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O Mínimo sobre Saúde Mental

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O mínimo sobre saúde mental
Saulo Barbosa
1ª edição — março de 2024 — CEDET
Copyright by Saulo Barbosa 2024
Os direitos desta edição pertencem ao
CEDET — Centro de Desenvolvimento Profissional e Tecnológico
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EDITOR:
Felipe Denardi
REDAÇÃO:
Natalia Ruggiero
REVISÃO E PREPARAÇÃO:
Vitório Armelin
CAPA:
José Luiz Gozzo Sobrinho
DIAGRAMAÇÃO:
Virgínia Morais
REVISÃO DE PROVAS:
Elena Fiorin
Juliana Fernandes
Juliana Coralli
CONSELHO EDITORIAL:
Adelice Godoy
César Kyn d’Ávila
Silvio Grimaldo de Camargo
FICHA CATALOGRÁFICA
Barbosa, Saulo.
O mínimo sobre saúde mental / Saulo Barbosa
Campinas, SP: O Mínimo, 2024.
ISBN: 978-65-85033-30-5
1. Psicologia
I. Autor II. Título
CDD – 150
ÍNDICES PARA CATÁLOGO SISTEMÁTICO
1. Psicologia – 150
www.ominimoeditora.com.br
Reservados todos os direitos desta obra.
Proibida toda e qualquer reprodução desta edição por qualquer meio ou forma, seja ela eletrônica, mecânica, fotocópia,
gravação ou qualquer outro meio de reprodução, sem permissão expressa do editor.
Sumário
ONDE JÁ ESTIVEMOS?
A RESPOSTA EQUILIBRADA
AS FACULDADES HUMANAS
AS VIRTUDES
CONCLUSÃO
NOTAS DE RODAPÉ
D
ONDE JÁ ESTIVEMOS?
esde os primórdios da humanidade, o homem tem buscado compreender suas origens
e encontrar maneiras de lidar com as questões relacionadas à saúde mental. Os
primeiros registros de patologias psiquiátricas foram encontrados nos papiros egípcios de
Kahun, cerca de 2.000 anos antes de Cristo. Desde então, a humanidade tem percorrido
um longo caminho na busca por compreender a complexidade da mente humana. Para
entender o mínimo sobre saúde mental, é importante traçar um panorama histórico geral,
a fim de discutir em que ponto nos encontramos atualmente e qual é a resposta para os
desafios que enfrentamos hoje. Essa resposta passa, especialmente, pela abordagem da
Saúde Mental Integral.
Acredita-se que o termo encontrado nos papiros egípcios, histeria (do grego hystero,
“matriz”, “útero”), venha da convicção de que o útero seria um órgão independente, capaz
de se deslocar pelo corpo. Tal conceito foi também descrito por Hipócrates (460 a.C.)
como uma disfunção sexual. O útero ficaria mais leve e ascenderia para o hipocôndrio,
coração ou até o cérebro, o que resultaria nos sintomas que hoje associamos a crises de
ansiedade, como epigastralgia, dispneia, palpitações e desmaios.
Se essa era a concepção da patologia, você já pode imaginar quais eram os tratamentos...
Para as mulheres, recomendava-se o matrimônio. Já para as viúvas, o uso de fumigações
vaginais com plantas aromáticas era indicado para atrair o útero de volta ao seu lugar de
origem. Daí podemos imaginar a pobreza de concepção e recursos que tinham para lidar
com os problemas da época.
Avancemos no tempo para o século XVII. Veja como o adoecimento mental era descrito
naquela época:
Um membro da Câmara dos Comuns de um distrito irlandês disse: “Não há nada tão chocante quanto a loucura na
cabana do camponês irlandês... Quando um homem ou uma mulher forte é acometido pela doença, a única maneira
que eles têm de lidar com isso é fazendo um buraco no chão da cabana, não alto o suficiente para a pessoa ficar de pé,
com uma grade sobre ele para evitar que ela se levante. Esse buraco tem cerca de cinco pés de profundidade, e eles dão
comida a esse ser miserável ali, e ali ele geralmente morre”.1
O trecho acima é de uma reunião entre políticos, que falavam sobre a situação de uma
comunidade na Irlanda. As pessoas ficavam presas, em uma espécie de gaiola. Isso pode
parecer distante, mas, infelizmente, ainda hoje, em alguns lugares, é possível encontrar
famílias que lidam com o comprometimento mental confinando a pessoa em um quarto.
Durante o meu trabalho no sistema público, presenciei diversas vezes pacientes em crise
que destruíram pertences da casa, algumas vezes adquiridos após meses de economia, e vi
a medida ser adotada.
Mais adiante, na França do reinado de Luís XIV, foram criados dois grandes hospícios
em que se misturavam os criminosos, as pessoas que tinham transtorno mental e os
insanos. Isso advinha de um programa de hospitais psiquiátricos, chamados “hospitais
gerais”. Não se pareciam com os hospitais que temos hoje, mas eram
instituições de custódia.
Não havia uma concepção de terapia, a atitude perante o paciente era mais uma busca por
“redução de danos”: separava-se o doente da sociedade, para que ele não desse problemas,
e só.
Franz Mesmer (1734–1815), médico alemão, cunhou a teoria do magnetismo animal.
Segundo ele haveria, nos animais e nos seres humanos, uma espécie de energia vital, cujo
fluxo impedido era a causa do adoecimento mental. Uma espécie de imposição de mãos
teria o poder de desbloquear este fluxo. Registros da época retratam as reuniões para esses
tratamentos; os médicos usavam, além das mãos, cordas e algumas hastes de metal que
encostavam nos doentes como parte do tratamento.
Um pouco depois, tivemos Philippe Pinel (1745–1826), que é retratado como um
“libertador”, por resgatar, para o hospital, pessoas com problemas mentais das condições
sub-humanas em que estavam. A partir de então, a psiquiatria parte para esse novo rumo:
seu objetivo passa a ser transformar os manicômios em instituições de
humanitarismo terapêutico.
A ideia era reduzir ao máximo a violência depois que a pessoa já estava reclusa; mas,
como não tinham recursos, o que se fazia era criar um calendário de atividades rotineiras
que estimulavam a organiza ção, a disciplina e a higiene pessoal, dando origem aos
“Alienistas”.
Na virada do século XIX para o XX, tivemos Karl Jaspers (1883–1969), um filósofo,
autor de um livro clássico na psiquiatria, Psicopatologia Geral. A respeito dos tratamentos
para saúde mental, ele dizia o seguinte:
A percepção de que a investigação e a terapia científicas estavam estagnadas era comum nas clínicas psiquiátricas. As
grandes instituições para pessoas com doenças mentais eram mais grandiosas e higiênicas que nunca; porém, apesar
de sua dimensão, o melhor que podiam fazer para seus infelizes internos era moldar suas vidas da forma mais natural
possível. Quando a questão era tratar a doença mental, não havia basicamente nenhuma esperança.
Em suma, na psiquiatria, nós já passamos por coisas bastante bizarras — que, aliás, não
estão assim tão distantes de nós. Até recentemente a sociedade ainda buscava uma
explicação para os transtornos mentais. Na década de 50, Wilhelm Reich cunhou uma
teoria algo parecida à do magnetismo animal. Reich tinha uma caixa de madeira e metal
na qual as pessoas entravam, que supostamente seria um “acumulador de orgônio” (como
ele chamava essa espécie de energia que ficava acumulada na pessoa, em cujo fluxo estaria
a cura). Reich propunha curar grandes problemas, inclusive o câncer, não apenas
transtornos mentais. Sendo assim, o FDA passou a investigá-lo, e ele foi preso em 1954,
vindo a morrer em 1957 na prisão.
Com esse vácuo de informações a respeito da mente humana e seu funcionamento,
começaram a aparecer as explicações “psicodinâmicas”. Um exemplo é Leo Kanner
(1894–1981), e sua
teoria da “mãe geladeira”.
Se você tivesse um filho autista durante a década de 40 ou 50 e quisesse pagar o melhor
psiquiatra para entender a sua condição, entraria no consultório de Leo Kanner e ouviria
que um filho torna-se autista quando sua mãe não é capaz de estabelecer um vínculo
afetivo adequado com ele. Ao não receber o afeto que lhe seria devido, a criança se
fecharia no próprio mundo. Imagine você o sofrimento que isso causava!
No filme Temple Grandin, baseado em fatos reais, Claire Danes é uma jovem com
Autismo de Alto Funcionamento.2 O filme retrataa infância de Temple e a luta de sua
mãe para entender e ajudar sua filha. Em uma cena marcante, a mãe de Temple vai até o
consultório de um psicanalista que lhe dá justamente a explicação da “mãe geladeira”; mas
essa mãe, por força de temperamento e maturidade, recusa-se a aceitar aquele diagnóstico
superficial, fazendo o seguinte raciocínio: “Tenho outra filha e as tratei igualmente: criei-
as e amei-as da mesma maneira. No entanto, minha outra filha não tem este problema”.
Ela passa, então, a investir de forma intensa na vida de Temple chegando a colocá-la em
uma escola normal, numa época em que o ensino era separado para crianças com essa
condição. Temple, por um lado, apresentava sintomas clássicos do autismo, como
restrições sociais e crises de agitação psicomotora, e, por outro, possuía uma habilidade
extraordinária de processamento visual-espacial, pensando por meio de imagens. Ao
entrar em uma sala, por exemplo, ela poderia imediatamente calcular a área cúbica do
local e fazer relações geométricas apenas com um olhar. Outro episódio notável ocorre na
fazenda da tia de Temple, onde o sistema do abate de animais era caótico — os animais
dentro do curral eram “tocados de lá” de qualquer jeito, desciam uma rampa, passavam na
água para retirar os carrapatos, e só então seguiam para o restante do processo. A forma
como faziam deixava os animais ansiosos e irritados, e para cada cem animais que
passavam na água, um se afogava, gerando prejuízos. Temple entendeu, no instante em
que olhou para aquilo, o padrão de fuga adotado pelo gado quando o vaqueiro ali entrava
e desenvolveu um curral cíclico de tal modo que os animais ficassem calmos ao andar em
círculos. Assim ela acabou com o problema da morte precoce do gado e, hoje, mais de
60% dos matadouros americanos adotam o método criado por Temple. — Apenas um
exemplo para ilustrar a má compreensão das doenças psiquiátricas, e o desajuste com a
realidade de uma porção de teorias.
Sigmund Freud, o rei da psicodinâmica
Assim que entrei na residência de psiquiatria, ainda no primeiro ano, entendi que apenas
os remédios não seriam capazes de curar meus pacientes, e passei a buscar aprender mais
sobre terapias. A residência dispunha apenas de uma disciplina optativa, cuja linha
estudada era a psicanálise freudiana. Eu estudei com os melhores professores, mas aquilo
não entrava na minha cabeça.
Nós médicos temos uma sequência de aprendizado: trabalhamos com fluxogramas, uma
informação se encaixa na outra, tudo faz sentido. E na psicanálise não. Eu ouvia meus
professores discutindo dois casos clínicos com o mesmo problema e me parecia que tudo
era muito relativo: em um caso se faz uma coisa, no outro se faz outra completamente
diferente — às vezes até mesmo oposta — e eu não conseguia ver um padrão.
Hoje sei dar nome ao problema: a falta de base
antropológica de Freud.
Em resumo, Freud partia do princípio de que o centro da personalidade humana está nos
desejos do inconsciente — este lugar misterioso que existiria dentro de nós e que ninguém
consegue acessar muito bem, que não sabemos direito como funciona, e que cria uma
obscuridade em relação ao nosso “verdadeiro eu”.
Esse verdadeiro “eu escondido” de Freud quer coisas. Há, nele, a pulsão de morte e a
pulsão de vida. A pulsão de vida está muito ligada à libido — em Freud, quase tudo está
relacionado à sexualidade. Em determinado trecho de sua obra, ele claramente associa o
movimento de sucção do bebê a uma satisfação sexual, por exemplo.
Partindo desse princípio, o inconsciente, tecnicamente chamado de id, buscaria a
satisfação dos desejos e encontraria uma resistência, chamada por Freud de superego, que
seriam as restrições da cultura e da sociedade. Por exemplo, um homem que deseja se
relacionar sexualmente com muitas mulheres e que tenha sido criado numa família cristã
teve os desejos do id cerceados. Então, haveria uma eterna “briga” entre id e superego, e
no meio dela, há o ego, tentando articular as restrições do superego e os desejos do id.
Esse ego seria o “eu aparente”, aquilo que nós deixamos transparecer.
Em minha opinião há nisso um problema muito grave:
é como se, nas relações humanas, nunca
estivéssemos falando com a pessoa de verdade.
Você já deve ter visto alguma dessas interpretações psicanalíticas que dizem: “Ele falou
uma coisa, mas na verdade o significado profundo é outro”.
Sendo assim, nós nunca acessaríamos as pessoas de verdade. Imagino-me casado com
minha esposa, tentando conhecê-la profundamente, e no fundo estar me relacionando
com uma máscara: fazendo uma interpretação psicanalítica de tudo o que ela fala, todos
os seus gestos, todo seu comportamento. Mas segundo Freud há mesmo algo colocado à
frente porque se todos nós tivéssemos acesso aos desejos do id, o mundo seria uma
barbárie total, simplesmente estaríamos todos tentando saciar os próprios instintos, os
desejos do id.
O contato com a teoria mexeu comigo profundamente. Me vi fazendo o seguinte
questionamento: A psicanálise freudiana — linha mais utilizada pelos terapeutas
brasileiros — é o melhor que temos a oferecer a nossos pacientes? Não quero dizer com
isso que devemos jogar toda a psicanálise fora. Existem pontos positivos, como a
valorização que dá à fala; de fato é através dela que acessamos muito do mundo interior
das pessoas.
Em sua base antropológica, Freud teve grande influência de Darwin, e principalmente
de Nietzsche, o pai do niilismo, aquele que disse “Deus está morto”. Muitas pessoas
religiosas, aliás, se irritam com essa frase. Mas, na verdade, trata-se apenas de um
diagnóstico. Ao olhar para a realidade de seu tempo Nietzsche constatou que
o homem moderno estava vivendo como se não
acreditasse mais em Deus, vivendo como se Deus
não existisse.
Essa é a interpretação da frase. Ele deu um diagnóstico adequado. Realmente era aquilo
que estava acontecendo em seu tempo. O problema está na solução que propôs — a
transvaloração. Uma vez que o homem abandonou os valores transcendentes, propõe que
cada um coloque a sua vontade acima de tudo e rompa com as restrições sociais baseadas
nos antigos valores metafísicos. Com a transvaloração cada homem se torna seu próprio
Deus — e então, o mais forte vence. Aquele que tiver mais poder, mais dinheiro, mais
força. A transvaloração nada mais é que a criação de novos valores.
Com certeza o niilismo não é o melhor caminho, e é justamente o que está na base da
teoria de Freud.
A psicanálise é niilismo aplicado à psicoterapia.
Nietzsche foi o filósofo que Freud queria ser, e Freud, o psicólogo que Nietzsche gostaria
de ter sido.
É comum que alguém diga: “Estava com um problema no casamento, fui até um
psicólogo freudiano e ele sugeriu que eu poderia estar querendo uma aventura,
precisando aliviar tensões”; ou: “Fulano começou a fazer terapia e se separou”. Já vi casos
até mesmo de terapeutas oferecendo-se para ser o alívio do paciente ou recomendando
garotas de programa.
É verdade que há um problema moral nisso. Mas um terapeuta desta linha faz
exatamente o que a psicanálise propõe: oferece o alívio dos desejos inconscientes,
rompendo com as restrições do superego como se essa fosse a solução.
Freud também foi uma resposta à Era Vitoriana — uma época de muito valor às
aparências, ao parecer sobrepondo-se ao ser, com todas aquelas festas, roupas e “respeito
social”. Uma época em que no íntimo, a pessoa era horrível, mas para a sociedade passava
uma imagem de perfeição. Na verdade, sempre houve isso: pessoas revoltadas com a
própria época, e que, em vez de manter o que é bom e melhorar o que precisa, romperam
com tudo. Geralmente as consequências disso não são boas.
Mas Freud preocupa mais que Nietzsche, pois Nietzsche é um filósofo; e no fundo
poucas pessoas estão realmente atentas a eles. São ideias em meio a tantas outras. Eles têm
lá suas teorias e geralmente tudo acaba ali. Já Freud era médico. Neurologista. E apareceu
colocando-se como se tivesse feito uma grande descoberta científica, “revelando” como a
mente funciona. (Depois de todasaquelas teorias que mencionei no início, a sociedade
estava ávida por respostas).
Daí vem, por exemplo, a ideia de “dar vazão a seus sentimentos”, que ouvimos tanto nos
dias de hoje e que considero ser um dos nossos maiores problemas:
a psicanálise cultural.
Na nossa cultura, a ideia de pudor deixou de existir. Para um psicanalista, recomendar a
um adolescente que proteja sua intimidade, dizer que ela é uma coisa preciosa, é lesar a
psiqué da pessoa. A ideia de temperança e castidade é vista como algo que adoece.
Prevalece uma ideia mecanicista das forças psíquicas. Ao ser temperante, você estaria
como que “represando uma água” cada vez mais, e ela, em algum momento, romperia
essa barreira e “explodiria” gerando sintomas neuróticos. O saudável é deixar fluir para
não adoecer. Nesse sentido, é fácil entender a cultura de hoje.
Se você pedir a um psicanalista freudiano, que realmente tenha estudado Freud, uma
explicação do que é normalidade, ele não te dará uma resposta — “Veja bem, é que o
conceito de normalidade é algo muito impositivo, pois cada um é de um jeito e...” —
porque, para Freud, não existe normalidade:
Como é sabido a situação analítica consiste em nos aliarmos ao ego da pessoa, a fim de submeter setores não
controlados de seu id, ou seja, de integrá-los na síntese do ego. O fato de que uma cooperação assim comumente
fracasse com o psicótico apresenta um ponto firme para nosso juízo. Para que com ele possamos acordar um pacto
assim, o ego tem de ser normal. Mas este ego normal, como a normalidade em geral, é uma ficção ideal. O ego
anormal, inutilizável para nossos propósitos, não é, infelizmente, uma ficção. Cada pessoa normal o é somente em
média; seu ego é próximo ao do psicótico nesta ou naquela parte, em maior ou menor grau, e o montante do
distanciamento em relação a um extremo da série e da aproximação do outro nos servirá provisoriamente como
medida daquilo que se designou, de maneira tão imprecisa, alteração do ego.3
Veja, se eu for um endocrinologista e precisar avaliar o pâncreas de um paciente, terei o
parâmetro dos valores de normalidade na produção de insulina. E assim é com quase tudo
na medicina:
para saber que algo está alterado, é preciso saber o
conceito do funcionamento normal.
É algo lógico, sempre foi assim.
Na busca pela normalidade no contexto da saúde mental trago uma citação de Gordon
Allport (1897– 1967), psicólogo americano, um dos mais relevantes principalmente no
tema da personalidade:
O que é o normal? Não podemos responder a essa pergunta unicamente em termos de psicologia pura. Para que
possamos afirmar que uma pessoa é mentalmente sã, normal e madura, devemos saber o que é a saúde, a normalidade
e a anormalidade. A psicologia por si só não nos pode dizê-lo. Aí está implicado, até certo ponto, o juízo ético.
Como vimos, a psicologia moderna, com seu cientificismo, quis, ao contrário do que diz
Allport, separar a psicologia e a saúde mental dos conceitos éticos, ou seja, dos valores de
certo e errado, de bom e mau. Se eu apresentasse o conteúdo deste livro em alguma
universidade hoje, eu seria perseguido e escorraçado. E estou falando de um dos maiores
nomes da psicologia americana.
Concordo com Freud que, às vezes, há coisas que sentimos que não colocamos em
palavras e que, por não nomeá-las, não as conseguimos enxergar direito. Mas a partir do
momento em que diz, literalmente, que a normalidade é uma ficção ideal, ou seja, que nós
apenas queríamos que ela existisse, ele faz, na minha opinião, uma inversão do ser
humano.
Essa inversão permeia hoje a nossa cultura.
Quando falo em psicanálise cultural, estou falando justamente sobre essa mudança de
paradigma que já se internalizou na sociedade, já está na boca do povo: “De médico e
louco todo mundo tem um pouco”, “De perto ninguém é normal” — até pessoas que
nunca estudaram nenhum tema da psicologia repetem isso e, conforme vão contando
aquilo para si mesmas, passam a raciocinar da maneira como falam. O normal, hoje, é ir a
um psicanalista e ouvir que todos nós somos neuróticos, psicóticos ou perversos.
Para Freud, o maior neurótico de todos é o santo, ou aquele que busca a santidade. Para
ele, toda religião adoece. Isto fica claro numa das correspondências que o pai da
psicanálise enviou para um aluno, do qual nutria afeto, e que era pastor. Trata-se de Oskar
Pfister. Na carta escrita em 16/10/1927 Freud deixa claro o seu pensamento à respeito da
religião:
Nas próximas semanas sairá uma brochura de minha autoria, que tem muito a ver com o senhor. Eu já a teria escrito
há tempo, mas adiei-a em consideração ao senhor, até que a pressão ficou forte demais. Ela trata — fácil de adivinhar
— da minha posição totalmente contrária à religião — em todas as formas e diluições, e, mesmo que isso não seja
novidade para o senhor, eu temia e ainda temo que uma declaração pública lhe seja constrangedora. O senhor me fará
saber, então, que medida de compreensão e tolerância ainda consegue ter com este herege incurável.4
Se um religioso chega à sua clínica, provavelmen te este será o problema abordado. Vi
muito disso na minha prática em consultório. Atendi uma vez um homem religioso,
católico, com questões em relação à sua sexualidade. Ele a via como um problema e queria
lutar contra aquilo. Em meu consultório levo em consideração os valores do paciente. Não
imponho os meus valores, mas tento entender como ele funciona. Esse paciente
especificamente tinha como valor inegociável o cristianismo, e seu desejo e prática sexual
contrariavam seus próprios valores — era isso que o fazia sofrer. Ele relatou que havia ido
a um psicanalista e ouvido que o problema era sua criação, sua religião, e que ele deveria
“libertar seu verdadeiro eu”.
A noção de identidade do ser humano, hoje, está
totalmente ligada à sua sexualidade.
Hoje, uma criança de 6 ou 7 anos está sendo questionada se “gosta” de homem ou
mulher. Quando eu tinha essa idade, não pensava em sexualidade. Agora, você é o que
deseja sexualmente, e isso é pura psicanálise cultural. Àquele paciente, expliquei: na
verdade, o centro da nossa personalidade não é nossa sexualidade, esta é apenas um
aspecto periférico dela. Ao tirar aquele peso da sexualidade enquanto fonte de identidade,
ele experimentou um alívio.
A virtude em Aristóteles
É muito clara a diferença de visão de mundo entre o homem antigo e o homem moderno.
O homem antigo, cujo ápice deu-se na Idade Média, com São Tomás de Aquino, pensava
da seguinte forma: Tenho dentro de mim umas emoções meio loucas. Às vezes quero uma
coisa, outras vezes quero outra. Sinto-me bem em determinadas situações e depois,
fazendo a mesma coisa, sinto-me mal... então não posso confiar em mim mesmo para
guiar a minha vida. Porque eu sou muito inconstante. Vou buscar fora de mim um norte
que seja estável, confiável, que já tenha sido testado pelo tempo. Assim, o homem antigo
buscava a orientação de sua vida nos valores metafísicos, e aqui está a importância de
Aristóteles. Seu livro Ética a Nicômaco é basicamente um dos primeiros tratados de
psicologia. Nele, o homem saudável mentalmente é o homem normal, e o homem normal,
para a filosofia clássica, é o homem virtuoso, o homem bom:
A virtude consiste num termo médio entre dois vícios extremos referidos ao mesmo objeto. Quem possui a virtude é,
além disso, um homem equilibrado, pois mantém a medida, da qual não se afasta nem por excesso nem por defeito.
[...] Conquanto em relação aos vícios extremos a virtude seja uma mediania e um equilíbrio, do ponto de vista da
perfeição é um extremo ou um ápice.5
Quando se fala de equilíbrio em relação ao comportamento e à virtude, costuma-se achar
que se trata de um ponto médio, como se houvesse uma linha reta, em que o equilíbrio
estaria no meio. Mas a virtude não é isso.
A virtude é o ápice de um comportamento entre
dois vícios.
O temor é um vício. É quando eu preciso fazer algo muito importante, mas deixo de
fazer porque estou morrendo de medo daquilo. Do outro lado, existe a temeridade, uma
falta de cálculo adequadoentre o desafio que me é proposto e a minha capacidade de
cumpri-lo. Neste caso, acredito que sou maior do que sou (por exemplo, acreditar que
posso entrar na frente de um caminhão desgovernado no meio da rua e bloqueá-lo com o
meu peito). Isso não é coragem. Na temeridade, acredito que sou mais do que sou; no
temor, que sou menos do que sou, em relação às minhas capacidades.
Já a coragem é a justa medida. Na situação do caminhão, se minhas filhas estiverem no
meio do caminho, eu entro, as pego e saio. Eu fui corajoso, agi. Mas não tentei bloquear o
caminhão com minha força. Essa, sim, é a virtude da coragem. Ser virtuoso não é ser
morno:
A virtude é um ápice entre dois vícios.
Normalidade em São Tomás de Aquino
Ao falar de normalidade, São Tomás recebe o bastão de Aristóteles e amplia ainda mais o
conceito. Segundo ele, nós nascemos com potências, capacidades, que precisamos
atualizar, ou seja, desenvolver, colocar em prática — isso seria alcançar as virtudes.
Todo bebê, por exemplo, nasce com a potência de andar. Mas o bebê não nasce
andando, portanto terá de desenvolver essa capacidade que, por enquanto, existe apenas
em potencial. No dia em que começar a andar, terá atualizado essa potência.
Transpondo para o ponto de vista psicológico e de comportamento, temos em potência
as virtudes. Nós podemos — e devemos — ser virtuosos, porque não somos bichos, mas
seres humanos. Desenvolver as virtudes é alcançar o máximo de nossa capacidade
comportamental.
O que São Tomás está dizendo é que
existe sim uma normalidade.
Existe sim um ápice. Existe aquele ser humano para quem iremos olhar e pensar “essa
pessoa é tão boa que eu gostaria de ser igual a ela. Ela é melhor do que as outras”,
admitindo para nós mesmos que algumas coisas são melhores que outras. São Tomás foge
do relativismo, e cria para nós algo claro:
Virtude, segundo a razão de seu nome, designa o complemento de uma potência. [...] Alcançar o estado de virtude
significa ter desenvolvido as próprias capacidades até seu nível máximo, de modo a atuar em plenitude [...]. A pessoa
humana que desenvolveu plenamente sua humanidade é, então, a pessoa virtuosa. Aperfeiçoou todas as suas potências
para operar como convém, especialmente as que lhe são mais próprias (no caso do homem, as propriamente
humanas). Sendo o homem racional, é natural que sua perfeição consista em viver segundo a razão [...]. O homem
bom é o homem normal.6
A normalidade do ser humano aqui está sempre associada à bondade. Enquanto a
psicologia moderna não nos dá nenhum norte, Aristóteles e São Tomás de Aquino são
muito claros ao identificar um.
O reino do cérebro
Phineas Gage era um homem calmo, tranquilo, desejoso de formar uma família. Um dia,
enquanto trabalhava em uma estrada de ferro, ocorre uma explosão e uma barra de ferro
literalmente atravessa sua cabeça. Desde então, ele passou a ter alterações drásticas em seu
comportamento, tornou-se um homem irritado, que tinha explosões de raiva e de ira. Ele
não formou uma família e nunca mais conseguiu retomar seu trabalho.
Desde esse episódio passou-se a perceber que
o comportamento humano está associado às áreas
do cérebro:
as regiões lesadas causariam uma mudança drástica de comportamento, como a que Gage
sofreu.
Herbert Spencer (1820–1903) já havia proposto que cada região do cérebro poderia ter
uma designada função e dizia que a “localização da função é a lei de toda organização”.
Portanto, na Era Localista, passa-se a entender que para compreender o ser humano por
completo basta mapear cada área de seu cérebro e reunir essas informações. As afasias são
outro exemplo dessa era. Trata-se de um transtorno na compreensão ou expressão da
linguagem.
Neste sentido, temos a afasia de Wernicke, um problema na capacidade de compreensão
do discurso; e a área de Broca, relacionada à afasia da expressão, em que não há
problemas em entender o discurso, mas em formar as sentenças.
A ideia localista parecia, então, apontar o caminho para o entendimento completo do
ser humano. Mas, conforme os estudos foram se aprofundando, chegamos à conclusão de
que a linguagem não é tão simples assim. As áreas citadas por Wernicke e Broca são
apenas pequenas partes no processo de interpretação e expressão da linguagem.
É importante entender que não se trata de uma guerra contra a matéria, é óbvio que
temos informa ções através dela. Gosto de mostrar um comparativo entre as imagens de
uma Ressonância Magnética Funcional do cérebro de um paciente com depressão e de
outro sem depressão, em minhas palestras e consultas, para que as pessoas entendam que
há, claramente, um comprometimento da função cerebral. Há pessoas que ignoram
completamente este aspecto biológico. Para elas, é como se o indivíduo deprimido
estivesse apenas “pensando errado”, e basta passar a “pensar certo” para sair da depressão
e da ansiedade. Ele esquece-se, assim, que claramente há também um comprometimento
biológico.
As crises do transtorno bipolar, por exemplo, não são crises em que o paciente se agita
simplesmente, não é algo puramente psicológico. Há perda neuronal nessas crises, a tal
ponto que se não tratado, após sofrer muitas crises ao longo de vários anos, o paciente
pode vir a apresentar um quadro residual tão grave que pode ser confundido com a
esquizofrenia. Tais constatações foram sendo feitas a partir da evolução dos métodos de
Neuroimagem.
Por outro lado, há também o outro extremo, o das pessoas que acreditam ser algo
puramente biológico, como se investigar esse aspecto fosse o suficiente para
encontrarmos todos os segredos do comportamento humano.
É aí que entram as medicações psiquiátricas. Para se ter uma ideia, a primeira utilizada
para este fim foi a Iproniazida, de 1950, uma medicação para tuberculose que trazia um
efeito antidepressivo. O primeiro antidepressivo propriamente dito foi a Imipramina, que
passou a ser usada em 1957. Isso, para a história da medicina, foi ontem. Imagine como as
pessoas deprimidas viviam até a década de 50. Muitas se mataram, por não terem acesso à
medicação. No final da década de 80 surgem outras classes de medicações, como o Prozac
(1987), que não são mais eficientes que as antigas, mas seus efeitos colaterais são mais
toleráveis. Foi então que
o homem acreditou que havia descoberto a pílula
da felicidade.
O funcionamento dos antidepressivos ainda não está completamente esclarecido, mas
acredita-se que se dê através do aumento da disponibilidade dos neurotransmissores. Eles
ficam na fenda sináptica, onde o impulso nervoso passa de um neurônio para o outro, e
isso ocorre de modo eficaz somente na presença desses neurotransmissores em
quantidade adequada, então os remédios inibem que sejam recaptados, de forma a mantê-
los ali presentes.
As medicações foram muito bem-vindas, mas quero chamar atenção para o aspecto
cultural. Quando olhamos para as propagandas da fluoxetina nos Estados Unidos a partir
da década de 90, percebemos como o ser humano se ilude: ele adquire um certo
conhecimento e acredita que entendeu a humanidade, que entendeu e dominou a vida
por completo.
Diagnósticos
A palavra “diagnóstico” vem de dia (separar uma parte da outra) e gnosis (conhecimento,
percepção). Trata-se de descrições cunhadas a partir de agrupamentos de sinais ou
sintomas, usualmente associados a patologias e transtornos;
é uma abstração criada para explicar a natureza de
um fenômeno.
O diagnóstico na saúde mental é sempre um desafio, pois as doenças são multifatoriais.
Isso torna difícil estabelecer uma etiologia única, direta e, portanto, criar critérios como
nas outras áreas da medicina. Precisamos entender que existe uma abstração para explicar
a natureza do fenômeno, que o diagnóstico na saúde mental é limitado. Por isso, surge o
DSM, Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, da Associação
Americana de Psiquiatria, o livro mais importante em relação a isso.
A ênfase na funcionalidade foi a saída que o DSM encontrou para conceituar os
transtornos mentais, diante da impossibilidade de contar comalterações
anatomopatológicas como base mais objetiva para sua definição. A definição de
transtorno mental do DSM-5, mesmo com todas as limitações presentes, ao associar o
transtorno mental ao sofrimento e à perda da funcionalidade, atende à necessidade de se
estabelecer um rigor mínimo para que o diagnóstico em psiquiatria não seja por demais
impreciso e sem objetividade.
Sabemos que há alterações físicas que influenciam no quadro, mas o DSM não aponta
para a criação de critérios diagnósticos em saúde mental através de exames.7
Os principais pontos positivos do DSM-5 são:
Comunicação eficaz entre profissionais e pesquisadores do mundo todo.
Tratar o máximo de doentes possíveis.
Estabelecer dados sobre prevalência para planejamento de saúde pública.
Estabelecer quais são os transtornos mentais que privam o indivíduo da capacidade de ser responsabilizado por seus
atos.
Enquanto o DSM é um diagnóstico bastante categorial (ou você tem a doença ou você
não tem), o CID-11 (International Classification of Diseases for Mortality and Morbidity
Statistics) incorpora uma perspectiva mais dimensional. Uma das mudanças está nas
descrições clínicas, que buscam facilitar a compreensão, comunicação e aplicação prática.
Apenas a esquizofrenia e a depressão mantêm uma quantidade de critérios para satisfazer
o diagnóstico.
O que costumo dizer aos meus alunos é que DSM e CID são “objetos inanimados” —
não são bons, nem ruins. O bom ou mau uso irá depender do que o profissional fizer com
eles. Cabe a nós, psiquiatras, assumirmos essa responsabilidade, e oferecermos uma
resposta aos problemas que se apresentam com base no melhor conhecimento disponível.
Este é o ponto em que estamos.
É isso o que, após séculos, desde o extremo da psicodinâmica até o extremo do
cientificismo e do materialismo, temos como uma breve história da saúde mental. Parece
que, agora, muito recentemente, o pêndulo começa a voltar para o meio. Há algumas
pessoas interessadas em dar melhores respostas para o sofrimento das pessoas. Tendo
passado por tantos erros que foram cometidos ao longo da história, como nós
responderemos a isso?
F
A RESPOSTA EQUILIBRADA
izemos uma viagem de alguns séculos pela saúde mental para entender melhor quais
são os desafios modernos no atendimento às pessoas (ou em relação a nós mesmos) e
assim compreender, não só a mente humana, mas o ser humano como um todo. Vimos
que já fomos para o extremo da psicodinâmica e também para o extremo do cientificismo
e materialismo, onde estávamos até há muito pouco tempo.
E, como eu disse, há algumas pessoas — entre as quais me incluo — interessadas em
oferecer respostas melhores para o sofrimento dos outros. Levando em conta toda essa
história, que respostas podemos oferecer?
Simplificando, o ser humano tem três grandes aspectos: um aspecto Biológico, um
Psicológico, e um terceiro aspecto que chamarei de Transcendente. Essa divisão é
puramente didática, pois tudo está junto dentro de nós ao mesmo tempo, o tempo inteiro.
Nós somos seres únicos, possuímos uma unidade.
No desenho acima, eu poderia ter feito três esferas separadas e explicar cada uma delas,
mas fiz questão de mostrar que essas esferas influenciam umas às outras, sem exceção —
este é o primeiro conceito que precisamos notar.
Aspecto biológico
Não creio que o aspecto biológico seja o que há de mais importante no ser humano; os
animais também têm esse aspecto. Mas eu diria que ele é o aspecto primário, o que deve
ser abordado primeiro com o paciente.
Em meus atendimentos, peço sempre exames laboratoriais. Ainda são poucos os
psiquiatras que fazem isso, por falta do entendimento de que
a saúde mental é influenciada diretamente pelas leis
físicas e químicas que regem o corpo.
Mas se olharmos para qualquer critério no Manual Estatístico de Diagnósticos, onde estão
os critérios para os Transtornos Mentais, todos estes sintomas estarão lá: falta de ar,
taquicardia, sensação de perda de controle, etc. Tudo bem listado e determinado: para se
ter o diagnóstico o paciente precisa apresentar o sintoma X, por determinado tempo, além
de apresentar o sintoma Y por outro tempo determinado, e por aí vai. E, então, ao final,
estará escrito assim: “Os sinais e sintomas não podem ser mais explicados por alguma
outra condição médica”.
Ou seja, para que se diga que determinada condição é um transtorno mental, é preciso
ter descartado causas orgânicas. Podemos concluir que não é possível chegar a um
diagnóstico psiquiátrico sem realizar exames laboratoriais.
Há algumas condições que podem influenciar significativamente no aspecto mental.
Cito aqui algumas delas:
Hipotireoidismo: O hipotireoidismo é uma condição clínica em que a glândula tireoide,
responsável por produzir alguns hormônios, entre eles o T4 (que regula uma série de
funções em nosso corpo), tem um funcionamento abaixo do normal. Seus sintomas são
muito parecidos com os de um quadro depressivo. A pessoa fica mais lenta, com certa
tristeza, chorosa, seu metabolismo desacelera, há ganho de peso e desânimo. Em um caso
como esse, por exemplo, não basta uma consulta rápida com o paciente, sem os exames
laboratoriais. Mas o que vemos na prática é que vários psiquiatras modernos prontamente
receitariam antidepressivos.
Já no hipertireoidismo ocorre o excesso de produção desse hormônio, e o paciente
apresenta sintomas muito parecidos com os de ansiedade.
Estes dois exemplos mostram que não há como fazer um bom diagnóstico sem analisar
o aspecto biológico. Não é que “seria bom” iniciar uma abordagem com o paciente pelos
exames laboratoriais, eu preciso fazer isso. E não basta apenas pedi-los, temos também a
questão dos valores de referência, sobre a qual falarei a seguir.
Neurônios e vitaminas: Temos uma imensa quantidade dessas células em nosso Sistema
Nervoso Central. Os neurônios se comunicam pelas sinapses, como por uma corrente
elétrica, um impulso nervoso que parte de um em direção ao outro. Essa comunicação, a
sinapse, é feita através dos neurotransmissores, e é exatamente aí que atuam os
antidepressivos. Mas não é apenas uma alteração neste o local que justifica os sintomas
apresentados pelos pacientes.
No caso de vitamina B12 baixa, a bainha de mielina, que é como se fosse um
“encapamento do neurônio”, começa a perder qualidade e o neurônio fica parecendo um
fio desencapado. Assim, a corrente nervosa não passa como deveria, e o paciente pode ter
sintomas parecidos com os depressivos. Sem o aspecto biológico, esse paciente pode ser
erroneamente diagnosticado com depressão, ou, se já tiver um quadro depressivo, ter seu
antidepressivo aumentado, mas a medicação não irá funcionar, afinal, o problema não
está na fenda sináptica, mas no “revestimento” do neurônio. O exame de vitamina B12 é
fundamental para meus diagnósticos, mas não basta solicitá-lo, também é preciso saber
interpretá-lo.
Em geral, o valor de referência indicado pelo laboratório varia entre 180 e 880 pg/mL.
Mas esses valores, na medicina, são feitos em uma espécie de “sistema de boiada”. Eles são
definidos a partir de estudos científicos que buscam saber o valor com que a maioria das
pessoas sente-se bem.
O problema é que quando estamos atendendo uma pessoa, não estamos atendendo uma
boiada. Pode ser que para aquela pessoa um valor acima de 200 pg/mL, por exemplo, não
seja suficiente. Um valor que considero bom e busco manter com meus pacientes é o de
500 pg/mL, assim eu garanto a qualidade da bainha de mielina.
Além disso existem alguns estudos que mostram que pacientes gestantes que estão no
limite inferior da normalidade (no caso da B12, portanto, 200 pg/mL) têm quatro vezes
mais chances de desenvolver depressão pós-parto. Ao suplementar a B12, de forma
simples e barata, a chance de apresentar a condição é reduzida em 4 vezes.
Eu poderia, ainda, citar diversas outras coisas que devem ser analisadas através de
exames, por exemplo: vitamina D, cortisol (“hormônio do estresse”), ferritina... enfim, há
muitas alterações com o potencial de afetar o comportamento e a saúde mentalde uma
pessoa. É preciso estar atento a isso.
Sono: Também insisto muito com meus pacientes na questão do sono. Hoje em dia nós
estamos hiperestimulados e nossos ciclos são muito antinaturais. Nós temos um ritmo
circadiano que precisaria ser respeitado.
Quando atendia na zona rural, eu via isso muito claro na vida dos pacientes. Eles
acordavam quando o sol nascia, ou um pouquinho antes de ele nascer. Eles trabalhavam
na lavoura, faziam esforço físico, jantavam muito cedo, por volta das 17h. Às seis da tarde
já estavam com sono, então dormiam, e dormiam bem. No dia seguinte, acordavam cedo
novamente e assim tudo se repetia.
É fácil percebermos que o ritmo de vida daquelas pessoas estava muito mais conectado
com o ritmo normal do mundo, da natureza, da criação. O nosso estilo de vida é muito
complicado, e me incluo nisso. Passo seis, oito horas em meu escritório com luz artificial:
literalmente os meus sentidos não conseguem perceber se é dia ou se é noite, o que
atrapalha o meu ritmo circadiano.
Precisamos mostrar para o nosso corpo em que momento do dia ele está. Preciso ter
incidência da luz solar sobre ele de 15 a 20 minutos, pela manhã, para que haja um pico
normal de cortisol durante o dia e para que ele desça à noite, já que o cortisol se opõe à
melatonina, que é o hormônio do sono. Para que o cortisol aumente, meu corpo precisa
“saber que é dia”. Que é a hora de acordar e fazer as coisas, e a luz solar ajuda nisso.
Mas as pessoas, hoje, não estão se expondo ao sol. Elas não têm nenhum pico fisiológico
de cortisol e acabam, durante o dia, tendo mais melatonina do que deveriam. Na falta do
pico de cortisol, a pessoa fica desanimada, meio lenta, devagar. Não é bom que o cortisol
tenha um pico exagerado ou exacerbado, mas é necessário que haja um pico fisiológico
durante o dia.
Vivendo dessa forma, as pessoas passam o dia sonolentas e as noites em claro. Imagine
que alguém nesse ritmo procure o médico, com queixa de insônia. Essa pessoa pode
receber prescrição de um remédio para dormir: Zolpidem, Clonazepam ou até mesmo a
Melatonina; mas o problema real não estará sendo atacado. Há casos em que coisas
simples podem resolver o problema do paciente, ainda que muitas vezes eles estranhem
recomendações tão básicas.8
O antidepressivo, como vimos, não faz mágica.
Ele só aumenta a disponibilidade de neurotransmissores na fenda sináptica. Quando o
paciente me pergunta por quanto tempo irá tomar a medicação, eu respondo: “em grande
parte isso depende de você e do seu estilo de vida”. Nós temos, pela literatura, um tempo
tido como razoável, que, de modo geral, seria um ano, pois o remédio não serve apenas
para tirar a pessoa do buraco, mas para mantê-la fora dele.
Costumo dizer ao paciente: você tem um ano para mudar o seu estilo de vida, de tal
modo que o remédio não seja mais necessário. Sabemos que ele é necessário para
aumentar neurotransmissores, então, quais são as formas naturais de aumentá-los?
Alimentação, suplementação e atividade física.
Em alguns alimentos, como na alface e nas oleaginosas, é possível encontrar o
triptofano, por exemplo, que é o precursor da serotonina. Entretanto, para alcançar os
benefícios seria necessário comer uma quantidade muito grande destes alimentos, o que,
na prática, muitas vezes não é possível. É verdade: a alimentação ajuda, mas associada à
suplementação, torna-se excelente. É preciso estar atento a isso.
Atividade física: Na prática, a melhor coisa que existe para os neurotransmissores
chama-se atividade física. A aeróbica principalmente, mas, para fazer um bom aeróbico,
você precisa de músculos, portanto o ideal é praticar também exercícios de
fortalecimento. Para o paciente psiquiátrico bato muito na tecla da atividade física
aeróbica, mas ela deve ter frequência e intensidade corretas: a frequência cardíaca deve ser
de moderada a intensa (de modo geral, para uma pessoa normal, jovem e sem
comprometimentos cardíacos, entre 135 a 150 batimentos por minuto), cinco vezes por
semana, 30 minutos por dia.9 Isso é um antidepressivo natural.
Apenas a recomendação “faça atividade física” é muito abstrata, por isso, defino esse
alvo com meu paciente, e ele tem um ano para tornar aquilo realidade em sua vida,
respeitando os limites naturais de seu organismo.
Aspecto psicológico
A parte biológica, na verdade, é a mais simples da história toda. Quando vamos para o
aspecto psicológico, a coisa começa a ficar um pouco mais complexa: dentro dele temos
três grandes aspectos, eu diria. Começarei falando de dois: o temperamento e a
personalidade, um aspecto mais fixo e outro mais mutável.10
Simbolicamente falando, o temperamento é um as pecto da psique que não muda. Ele
seria como o solo de sua vida psíquica, é como se Deus nos desse uma terra para
trabalharmos nela. O temperamento é o tipo de “solo” com o qual cada um nasceu.
Devemos estudar nosso tipo de solo, saber o que ele tem de bom e o que tem de ruim,
para aprendermos a lidar com ele e tirar dele o melhor proveito possível.
Já a personalidade é uma estrutura que chamamos de “vegetal”. Assim, o temperamento
seria “mineral”, pois não muda, e a personalidade seria vegetal, porque ela, sim, muda ao
longo da vida. E essa mudança seria o desenvolvimento da personalidade. Mas as duas
coisas — temperamento e personalidade — são facilmente confundidas por muita gente.
Temos, classicamente, quatro tipos de temperamento: colérico, melancólico, fleumático
e sanguíneo. A depender, suas características serão quentes ou frias, úmidas ou secas. A
característica quente é a característica de extroversão, e a fria, de introversão, ao passo que
a característica úmida e seca têm a ver com a tendência de interiorizar e fixar as
impressões emocionais, ou de as dispersar rapidamente.
Portanto
o temperamento é uma tendência,
porque em relação ao ser humano não existe determinismo. É apenas uma tendência.
Neste princípio temos o agir, o falar e o pensar. Se algo acontece a um sanguíneo ou
colérico, o movimento inicial que nele surge, automaticamente, de modo mais natural, é a
vontade de agir ou falar sobre aquela coisa. Isso não significa que irão sempre falar ou agir
nessa situação, mas que eles estão mais perto disso e se não ficarem atentos, assim o farão.
É possível que um fleumático ou um melancólico reaja rápido? Sim, só é mais difícil,
pois ele estará vencendo a sua tendência inicial, o que requer aprendizado e atenção. Vejo
muita gente falando de temperamento e dizendo coisas como “o colérico é assim”. Mas
quando falamos em temperamentos falamos em tendência, não em ação. Nesta última já
estamos falando do universo da personalidade e darei um exemplo. Imagine um
funcionário de uma empresa cujo dono é muito rígido e ausente. Está sempre fora e, uma
vez por mês, faz uma reunião, na qual detesta ser interrompido, a ponto de já ter demitido
alguém por fazê-lo. A reunião começa e ele passa a dizer coisas injustas sobre o setor em
que o colérico trabalha. Mas não são coisas verdadeiras, afinal, ele não está lá no dia a dia.
O que o colérico faz?
Aqui está o pulo do gato: o chefe foi injusto. O “fogo interior” do colérico acende muito
rápido. A vontade de falar ou agir surge imediatamente. Mas ele vai se segurando, tenta se
controlar, pois tem uma família para sustentar e não pode perder o emprego — pois esses
são valores para ele. Se consegue se segurar, significa que sua personalidade se sobrepôs ao
temperamento, impedindo uma ação que seria natural a ele. Esse é o colérico: ele pode
não falar, mas para isso faz um grande esforço.
Nesse mesmo exemplo, pense agora em um fleumático. O chefe começa a falar bobagem
sobre seu setor e o fleumático pensa: “Nossa, está errado o que ele está dizendo. Quando
ele terminar, vou mostrar alguns dados...”. E consegue, sem muito esforço, esperar que o
chefe conclua a fala, pois essa já é a sua tendência temperamental. Pense comigo: se essas
duas pessoas fizessem um teste de temperamento na internet o que elas responderiam à
seguinte pergunta?
Se você fosse funcionário da empresae o seu chefe começa a falar coisas erradas sobre
seu setor, você:
a) Fala imediatamente.
b) Guarda o que vai falar.
Tanto aquele fleumático quanto aquele colérico responderiam b, e o teste daria errado.
O que mostra um temperamento não é necessariamente a ação que ele realiza, mas a
tendência inicial do movimento — aquilo que surge em alguém quando o mundo o
impacta.
A melhor fase para se diagnosticar o temperamento é a infância; nela, a criança ainda
tem pouca personalidade, pois acabou de nascer, de começar sua história. O
temperamento, nessa fase, ainda está muito solto, e uma criancinha mostra facilmente o
seu temperamento. De 2018 para cá, muitas pessoas passaram a se interessar por esse
tema, mas estão respondendo a testes assim, com base na personalidade, e não no
temperamento.
Em suma,
temperamento é o modo como eu experimento a
realidade. personalidade é o que eu faço com isso.
Como as coisas do mundo chegam para mim, como eu as recebo e qual é minha tendência
inicial de resposta — é o filtro que fica entre mim e o mundo. Temperamento é o como eu
estou no mundo. Personalidade é o que eu faço com isso.
Quando dizemos que um melancólico, naquela situação do chefe injusto, escuta a
informação, sente raiva (entre muitas outras coisas), julga-se o pior funcionário da
empresa, não fala e cria ressentimento, e que o sanguíneo brinca, faz piada ou ri daquilo,
nos referimos a uma pessoa que supostamente teria ali somente o temperamento, sem
uma personalidade desenvolvida — que seria estranhíssimo para uma pessoa com mais de
18 anos.
Quanto à umidade, imagine um casal que sempre sonhou em ir para Paris na lua de mel.
Consideremos que a mulher seja seca e o homem seja úmido. O que é seco? Imagine um
pó de café. Se colocado sobre uma mesa seca, ele fica ali, do jeitinho que foi posto, parado,
igual. Permanece. Esse mesmo pó de café, se colocado em água, dissolverá. Em muita
água, como no mar, este pó desapareceria. Agora imagine isso em relação à emoção.
O casal, mulher seca, homem úmido, foi a Paris, realizar o sonho de ambos. Passearam
na Torre Eiffel, estiveram em restaurantes e hotéis maravilhosos, a lua de mel foi perfeita,
ambos gostaram igualmente dela. Dez anos depois, em uma terça-feira à tarde, estão lá
sem fazer nada, sentados no sofá. A mulher que é seca começa a se lembrar da lua de mel
em detalhes: “Nossa, aquele restaurante era lindo, aquela comida estava maravilhosa. A
Torre Eiffel estava iluminada, me senti uma princesa naquela lua de mel. Não foi bom?”.
O homem responde: “É, foi bom”. Quando ela fala, quando lhe vem à memória, ela
lembra da informação (como estava o dia, o que fizeram etc.) e do sentimento (ela sente
novamente o que sentiu na lua de mel). Por que isso? Porque a emoção bateu e ficou.
Porque ela é seca. Ele, por sua vez, lembra da informação, mas não se lembra do
sentimento. Aquela emoção de dez anos atrás já foi embora, há muito tempo.
O problema que isso pode gerar no casamento é o famoso “Ele não me ama tanto
quanto eu”. Ou pior: imagine que esse mesmo casal passou por uma traição. O homem se
arrependeu profundamente, confessou, pediu perdão, e ela o perdoou. Seguiram o
casamento e o homem viveu uma vida justa. Dez anos depois, a mulher encontra a
amante em uma festa. Se ela realmente for seca, todo aquele sentimento vem. Ela sente
como se estivesse descobrindo a traição naquele dia. No mesmo instante ela fecha a cara e
começa a tratá-lo mal. O marido questiona e ela diz: “Tá tudo bem!”. Depois de um tempo
vão embora e, quando entram no carro, o marido questiona novamente. É possível que ela
não fale nada, mas, suponhamos que ela conte tudo a ele. O que o marido pensa? “Ela não
me perdoou de verdade”. Aí começa uma briga confusa de relacionamento.
Simplesmente, em razão do temperamento. Ela, sim, o perdoou, talvez até tenha
esquecido. Mas, na hora em que ouve um nome, mais e mais emoção vem à memória.
Muita confusão pode ocorrer nos relacionamentos,
só por causa do temperamento.
Para o colérico e o melancólico é mais difícil perdoar. O desafio é maior. Porque com
outros temperamentos você se lembra de algo e não dói de novo. Mas um melancólico
experimenta o mundo de um modo muito profundo. Embora o melancólico e o colérico
tenham essa dificuldade, se têm uma personalidade com valores, pedem perdão mesmo
que aquilo os fira.
PERSONALIDADE
A personalidade é um dos temas mais difíceis na saúde mental. É possível encontrar 500
mil versões de definições do que é personalidade. Costumam dizer que ela é um padrão,
um estado de comportamento. Eu entendo o que isso quer dizer, mas isso não me satisfaz,
e explico o porquê.
Personalidade é aquilo que é seu, aquilo que é de
um indivíduo. Eu reconheço você pela sua
personalidade, por aquilo que o torna único.
Mas como poderia ser a personalidade um padrão mais ou menos estável de
comportamento, se a personalidade de uma pessoa com Alzheimer, por exemplo, vai
embora? Com uma demência frontotemporal, a pessoa passa a fazer coisas que jamais
faria, já que o córtex pré-frontal funciona como um filtro das tendências, o que suprime
as emoções. Então como um filho de alguém com Alzheimer reconhece que o pai ainda é
o pai, mesmo sem o padrão de comportamento que ele tinha antes? Por causa da história.
Personalidade é história.
Que história? A sua. A sua personalidade é a sua biografia. Sua personalidade é sua
narrativa pessoal.
Ainda que aquele pai tenha Alzheimer e seu padrão de comportamento tenha mudado
completamente, seu filho reconhece toda a sua história: “Esse é o meu pai. E eu vou
continuar cuidando dele. Eu o reconheço e sei quem ele é”. O filho, então, é uma
testemunha da história do pai, ele atesta a sua veracidade.
Estamos escrevendo essa história a cada dia que passa. Cada dia que você vive é
literalmente a sua história. Hoje nós recebemos, cada um de nós, uma página de um livro
para viver. Então a pergunta que fica é: como escrever a minha história? Como me tornar
quem eu sou? Não será com aquilo que sinto, nem com aquilo que penso.
Imagine uma mulher puérpera já com dois filhos pequenos, que não está dormindo
bem, e o marido não ajuda em casa, vive na confusão. Ela coloca o neném para dormir, e
isso demora... Quando ele finalmente dorme, ela pega no sono. Quando ela está há meia
hora se aprofundando no sono, o neném acorda aos berros, gritando de fome. Quando
aquele choro estridente entra no ouvido da mãe cansada, puérpera, qual é o sentimento
que aparece nela? Tristeza. Rai va. Só emoções e pensamentos ruins: “Para que fui
inventar ter mais um filho? Meu marido não presta pra nada. Que raiva da minha vida.
Essa vida não compensa”. Começam a vir até ela uma série de pensamentos estranhos —
estranhos em relação a ela mesma, de um modo diferente dos que ela pensa normalmente.
Restrição de sono. Cansaço. Puerpério. Hormônios. Caos total. Pensamentos ruins. Mas o
que ela faz? Levanta, pega o neném, dá-lhe de mamar, e cuida dele. E é isso que entra na
biografia dela. É assim que escrevemos a nossa história, com aquilo que a gente faz.
VIRTUDES
A virtude está justamente em fazer o bem, ainda que seus pensamentos e sentimentos não
estejam dos melhores. Suponhamos agora que um marido passa por uma fase ruim e vem
tratando mal a sua esposa, que já começou a sentir certa raiva dele, nutrir sentimentos
ruins. Um colega de trabalho pergunta a ela: “Como você está? Parece tão abatida... quer
conversar?”, e começa a se insinuar. Neste momento, a mulher poderia muito bem cair;
ela está carente, em vários sentidos. Mas ela diz a si mesma: “Eu não posso fazer isso, não
vou fazer isso”. Mesmo quando senti mento e pensamento apontavam para o caminho
que era mau, ela escolheu o bem. Isso tem tudo a ver com o conceito de normalidade de
São Tomás e Aristóteles. Não há como pensar em normalidade sem a noção ética, sem a
noção de certo e errado.
Diante do fato de que a minha história é escrita a cada dia que vivo, e através de minhas
ações, a pergunta que se faz na psicologia e na psiquiatria é:
até quando apersonalidade é formada?
Existem linhas que respondem: até os sete anos. Outras, dirão que é até os doze; outras,
ainda, até os quinze ou dezoito. Existem aqueles que dizem ser até os vinte e cinco anos,
partindo de uma concepção mais biológica, pois é até quando o córtex pré–frontal —
região cerebral responsável pelo discernimento, pela ponderação, por aquilo que filtra o
sistema límbico e as emoções — termina de ser formado.
Para mim,
a personalidade termina de ser formada no dia em
que a gente morre.
Nossa personalidade é uma história em aberto até esse dia. Essa é uma concepção que traz
muito mais esperança às pessoas. Mesmo que você tenha feito muita bobagem, que a sua
história esteja muito ruim, ainda assim, até o último dia da sua vida, é possível mudar.
Pensemos do ponto de vista simbólico: na crucifixão bastava haver uma cruz, mas
haviam três. Nas duas laterais, dois ladrões. Em um dos lados, um homem que viveu uma
narrativa ruim e que teve uma virtude chamada humildade. Ela consiste em uma visão
realista de si, olhar para si e dizer o que você de fato é. Para isso, é preciso ter um
referencial, e esse referencial é a humildade. Esse ladrão reconheceu humildemente as
suas falhas ao ver-se diante da Humildade encarnada. Diante da Verdade, ele confessou:
“Tem misericórdia de mim”. E a Verdade respondeu prontamente: “Ainda hoje estarás
comigo no Reino dos Céus”. Após uma vida inteira ruim, no último segundo, esse ladrão
teve um ato que salvou sua história inteira, e isso deu sentido a toda ela. Este é São Dimas,
o Bom Ladrão, e isso ocorreu de tal modo que hoje, em 2024, estou aqui contando a
história dele para você.
Mas e a outra cruz? O ladrão da direita viu alguém igual a ele receber o perdão diante da
Verdade e ser redimido. E mesmo assim ele não pediu perdão, até o fim. Orgulho. O vício
contrário à humildade é o orgulho, a Soberba. Não falo aqui no sentido espiritual,
teológico. Tomando apenas o sentido psicológico,
nessas três cruzes está resumido o conjunto de
possibilidades do ser humano.
Porque ou eu e você vamos pelo caminho de humildade, reconhecendo a verdade como
superior, e tentamos colocar nossa vida em congruência, alinhada a essa verdade, ou
temos um movimento de fechamento, através do orgulho e da Soberba. E a nossa vida terá
se resumido a isso, sem um final feliz. Ou seja, o mal existe. Existem pessoas orgulhosas
que morrem orgulhosas. Isso é muito triste, mas é um fato.
Então, é através de tudo isso que busco o sentido da minha vida. Porque a personalidade
é uma narrativa e toda história, por ser história, carece de sentido. Quando vamos assistir
a um filme ou ler um livro, esperamos que haja algum sentido, alguma “moral da
história”; esperamos que esse livro ou filme nos ensine alguma coisa, e o mesmo acontece
com a vida do ser humano — trata-se de uma necessidade humana.
Aspecto transcendente
Concretamente, então, qual o sentido da vida? Na nossa história, estão contidos ou
representados os nossos valores mais elevados. Aqueles que eu chamo de inegociáveis.
Quando digo valor inegociável, quero dizer inegociável mesmo — um valor pelo qual a
pessoa prefere morrer a negociá-lo. Note que não se tem hoje em dia muitos valores
inegociáveis, eles são poucos, pouquíssimos. Basta você pensar: se agora um bandido
apontar uma arma para minha cabeça e ordenar que eu negue tal coisa, quais seriam essas
tais coisas que eu não negaria?
Por quais coisas eu morreria?
Alguém que o estivesse assistindo viver teria que ser capaz de identificar através das suas
ações os seus valores mais elevados, não pelo que você diz, mas pelo que você faz.
Muitas pessoas fazem confusão em torno do conceito de valor. Dizem que seus valores
são “Deus, família e trabalho”, algo assim. Mas
um valor é um critério de escolha,
não o que eu falo. Mário Ferreira dos Santos, um filósofo brasileiro de quem gosto muito,
dizia que “Escolher é valorar”. Alguém pode estar pensando nas coisas mais grandiosas da
vida, com quem vai se casar, com quem vai morar, coisas grandes assim. Mas são nas
escolhas do cotidiano que os valores são revelados.
Quando você estava deitado em sua cama hoje e levantou-se para escovar os dentes,
estava implícito que a ação B, escovar os dentes, tinha mais valor do que a ação A,
continuar deitado. Se não percebemos a diferença de valor entre as ações, não saímos de
onde estamos. O exemplo disso é uma doença: a depressão.
Um dos sintomas da depressão é excluir a diferença
de valor entre as ações.
O deprimido grave pensa: escovar os dentes ou ficar aqui deitado é a mesma coisa. Ou
seja, têm o mesmo valor. Comer ou ficar deitado é a mesma coisa. Nada vale a pena. A
doença achata o conceito de valores, deixando tudo igual, o que gera uma paralisia
completa. Se tudo fica igual, você fica onde já está. Por isso o valor é um critério de
escolha e está presente nas menores, nas mínimas coisas.
Se alguém me diz: “Olha, na verdade, eu gosto é de dormir mesmo. Eu me levanto para
trabalhar, faço a coisa certa, mas o que eu valorizo mesmo é ficar deitado”. Respondo:
Sim, mas no mínimo você acha melhor ou mais valioso não passar fome do que ficar
deitado, afinal você trabalha para ganhar dinheiro e poder comer. Então, às vezes o valor
está por detrás de uma coisa e não na coisa em si.
A ação que você realiza revela que você concluiu que uma coisa é mais valiosa do que
outra, após algum cálculo de valor que você fez.
Não existem dois valores iguais.
Pense comigo: o ser humano está preso no tempo e no espaço. Isso significa que eu, Saulo,
não posso estar escrevendo este livro e ao mesmo tempo jogando bola ou dormindo.
Preciso ficar o tempo inteiro decidindo o que irei fazer. Ou melhor, como irei gastar o
meu tempo.
Ocorre que nosso tempo na Terra não é infinito. O tempo do animal também não, mas
ele não sabe que vai morrer. Nós sabemos. Temos consciência da finitu de e isso deveria
trazer um peso de eternidade para o momento presente, pois pode ser o último. Então,
qual é a única forma de ter paz sendo humano? De acordo com a sua hierarquia de valores
para este momento, para esta circunstância, fazendo o melhor que pode, com os recursos
que lhe foram dados, com o que você tem à sua disposição.
Viktor Frankl chamava isso de “dever ser”. Uma tensão entre o ser, que é o que você é, e
o que deve ser feito. Pode ser angustiante, mas, na maioria das vezes, isso é bom, porque
nos desafia. A vida está sempre nos desafiando. Sempre. Você cumpre uma boa ação e um
segundo já se passou. Neste outro segundo, a vida já te pergunta de novo:
“E aí, está fazendo o melhor que você pode com o
que você tem, dadas as circunstâncias?”.
E essa pergunta fica voltando, conforme tentamos respondê-la. Isso é ser humano.
Qualquer coisa menos do que isso é viver abaixo do que se poderia. Conforme vimos, a
normalidade não é justamente atualizar a potência do ser humano? Atingir o seu
máximo? Pois esse máximo é ser o melhor que você pode ser nas circunstâncias dadas. Cá
entre nós, o nome que damos a isso é santidade. Ao contrário do que dizia Freud, o mais
são é o homem que busca a santidade.
Os valores inegociáveis estão no topo da hierarquia de valores e o saudável é que
pensemos sobre eles, afinal nos servirão de referência para nossa organização e
ordenamento.
Como disse, na maioria das situações em nossa vida, os nossos valores são negociáveis.
Por exemplo, a cidade em que eu, pessoalmente, moraria era um valor negociável — a
partir do momento que, para a minha família, mudar de cidade passou a ser melhor do
que ficar onde estava, eu negociei. Mas a referência, minha família, é um valor
inegociável. Assim a gente vai decidindo.
Alguém que nunca pensou sobre valores
inegociáveis não possui critério.
Você está decidindo as coisas na sua vida com base em quê? Com uma base aleatória? Por
ordem de facilidade?
Cito outro exemplo. Imagine que você tem dois filhos, e mora debaixo da ponte. Passa,
com eles, fome e necessidade, violência, privação. E imagine que eu e minha esposa não
podemos ter filhose eu lhe proponho: “Estou vendo que você tem dois filhos e passa
necessidade. Eu e minha mulher não podemos ter filhos e queríamos muito. Dou-lhe um
milhão de reais e você me vende um filho seu. Eu ficarei feliz porque terei um filho, você
sairá debaixo da ponte e ainda terá um filho”.
Quando cito esse exemplo as pessoas riem: “É um absurdo. Eu, vender um filho meu?
Jamais”. Mas faça esse exercício: imagine que vendeu o seu filho. Então foi para um hotel
luxuoso, já que agora poderia pagá-lo. A primeira coisa que fez foi almoçar, havia tempo
que você não almoçava bem. A fome foi saciada e você subiu para o quarto. Seu outro
filho, o que restou, está dormindo enquanto você escova os dentes. Diante da pia, você
começa a subir os olhos... e então se vê no espelho, olha dentro do seu olho e é a primeira
vez que pensa sobre o que fez: “Caramba! Eu vendi o meu próprio filho!”. O outro
pensamento que vem imediatamente em seguida é: “Se vendi meu próprio filho, o que
mais eu seria capaz de fazer?”. Este é o exato momento em que a hierarquia de valores se
desfaz.
No instante em que você negocia o inegociável, essa hierarquia desmonta totalmente. Se
você é capaz de fazer qualquer coisa, perdeu o referencial, o norte. Você acaba de entrar
no universo do “tanto faz”. É por isso que a própria noção de valores é tão importante e
tão orientadora; é ela que dará o caminho para que você encontre o sentido da vida.
O homem antigo e o homem moderno
A este ponto você já deve estar imaginando o caos que é a cabeça do homem moderno,
uma vez que a principal corrente que pauta toda a nossa cultura é o relativismo, e as
pessoas acabam por tomar decisões aleatórias. Se a necessidade da natureza humana é
narrativa, buscar o sentido da vida não é opcional; para quem não vive assim,
uma hora a conta chega.
O homem moderno raciocina de maneira oposta à do homem antigo, que buscava a
orientação de sua vida nos valores metafísicos e pensava daquele modo que já dissemos:
Tenho dentro de mim umas emoções meio loucas; fazendo a mesma coisa, sinto-me mal...
Preciso buscar fora de mim um norte; que seja estável, e que já tenha sido testado pelo
tempo. Quando se entra no relativismo e tudo tanto faz, não há preocupação com a
própria história, mas apenas com o agora. Isso mata o transcendente, ele passa a ser
completamente ignorado.
Mas
o aspecto psicológico do homem é orientado pelo
transcendente,
caso contrário, sobra apenas o temperamento, só restam as tendências. Portanto, quando
se mata o transcendente, mata-se o próprio psicológico. O que sobra? O biológico, e o
biológico é a fuga da dor e busca do prazer. Descubro um botãozinho no meu cérebro que
libera a dopamina e permaneço buscando isso no dia a dia, o máximo que eu puder.
A pornografia, por exemplo, é sempre moralmente errada, mas imagine uma pessoa que
não pense assim. Ela começa a buscar o prazer, pois esse é o sentido de sua vida, então
passa a consumir pornografia. Essa pornografia em vídeo, tão disseminada hoje, faz
liberar muita dopamina, às vezes, muito mais do que na própria relação sexual com uma
mulher em carne e osso, por exemplo. Se um homem passa a buscar aquilo cada vez mais,
ele acostuma seu cérebro a um nível tão alto de dopamina que no momento de ter uma
relação real, ele falha. Ali, já não consegue ter o estímulo de tão alto nível.
Temperança é o nome da virtude que modera os apetites pela comida, pela bebida
alcoólica, pelo sexo. Estas não são coisas ruins em si mesmas, são coisas boas, feitas para
que nós as desfrutemos desde que dentro de uma reta ordem. Entretanto, se a pessoa não
for temperante, aquilo que ela tanto buscava — o prazer — será tirado dela, como no
exemplo do consumo de pornografia que provoca a impotência com a mulher real. Isso
aponta que a natureza humana, o funcionamento ótimo do ser humano, foi feita para ser
temperante, moderada nesse consumo. E aqui não falo de religião, isso é um dado
objetivo da realidade.
Quando o corpo para de oferecer prazer à pessoa
hedonista e relativista, ela cai no niilismo. E vai do
niilismo ao risco de suicídio.
Aliás, que o relativismo, o hedonismo e o niilismo estão relacionados ao suicídio, isso é
muito claro. Este é um movimento, digamos, histórico. Claramente a sociedade caminhou
para isso.
Podemos, ainda, falar em caráter. Sobre este assunto também é possível encontrar várias
concepções.
Para mim, o que faz sentido é o seguinte: Eu formo a minha personalidade na história
através de minhas ações. A repetição de uma ação é um hábito. Se esse hábito for positivo,
de acordo com a natureza humana, eu o chamo de virtude — um hábito operativo bom,
que forma a personalidade; que, por sua vez, é a minha história. Se esse hábito for
negativo, ou seja, se me piora enquanto ser humano, eu o chamo de vício. Não uso a
palavra no sentido de uma dependência química, de tabagismo ou alcoolismo, não me
refiro a isso. Falo de vício como um hábito ruim. Esse vício de comportamento irá
deformar a personalidade.
Isso quer dizer que, à medida que vou repetindo um hábito bom, é como se a
personalidade (o tronco da árvore) fosse ficando mais forte e crescendo cada vez mais,
porém da maneira mais própria à personalidade humana. Assim criamos certo padrão de
comportamento.
Quando era adolescente, por exemplo, eu não gostava de acordar cedo, tinha uma
dificuldade imensa — o que meu pai odiava. Nas minhas férias, ele batia na janela, a abria
e tirava o meu cobertor. Então, depois que comecei a trabalhar, comecei a acordar muito
cedo, afinal de contas queria ganhar dinheiro. Dez anos depois, acordar cedo para mim
ficou fácil, mesmo que eu durma tarde. Veja só, quem me conheceu recentemente diz:
“Para você é tão natural acordar cedo”. Mas estou fazendo isso há dez anos.
Isso seria o caráter, um certo padrão que você adquire, forjado através de hábitos, que
podem ser bons e formar um caráter virtuoso ou ruins e formar um caráter deformado,
moldado pelos vícios. A isso chamamos segunda natureza. Acordar cedo não era
originalmente a minha tendência, mas passou a ser a minha segunda natureza.
Isso porque a personalidade vai se desenvolvendo. De forma que há uma certa
previsibilidade em relação às minhas ações, o que não significa que em 100% das vezes
serão as mesmas. É uma probabilidade. Caráter diz respeito a um aumento de
probabilidade de agir de uma certa maneira.
Quando a pessoa adquire um caráter bom, a previsibilidade em relação a ela é a de que
tenha boas ações. Por exemplo, se você conhece uma pessoa que é muito virtuosa, que já
provou há muitos anos que tem bom caráter, e alguém questiona se essa pessoa roubou, a
sua tendência é não acreditar que ela tenha feito aquilo. Você diz: “Eu conheço o caráter
dela”. Suas ações anteriores já provaram que as chances de tê-lo feito são muito baixas.
Ainda assim, a possibilidade de que ela tenha cometido um ato fora de seu caráter não se
exclui, ela apenas é menor.
Mesmo que virtuosos, a possibilidade de errarmos não se exclui, nós apenas tendemos
mais ao acerto. Quando a criança, desde pequena, é ensinada pela família a ter bons
hábitos e colocada numa escola que também o faz, a probabilidade de que sua
personalidade se desenvolva para o acerto é muito maior, o ambiente psicológico gerado é
muito positivo. Mas mesmo nesses casos, a chance de errar não se exclui, e nunca se
excluirá.
Então, nessa concepção:
O temperamento é tendência “de fábrica”;
a personalidade é história, escrita através de ações boas ou ruins;
ações boas repetidas pelo tempo criam um hábito bom = virtude.
Aqui temos um caminho aberto, de bases antropológicas mais sólidas — porque
consideram a saúde integral — para possíveis soluções dos problemas de saúde mental.
Aprofundemos ainda mais nessa concepção.
E
AS FACULDADES HUMANAS
xiste uma herança, também da psicanálise, que trata o ser humano como um ente
dotado de “instinto”. Agora, existe de fato tal coisa? Podemos afirmar que a estrutura
psicológica do ser humano tem, como constituinte, um instinto? Esse conceito é repetidoa torto e a direito e, de tanto ser repetido, começamos a acreditar nele, a considerar o que
dizemos como um fato sem que reflitamos sobre ele.
Supostamente um instinto seria algo como a fome, por exemplo. Contudo, a verdade é
que, no ser humano, mesmo em seus instintos mais básicos, como o sexual ou o de
sobrevivência,
há sempre a presença da atividade intelectiva.
O intelecto sempre reflui sobre as instâncias mais baixas do homem. É preciso tomar
muito cuidado com essa história de nos comparar a animais. Inclusive, a palavra
“instinto”, na minha opinião, nem é adequada para se referir ao ser humano, porque, por
instinto, se a situação A ocorrer, automática e necessariamente a resposta será, sempre, B
— isso é instinto. O instinto é uma condição necessária, ou seja, há algo previamente
estabelecido na natureza do ser condicionado. Vemos isso nos animais, sem dúvida
nenhuma. Mas um ser humano, mesmo com fome, pergunta-se: “O que vou comer?”.
Mesmo com muita, muita fome, você não sai comendo irrefletidamente. Você pensa
como vai comer, onde e de que maneira.
Por exemplo, existe algo na natureza para refrear o seu suposto instinto de fome? Você
adotaria a prática do canibalismo? Você pode até pensar “é possível, afinal meu instinto
de sobrevivência é muito forte”. Mas você seria capaz de matar um filho, por exemplo, e
comer sua carne para sobreviver? Se você respondeu não, isso já anula o conceito de
instinto.
Se é instinto, deve ser automático. Há alguns animais que, na privação de comida, se
alimentam da própria prole — e aí sim se pode falar em instinto de sobrevivência.
Hoje em dia fala-se muito que o impulso sexual é forte demais para ser controlado.
Quando alguém diz isso, gosto de dar o seguinte exemplo: imagine que você está na
guerra, em uma cidade completamente destruída. Não existe mais polícia, juízes, justiça,
mas somente os escombros, e você está entre os soldados sobreviventes. Imagine que está
há seis meses, um ano, sem ver sua esposa; em abstinência sexual, com os “hormônios à
flor da pele”. Se, entre os escombros, você encontrasse uma mulher, você, por conta dos
instintos sexuais, a estupraria? A resposta que costumo escutar é: “Não, jamais faria uma
coisa dessas!” — logo,
você tem o controle de seu desejo sexual.
Por que, em relação à sua esposa, à fidelidade, à castidade, nessas outras circunstâncias,
você não tem esse controle? Ou melhor dizendo, você não o exerce? Evidentemente a
capacidade está ali.
Podemos investigar, por meio da terapia, quais os motivos que o impedem de exercer o
controle. Mas não conte para si mesmo que o motivo de estar traindo a sua esposa é o
“instinto sexual” forte demais. Em muitas linhas de terapia isso é entendido desta forma:
“Natural que seja assim, é do instinto do homem”, “Todo homem faz isso”, como se fosse
uma força incontrolável. Mas no ser humano isso não acontece, sempre existe a
intervenção do intelecto.
Tanto é assim que um homem pode dizer: “Não, amor, eu perdi a cabeça. Eu não sabia o
que estava fazendo” e, na verdade, ter calculado a hora que a esposa sairia, quanto tempo
ficaria fora, onde seria o motel, quanto pagaria por ele, etc. Esses cálculos são o intelecto
atuando sobre várias coisas.
A teoria do instinto não se sustenta.
O intelecto está sempre presente, ainda que o homem possa estar perfeitamente
ordenado ou não. E aqui entramos no conceito de alma — o primeiro princípio de vida
dos seres humanos. A alma é aquilo que anima o corpo. Ou aquilo que anima o ser dito
vivo. E, é interessante notar, “psicologia” e “psiquiatria” vêm do grego psiqué, que em
latim se diz anima, que por sua vez significa “movimento”. Então, falar de psicologia e
psiquiatria é falar desses movimentos que animam o corpo do ser humano; e a natureza
humana é tão interessante que só posso dizer que um corpo é humano enquanto ele é
animado pela alma.
Isso já nos ajuda a resolver aquele problema do corpo versus alma, físico versus
espiritual, esse dualismo presente em muitas concepções. Não digo com isso que o corpo
seja inimigo da alma. Na verdade, corpo e alma atuam juntos num ser humano. Os
exercícios da alma têm de prevalecer sob as demandas do corpo, só precisam de algo
chamado ordenamento.
Outra frase filosófica clássica diz que “a alma é a forma do corpo”. Pode ser que quando
você pense em “forma” apareça em sua mente o conceito de figura externa; por exemplo,
“a forma de um pneu é redonda”. Mas, em sentido filosófico, forma significa conjunto de
possibilidades.
A alma humana, portanto, oferece um conjunto de possibilidades. Todo ser, todo ente
existente, tem matéria e forma. Matéria são os ossos, músculos, sangue, etc. Forma é o
conjunto de possibilidades. Quando o ser humano nasce, ele tem o ato de andar como
potencialidade; por sua vez, voar por conta própria está fora do conjunto de
possibilidades do ser humano.
A psique humana é composta por sete faculdades,
que precisam estar ordenadas para uma perfeita
saúde.
São elas o senso comum (união dos cinco sentidos), razão (não no sentido de intelecto,
mas de relação, de proporcionalidade), apetite concupiscível, apetite irascível, intelecto
agente, intelecto passivo e vontade. Falaremos de três delas, que mais nos importam aqui:
o Intelecto, a Vontade e as Emoções.
Intelecto
O intelecto é aquilo que utilizamos para acessar a realidade, examiná-la e tentar encontrar
nela a verdade. Muitas vezes, essa realidade precisará ser iluminada para ser vista. E, se
houver qualquer coisa nos impedindo de ver, sombreando alguma realidade, por assim
dizer, será difícil discerni-la. Se estivermos muito acostumados, quero dizer, com maus
hábitos, com vícios arraigados, pode ser que não consigamos acessar corretamente a
verdade das coisas e situações. É por isso que, muitas e muitas vezes, o nosso intelecto erra
ao captar a verdade. E, também por isso,
a função da terapia, compre endida desse modo, é
auxiliar o paciente a encontrar a verdade na
realidade.
A verdade é o parâmetro que me diz o que é bom e o que é ruim, e é através do intelecto
que enxergamos os valores. Esses valores não são aqueles juízos que fazemos de certo e
errado, bom e mau, melhor ou pior, mas são externos a nós, existem objetivamente, e
estamos aqui, nesta vida, tentando encontrá-los.
A proposta de Freud e de Nietzsche, como vimos, é a transvaloração. Ao passo que, para
o psiquiatra austríaco Viktor Frankl (1905–1997), embora seja verdade que o ser humano
possua aquelas pulsões de desejo sexual, isso não constitui o principal. Nós desejamos
poder, força e dinheiro para realizar as coisas, mas isso tudo também não é o principal:
para ele, o que motiva o ser humano, na verdade, é
a busca pelo sentido da vida.
Essa é a sua Logoterapia.
Frankl pode falar perfeitamente sobre isso, pois passou por quatro campos de
concentração em três anos. Mais do que teorizar sobre o sentido da vida, ele teve de
encarnar na sua própria a premissa da Logoterapia que diz que em qualquer circunstância
da vida é possível encontrar um sentido.
Frankl dizia, então, que a realização está na hierarquia dos valores, mas com um detalhe:
não é possível criá-los, o que se pode fazer é descobrir ou encontrar esses valores. As
coisas existem, elas estão aí, na realidade — de fato há coisas que seriam melhores ou
piores para mim, é preciso usar meu intelecto para iluminar a realidade e descobrir a
verdade a respeito disso. Essa é a função do intelecto.
Se Freud dizia que o centro da personalidade são os desejos do inconsciente, para São
Tomás o centro da personalidade humana é o intelecto, a inteligência. Não pela
inteligência em si, pelo mérito de ser inteligente, mas porque precisamos do intelecto para
encontrar os valores na realidade. É por isso que ele é o centro da personalidade humana e
o meio pelo qual encontramos a felicidade. Quando nos fechamos ao intelecto e
cunhamos uma antropologia, uma psicologia, segundo a qual o que se tem é “instinto”, a
terapia jogará o indivíduo para dentro de um labirinto, onde ele ficará rodando, tentando
encontrar

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