir ou punir as irregularidades observadas, dado que os relatórios são públicos e a própria imprensa local tende a acompanhar com grande interesse. No entanto, a atuação do governo federal varia muito, já que a irregularidade pode ser justificada com argumentos que reduzam a responsabilidade do prefeito, ou mesmo corrigida em tempo. De todo modo, em casos mais raros, medidas extremas como corte de repasse das verbas ou a ação do Ministério Público Federal, são também observados. A CGU não possui estimativa do impacto de suas ações, ainda que, entre os auditores, considere-se que as auditorias geram grande retorno financeiro, pois identificam pagamentos irregulares, reduzindo seu ônus sobre a sociedade. Como o órgão não atua de forma isolada e independente de outros, o desfecho de irregularidades identificadas depende também do encaminhamento dado pelos Ministérios, por exemplo, embora as recomendações feitas tenham peso na análise do uso de recursos públicos federais. Quanto ao caráter da auditoria de fiscalização feita pelo órgão, evidenciou-se a visão de que o foco da CGU é na dimensão da performance das ações dos entes fiscalizados, chegando por vezes a servir como consultoria, diagnosticando e propondo soluções, além de atuar sobre uma perspectiva mais integrada de controle. Com efeito, Silva Dias et at. (2013), assim como Azevedo Sodré e Alves (2010), analisando relatórios da CGU, também identificam claramente a preocupação com aferir a qualidade da gestão. Análise Empírica Na seção anterior, verificou-se a existência de significativas divergências no desenho institucional de Tribunais de Contas e da Controladoria Geral da União, superando, inclusive, as diferenças que seriam esperadas por se tratar de controle externo e interno, respectivamente. Desse modo, um passo imediato é verificar como tais discrepâncias são refletivas na atuação, ou seja, no processo de auditoria realizado por essas instituições. Não obstante, em uma etapa preliminar à análise os resultados das auditorias de CGU e Tribunais de Contas, é preciso enfrentar as dificuldades existentes para a mensuração da produção do serviço público, tendo em vista sua natureza diversificada, bem como os desafios para a abordagem do tema corrupção e, por fim, a quantificação das irregularidades encontradas. Em outras palavras, trata-se do desafio encontrado por anglófonos e lusófonos, respectivamente, em sua realidade, de converter o conceito de accountability em uma prática. Avaliação da Administração Pública O papel da administração pública é um processo complexo, dificultando a avaliação de desempenho, tendo em vista as diversas dimensões abrangidas Gustavo Andrey Almeida Fernandes, et al. Accountability ou Prestação de Contas, CGU ouTribunais de Contas: o exame de diferentes visões sob... PDF gerado a partir de XML Redalyc JATS4R Sem fins lucrativos acadêmica projeto, desenvolvido no âmbito da iniciativa acesso aberto 467 pelo Estado. A análise da atuação do corpo burocrático encarregado da ação estatal é uma condição necessária para a existência da democracia: verifica sua capacidade de entender e atender satisfatoriamente às demandas sociais. A incapacidade de perfeito monitoramento da administração pública decorre da assimetria de informação existente entre a sociedade e os atores públicos, permitindo que o corpo burocrático ou os agentes políticos desviem a ação estatal do pleno atendimento às demandas coletivas, no intuito de cumprir uma agenda própria. Trata-se do já consagrado problema do agente-principal (Eisenhardt, 1989). A performance de um Estado democrático, e a sua subsequente mensuração, não se restringem, portanto, à definição de uma métrica, mas também em seus objetivos, que são difusos e variam de acordo com as demandas da sociedade. Olsen (2018), nesta questão, vai além, interpretando a entrega de resultados como um elemento constituinte da accountability democrática e, logo, condição relevante dentro de um estado democrático. Avaliar performance, nessa perspectiva, se torna uma condição necessária para o Estado Democrático. Do ponto de vista prático, contudo, Suzuki e Gabbi (2009) destacam algumas das dificuldades decorrentes para a mensuração de produção do serviço público. Por exemplo, o setor público tende a possuir menor flexibilidade de recursos humanos do que o privado, o que dá menor margem no atendimento de alguns resultados. Ao contrário da empresa privada, cuja finalidade pode ser sintetizada no lucro, o setor público possui objetivos mais difusos e menos palpáveis - como o bem-estar dos cidadãos, o seguimento de princípios democráticos e republicanos, por exemplo - o que também gera implicações na sua atuação. Isso sem contar os fatores exógenos à competência estatal, como o fornecimento de serviços e bens meritórios por parte do mercado e de organizações não governamentais - que dividem a integralidade do atendimento à sociedade -, ou a influência da economia internacional no resultado do serviço público e na percepção dos cidadãos. Isso tudo além da indefinição do tempo adequado para se avaliar uma ação, tendo em vista os objetivos difusos já expressos. É evidente que esses desafios se constituem como ponto importante se os analisamos sob a ótica do desempenho do setor público, que se relaciona mais à avaliação de performance, e não a um simples monitoramento do caixa e de sua contabilização, como seria nas dimensões financeira e de legalidade. Sendo assim, esses obstáculos são intensificados a medida que se aumenta o grau de exigência dos órgãos de controle. Caso as auditorias sejam financeiras ou de legalidade, é mais simples a identificação de irregularidades, uma vez que há parâmetros norteadores claros, no caso principalmente o cumprimento à lei ou a princípios contábeis que ditam quais procedimentos são válidos ou não. No caso das auditorias de desempenho, ou performance, os desafios são maiores, dada a abrangência que assumem ao se propor a avaliar se houve ou não mudanças em condições que afetam algum problema previamente identificado. Base Revista de Administração e Contabilidade da UNISINOS, 2020, vol. 17, núm. 3, Julio-Septiembre, ISSN: 1984-8196 PDF gerado a partir de XML Redalyc JATS4R Sem fins lucrativos acadêmica projeto, desenvolvido no âmbito da iniciativa acesso aberto 468 No caso da CGU, ainda que aspectos do modelo de auditoria financeiro-legal sejam observados, como reflexo direto da semântica de prestação de contas, predominante na legislação brasileira, a sua atuação inclui a dimensão da performance. Por exemplo, ao se definir determinada ação tomada por uma Prefeitura está impactando no funcionamento adequado de um dado serviço, utilizam-se instrumentos de avaliação que ultrapassam questões financeiras e de cumprimento das regras, entrando no campo da avaliação de desempenho daquele governo. Já para o caso dos Tribunais de Contas Estaduais, os procedimentos utilizados não trazem tantas dificuldades, uma vez que se trata de verificar o cumprimento de exigências financeiras e determinações legais. Por fim, ainda que os órgãos de controle não atinjam o ponto da avaliação, é notável que o julgamento de uma administração municipal, neste caso, apresenta questões que não podem ser descoladas de uma análise geral que considere a abrangência de fatores e a incompletude do Estado em lidar com todas as demandas públicas. No caso dos municípios auditados por sorteio pela CGU, esse fator apresenta maior destaque, por se tratar de cidades com até 500.000 habitantes. Ainda que estas sejam maioria no país, apresentam carências de estrutura na gestão e de recursos, componentes que intensificam as dificuldades de atendimento às demandas da sociedade. Isso foi, inclusive, relatado durante entrevista na CGU, que expôs a existência de dificuldades estruturais nas gestões municipais, que muitas vezes diluem a responsabilidade do gestor público para com as irregularidades encontradas no processo de auditoria. O problema da corrupção A relação agente-principal cunhada por Eisenhardt (1989) é útil para conceituar a corrupção. Esta pode ser classificada como um problema de agência, em que os propósitos do principal (população) passam a não corresponder mais aos propósitos do agente (corpo burocrático). No entanto, essa não correspondência não significa única e exclusivamente uma prática de corrupção, apenas indicam o não atingimento de ganhos públicos. Esse cuidado deve ser tomado à medida que se analisa uma série de irregularidades como se propõe este trabalho, assim como é necessário ponderar sobre as dificuldades de gestões municipais locais em implementar políticas públicas. Nessa direção, Bandiera et al. (2009) utilizam os conceitos de ineficiência ativa e ineficiência passiva para diferenciar, basicamente, o que é corrupção. A ineficiência ativa se refere ao conjunto de atos que produz ineficiência e ao mesmo tempo benefício direto ou indireto para o tomador da decisão numa política pública. A passiva, por outro lado, não caracteriza ganho do tomador de decisão, sendo decorrente da falta de habilidade para reduzir custos, da inexistência de incentivos apropriados, a regulamentação excessiva, dentre outros motivos. É aqui que se inserem as dificuldades estruturais, que algumas vezes fogem do controle dos gestores públicos e originam irregularidades. Os autores, estudando o caso italiano, concluem que a ineficiência passiva pode ser Gustavo Andrey Almeida Fernandes, et al. Accountability ou Prestação de Contas, CGU ou Tribunais de Contas: o exame de diferentes visões sob... PDF gerado a partir de XML Redalyc JATS4R Sem fins lucrativos acadêmica projeto, desenvolvido no âmbito da iniciativa acesso aberto 469 um problema potencialmente maior que a corrupção (ineficiência ativa), indo na contramão de estudos recentes que focalizam este último como o grande responsável pela má utilização de recursos públicos. Silva Dias et at (2013), com dados da CGU, mostram que a ineficiência passiva é extremamente relevante no caso brasileiro. Nesse estudo, busca-se focar em irregularidades cometidas com recursos federais que envolvam grande aporte de valores ou mesmo da responsabilização clara dos agentes municipais, relatando também os pontos de irregularidade que trouxeram impactos negativos relevantes à população. Em face dos objetivos do estudo, não serão analisadas as gestões municipais envolvidas, focando-se na ação dos órgãos de controle. Quantificação das irregularidades municipais O método de análise das irregularidades apontadas pela CGU envolve três critérios. O primeiro consiste na verificação de que a irregularidade envolveu contrapartida financeira municipal para o exercício analisado. Além disso, entende-se que alguns programas possuem, por sua natureza, recursos municipais,além dos federais detalhados. É o caso do FUNDEB, do PNATE, PDDE, do Piso de Atenção Básica da Saúde, de Programa de Assistência Farmacêutica, além de Programas Sociais, como o Bolsa Família. Nesses casos as irregularidades encontram contrapartida financeira. Para os casos que ocorre apenas o repasse federal ou não envolve montante financeiro, a contrapartida é desconsiderada. Já em Convênios e Contratos de Repasse, são considerados aqueles em vigor no exercício analisado. Nesses casos, a própria descrição da irregularidade costuma informar o valor da Contrapartida Municipal. As que não informaram são consideradas, tendo em vista a obrigatoriedade de todo o convênio e contrato de repasse vir somado de recurso municipal, sendo que a porcentagem de emprego desse recurso é definida na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO). O segundo critério refere-se à relevância da irregularidade encontrada no exercício analisado, envolvendo sempre soma superior a R$50.000,00. Por fim, o terceiro critério observa a existência de impactos relevantes daquela irregularidade para a população, apenas nas áreas de educação, saúde e assistência social. Aqui, a classificação de relevância dos impactos é discricionária, motivada pela observância de relação da irregularidade com o público alvo da política pública. Essa relação pode ser desde a falta de estrutura na oferta de algum serviço até o desvio de recursos para outra finalidade. Tendo observado a ocorrência do primeiro critério, procede-se para a verificação da ocorrência de um dos dois restantes, não sendo necessária a existência do segundo e do terceiro para considerar a irregularidade como um ponto a ser observado em comparação com o resultado das auditorias realizadas pelos Tribunais de Contas (Pareceres Prévios). A relação, portanto, implica verificar se o Tribunal deveria fiscalizar aquele ponto, e, em seguida, se ele possuía relevância mínima que tornasse indispensável a sua observação pelo controle externo[5]. Base Revista de Administração e Contabilidade da UNISINOS, 2020, vol. 17, núm. 3, Julio-Septiembre, ISSN: 1984-8196 PDF gerado a partir de XML Redalyc JATS4R Sem fins lucrativos acadêmica projeto, desenvolvido no âmbito da iniciativa acesso aberto 470 Comparando os Resultados e Consequências A partir da análise das observações obtidas dos relatórios da Controladoria Geral da União e dos respectivos pareceres prévios dos Tribunais de Contas Estaduais, pode-se organizar a presente análise em três dimensões diferentes. A primeira retrata a transparência dos órgãos de controle, abrangendo a disponibilidade de informações, a qualidade da interface com o cidadão, assim como o emprego de métodos participativos e de acompanhamento do órgão em questão. A segunda dimensão discutida é se refere às dimensões da accountability, atingidas por cada órgão de controle. É importante observar qual foi o teor dos relatórios analisados e a que objetivos ele se propôs a atingir. Só assim é possível entender as possibilidades de atuação do sistema de controle brasileiro, o que retratada, evidentemente, os próprios modelos cognitivos envolvidos. Por fim, a terceira dimensão se relaciona com a efetividade da fiscalização dos órgãos de controle, ou seja, a quão próxima da accountability democrática foi a atuação da auditoria, em face dos resultados encontrados. A análise integrada dessas dimensões constitui ponto importante para o encaminhamento da conclusão, dado sua inevitável interação. Por exemplo, a observação sobre o quão determinado órgão é transparente, por ser correlacionado com sua efetividade. Ou então, de modo contrário, uma maior efetividade requer maior interface com o cidadão, tornando, o órgão mais propenso a ser ‘accountable’ à sociedade, disponibilizando as informações necessárias para o controle social. Os resultados da análise estão expostos na Tabela 3, em que os dados gerados procuram dar conta de observar: o número de irregularidades que se encaixavam nos critérios definidos metodologicamente, ou seja, quantas das constatações observadas na CGU o Tribunal de Contas deveria verificar em sua fiscalização; em quantos casos foi estabelecido ao menos um paralelo de cobertura dos recursos entre a CGU e os TCEs; e qual foi o resultado do julgamento das contas municipais pelos Tribunais de Contas[6]. Gustavo Andrey Almeida Fernandes, et al. Accountability ou Prestação de Contas, CGU ou Tribunais de Contas: o exame de diferentes visões sob... PDF gerado a partir de XML Redalyc JATS4R Sem fins lucrativos acadêmica projeto, desenvolvido no âmbito da iniciativa acesso aberto 471 Tabela 3. Síntese da análise comparativa entre CGU e TCEs Fonte: elaborado pelos autores Algumas conclusões são imediatas. A primeira é que a média de constatações observadas pela CGU e que deveriam ser cobertas pelo TCE é alta por município, em média 26, concluindo-se que, a despeito de serem órgãos com jurisdição distintas, há um grau considerável de recursos públicos sendo fiscalizados por mais de um órgão de controle, o que confirma nossa hipótese básica a respeito da dupla fiscalização. Isso implica entender a necessidade de cooperação e atuação conjunta dos órgãos, já que possuem convergências em seus objetos, a despeito das divergências decorrentes dos distintos modelos cognitivos utilizados em cada uma das instituições. A segunda observação, reforçando a hipótese de que existem modelos cognitivos distintos, é que, a despeito dos inúmeros pontos em comum a serem fiscalizados pelos dois órgãos, os Tribunais de Contas Estaduais, num aspecto geral, apresentam uma prática de auditoria mais limitada à compliance, já que em apenas 9,6% dos municípios foi relatada alguma relação entre os relatórios de fiscalização. Em termos de achados de fiscalização, há correspondência em apenas 0,37% dos Base Revista de Administração e Contabilidade da UNISINOS, 2020, vol. 17, núm. 3, Julio-Septiembre, ISSN: 1984-8196 PDF gerado a partir de XML Redalyc JATS4R Sem fins lucrativos acadêmica projeto, desenvolvido no âmbito da iniciativa acesso aberto 472 1343 apontamentos encontrados nos relatórios da CGU, indicando claramente a existência de definições distintas a respeito do que é prestação de contas. Não se pode, portanto, com base nos municípios analisados, rejeitar a hipótese de que os Tribunais de Contas possuem uma definição menos abrangente de prestação de contas, sendo o conceito empregado pela Controladoria Geral da União mais próxima da accountability democrática. A terceira conclusão, diretamente relacionada à segunda, é que, apesar da existência de um grande conjunto de diversas irregularidades pela CGU, que potencialmente podem ser analisados pelos TCEs, em virtude do envolvimento de recursos do tesouro local, a maioria dos resultados dos pareceres das contas foi pela aprovação das contas municipais, sem utilização de ressalvas. Somando-se os casos de aprovação com ressalvas, alcança-se um índice de 52% dos casos. Portanto, dado a quantidade média de irregularidades enquadradas nos critérios deste estudo, há fortes indícios de divergências na atuação entre os órgãos, indicando, novamente, a existência de conceitos distintos. Uma quarta conclusão possível a partir desses dados é que, em alguns Tribunais de Contas, não há no conceito de prestação de contas uma dimensão temporal limitante, ou seja, que exija a sua realização no curto prazo. Com efeito, a despeito do cuidado de se escolher exercícios já ocorridos, de sorte que, até o presente momento, já deveriam ter sido, analisados pelos Tribunais de Contas Estaduais, mesmo assim, em pelo menos 08 casos ainda não houve julgamento, ou seja, após, no mínimo, seis anos da realização da política pública pelo gestor municipal. Ademais, algumas observações gerais podem ser feitas, derivadas da análise dos resultados das auditorias. No tocante à transparência dos Tribunais de Contas Estaduais, em muitos casos o acesso aos documentos desejados foi difícil, mesmo naqueles em que supostamente estava disponível no endereço eletrônico,visto exigem o conhecimento de um número de identificação, ao invés do nome do processo. Além disso, em muitas situações em que foram feitos pedidos de informações houve considerável demora, registrando-se espera superiores a um mês. Outro ponto relevante diz respeito à falta de padronização na atuação dos Tribunais de Contas Estaduais. Ainda que todos tenham a competência de realizar os Pareceres Prévios, pouco se estabeleceu sobre quais informações destes Pareceres estariam disponíveis ao cidadão, havendo grande variância. De todo modo, um padrão de verificação foi observado em todos os Tribunais que disponibilizaram seus relatórios técnicos, havendo pontos que obrigatoriamente precisavam ser checados como: o Balanço Patrimonial, a arrecadação tributária, o cumprimento das receitas e despesas segundo o previsto em ano anterior, além do respeito aos limites mínimos e máximos na aplicação de recursos, como os 15% relativos à Saúde ou os 25% relativos ao desenvolvimento e manutenção do ensino. Nesse sentido, confirma-se que o teor dos relatórios produzidos pelos Tribunais de Contas Estaduais é, como esperado, em função das diferenças conceituais, diferente daquele dos relatórios publicados Gustavo Andrey Almeida Fernandes, et al. Accountability ou Prestação de Contas, CGU ou Tribunais de Contas: o exame de diferentes visões sob... PDF gerado a partir de XML Redalyc JATS4R Sem fins lucrativos acadêmica projeto, desenvolvido no âmbito da iniciativa acesso aberto 473 pela CGU. Enquanto o primeiro atinge a dimensão financeira e de legalidade da accountability, com foco maior na primeira, observa-se que a fiscalização da CGU parte da dimensão de legalidade, ou compliance, chegando assim a verificar questões de performance. Considerações Finais O presente trabalho buscou contribuir para o debate sobre o sistema de controle brasileiro, partindo de um ponto primordial: a própria conceituação do termo prestação de contas, em contraste como o termo anglo-saxão accountability. A importância dessa questão decorre do fato que modelos cognitivos são fundamentais para delimitar o campo de atuação prática de instituições. Assim, investigou-se nesse artigo o impacto da inexistência de um modelo claro de accountability no sistema de controle brasileiro, por meio da análise da forma de organização das instituições de controle e de que modo realizam suas atividades. Assim, tendo em vista a criação da CGU em 2003, cuja atuação ocorre muitas vezes de forma concomitante com a dos Tribunais de Contas, estabelecidos entre 1890 e 1989, foi possível contrastar os procedimentos do órgão de controle interno federal com a de diversas instituições de controle externo no Brasil. A breve análise institucional conduzida nesse estudo mostrou claramente a divergência organizacional entre os Tribunais de Contas e a Controladoria Geral da União, o que é também evidenciado nos modelos teóricos empregados pelas instituições. O Manual “Os Cuidados do Prefeito com o Mandato”, editado pelo TCE-SP, por exemplo, ilustra a ênfase na compliance, ao passo que a análise de atuação da CGU mostra uma preocupação mais abrangente. Com efeito, tais evidências indicam a validade de nossa hipótese a respeito de um divergente entendimento do que é prestação de contas para ambas as instituições, reflexo de suas próprias trajetórias histórias distintas, sendo os Tribunais de Contas muito mais antigos e, portanto, estabelecidos em um período anterior à introdução do conceito de accountability democrática. Em síntese, além do processo de prestação de contas ser insuficiente em relação a conceito de accountability (Olson, 2018), não há um modelo cognitivo único, existindo grande divergência entre os principais atores do sistema de controle nacional. A análise empírica, por seu turno, também confirmou a importância destes achados, visto que, nos casos em que havia atuação simultânea da CGU e de um Tribunal de Contas, não houve sinais de entendimento similar sobre os procedimentos de auditoria. Como esperado, a prática da CGU mostrou-se mais abrangente do que a verificada nos Tribunais, aproximando-se, ainda que de forma também insuficiente a ideia de accountability democrática. Ademais, algumas lacunas importantes permanecem, cuja análise das formas de organização e os resultados das auditorias não permite investigar. Modelos cognitivos não apenas definem a prática da auditoria, pois, influenciam o próprio sistema de valores das organizações. Desse Base Revista de Administração e Contabilidade da UNISINOS, 2020, vol. 17, núm. 3, Julio-Septiembre, ISSN: 1984-8196 PDF gerado a partir de XML Redalyc JATS4R Sem fins lucrativos acadêmica projeto, desenvolvido no âmbito da iniciativa acesso aberto 474 modo, uma importante contribuição futura seria entender como os conceitos relativos à prestação de contas estão imbuídos na cultura organizacional dos Tribunais de Contas e da CGU. Diferenças de cultura organizacional podem ser fatores importantes a fomentar ou delimitar o potencial da criação de um sistema coordenado de controle no Brasil, adequado a chamada accountability democrática. Ademais, um exame mais apurado sobre o impacto destes órgãos de controle na gestão pública também é necessário, buscando inclusive entender qual o seu efeito no desenvolvimento dos sistemas de controle interno dos municípios brasileiros. Inequivocamente, tal programa de pesquisa é fundamental para o aperfeiçoamento da democracia no Brasil. 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Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 28 mai. Gustavo Andrey Almeida Fernandes, et al. Accountability ou Prestação de Contas, CGU ou Tribunais de Contas: o exame de diferentes visões sob... PDF gerado a partir de XML Redalyc JATS4R Sem fins lucrativos acadêmica projeto, desenvolvido no âmbito da iniciativa acesso aberto 475 Brelàz, G de, Fernandes, G A., & Elmais, L P. (2014). O papel limitado dos órgãos de controle no aperfeiçoamento da accountability horizontal: o caso dos governadores. XXXVIII EnANPAD. Ceneviva, R, & Farah, M F. S. (2012). Avaliação, informação e responsabilização no setor público. Revista de Administração Pública, 46(4), 993-1016.htt ps://doi.org/10.1590/S0034-76122012000400005 Eisenhardt, K. M. (1989). Agency eory: An Assessment and Review. Academy of Management Review, 14(1), 57-74. https://doi.org/10.5465 /amr.1989.4279003 Gomes, M. B. (2003, out). 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Notas [1] A título de ilustração, no livro “Precious Princess Bible”, uma edição da bíblia para crianças em língua inglesa, a palavra accountability é empregada diretamente, revelando a naturalidade do seu uso, inclusive para o público infantil. Por exemplo, no livro dos Números, capítulo 18, versículo 1, “e Lord spoke to Aaron: He said, ÿou, your sons and your father’s family are in charge of the sacred tent. You will be held accountable for sins that are committed against it”. [2] Gomes (2003) concentra bastante atenção ao definir o conceito de auditoria de performance, o qual se aproxima do que defende Barzelay (1997), sobretudo ao resumir o termo como um conjunto de procedimentos técnicos orientados para o resultado da atuação pública. [3] É válido notar que o sorteio feito pela CGU engloba municípios de até 500.000 habitantes, excetuando-se as capitais estaduais. [4] Informação disponível em: < http://www.cgu.gov.br/noticias/2015/01/cgu- realiza-40a-edicao-do-sorteio-de-municipios > Acesso em 10 de ago. 2015. [5] Todas as análises dos relatórios da CGU e dos respectivos Tribunais de Contas estão disponíveis para verificação das informações, mediante solicitação por email para os autores. [6] Aqui, nos casos em que não houve disponibilização de informações, é possível aferir características da transparência dos Tribunais, assim como ao longo dos textos de análise, que indicam quais os caminhos percorridos para a obtenção dos documentos desejados.