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HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA Unidade 2 Historiografia colonial brasileira CEO DAVID LIRA STEPHEN BARROS Diretora Editorial ALESSANDRA FERREIRA Gerente Editorial LAURA KRISTINA FRANCO DOS SANTOS Projeto Gráfico TIAGO DA ROCHA Autoria FÁBIO RONALDO DA SILVA 4 HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA U ni da de 2 A U TO RI A Fábio Ronaldo da Silva Olá. Sou pós-doutorando em História pelo PPGH/UFCG. Sou doutor em História pelo PPGH/UFPE. Possuo o título de mestre em História pelo PPGH/UFCG. Já atuei como professor substituto do curso de Jornalismo da UEPB, assim como lecionei no curso de Publicidade e Propaganda da Cesrei. Além disso, ministro aulas no curso de Comunicação Social das FIP e no curso de Produção em Audiovisual da Facisa/Cesed. Tenho especialização em Programação Visual, além de formações em Comunicação Social, pela UEPB, e História, pela UFCG. Atualmente, exerço o papel de pesquisador colíder do Grupo de Pesquisa/DGP-CNPq História e Memória da Ciência e Tecnologia. Minhas pesquisas estão concentradas nas áreas de Comunicação e de História, com foco especial nos temas de estudos de gênero, sexualidades, velhices, imprensa homoerótica, homossexualidades, imagem, cinema, história oral, arquivo jornalístico, memória e novas tecnologias da informação. Tenho uma paixão profunda pelo que faço e sinto grande satisfação em compartilhar minha experiência de vida com aqueles que estão começando em suas respectivas carreiras. Por essa razão, recebi o convite da Editora Telesapiens para fazer parte de seu grupo de autores independentes. Estou extremamente contente em poder oferecer minha ajuda durante essa fase de intenso estudo e dedicação. Saiba que pode contar comigo! 5HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA U ni da de 2 ÍC O N ESEsses ícones aparecerão em sua trilha de aprendizagem nos seguintes casos: OBJETIVO No início do desenvolvimento de uma nova competência. DEFINIÇÃO Caso haja a necessidade de apresentar um novo conceito. NOTA Quando são necessárias observações ou complementações. IMPORTANTE Se as observações escritas tiverem que ser priorizadas. EXPLICANDO MELHOR Se algo precisar ser melhor explicado ou detalhado. VOCÊ SABIA? Se existirem curiosidades e indagações lúdicas sobre o tema em estudo. SAIBA MAIS Existência de textos, referências bibliográficas e links para aprofundar seu conhecimento. ACESSE Se for preciso acessar sites para fazer downloads, assistir vídeos, ler textos ou ouvir podcasts. REFLITA Se houver a necessidade de chamar a atenção sobre algo a ser refletido ou discutido. RESUMINDO Quando for preciso fazer um resumo cumulativo das últimas abordagens. ATIVIDADES Quando alguma atividade de autoaprendizagem for aplicada. TESTANDO Quando uma competência é concluída e questões são explicadas. 6 HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA U ni da de 2 SU M Á RI O Historiografia do período colonial no Brasil ................................9 Principais correntes historiográficas do período colonial ....................................... 9 Eventos-chave e figuras protagonistas da colonização .........................................14 Resistência e movimentos sociais ...............................................................16 Relação com os povos indígenas .................................................................17 Processos históricos determinantes: economia, sociedade e cultura ..............19 Sociedade colonial: hierarquias, dinâmicas sociais e tensões ............20 Cultura colonial: sincretismo, religiosidade e expressões artísticas..22 Interpretações sobre a chegada dos portugueses ....................26 Narrativas tradicionais versus revisões contemporâneas ....................................26 A chegada dos portugueses sob a ótica indígena...................................................31 Transformações culturais e sociais .............................................................34 Interesses geopolíticos e o contexto internacional na época .............................36 Abordagens historiográficas sobre sociedade colonial ............39 Dinâmicas da escravidão: abordagens historiográficas sobre a experiência afro-brasileira .....................................................................................................................39 Cultura e religiosidade afro-brasileira no período colonial ..................42 Inter-relações e tensões sociais ...................................................................44 Estruturas e relações de poder no período colonial ..............................................45 Dinâmicas sociais e estratificação ...............................................................48 Resistência e contestação ao poder colonial ...........................................50 Culturas indígenas e seu legado resiliente ................................................................52 Métodos utilizados para reconstruir a história colonial do Brasil ................................................................................................55 Fontes primárias na reconstrução da história colonial .........................................55 Documentos oficiais ........................................................................................56 Relatos de eventos e transações .................................................................58 Desafios e limitações .......................................................................................60 A importância dos relatos pessoais ............................................................................61 Vieses e limitações dos relatos pessoais ...................................................65 Contribuição à historiografia ........................................................................66 Iconografia e cultura material .......................................................................................68 7HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA U ni da de 2 A PR ES EN TA ÇÃ O Você sabia que a área da historiografia colonial brasileira é uma das mais ricas e complexas na historiografia nacional e será responsável pela geração de novas perspectivas e abordagens sobre o nosso passado nos próximos anos? Isso mesmo. A área da historiografia colonial faz parte da cadeia fundamental de construção de nossa identidade como nação. Sua principal responsabilidade é investigar, analisar e reinterpretar eventos, figuras, relações de poder, dinâmicas sociais e culturais que moldaram séculos de nossa história. De resistências sociais à influência indígena e africana, do sincretismo religioso às complexas relações de poder e escravidão, das narrativas tradicionais às revisões contemporâneas, das fontes primárias aos relatos pessoais e à rica iconografia e cultura material da época. Cada fragmento é uma peça no vasto mosaico que é a história colonial brasileira. Entendeu? Ao longo desta unidade letiva, você vai mergulhar neste universo! 8 HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA U ni da de 2 O BJ ET IV O S Olá. Seja muito bem-vindo à Unidade 2. Nosso objetivo é auxiliar você no desenvolvimento das seguintes competências profissionais até o término desta etapa de estudos: 1. Identificar os principais eventos, atores e processos históricos do período colonial no Brasil, por meio da análise e do estudo da historiografia existente. 2. Distinguir as diversas interpretações sobre a chegada dos portugueses e o início da colonização no Brasil. 3. Discernir sobre as abordagens historiográficas da sociedade colonial, incluindo a escravidão, as relações de poder e as culturas indígenas. 4. Entender as fontes e os métodos utilizados pelos historiadores para reconstruir a história colonial brasileira, bem como o estudo e a análise de documentos oficiais, cartas, diários, relatos de viajantes, registros paroquiais, iconografia, entre outros. 9HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA U ni da de 2 Historiografia do períodocolonial no Brasil OBJETIVO Ao término deste capítulo, você será capaz de identificar os principais eventos, atores e processos históricos do período colonial no Brasil, por meio da análise e do estudo da historiografia existente. E então? Motivado para desenvolver esta competência? Vamos lá. Avante! Principais correntes historiográficas do período colonial Quando nos voltamos para o período colonial brasileiro, enfrentamos uma rica diversidade de interpretação ao longo dos séculos. A historiografia tradicional, por exemplo, teve grande foco em documentos oficiais, crônicas e relatos de viajantes, muitas vezes dando voz apenas aos protagonistas europeus. Essa tendência pode ser observada em trabalhos clássicos como o de Frei Vicente do Salvador, que, em sua “História do Brasil” (1627), apresenta um relato detalhado da colonização a partir da perspectiva dos colonizadores. A historiografia tradicional, frequentemente associada aos primeiros séculos da colonização brasileira, foi inserida em um contexto no qual a história era vista, em grande medida, como um registro factual e linear dos eventos. Essa abordagem enfatizava a narrativa dos grandes feitos, dos descobrimentos e dos atos das elites, colocando em segundo plano a vida e as experiências dos grupos subalternos. 10 HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA U ni da de 2 Uma das principais características dessa historiografia é a forte dependência de documentos oficiais, como cartas, crônicas e relatos de viajantes europeus. As obras desse período buscavam estabelecer uma narrativa de “descobrimento” e “civilização”, sob a perspectiva da metrópole portuguesa. EXEMPLOS: um exemplo emblemático é a “História da América portuguesa” (1730), de Sebastião da Rocha Pita, que narra a história da colonização portuguesa na América, destacando os feitos dos colonizadores e a contribuição religiosa da Igreja Católica. A linearidade da narrativa e a predominância do ponto de vista europeu não significam, contudo, que os escritos dessa época sejam desprovidos de valor. Muitas das obras tradicionais fornecem detalhes preciosos sobre o cotidiano colonial, uma organização social e as relações de poder. Nesse sentido, a obra de Gabriel Soares de Sousa, “Tratado descritivo do Brasil” (1587), surge como um dos registros mais detalhados do Brasil seiscentista, contemplando desde a fauna e a flora até os trajes indígenas. No entanto, é inegável que essa perspectiva tradicional apresenta limitação, principalmente por não contemplar as vozes e experiências de grupos como indígenas e africanos escravizados. Como destaca Dias (2005), a historiografia sobre a colonização brasileira por muito tempo esteve atrelada a uma visão eurocêntrica, negligenciando outros protagonistas e suas resistências. A partir das últimas décadas do século XX, a historiografia brasileira, assim como a historiografia global, viu surgir uma série de correntes revisionistas e novas abordagens metodológicas. O revisionismo e a chamada “nova história” buscaram questionar 11HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA U ni da de 2 e reconfigurar narrativas completas, utilizando novas fontes e abordagens analíticas. No campo do revisionismo brasileiro, um exemplo notável é a obra de Evaldo Cabral de Mello. Em seus estudos sobre o Nordeste colonial, como “Negócios e ócios: histórias da apropriação” (1997), ele desafiou visões tradicionais sobre a economia açucareira, argumentando que havia uma complexidade econômica e social maior do que se supunha anteriormente. A “nova história”, influenciada pelas correntes europeias, trouxe para o centro do debate metodologias que enfatizavam a análise das mentalidades, do cotidiano e das micro-histórias. Alain Corbin, Roger Chartier e Carlo Ginzburg foram referências internacionais que inspiraram historiadores brasileiros. No contexto nacional, Manolo Florentino e José Roberto Góes (1997) se destacaram ao estudar o cotidiano dos escravos urbanos e a vida dos pequenos comerciantes no Brasil colonial, utilizando fontes de recursos e notariais de forma inovadora. Outro campo fértil dessa abordagem foi a “história das sensibilidades”, que explora as inscrições e emoções das pessoas do passado. Mary Del Priore, em “Histórias íntimas” (2011), mergulhou nas experiências amorosas e afetivas dos brasileiros dos séculos passados, oferecendo uma leitura rica e humana da história. A combinação do revisionismo com a nova história ampliou as possibilidades interpretativas, dando voz a personagens silenciados e enriquecendo a compreensão da complexa diversidade social e cultural do período colonial brasileiro. A emergência da historiografia marxista no Brasil, sobretudo a partir da segunda metade do século XX, inaugurou uma 12 HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA U ni da de 2 profunda revisão interpretativa sobre a formação econômica e social do país. Influenciados pelo pensamento marxista, diversos historiadores procuraram examinar a estrutura econômica da colônia à luz das relações de classe e dos modos de produção. Um dos pioneiros nesse campo foi Caio Prado Jr., que, em sua obra “Formação do Brasil contemporâneo” (1942), propõe uma interpretação econômica da colonização. Ele argumentou que a colonização portuguesa tinha um “sentido eminentemente econômico”, ou seja, estava centrado na exploração e na transferência de riqueza para a metrópole, principalmente por meio do sistema latifundiário e da escravidão. Os marxistas também deram particular atenção à centralidade da escravidão na economia colonial. Fernando Novais, em “Portugal e Brasil na crise do antigo sistema colonial” (1979), examina a dinâmica da economia colonial dentro do contexto do sistema colonial atlântico. Ele argumenta que a dependência do trabalho escravo e a exportação de produtos primários foram desenvolvidos para a manutenção do sistema mercantilista. IMPORTANTE Ainda que enriquecedora, a historiografia marxista não ficou isenta de críticas. Enquanto ofereceram ferramentas valiosas para analisar a estrutura econômica da colônia, alguns estudiosos argumentaram que essa abordagem poderia reduzir a complexidade da realidade colonial a meras relações desanimadas, negligenciando os aspectos culturais e sociais. Também relevante é a contribuição de Jacob Gorender, particularmente em seu livro “O escravismo colonial” (1978). Gorender analisa a escravidão como um modo de produção específico, integrando as relações sociais inerentes à sociedade escravocrata brasileira em sua totalidade. 13HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA U ni da de 2 A partir da segunda metade do século XX, a historiografia brasileira experimentou uma virada cultural e antropológica, movimento que influenciou profundamente os estudos sobre o período colonial. Ao invés de focar exclusivamente nas estruturas e políticas, os historiadores seguiram a dar atenção especial às expressões culturais, práticas cotidianas e relações interculturais que moldaram a formação da sociedade colonial. Um marco dessa virada é o trabalho de Sérgio Buarque de Holanda, especialmente em “Raízes do Brasil” (2015). Buarque de Holanda suportou o conceito de “homem cordial”, buscando entender as peculiaridades da formação social brasileira por meio de uma análise das mentalidades e dos comportamentos, e não apenas por meio de hemorragias ou políticas. Em uma visão mais antropológica, Darcy Ribeiro, em “O povo brasileiro” (1995), recomendou uma interpretação da história brasileira centrada nos processos de mestiçagem e nas “matrizes culturais” que originaram o povo brasileiro. Por meio de uma abordagem etno-histórica, Ribeiro destacou o papel dos indígenas, africanos e europeus na formação de uma identidade nacional plural e complexa. Outra contribuição relevante é a de Laura de Mello e Souza, em “Desclassificados do ouro” (1982), em que ela investiga a religiosidade popular no período colonial, incluindo práticas mágicas, feitiçaria e heresias. Esse estudoreflete a crescente atenção dada às práticas e crenças cotidianas, e não apenas às instituições e elites. 14 HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA U ni da de 2 Eventos-chave e figuras protagonistas da colonização As grandes navegações do final do século XV e início do século XVI não podem ser compreendidas sem um olhar para as transformações que vinham ocorrendo na Europa. A busca por rotas alternativas para as Índias, motivada tanto por fatores econômicos quanto religiosos, desencadeou uma série de viagens exploratórias pelo mundo (Fausto, 1995). A Renascença, movimento cultural que floresceu no continente europeu, trouxe consigo uma nova forma de ver o mundo. Era um período de ressurgimento intelectual, com destaque para as ciências e as artes. Simultaneamente, o crescimento do comércio estimulou a busca por novas rotas mercantis, especialmente para contornar os domínios árabes nas rotas tradicionais das especiarias. As palavras de Sérgio Buarque de Holanda explicaram essa realidade: “Na verdade, a descoberta do Brasil insere-se na expansão ultramarina europeia, cujas origens se fornecem ao desejo de superar a intermediação muçulmana no tráfico de produtos de luxo da Ásia” (Holanda, 2015). O protagonista dessa descoberta, Pedro Álvares Cabral, foi parte de uma expedição portuguesa que, oficialmente, tinha como objetivo chegar às Índias. Contudo, ao desviar sua rota, aportou em terras desconhecidas, em abril de 1500, marcando, assim, o início da história do Brasil como uma colônia portuguesa (Prado Júnior, 1942). Sobre a figura de Cabral, não podemos negligenciar os debates que questionam se a chegada foi um mero acidente de navegação ou um ato premeditado, embasado por possíveis informações anteriores sobre a existência de terras ao ocidente (Boxer, 1969). 15HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA U ni da de 2 Imagem 2.1 – Pedro Álvares Cabral Fonte: Freepik E, assim, com os primeiros contatos com os nativos e a celebração de uma missa em terras brasileiras, iniciou-se um capítulo repleto de transformações, encontros e desencontros que moldariam o futuro de uma nação. A formação territorial do Brasil não se limitou ao litoral avistado por Cabral em 1500. A expansão para o interior do continente foi resultado de uma série de dinâmicas que envolveram tratados internacionais, expedições exploratórias e, indubitavelmente, conflitos. O Tratado de Tordesilhas, assinado em 1494, foi um dos primeiros instrumentos que tentou definir limites entre as terras conquistadas por portugueses e espanhóis. Estabelecido pelo papa Alexandre VI, o tratado previa que as terras a oeste de uma linha imaginária pertenceriam à Espanha, enquanto as terras a leste seriam de Portugal. Contudo, como observa Oliveira Lima, “a linha de Tordesilhas, embora uma referência inicial, era uma abstração, pois as verdadeiras fronteiras seriam decididas não por acordos, mas pela ocupação efetiva” (Lima, 1920). 16 HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA U ni da de 2 VOCÊ SABIA? A formação territorial do Brasil colonial é um mosaico complexo, formado por acordos diplomáticos, expedições audaciosas e conflitos intensos, que, juntos, tecem o campo da expansão e da definição das fronteiras do país. As entradas e bandeiras foram expedições fundamentais para a extensão do território brasileiro. Essas iniciativas foram compostas, principalmente, por bandeirantes paulistas, que, motivados pela busca de metais preciosos, pelo apresamento de indígenas e pelo desejo de aventura, seguiram para o interior do continente. Raposo Tavares é uma das figuras emblemáticas desse movimento, sendo responsável por uma das maiores expedições que partiram de São Paulo em direção ao Amazonas, consolidando o domínio do português em vastas áreas. Além das expedições, é essencial mencionar os conflitos decorrentes da expansão. A Guerra dos Emboabas, por exemplo, foi uma disputa territorial e econômica entre paulistas e portugueses pelo domínio das minas de ouro na região de Minas Gerais. Conflitos como esse demonstram que o processo de expansão territorial estava repleto de disputas e rivalidades, tanto internas quanto externas (Furtado, 2007). Resistência e movimentos sociais A colonização do Brasil, marcada por processos de exploração, imposição cultural e sistemas de trabalho forçado, não se deu sem resistência. Desde os primeiros momentos da colonização até o final do período colonial, diversos grupos, dos indígenas aos escravizados africanos, protagonizaram movimentos de resistência que desafiaram a ordem estabelecida. Os indígenas, frequentemente retratados como passivos ou dóceis nos relatos dos primeiros colonizadores, foram, na 17HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA U ni da de 2 verdade, atores de resistência tenaz contra a invasão de suas terras e contra as tentativas de catequização. Eles frequentemente abandonavam as aldeias manipuladas pelos jesuítas (as chamadas “missões”) ou resistiam à escravização por meio de revoltas e fugas. No entanto, é necessário notar que a resistência indígena foi diversificada e complexa, variando entre grupos e regiões (Monteiro, 1994). Os africanos escravizados e seus descendentes foram, sem dúvida, um dos grupos mais resistentes durante o período colonial. A formação de quilombos, comunidades autônomas de pessoas fugitivas da escravidão, foi uma das manifestações mais emblemáticas dessa resistência. O Quilombo dos Palmares, sob a liderança de Zumbi, tornou-se um símbolo poderoso da luta contra a opressão e da busca pela liberdade (Gomes, 2006). Ao longo do período colonial, também houve movimentos de caráter político e social, como as revoltas coloniais, que objetivavam maior autonomia ou mesmo independência em relação à metrópole. Entre essas, podemos citar a Revolta de Beckman, a Guerra dos Emboabas e a Conjuração Mineira (Furtado, 2003). Essas manifestações de resistência mostram que o período colonial brasileiro não foi apenas marcado por submissão e opressão, mas também por lutas, desafios e pela busca incessante por autonomia e liberdade por parte de diferentes grupos sociais. Relação com os povos indígenas A chegada dos portugueses ao Brasil, em 1500, marcou o início de um complexo processo de proteção entre europeus e os diversos povos indígenas que habitavam o território. Essas relações não foram emocionantes, sendo influenciadas por 18 HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA U ni da de 2 interesses médicos, estratégias de dominação e também por trocas culturais e alianças estratégicas. IMPORTANTE É crucial compreender que a relação entre colonizadores e indígenas foi dinâmica e multifacetada, envolvendo conflitos, alianças, trocas culturais e resistências, moldando profundamente a história e a cultura brasileira. Inicialmente, os indígenas foram fundamentais para a sobrevivência dos primeiros colonizadores, ensinando técnicas de cultivo, pesca e sobrevivência nas florestas. Entretanto, a relação logo tomou contornos de exploração. No contexto da economia de escambo, indígenas forneciam madeira, peles e outros produtos em troca de objetos europeus. Esta relação, contudo, foi logo suplantada pela escravidão indígena, especialmente nas atividades açucareiras (Almeida, 1997). A Igreja Católica, por meio dos jesuítas, teve um papel central na relação com os indígenas durante os primeiros séculos da colonização. Com o objetivo de evangelização, os jesuítas criaram as missões, que reuniram comunidades indígenas sob uma estrutura teocrática. Essas missões muitas vezes serviram como espaços de proteção contra a escravidão, mas também foram cenários de aculturação, em que as tradições indígenas eram suprimidas em favor das normas e valores europeus (Leite, 1938). À medida que a expansão territorial avançava, muitos grupos indígenas foram deslocados ou exterminados, seja pela violência direta, seja pelas doenças trazidas pelos europeus. Contudo, outros grupos buscaram estratégias de resistência e negociação.Algumas nações, como os Guaranis, por exemplo, estabeleceram alianças com os colonizadores em determinados 19HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA U ni da de 2 contextos, enquanto em outros momentos optaram pela resistência armada (Metraux, 1926). Processos históricos determinantes: economia, sociedade e cultura Compreender a economia colonial brasileira exige um mergulho nos ciclos biológicos que sustentaram a colônia ao longo de três séculos. Esses ciclos, com suas características peculiares, representaram não apenas diferentes momentos psicológicos, mas também refletiram mudanças políticas, sociais e culturais. O primeiro ciclo econômico da colônia foi o do pau-brasil. Logo após a chegada dos portugueses, essa madeira de cores vermelhas se tornou o primeiro produto de exploração. Usando o sistema de feitorias e contando com o trabalho indígena, os portugueses extraíram a madeira para a produção de corantes na Europa. Como bem coloca Boxer (1969, p. 45), o pau-brasil representou a primeira interação econômica entre a colônia e a metrópole, delineando o caráter extrativista que marcaria boa parte da história colonial brasileira. No século XVI, o Brasil colonial passou a se centrar na produção de açúcar. O clima favorável do litoral nordestino, sobretudo em Pernambuco e na Bahia, aliado às técnicas agrícolas, fez desta região o principal polo açucareiro. A estruturação dos engenhos, grandes propriedades monocultoras, determinou não apenas a dinâmica da produção, mas também as relações sociais da época. A obra de Prado Júnior (1942) é crucial para entendermos essa fase, ressaltando que o “modo de produção escravista” foi o pilar desse ciclo. 20 HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA U ni da de 2 Ao final do século XVII e ao longo do século XVIII, as atenções se sucederam para as regiões de Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso devido às descobertas de jazidas de ouro. A corrida do ouro transformou a dinâmica colonial, gerando migrações internas e estabelecendo novas vilas e cidades. Furtado (2007) destaca a importância desse ciclo na formação do mercado interno colonial e na intensificação da escravização. Ao longo desses ciclos, a economia colonial manteve uma característica marcante: a dependência em relação à metrópole. Sodré (1962) aborda essa relação, destacando a estrutura colonial de exploração, na qual a colônia tinha como principal papel fornecer matérias-primas para Portugal, enquanto era obrigada a consumir os produtos manufaturados europeus. Ao analisar esses ciclos, torna-se evidente que a economia colonial foi profundamente marcada por relações de dependência e de exploração, configurando o que muitos historiadores chamam de “colonialismo de exploração”. Em cada ciclo, vemos refletidas não apenas decisões de motivação, mas também estruturas sociais, de autoridade e de tensão que seriam fundamentais na formação do Brasil. IMPORTANTE Nosso entendimento desses processos é enriquecido por análises historiográficas que nos permitem enxergar além dos fatos, compreendendo as estruturas e dinâmicas subjacentes à economia colonial. Sociedade colonial: hierarquias, dinâmicas sociais e tensões A sociedade colonial brasileira era complexa e multifacetada. Caracterizada por marcantes hierarquias sociais, ela foi moldada não apenas pelos fatores femininos, mas também 21HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA U ni da de 2 por culturais e políticas. Diferentes grupos sociais coexistiram, por vezes em harmonia, mas, muitas vezes, em conflito, delineando um quadro social repleto de tensão e de dinâmicas próprias. Imagem 2.2 – Hierarquia da sociedade colonial Brancos não proprietários, mestiços e, eventualmente, alguns indígenas e negros livres Escravizados Senhores de engenho e grandes proprietários de terras Fonte: Elaborado pela autoria (2023) No topo da pirâmide social estavam os “senhores de engenho” e os grandes proprietários de terras e minas. Estes, predominantemente portugueses ou descendentes diretos, detinham o poder econômico e político nas áreas coloniais. Como Holanda (2015) detalha, essa elite agrária e mineradora moldou significativamente as relações sociais e políticas da colônia. Abaixo deles estavam os brancos não proprietários, os mestiços e, eventualmente, alguns indígenas e negros livres. Esse grupo, devido à sua diversidade, ocupava diversas funções, desde artesãos e comerciantes até administradores menores. 22 HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA U ni da de 2 As dinâmicas entre os grupos eram permeadas por questões de poder, riqueza e, claro, cor da pele. A base da pirâmide era social formada pelos escravizados, em sua maioria africanos e seus descendentes. Eles eram a força de trabalho em engenhos, fazendas e minas. Como bem ressalta Florentino (1997), esses escravizados, apesar das adversidades, desenvolveram estratégias de resistência e construíram sua própria cultura, influenciando fortemente a formação da sociedade brasileira. A coexistência desses diferentes grupos gerou múltiplas tensões. Revoltas e insurreições, como a Revolta dos Malês e a Revolta de Beckman, evidenciam os conflitos latentes na sociedade colonial. Jancsó (2000) destaca que essas revoltas, embora, por vezes, compulsórias, evidenciam o descontentamento de certos setores da população com a ordem estabelecida. Outro ponto de tensão era a relação entre nativos e colonizadores. A resistência indígena, materializada, por exemplo, nas Confederações dos Tamoios, contrastava com os empreendedores missionários, principalmente dos jesuítas, que buscavam “pacificar” e converter os indígenas, conforme ilustrado por Leite (1938). Cultura colonial: sincretismo, religiosidade e expressões artísticas O Brasil colonial foi palco de intensas trocas culturais. Diferentes povos, trazendo suas tradições, religiões e manifestações artísticas, coexistiram e interagiram em terras brasileiras, dando origem a uma cultura rica, plural e, muitas vezes, sincrética. 23HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA U ni da de 2 • Sincretismo e religiosidade Desde o início da colonização, a interação entre os povos indígenas, africanos e europeus gerou um ambiente propício para o sincretismo religioso. O candomblé é uma das manifestações mais evidentes desse sincretismo, combinando elementos das religiões africanas, indígenas e do catolicismo. Prandi (2001) analisa esse fenômeno, detalhando como rituais e crenças de origens tão distintas se fundiram e se reinventaram no território brasileiro. Ao mesmo tempo, a Igreja Católica teve papel preponderante na formação cultural da colônia. Missões jesuíticas buscavam evangelizar os indígenas, mas, ao mesmo tempo, absorviam elementos das culturas locais. Boxer (2002) destaca a atuação dos jesuítas e do seu papel na formação da cultura religiosa brasileira. • Expressões artísticas A arte colonial brasileira é marcada pela confluência de influências. Na arquitetura, o barroco mineiro, com suas igrejas ornadas e esculturas específicas, é um reflexo do encontro da estética europeia com a mão de obra e a criatividade nacional. Bury (2006) explora essa interação, destacando a representação máxima dessa fusão artística na figura de Aleijadinho. A música, por sua vez, também foi palco de fusões. Lundu e modinhas, por exemplo, são expressões que mesclam ritmos africanos, europeus e indígenas, criando um som genuinamente brasileiro. Tinhorão (1998) destaca a rica diversidade musical do período colonial e sua influência na música brasileira posterior. 24 HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA U ni da de 2 SAIBA MAIS Amplie ainda mais os seus estudos lendo o artigo: “O ‘Brasil-Colônia’ em perspectiva historiográfica”. Nele é retratada uma entrevista com o historiador João Fragoso, na qual são discutidos pontos relevantes sobre os desafios atuais do campo da história econômica por meio de estudos contemporâneos sobre história colonial. Para ter acesso, basta clicar aqui. https://www.cafehistoria.com.br/entrevista-com-joao-fragoso/25HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA U ni da de 2 RESUMINDO E então? Gostou do que lhe mostramos? Aprendeu mesmo tudinho? Agora, só para termos certeza de que você realmente entendeu o tema de estudo deste capítulo, vamos resumir tudo o que vimos. Você deve ter aprendido que a historiografia não é apenas o registro do que aconteceu, mas, sim, uma interpretação desses eventos à luz das correntes de pensamento e paradigmas de cada época. Assim, ao analisarmos as principais correntes historiográficas do Período Colonial, enfatizamos que a história do Brasil colonial foi interpretada e recontada de diferentes formas ao longo do tempo, desde abordagens tradicionais até perspectivas marxistas, culturais e antropológicas, revisionistas e da nova história. O período colonial brasileiro não foi estático, mas marcado por eventos-chave e figuras protagonistas que moldaram o destino da nação. Desde a chegada dos portugueses, em 1500, passando pela expansão territorial, a complexa economia colonial, com seus ciclos psicológicos, até os movimentos sociais e a relação intrincada com os povos indígenas, exploramos os principais episódios e personalidades que deixaram sua marca nessa era. Por último, mergulhamos nos processos históricos determinantes que estruturaram a economia, a sociedade e a cultura do Brasil colonial. Entendemos como os ciclos econômicos, como o da cana-de- açúcar e do ouro, influenciaram a organização social, estabelecendo obediências e dinâmicas específicas. Além disso, apreciamos a rica diversidade cultural resultante do sincretismo, da religiosidade e das manifestações artísticas da época, evidenciando quão multifacetada era a cultura colonial. Espero que, com esta jornada pelo primeiro capítulo, você tenha ampliado sua visão sobre a historiografia do período colonial brasileiro e esteja pronto para os próximos desafios que virão em nossa caminhada pela história do Brasil. 26 HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA U ni da de 2 Interpretações sobre a chegada dos portugueses OBJETIVO Ao término deste capítulo, você será capaz de distinguir as diversas interpretações sobre a chegada dos portugueses e o início da colonização no Brasil. E então? Motivado para desenvolver esta competência? Vamos lá. Avante! Narrativas tradicionais versus revisões contemporâneas O ato de revisitar e compreender as narrativas históricas não é apenas um exercício acadêmico, mas uma prática necessária para a construção e a consolidação da identidade de um povo e de uma nação. Como afirmou o historiador francês Marc Bloch: “A incompreensão do presente nasce fatalmente da ignorância do passado” (Bloch, 2001, p. 58). Portanto, entender a forma como os eventos são narrados e recontados ao longo do tempo é fundamental para a compreensão do presente e a projeção do futuro. Nesse contexto, a história da chegada dos portugueses ao Brasil não está isenta de interpretações e reinterpretações. Em um primeiro momento, podemos identificar as narrativas tradicionais, aquelas que, por muito tempo, formaram a base do entendimento comum sobre esse período. Essas narrativas, muitas vezes, são impregnadas de uma visão eurocentrista e triunfalista, em que o “descobrimento” é visto quase como um feito heroico e civilizatório. 27HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA U ni da de 2 Imagem 2.3 – História da chegada dos portugueses ao Brasil Fonte: Freepik Por outro lado, as últimas décadas foram marcadas por intensos debates acadêmicos e por uma série de revisões contemporâneas. Esses novos olhares trazem à tona vozes até então marginalizadas, como as dos povos indígenas e dos negros escravizados, questionando e reconstruindo a narrativa dominante. Como José Carlos Reis destaca, “a historiografia não é uma simples descrição do passado, mas uma interpretação, fruto de escolhas e posicionamentos do historiador” (Reis, 2007, p. 45). IMPORTANTE A dualidade entre essas narrativas é mais que uma disputa por versões do passado. Ela reflete as mudanças sociais, políticas e culturais pelas quais o Brasil passou e ainda passa. As narrativas históricas não são estáticas; elas evoluem à medida que novas perspectivas são introduzidas e que novas vozes são ouvidas. Vejamos um pouco mais sobre cada uma delas. O processo de construção das narrativas tradicionais em torno da chegada dos portugueses ao Brasil está atrelado, em grande medida, à própria formação do Estado-nação brasileiro 28 HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA U ni da de 2 e ao desenvolvimento de um sentimento nacionalista. Essas narrativas emergiram em um contexto no qual a nação buscava consolidar sua identidade, muitas vezes à custa da simplificação e da glorificação de eventos passados. A “descoberta do Brasil”, como amplamente ensinada em escolas e difundida em livros didáticos durante séculos, foi retratada como um marco heroico de Pedro Álvares Cabral e sua esquadra. O termo “descoberta”, em si, já carrega uma visão eurocentrista, sugerindo que o território brasileiro só passou a existir para a história a partir da chegada dos europeus. Freyre (2006) é um dos autores que, em sua obra “Casa-grande & Senzala”, oferece uma visão idílica da colonização portuguesa, exaltando a miscigenação como característica positiva e formadora da nação. As narrativas tradicionais também tendem a minimizar os conflitos e as resistências dos povos indígenas. Estes são, frequentemente, retratados como seres dóceis, inocentes e, em alguns casos, até mesmo como “selvagens” que necessitavam da “civilização” trazida pelos colonizadores. Essa perspectiva reflete uma visão etnocêntrica, em que o indígena é visto a partir de um prisma europeu, desconsiderando suas complexas estruturas sociais, culturais e políticas. Buarque de Holanda (2015), em “Raízes do Brasil”, aborda a formação da sociedade brasileira sob uma perspectiva que, ainda que crítica em alguns aspectos, enquadra-se nas narrativas tradicionais. Além disso, tais narrativas frequentemente glorificam os feitos colonizadores, negligenciando as tensões, explorações e brutalidades que também marcaram o período. O processo de colonização é, em muitas dessas narrativas, simplificado, omitindo- se episódios de resistência, conflitos e subjugações. Com o avanço dos estudos historiográficos e de uma maior conscientização sobre a diversidade e a complexidade dos 29HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA U ni da de 2 processos históricos, as revisões contemporâneas têm desafiado as narrativas tradicionais sobre a chegada dos portugueses e o início da colonização no Brasil. IMPORTANTE Essas revisões surgem em um contexto de questionamento global de visões eurocêntricas e coloniais e do reconhecimento da necessidade de se incorporar vozes historicamente marginalizadas. Uma das principais críticas às narrativas tradicionais é a própria noção de “descoberta”. Historiadores contemporâneos, como Schwartz (1993), argumentam que o termo reforça uma visão unilateral e eurocentrista da história, ignorando a presença e a cultura dos povos indígenas que habitavam o território há milênios. O olhar contemporâneo também busca resgatar a agência dos povos indígenas durante a colonização. Contrapondo-se à visão de passividade ou até mesmo de “invisibilidade”, estudos recentes destacam a resistência, as alianças, negociações e estratégias de sobrevivência dos indígenas diante da invasão europeia. Monteiro (1994) é um exemplo de autor que se debruça sobre a resistência indígena, desmistificando a ideia de que os nativos aceitaram pacificamente a dominação. Há também uma crescente atenção à interculturalidade da colonização. Os contatos entre portugueses e indígenas não foram meramente de subjugação ou aculturação, mas também de trocas. Gomes (1996) enfatiza como as fronteiras culturais foram locais de encontro, em que ambas as partes modificaram e foram modificadas. Ao abordar as narrativas tradicionais e as revisões contemporâneas sobre a chegada dos portuguesese o início da colonização do Brasil, é fundamental identificar não apenas as 30 HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA U ni da de 2 distinções, mas também os pontos em comum. A historiografia, sendo uma disciplina em constante evolução, não descarta completamente versões anteriores, mas busca expandi-las, complementá-las e, em alguns casos, corrigi-las. Vejamos as principais convergências e divergências entre elas: • Convergências • A importância do período colonial: tanto as narrativas tradicionais quanto as contemporâneas reconhecem a relevância do período colonial na formação da sociedade brasileira. Aspectos como economia, cultura e relações sociais têm suas raízes neste período. • O papel dos portugueses: ambas as perspectivas concordam que os portugueses desempenharam um papel crucial na formação do Brasil colonial. As diferenças estão, principalmente, em como esse papel é interpretado e em que contextos. • Divergências • Visão dos povos indígenas: enquanto as narrativas tradicionais tendem a colocar os indígenas em um papel passivo ou mesmo secundário, as revisões contemporâneas buscam reverter essa perspectiva, destacando a agência, resistência e contribuições desses povos à história brasileira. • Terminologia e conceitos: termos como “descoberta” e “conquista”, frequentemente usados em narrativas tradicionais, são questionados e até rejeitados por abordagens contemporâneas devido às suas conotações eurocêntricas e imperialistas. • Interculturalidade: enquanto narrativas mais antigas podem retratar a colonização como um processo 31HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA U ni da de 2 unilateral de imposição da cultura portuguesa sobre os nativos, as revisões contemporâneas enfatizam a interculturalidade, as trocas e a formação de uma cultura híbrida. A chegada dos portugueses sob a ótica indígena O encontro entre os portugueses e os indígenas no Brasil não foi somente um choque de culturas, mas um entrelaçamento de histórias e destinos. Uma análise cuidadosa revela as complexidades e nuances desse primeiro contato, principalmente quando examinamos a perspectiva dos povos nativos. Os registros dos primeiros contatos descrevem os indígenas curiosos com a chegada daqueles homens tão diferentes. Essa curiosidade, entretanto, era permeada por uma mistura de fascínio e apreensão. Segundo o cronista português Pero Vaz de Caminha, em sua célebre “Carta do achamento do Brasil” (1500), ao desembarcar, os portugueses foram recebidos com sinais de paz, mas também com uma clara cautela por parte dos indígenas (Caminha, 1500). No entanto, ao olharmos para narrativas orais e mitos indígenas, percebemos que essas memórias se expandem e se transformam. Muitos grupos indígenas, como os Tupinambá, descreveram os portugueses como “maíra” – seres míticos que possuíam habilidades sobrenaturais, mas também podiam ser perigosos (Viveiros de Castro, 1992). Os “homens barbudos”, como frequentemente eram chamados, não se enquadravam completamente na cosmologia indígena. A visão dos navios, grandes “casas flutuantes”, e dos homens com roupas que cobriam quase todo o corpo, causou 32 HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA U ni da de 2 espanto. O mito dos “homens barbudos” que vieram do mar é, portanto, uma representação simbólica dessa tentativa de compreender e contextualizar esses novos visitantes dentro da cosmogonia indígena. O poeta e líder indígena Ailton Krenak, em seus relatos e escritos, argumenta que, para muitos povos indígenas, a chegada dos europeus foi como um “fim do mundo”, uma ruptura drástica que desafiou e transformou suas concepções de mundo (Krenak, 2019). Nesse sentido, as narrativas míticas não são apenas histórias fantasiosas, mas tentativas de compreender e de dar sentido àquele momento transformador. O primeiro contato, portanto, não foi uma simples troca ou encontro, mas um complexo processo de negociação cultural, em que os indígenas tentaram, por meio de seus próprios sistemas simbólicos e narrativos, entender e se relacionar com esses novos “outros”. As relações iniciais entre os portugueses e os povos indígenas não se limitaram ao mero espanto ou à tentativa de contextualização. Muito rapidamente, as interações práticas se tornaram cruciais para o sucesso da exploração portuguesa e para a sobrevivência e autonomia de diversos grupos indígenas. IMPORTANTE As relações iniciais entre portugueses e indígenas foram marcadas por uma interdependência complexa, em que cooperação e conflito coexistiam, moldando os primeiros capítulos da história brasileira. Para os portugueses, o território brasileiro era vasto, desconhecido e repleto de desafios geográficos. A selva densa, os rios caudalosos e a fauna e a flora desconhecidas transformavam a exploração em uma empreitada arriscada. Dada essa realidade, os povos indígenas, com seu profundo conhecimento da terra, 33HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA U ni da de 2 tornaram-se parceiros imprescindíveis. Muitos grupos indígenas atuaram como guias, conduzindo os portugueses por trilhas e caminhos fluviais e ajudando-os a encontrar recursos valiosos (Monteiro, 1994). Essa cooperação estendia-se ao campo da linguagem. Os indígenas desempenharam um papel fundamental como intérpretes. O “língua” – termo utilizado para se referir aos intérpretes indígenas – era, muitas vezes, a ponte comunicativa entre os portugueses e diferentes tribos, facilitando não só o diálogo, mas também as negociações comerciais e políticas (Fausto, 1995). No entanto, essa relação era recíproca. Enquanto os portugueses buscavam guias e intérpretes, os indígenas viam nas alianças com os europeus uma oportunidade para potencializar suas próprias disputas tribais. Muitas vezes, grupos indígenas buscavam a parceria dos portugueses para obter vantagens sobre tribos rivais, seja por meio do acesso a armas de fogo ou pela proteção militar (Schwartz, 1993). O comércio entre portugueses e indígenas também floresceu. Itens como espelhos, facas e miçangas eram trocados por produtos locais, como o pau-brasil e alimentos. Porém, mais do que uma simples troca de mercadorias, esse comércio representava um intercâmbio cultural, em que valores, desejos e aspirações eram negociados e redefinidos (Monteiro, 1994). Apesar das alianças e interações pacíficas, a relação entre os indígenas e os colonizadores portugueses foi, em muitos momentos, marcada por resistência e confronto. Os povos indígenas, reconhecendo as ameaças que os portugueses representavam para suas terras, culturas e sua autonomia, desenvolveram diversas estratégias de resistência contra os invasores. 34 HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA U ni da de 2 A guerrilha foi uma das táticas mais eficazes utilizadas pelos indígenas. Familiarizados com o território e usando o elemento-surpresa a seu favor, os guerreiros indígenas frequentemente lançavam ataques rápidos contra expedições portuguesas, desorientando e causando baixas significativas nos colonizadores. Esses ataques, muitas vezes, eram realizados em locais estratégicos, como passagens de rios e trilhas, desestabilizando as tentativas portuguesas de avanço e de estabelecimento (Souza, 2003). Outra estratégia comum era a criação de refúgios em locais de difícil acesso, como áreas montanhosas, cavernas ou florestas densas. Esses refúgios eram verdadeiros redutos de resistência, em que os indígenas podiam se reorganizar, planejar novos ataques e se proteger dos avanços colonizadores (Cunha, 1987). No entanto, talvez o aspecto mais notável da resistência indígena tenha sido a capacidade de formar alianças entre diferentes grupos. Reconhecendo o poder e a ameaça que os portugueses representavam, muitas tribos, antes rivais, uniram-se em confederações para enfrentar o inimigo comum. Essas alianças ampliavam o poder militar e estratégico dos indígenas, permitindo a coordenação de ataques e a troca de informações valiosas sobre os movimentos dos colonizadores (Almeida,1997). Transformações culturais e sociais O encontro entre os indígenas e os colonizadores portugueses desencadeou uma série de transformações culturais e sociais sem precedentes. Diferentemente do confronto direto e violento, essas transformações foram processos mais sutis e complexos que, ao longo do tempo, moldaram a identidade e as tradições das comunidades envolvidas. 35HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA U ni da de 2 Imagem 2.4 – Transformações culturais Fonte: Freepik • Língua e comunicação: um dos primeiros desafios do encontro entre os dois grupos foi a barreira linguística. Nesse cenário, o tupi, língua falada por diversos grupos indígenas, tornou-se uma linguagem franca na costa brasileira. O surgimento da língua geral, ou “nheengatu” – uma simplificação do tupi –, foi um resultado dessa interação, permitindo uma comunicação mais fluida entre portugueses e indígenas (Fernandes, 1999). • Religiosidade e sincretismo: a tentativa de catequização dos indígenas pelos missionários jesuítas também trouxe consigo a fusão de crenças e práticas religiosas. Enquanto alguns indígenas adotaram aspectos do catolicismo, muitos incorporaram os santos católicos ao seu panteão tradicional. Esse sincretismo religioso é evidente até hoje em celebrações e festas tradicionais (Silva, 2002). • Organização social – o modo de vida comunal dos indígenas foi profundamente afetado pela 36 HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA U ni da de 2 introdução do sistema de “aldeamentos”. Estes eram assentamentos geridos por missionários, nos quais os indígenas eram incentivados a se fixar, cultivar a terra e adotar costumes europeus. A consequência disso foi uma mudança nas dinâmicas de poder, nas relações familiares e na organização social tradicional (Gomes, 1996). • Arte e expressão: a influência mútua entre indígenas e portugueses também se manifestou nas artes. A música, a dança, a pintura e a escultura refletiam essa fusão cultural. Por exemplo, a arte plumária indígena, que originalmente tinha significados religiosos e guerreiros, passou a ser incorporada em rituais e vestimentas católicas (Oliveira, 2010). Essas transformações culturais e sociais não foram unidirecionais. Ambos os grupos – indígenas e portugueses – foram transformados, reconfigurando suas identidades e seus modos de vida à luz de novas realidades e interações. Interesses geopolíticos e o contexto internacional na época No limiar da era moderna, a Europa viu-se envolvida em uma série de transformações que impulsionaram nações à exploração dos oceanos. Essa ânsia de ultrapassar fronteiras marítimas foi impulsionada por interesses econômicos, políticos e estratégicos, levando ao que ficou conhecido como a “corrida das navegações”. No século XV, Portugal e Espanha lideraram a corrida das navegações em busca de rotas alternativas às Índias, fugindo da intermediação árabe no comércio de especiarias. Essa corrida não 37HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA U ni da de 2 foi apenas uma busca por rotas comerciais, mas também uma afirmação do poderio marítimo de ambas as nações (Boxer, 2002). Na tentativa de evitar conflitos por territórios recém- descobertos, Portugal e Espanha assinaram o Tratado de Tordesilhas (1494), estabelecendo uma divisão das novas terras. Esse tratado não apenas definia territórios, mas demonstrava a influência da Igreja Católica nas decisões geopolíticas da época (Prado Jr., 1942). O interesse europeu nas novas terras não era meramente exploratório. Havia um desejo de acesso a riquezas, seja por meio da extração direta (como o pau-brasil) ou por meio de rotas comerciais. Além disso, o controle de territórios nas Américas se tornou símbolo de poder e de influência global (Fausto, 1995). Apesar do Tratado de Tordesilhas, o século XVI foi marcado por conflitos entre potências europeias nas Américas. A França, por exemplo, desafiou a autoridade ibérica com sua presença no Brasil, como na França Antártica. A complexa rede de alianças e de rivalidades moldou a política colonial nas Américas (Schwartz, 1988). Os interesses geopolíticos europeus nas Américas tiveram consequências duradouras para os povos indígenas e o desenvolvimento das colônias. A colonização não foi apenas uma transferência de população, mas um projeto geopolítico e econômico que remodelou as Américas (Mota, 2000). Ao longo do período colonial, o equilíbrio de poder entre as potências europeias na América oscilou, mas os interesses geopolíticos sempre estiveram no cerne das decisões tomadas por essas metrópoles. 38 HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA U ni da de 2 RESUMINDO E então? Gostou do que lhe mostramos? Aprendeu mesmo tudinho? Agora, só para termos certeza de que você realmente entendeu o tema de estudo deste capítulo, vamos resumir tudo o que vimos. Você deve ter aprendido que as narrativas tradicionais versus as revisões contemporâneas nos ensinam a importância de questionar e revisitar as histórias que foram contadas ao longo dos anos. Enquanto as versões tradicionais costumam apresentar uma chegada pacífica e heroica dos portugueses, as revisões contemporâneas buscam aprofundar-se em perspectivas mais diversas e críticas, considerando múltiplas vozes e fontes. Ao explorar a chegada dos portugueses sob a ótica indígena, percebemos que os primeiros contatos não foram simples ou unilaterais. Os indígenas tinham suas próprias interpretações sobre aqueles “homens barbudos” que surgiram do mar. Ao longo do tempo, esses encontros se traduziram em relações de aliança, comércio, conflito e resistência, mostrando a riqueza de perspectivas que podem ser encontradas quando se amplia o foco do estudo. E não podemos esquecer que a chegada dos portugueses ao Brasil não ocorreu em um vácuo. Os interesses geopolíticos e o contexto internacional da época nos mostram que as navegações estavam inseridas em um jogo global de poder. A busca por novas terras, rotas comerciais e riquezas naturais estava intimamente ligada à rivalidade entre as potências europeias e aos tratados que buscavam definir esferas de influência. Agora, com essa bagagem em mãos, estamos prontos para seguir em nossa jornada, explorando ainda mais profundamente os meandros da historiografia brasileira. Nós nos vemos no próximo capítulo! 39HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA U ni da de 2 Abordagens historiográficas sobre sociedade colonial OBJETIVO Ao término deste capítulo, você será capaz de discernir sobre as abordagens historiográficas da sociedade colonial, incluindo a escravidão, as relações de poder e as culturas indígenas. E então? Motivado para desenvolver esta competência? Vamos lá. Avante! Dinâmicas da escravidão: abordagens historiográficas sobre a experiência afro-brasileira A história da escravidão no Brasil colonial é profundamente interligada à formação econômica e social do país. Não é possível falar da colonização brasileira sem se referir à experiência africana, tão enraizada nas dinâmicas que moldaram a identidade nacional. O Brasil foi o último país do ocidente a abolir a escravidão, em 1888, uma mancha que perdura até os dias de hoje, mas como se deu a introdução da escravidão em terras brasileiras? Para entender isso, é preciso recuar no tempo e mergulhar no contexto das Grandes Navegações. Quando os portugueses chegaram ao Brasil, em 1500, já tinham conhecimento e experiência no tráfico transatlântico de escravizados africanos, especialmente por meio de suas feitorias na costa africana (Mota, 2004). O interesse inicial não era estabelecer a escravidão, mas, diante das potencialidades econômicas da terra 40 HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA U ni da de 2 descoberta, os colonizadores viram na mão de obra escravizada africana uma solução para a falta de mão de obra. No século XVI, com a introdução da cultura açucareira, tornou-se evidente a necessidade de uma força de trabalho intensiva e constante. A escravidão indígena, apesar de ter sido a primeira alternativa,enfrentou resistências e limitações, como a atuação dos jesuítas em defesa dos indígenas (Freitas, 2007). Assim, os africanos escravizados tornaram-se a principal mão de obra nas plantações de açúcar e, posteriormente, em outras atividades econômicas. A dimensão desse tráfico pode ser percebida em números. Estima-se que cerca de 4,9 milhões de africanos foram trazidos ao Brasil entre os séculos XVI e XIX, o que faz do Brasil o país que mais recebeu africanos escravizados nas Américas (Slenes, 2007). VOCÊ SABIA? O impacto da escravidão não se limitou à economia. A presença africana influenciou fortemente a cultura, a religião e a sociedade brasileiras, criando um mosaico de tradições e de práticas que ainda se refletem na atualidade. Na historiografia brasileira, o tema da escravidão, por seu peso e sua importância, recebeu diversas interpretações ao longo dos anos. Em uma abordagem mais tradicional, existem algumas vertentes que predominaram até meados do século XX. Inicialmente, os trabalhos sobre a escravidão eram muito influenciados por uma visão eurocêntrica e paternalista. Afirmava-se que a escravidão no Brasil tinha sido “mais branda”, se comparada à de outros países americanos, especialmente os Estados Unidos. Essa perspectiva foi amplamente divulgada por autores como Gilberto Freyre, em sua obra “Casa-grande & Senzala” (2006). Segundo essa visão, o caráter miscigenador da 41HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA U ni da de 2 sociedade brasileira e a alegada benevolência dos senhores teriam atenuado a violência da escravidão (Freyre, 2006). A noção de que a escravidão brasileira teria sido “benigna” ou “amena” encontrou respaldo em muitos trabalhos que se seguiram. Essa abordagem valorizava os aspectos culturais da mistura de raças, mas negligenciava as crueldades e a desumanização intrínsecas ao sistema escravagista. Outra vertente tradicional, embora crítica da primeira, baseava-se em análises mais econômicas. Nessa perspectiva, a escravidão era vista quase que exclusivamente como um sistema de trabalho vinculado à produção açucareira e, mais tarde, ao café. Autores como Caio Prado Júnior, em sua “Formação do Brasil contemporâneo” (1942), abordaram a escravidão focando na sua relação com o modo de produção e com as relações de classe, sem se aprofundar nas vivências e resistências dos escravizados. No último terço do século XX, a historiografia brasileira vivenciou uma reviravolta significativa na forma como tratava a escravidão, impulsionada, em grande medida, pelas visões revisionistas. IMPORTANTE Essas visões revisionistas, inspiradas por movimentos sociais, demandas por direitos civis e novas abordagens acadêmicas, trouxeram à tona a experiência, resistência e agência dos próprios escravizados. Em contraposição à ideia de um escravo passivo, aceitando seu destino sem resistir, surgiu uma abordagem que valoriza a capacidade dos escravizados de agir e influenciar o mundo à sua volta. Stuart Schwartz, em “Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial” (1988), por exemplo, destaca a importância dos escravizados nas formações culturais e nas 42 HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA U ni da de 2 resistências cotidianas, mostrando que a escravidão no Brasil era tudo, menos estática (Schwartz, 1988). Outra figura notável nessa revisão é Sidney Chalhoub, que, em “Visões da liberdade” (1990), examina o período final da escravidão no Brasil, focando na cidade do Rio de Janeiro. Chalhoub ilumina as táticas usadas pelos escravizados para negociar, resistir e até mesmo alcançar a liberdade em uma sociedade que se esforçava para mantê-los subjugados. Suas análises mostram que, ao invés de vítimas indefesas, muitos escravizados eram protagonistas ativos de suas histórias, usando todos os meios disponíveis para desafiar e subverter o sistema (Chalhoub, 1990). Adicionalmente, essas novas perspectivas também destacaram formas de resistência coletiva, como os quilombos. Em “Rebeliões da senzala” (1987), Clóvis Moura ressalta o papel crucial dos quilombos, especialmente Palmares, como focos de resistência e de alternativas ao sistema escravagista, argumentando que eles representavam verdadeiros desafios ao status quo colonial (Moura, 1987). Essas visões revisionistas transformaram profundamente a compreensão da escravidão no Brasil, reconhecendo a profundidade, complexidade e humanidade da experiência escravizada, além de sua capacidade de resistência. Cultura e religiosidade afro-brasileira no período colonial A cultura e a religiosidade afro-brasileira têm raízes profundas no período colonial, constituindo um complexo mosaico de tradições, crenças e rituais transportados da África e reconfigurados no Novo Mundo. Essa rica tapeçaria cultural tornou- se uma parte integral da identidade brasileira, influenciando desde 43HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA U ni da de 2 as festas populares até as práticas religiosas que persistem até os dias de hoje. A chegada dos escravizados africanos ao Brasil trouxe consigo uma diversidade de etnias, cada uma com suas próprias tradições e crenças. No entanto, a brutal realidade da escravidão, muitas vezes, forçava essas diferentes comunidades a interagir e, por necessidade, a adaptar-se ao novo ambiente, mesclando e reinterpretando suas tradições ancestrais. No entanto, conforme destaca Nei Lopes, em “Enciclopédia brasileira da diáspora africana” (2004), esse processo não foi apenas de perda, mas também de resiliência e criação de novas formas culturais (Lopes, 2004). Imagem 2.5 – Religiões afro-brasileiras Fonte: Freepik Uma das manifestações mais evidentes dessa resiliência cultural é a formação das religiões afro-brasileiras, como o candomblé e a umbanda. Enquanto o candomblé se manteve mais fiel às tradições de culto aos orixás, incorporando elementos das religiões iorubá, fon e banto, a umbanda refletiu uma maior síntese, com o catolicismo popular e o espiritismo. Roger Bastide, 44 HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA U ni da de 2 em “O candomblé da Bahia” (1978), descreve como essas religiões não apenas sobreviveram, mas também prosperaram e resistiram à repressão e ao sincretismo forçado (Bastide, 1978). EXEMPLOS: a música e a dança também são testemunhos da persistência cultural afro-brasileira. O samba, por exemplo, tem suas origens nas batidas e nos ritmos africanos, evoluindo e se adaptando ao ambiente colonial e, posteriormente, imperial brasileiro. José Ramos Tinhorão, em “História social do samba” (1997), discute a trajetória do samba desde suas raízes afro-brasileiras até seu estabelecimento como símbolo nacional (Tinhorão, 1997). Inter-relações e tensões sociais A sociedade colonial brasileira, com sua estrutura heterogênea, era marcada por uma complexa rede de inter- relações e consequentes tensões sociais. Os desequilíbrios de poder, a diversidade étnica e as disparidades socioeconômicas geraram uma intricada dinâmica social que ainda reverbera na formação da identidade nacional brasileira. Vejamos um pouco mais. • Desigualdades e hierarquias: na estrutura colonial, a posição socioeconômica era estreitamente ligada à raça e à origem. Os portugueses e seus descendentes diretos, os chamados “brancos”, ocupavam o topo da hierarquia, enquanto os africanos escravizados e os indígenas eram relegados às posições mais baixas. Entre esses extremos, havia uma série de categorias intermediárias, como os mulatos, mestiços e pardos. Em sua obra “Raízes do Brasil”, Sérgio Buarque de Holanda (2015) destaca como a mobilidade social era 45HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA U ni da de 2 limitada e a posição racial e de origem determinava grande parte das oportunidades disponíveis. • Conflitos e resistência: a desigualdade intrínseca da sociedade colonial levou a numerosos conflitos. Os quilombos, como o famoso Quilombo dos Palmares, são exemplos notáveis de resistência à ordem estabelecida. Darcy Ribeiro, em “O povo brasileiro”(1995), descreve como essas comunidades autônomas representavam uma rejeição direta ao sistema colonial e à escravidão (Ribeiro, 1995). • Relações interétnicas: em meio às tensões, houve também momentos de colaboração e de mesclagem cultural. Casamentos inter-raciais, embora vistos com reservas por certos segmentos da sociedade, ocorriam e resultavam em uma complexa tapeçaria de identidades mestiças. Além disso, a culinária, a música e a religião também refletem essa interação, com elementos indígenas, africanos e europeus convergindo e coexistindo. Estruturas e relações de poder no período colonial Com a chegada dos portugueses, em 1500, iniciou-se um complexo processo de colonização que levou à formação do Brasil colonial, cujas estruturas e dinâmicas de poder continuariam a influenciar a nação até os dias atuais. Como menciona Freyre (2006), o Brasil foi, desde o início, fruto de um encontro entre culturas distintas, cujas relações se baseavam no domínio e na exploração, estabelecendo um sistema socioeconômico peculiar que definiu a trajetória brasileira durante os séculos seguintes. 46 HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA U ni da de 2 O sistema colonial adotado pelos portugueses no Brasil foi profundamente influenciado pelo mercantilismo europeu do século XVI. Essa política econômica, predominante entre os países europeus da época, buscava o acúmulo de metais preciosos, a promoção do equilíbrio favorável na balança comercial e a autossuficiência do Estado (Furtado, 2007). Nesse contexto, a colônia deveria ser uma fonte de matérias-primas para a metrópole e um mercado consumidor para seus produtos industrializados. O Brasil, com suas vastas terras férteis e seus recursos naturais, encaixava-se perfeitamente nesse esquema. A monocultura, principalmente a do açúcar e, mais tarde, do ouro e do café, tornou-se a principal atividade econômica, garantindo grandes lucros para a Coroa portuguesa e para os proprietários de terras brasileiros (Prado Jr., 1994). Politicamente, o sistema colonial foi marcado pela centralização do poder nas mãos da metrópole. Portugal exerceu um controle rígido sobre a colônia, determinando o que poderia ser produzido, comercializado e até mesmo quem poderia se estabelecer no território brasileiro. Essa estrutura hierárquica de poder visava a manter a ordem e maximizar os lucros da Coroa, muitas vezes à custa dos interesses e do bem-estar da população colonial (Mota, 2000). IMPORTANTE A economia e a política do período colonial estavam intrinsecamente ligadas, formando um sistema que, embora rentável para a metrópole e uma elite colonial, perpetuou desigualdades e injustiças que ainda reverberam no Brasil contemporâneo O aparato institucional no período colonial era um reflexo da necessidade da metrópole portuguesa de administrar, controlar e, sobretudo, explorar as vastas terras do Brasil. Múltiplas 47HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA U ni da de 2 instituições surgiram para efetivar esse controle e para garantir que os interesses da Coroa estivessem sempre em primeiro plano. • Capitanias hereditárias: uma das primeiras tentativas de colonizar e administrar o Brasil foi por meio do sistema de capitanias hereditárias. Implementado em 1534, esse modelo dividia o território brasileiro em faixas de terra que eram doadas a donatários, que, em troca, deveriam se responsabilizar pela colonização e defesa de sua área (Boxer, 1969). A ideia era descentralizar a administração e os custos da colonização, porém, devido a vários fatores, incluindo resistência indígena e falta de recursos, apenas algumas capitanias prosperaram, como a de Pernambuco e São Vicente. • Governo-geral: vendo a ineficiência do sistema de capitanias, a Coroa portuguesa instituiu o governo- geral em 1548. Essa foi uma tentativa de centralizar a administração colonial e de solucionar os problemas enfrentados pelas capitanias. O governador-geral tinha poderes administrativos, militares e judiciais, supervisando o funcionamento das capitanias e representando diretamente os interesses do rei (Fausto, 1995). • Câmaras municipais: eram órgãos de poder local e tinham responsabilidades como a administração dos recursos, manutenção da ordem e regulação dos preços. Geralmente, eram dominadas por membros da elite local, os “homens bons”, que utilizavam sua influência para garantir seus interesses (Schwartz, 1988). • Jesuítas e missões: a Igreja Católica, por meio da Companhia de Jesus, desempenhou um papel fundamental na colonização. Os jesuítas buscavam 48 HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA U ni da de 2 converter os indígenas ao cristianismo e os agrupavam em missões. Essas instituições, além de religiosas, tinham um caráter educativo e civilizatório. Contudo, também representavam uma forma de controle sobre a população indígena, assegurando que ela estivesse alinhada aos interesses da Coroa e da Igreja (Bethell, 1998). Cada uma dessas instituições teve suas particularidades e enfrentou seus próprios desafios ao longo do período colonial. No entanto, o objetivo subjacente era sempre o mesmo: garantir a efetiva colonização e a exploração do Brasil em benefício da metrópole. Dinâmicas sociais e estratificação O contexto colonial brasileiro foi palco de intensas transformações e de interações socioculturais, sendo determinante na formação da identidade nacional. O ambiente social era marcado por uma complexa teia de relações que se manifestava por meio de uma intricada estratificação. Imagem 2.6 – Elite colonial Fonte: Freepik 49HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA U ni da de 2 Como podemos observar a seguir: • A elite colonial: no topo da hierarquia social estavam os grandes proprietários de terras e os senhores de engenho. Eram, em sua maioria, portugueses ou descendentes diretos, que detinham o controle econômico e político nas regiões em que atuavam. Essa elite gozava de privilégios concedidos pela Coroa e, frequentemente, tinha suas posições reforçadas pelo casamento e pelas alianças familiares (Freyre, 2006). • Mestiçagem e surgimento das castas: o encontro entre europeus, indígenas e africanos deu origem a uma gama variada de mestiçagens. Surgiram, assim, designações como mulatos (descendentes de brancos e negros), mamelucos (descendentes de brancos e indígenas) e cafuzos (descendentes de negros e indígenas). Cada grupo ocupava uma posição específica no espectro social e a miscigenação tornou-se uma característica marcante da sociedade colonial (Ribeiro, 1995). • Escravizados e libertos: no âmago da sociedade estavam os escravizados africanos e seus descendentes. Estes, além de constituírem a principal mão de obra da economia colonial, influenciaram profundamente a cultura brasileira. No entanto, entre os escravizados, havia graduações: enquanto alguns trabalhavam nas duras atividades dos engenhos, outros desempenhavam funções urbanas e podiam até mesmo comprar sua alforria. Uma vez libertos, alguns conseguiam ascender socialmente, tornando-se artesãos, comerciantes ou até mesmo proprietários de escravos (Gomes, 2005). • Indígenas: os povos originários, após o contato, encontraram-se subjugados, sendo, muitas vezes, escravizados, catequizados ou exterminados. Suas 50 HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA U ni da de 2 terras e seus recursos foram expropriados. No entanto, resistiram e se adaptaram, contribuindo para a formação cultural e social do país (Monteiro, 1994). A dinâmica social no período colonial brasileiro não pode ser compreendida sem levar em conta essa estratificação. Ela é fundamental para entender as tensões, os conflitos e as negociações que marcaram a história e a formação do povo brasileiro. VOCÊ SABIA? O encontro entre europeus, indígenas e africanos resultou em uma diversidade de grupos mestiços, como mulatos, mamelucos e cafuzos, cada um com uma posição específica no espectro social. Essa miscigenação não apenas moldou a estrutura social, mas tambémteve um impacto profundo na cultura e na identidade brasileira. Resistência e contestação ao poder colonial A estruturação do sistema colonial, que concentrava poder e riquezas nas mãos de uma elite, inevitavelmente deu origem a uma série de resistências e contestações. As injustiças, as opressões e as desigualdades fomentaram diversas formas de revolta e de resistência ao sistema estabelecido pela metrópole. Vejamos: • Quilombos: fortalezas de liberdade – os quilombos eram comunidades formadas, na maioria das vezes, por escravos africanos fugidos. O mais célebre deles, o Quilombo dos Palmares, localizado no atual estado de Alagoas, tornou-se símbolo da resistência negra contra a escravidão e o sistema colonial. Sob a liderança 51HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA U ni da de 2 de Zumbi, Palmares resistiu por quase um século aos ataques portugueses, sendo um marco de luta e autonomia (Gomes, 1996). • Revoltas nativas: a opressão sobre os povos indígenas, que envolvia escravização e catequização forçada, gerou diversos levantes. Um dos mais notáveis foi a Confederação dos Tamoios, que uniu diversas tribos contra os portugueses e seus aliados indígenas (Monteiro, 1994). • Movimentos de emancipação: ao longo do período colonial, ocorreram diversas revoltas que buscavam maior autonomia ou até mesmo a independência de algumas regiões. A Revolta de Beckman, a Guerra dos Emboabas e a Revolta dos Mascates são exemplos de conflitos que tinham como pano de fundo as tensões entre os interesses locais e as imposições da metrópole (Prado Jr., 1942). • Contestação religiosa: o sistema colonial estava estreitamente ligado à Igreja Católica. No entanto, práticas religiosas africanas e indígenas resistiram e se mesclaram ao cristianismo. Também surgiram movimentos que questionavam a autoridade eclesiástica, como o sebastianismo e o messianismo, que, em alguns momentos, tiveram conotações de resistência ao poder colonial (Slenes, 2007). Esses movimentos de resistência e de contestação revelam a complexidade e as contradições do período colonial brasileiro. Eles desafiaram a ordem estabelecida e, em muitos casos, conseguiram redefinir o curso da história brasileira. 52 HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA U ni da de 2 Culturas indígenas e seu legado resiliente As culturas indígenas são parte integral da diversidade sociocultural do Brasil. Embora o período colonial tenha sido marcado por tentativas sistemáticas de desalojamento, escravização e assimilação desses povos, sua presença e influência persistiram e resistiram ao longo dos séculos, deixando legados indeléveis no país. • Diversidade linguística e cultural: ao contrário da narrativa homogeneizadora frequentemente apresentada, a paisagem indígena brasileira é de vasta diversidade. Na época do descobrimento, estima-se que havia mais de 1.000 línguas indígenas faladas, refletindo uma multiplicidade de culturas e de sociedades (Luciano, 2019). • Saberes tradicionais e ecologia: o conhecimento indígena sobre terra, plantas e animais é resultado de milhares de anos de observação e de interação. Esse saber é intrínseco à manutenção da biodiversidade e à sustentabilidade ecológica. Eles entendiam, por exemplo, técnicas de queimada controlada que evitavam grandes incêndios e promoviam a regeneração do solo (Diegues, 2000). • Relações sociais e organização: algumas sociedades indígenas, como os Tupinambás e os Guaranis, possuíam sistemas complexos de organização social, com hierarquias, cerimônias e rituais elaborados. Essas práticas resistiram em certa medida, adaptando-se e influenciando a formação da cultura brasileira (Fausto, 1995). 53HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA U ni da de 2 • Resistência e legado: apesar das inúmeras adversidades, os povos indígenas não só resistiram como também se adaptaram, seja por meio de alianças estratégicas, migrações ou de resistência armada. Além disso, suas influências são observadas na gastronomia, na língua, nas artes e em muitos outros aspectos do dia a dia brasileiro (Oliveira, 2010). O legado resiliente das culturas indígenas ressalta a sua centralidade na história brasileira. Mais do que meros atores passivos, os indígenas foram e continuam sendo protagonistas ativos na construção e na resistência cultural do Brasil. 54 HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA U ni da de 2 RESUMINDO E então? Gostou do que lhe mostramos? Aprendeu mesmo tudinho? Agora, só para termos certeza de que você realmente entendeu o tema de estudo deste capítulo, vamos resumir tudo o que vimos. Você deve ter aprendido que a experiência afro- brasileira na colônia foi complexa e multifacetada. A historiografia tradicional, muitas vezes, retratou os escravizados de forma monolítica, mas as visões revisionistas têm destacado a resistência e as contribuições culturais desse grupo, que deixaram marcas indeléveis na formação do Brasil. Viu que o poder colonial não era apenas uma extensão da metrópole em terras brasileiras. Era uma construção única, influenciada por dinâmicas locais e internacionais. As instituições coloniais desempenhavam papéis vitais na manutenção desse poder, enquanto as estratificações sociais mostravam um panorama de hierarquias de relações tensas entre diferentes grupos. Compreendeu que as culturas indígenas são parte integral da diversidade sociocultural do Brasil e que deixou marcas indeléveis no país. Esperamos que, com essa jornada, você possa entender a sociedade colonial brasileira de uma maneira mais rica e matizada, reconhecendo as diversas camadas e nuances que a historiografia, em sua constante evolução, tem trazido à luz. 55HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA U ni da de 2 Métodos utilizados para reconstruir a história colonial do Brasil OBJETIVO Ao término deste capítulo, você será capaz de entender as fontes e os métodos utilizados pelos historiadores para reconstruir a história colonial brasileira, bem como o estudo e a análise de documentos oficiais, cartas, diários, relatos de viajantes, registros paroquiais, iconografia, entre outros. E então? Motivado para desenvolver esta competência? Vamos lá. Avante! Fontes primárias na reconstrução da história colonial As fontes primárias são como portais mágicos que nos permitem observar diretamente o passado, oferecendo uma visão sem filtros dos eventos, das mentalidades e nuances de uma época. E o que exatamente são essas fontes e por que são tão importantes para a reconstrução da história colonial brasileira? De forma simples, uma fonte primária é qualquer documento ou registro criado no momento ou muito próximo ao evento que está sendo estudado (Marques, 1994). Ela se contrapõe às fontes secundárias, que são interpretações e análises de tais eventos, realizadas posteriormente, muitas vezes por historiadores que analisam as fontes primárias. Estas fontes originais são consideradas a matéria-prima da pesquisa histórica. E é fácil entender o motivo. Imagine tentar compreender o processo de colonização brasileira sem acessar diretamente as cartas enviadas pelos colonizadores, os decretos 56 HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA U ni da de 2 oficiais, os diários dos missionários ou os registros de transações comerciais? Difícil, não é? (Cardoso, 2003) As fontes primárias nos oferecem uma perspectiva única, um vislumbre direto da vida como ela era. Elas não passaram pelo filtro da interpretação posterior, pelo menos não inicialmente. E essa imediatidade nos permite um acesso mais direto à mentalidade e à visão de mundo daqueles que viveram na época colonial (Ferreira, 2002). EXEMPLO: por exemplo, ao analisarmos uma carta pessoal de um senhor de engenho para um amigo em Portugal, podemos perceber suas preocupações diárias, sua relação com os escravizados, suas opiniões sobre as políticas da Coroa. Por meio desses fragmentos do cotidiano, somos capazes de construir uma imagem mais ampla da sociedade da época (Silva, 1998). No entanto, é fundamental