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Lima Barreto: a vida nos subúrbios cariocas Lima Barreto será responsável por compor um retrato de partes dos centros urbanos ignorados pela elite cultural do país: os subúrbios cario- cas. Era lá que vivia a pequena classe média composta de funcionários públicos, professores, moças à espera de casamento e uma variedade de outras personagens que povoam a obra do autor. Dá assim voz a uma parcela da população que havia sido ignorada pelos principais escritores românticos e realistas. Os romances, contos e crônicas de Lima Barreto compõem um painel em que se desenham de forma mais clara os verdadeiros mecanismos de relacionamento social típicos do Brasil no início do século XX. Isaías Caminha e Clara dos Anjos: a denúncia do preconceito No primeiro romance publicado por Lima Barreto, Recordações do escri- vão Isaías Caminha, já se pode identificar a denúncia do preconceito como uma das suas preocupações literárias. Idealista e inteligente, Isaías acredita ser possível vencer na vida gra- ças aos seus esforços e superar até mesmo o preconceito racial. Assim que chega ao Rio, vindo do interior, procura um influente deputado a quem havia sido recomendado por um amigo da família. Seu suposto protetor recusa-se a ajudá-lo e o jovem passa por uma série de dificuldades. Apesar de sua capacidade e dedicação, é somente um fato casual que lhe permitirá realizar o sonho de se tornar repórter: surpreende seu superior em uma noitada de orgias. A leitura do livro deixa evidente seu caráter autobiográfico: assim como Isaías, Lima Barreto sofreu o preconceito por ser mulato e, também como ele, conseguiu relativo sucesso com a carreira jornalística. Em Clara dos Anjos, um romance inacabado, o preconceito racial retorna, enfocando agora uma moça que é seduzida por um tipo suburbano, Cassi Jones. Após relatar a humilhação da jovem pela família do rapaz que a de- sonrou, o narrador conclui: [...] Na rua, Clara pensou em tudo aquilo, naquela dolorosa cena que tinha pre- senciado e no vexame que sofrera. Agora é que tinha a noção exata da sua situação na sociedade. Fora preciso ser ofendida irremediavelmente nos seus melindres de solteira, ouvir os desaforos da mãe do seu algoz, para se convencer de que ela não era uma moça como as outras; era muito menos no conceito de todos. […] [...] Ora, uma mulatinha, filha de um carteiro! O que era preciso, tanto a ela como às suas iguais, era educar o caráter, revestir-se de vontade […], para se defender de Cassis e semelhantes, e bater-se contra todos os que se opusessem, por este ou aquele modo, contra a elevação dela, social e moralmente. Nada a fazia inferior às outras, senão o conceito geral e a covardia com que elas o admitiam… BARRETO, Lima. Clara dos Anjos. In: VASCONCELLOS,!Eliane (Org.). Prosa seleta. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2001. p. 748. (Fragmento). Foto de Lima Barreto, s.d. Afonso Henriques de Lima Barreto (1881-1922) nas- ceu no momento em que o Realismo chegava ao Brasil. o eu o a o de eali a o da Sema a de A te ode a esti o e fil o de mesti os sofreu o preconceito de uma sociedade que discriminava as pessoas com base na cor de sua pele. Como jornalista, alcançou uma certa estabilidade. Ao longo da vida lutou contra o alcoolismo, que acabou causando sua morte. Em seu funeral, ignorado pelos intelectuais da época, foi marcante a presença dos po- bres anônimos e suburbanos sobre quem escreveu. Deixou uma vasta obra literária, na qual se destacam os romances Recordações do escrivão Isaías Caminha (1909), Triste fim de Policar- po Quaresma, Numa e ninfa (1915), Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá (1919), Clara dos Anjos (1948), sátiras como Os bruzundangas (1923) e dezenas de contos como A nova Califórnia e O homem que sabia javanês. Número 2 da revista Floreal, publicação bimensal de crítica e literatura, que tinha Lima Barreto como “director”, 1908. O aspecto mais comovente da cena, além da desilusão sofrida pela jovem, é a constatação da impossibilidade de vencer uma sociedade acostumada a determinar o valor de uma pessoa pela cor de sua pele. 505 C ap ít u lo 2 3 • é od e is m o R ep ro du çã o pr oi bi da . A rt . 1 84 d o C ód ig o P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . I_plus_literatura_cap23_C.indd 505 11/11/10 3:15:57 PM [...] Havia um ano a esta parte que se dedicava ao tupi- -guarani. Todas as manhãs, [...] estudava o jargão caboclo com afinco e paixão. Na repartição, os pequenos empre- gados, amanuenses e escreventes, tendo notícia desse seu estudo do idioma tupiniquim, deram não se sabe por que em chamá-lo — Ubirajara. Certa vez, o escrevente Azevedo, ao assinar o ponto, distraído, sem reparar quem lhe estava às costas, disse em tom chocarreiro: “Você já viu que hoje o Ubirajara está tardando?”. [...] Sentindo que a alcunha lhe era dirigida, não perdeu a dignidade, não prorrompeu em doestos e in- sultos. Endireitou-se, concertou o pince-nez, levantou o dedo indicador no ar e respondeu: — Sr. Azevedo, não seja leviano. Não queira levar ao ridículo aqueles que trabalham em silêncio, para a grandeza e a emancipação da Pátria. [...] BARRETO, Lima. Triste fim de Policarpo Quaresma. In: VASCONCELLOS,!Eliane (Org.). Prosa seleta. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2001. p. 264-265. (Fragmento). Policarpo Quaresma: um nacionalista quixotesco O mais lido e conhecido romance de Lima Barreto é Triste fim de Po- licarpo Quaresma. O protagonista, Policarpo Quaresma, é um major que trabalha como subsecretário do Arsenal de Guerra. Sua cegueira, contudo, é a pátria. Estudioso das coisas do Brasil, tem uma biblioteca de clássicos sobre a fauna e a flora brasileira, conhece as obras completas dos grandes escritores nacionais, interessa-se pelas tradições e costumes do povo. Esse patriotismo desmedido é ridicularizado por todos aqueles com quem convive, incapazes de perceber a pureza de seu idealismo. Através de Policarpo, Lima Barreto tematiza o embate entre o real e o ideal. Em Policarpo, o patriotismo é um ideal. Ele assume ares de visionário, louco, por não pensar em si, por não se interessar por sua carreira ou tentar obter qualquer tipo de vantagem pessoal. Seu único objetivo é o engrandecimento do Brasil. O “triste fim” de Policarpo é a perda de todos os ideais, quando percebe que dedicou sua vida a uma causa inútil. A desilusão final de Policarpo é a desilusão de Lima Barreto, que morreu acreditando ser o dever dos escritores “deixar de lado todas as velhas regras, toda a disciplina exterior dos gêneros e aproveitar de cada um deles o que puder e procurar, conforme a inspiração própria, para tentar reformar certas usanças”. Por esse motivo, o novo Brasil que surgia nos textos pré-modernistas, marcado por grandes desigualdades sociais, não era um país que motivasse o o ul o dos leito es as e a um a s real. Tropas legalistas durante a Revolta da Armada, c. 1893. A desilusão de Policarpo Quaresma Depois de várias tentati- vas fracassadas pelo desen- volvimento do país, Quaresma se alista entre os voluntários, chefiados por Floriano Peixo- to, para defender o regime republicano durante a Revol- ta da Armada, em 1893. Ao acreditar nos princípios do marechal, Policarpo terá sua última desilusão com a pátria que tanto ama. Vencido o conflito, o presi- dente Floriano Peixoto passa a perseguir os derrotados, que são executados. Indig- nado com essa violência, o protagonista pede o fim do terror imposto pelo Estado. Por isso, é preso e condenado à morte por fuzilamento. Amanuenses: funcionários públicos que cuidavam da correspondência, copiavam e registravam documentos. Chocarreiro: zombeteiro. Doestos: injúrias, acusações. 506 U n id ad e 7 • od e is m o R ep ro du çã o pr oi bi da . A rt . 1 84 d o C ód ig o P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . I_plus_literatura_cap23_C.indd506 11/11/10 3:15:59 PM TEXTO PARA ANÁLISE ...................................................................... V A afilhada Acusado de traição, Policarpo Quaresma espera pela morte e reflete com amargura sobre o nacionalismo ingênuo que o impediu de ver o verdadeiro país que tanto defendeu. [...] Iria morrer, quem sabe se naquela noite mesmo? E que tinha ele feito de sua vida? Nada. Levara toda ela atrás da miragem de estudar a pátria, por amá-la e querê-la muito, no intuito de contribuir para a sua felicidade e prosperidade. Gastara a sua mocidade nisso, a sua virilidade também; e, agora que estava na velhice, como ela o recompensava, como ela o premiava, como ela o condecorava? Matando-o. [...] Desde dezoito anos que o tal patriotismo o absorvia e por ele fizera a tolice de estudar inutilidades. Que lhe importavam os rios? Eram grandes? Pois que fossem... Em que lhe contribuiria para a felicidade saber o nome dos heróis do Brasil? Em nada... O importante é que ele tivesse sido feliz. Foi? Não. Lembrou-se das suas coisas de tupi, do folklore, das suas tentativas agrícolas... Restava disso tudo em sua alma uma satisfação? Nenhuma! Nenhuma! O tupi encontrou a incredulidade geral, o riso, a mofa, o escárnio; e levou-o à loucura. Uma decepção. E a agricultura? Nada. As terras não eram ferazes e ela não era fácil como diziam os livros. Outra decepção. E, quando o seu patriotismo se fizera combatente, o que achara? Decepções. Onde estava a doçura de nossa gente? Pois ele não a viu combater como feras? Pois não a via matar prisioneiros, inúmeros? Outra decepção. A sua vida era uma decepção, uma série, melhor, um encadeamento de decepções. A pátria que quisera ter era um mito; era um fantasma criado por ele no silêncio do seu gabinete. [...] Contudo, quem sabe se outros que lhe seguissem as pegadas não seriam mais felizes? E logo respondeu a si mesmo: mas como? Se não se fizera comunicar, se nada dissera e não prendera o seu sonho, dando-lhe corpo e substância? Lima Barreto Lima Barreto acreditava que a literatura devia ajudar a difundir as “grandes e al- tas emoções humanas” e a construir a comunhão entre as pessoas de todas as raças e classes. Leitor apaixonado, usou a voz de diferentes per- sonagens para difundir essa crença no poder dos livros. Como afirma o narrador de Vida e morte de J. M. Gonzaga de Sá, “alguns deles [...] me deram a sagrada sabedoria de me conhecer a mim mesmo, de poder assistir ao espetácu- lo das minhas emoções e dos meus pensamentos”. Ao lado de Balzac, Stendhal, Taine, Renan, Anatole France, Jonathan Swift e Flaubert, a po- sição de destaque na estante do escritor era reservada aos grandes romancistas russos: Tolstoi e Dostoiévski. Deles herdou o olhar pessimista para a sociedade que aparece de modo destacado em sua produção literária. A ESTANTE DE Dostoiévski, autor russo de quem Lima Barreto herdou o olhar pessimista para a sociedade. Foto de 1879. Ilhas das Cobras, Rio de Janeiro, c. 1865. Foto de Georges Leuzinger. 507 C ap ít u lo 2 3 • é od e is m o R ep ro du çã o pr oi bi da . A rt . 1 84 d o C ód ig o P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . I_plus_literatura_cap23_C.indd 507 11/11/10 3:16:00 PM