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GEOGRAFIA DA POPULAÇÃO Gabriela Rodrigues Gois A geografia da população: enfoques contemporâneos Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: Reconhecer o papel dos estudos populacionais. Analisar os componentes importantes para o estudo de populações. Justificar a importância da diversidade de gênero, de etnia e de cultura. Introdução Os estudos populacionais passaram, ao longo do tempo, por diferentes transformações em suas bases teóricas e metodológicas. Essas mudanças estão relacionadas aos enfoques das diferentes áreas do conhecimento, como ciências sociais, geografia, história, demografia, economia, bem como às problemáticas demográficas identificadas na sociedade em nível mundial. Com isso, percebemos uma diversidade de temas, variá- veis, indicadores, análises e interpretações mobilizados para dar conta da complexidade que marca a dinâmica populacional contemporânea. Neste capítulo, você aprofundará seus conhecimentos sobre o papel e os componentes dos estudos populacionais. Para isso, examinaremos as atribuições dos estudos demográficos na geografia e em outras ciências; em seguida, identificaremos os aspectos considerados relevantes para os estudos populacionais; por fim, discorreremos sobre a relevância das dimensões gênero, étnico-racial, classe e cultura para o aprofundamento dos estudos demográficos. 1 O papel dos estudos populacionais Os estudos populacionais compreendem diversas áreas do conhecimento que possuem a população como objeto de estudo. Mas o que é a população? Para responder essa pergunta, precisamos estabelecer uma distinção entre o que entendemos por pessoas e por população. De acordo com estudos realizados por Dantas, Morais e Fernandes (2011), quando falamos em pessoas estamos nos referindo ao âmbito individual e quando falamos em população estamos nos referindo ao coletivo, ou melhor dizendo, à sociedade. Desse modo, o que vincula o indivíduo à população ou à sociedade são questões estruturais e institucionais, como as práticas sociais, classes sociais, as leis, o trabalho, entre outros fatores (DANTAS; MORAIS; FERNANDES, 2011). É importante termos em mente como esta relação indivíduo–sociedade é interde- pendente e complexa, sendo cuidadosamente trabalhada pelas ciências sociais. A geografia, por sua vez, também se preocupa com essa dinâmica, empregando, para isso, seus instrumentos teóricos e conceituais. Historicamente, a população sempre foi tema de discussão política ou intelectual. No campo da geografia, ao longo dos séculos XIX e XX ela foi considerada a primeira forma de abordagem a fenômenos humanos complexos (DAMIANI, 1998). Nesse sentido, além de uma categoria analítica, a população é compreendida como um conjunto de relações sociais e espaciais, mediada por fatores diversos, como as estruturas, as instituições, os valores humanos e culturais, a economia, a natureza e o próprio espaço. Sua dinâmica complexa e sua permanência nos estudos geográficos possibilitaram a consolidação da disciplina de geografia da população na segunda metade do século XX (SILVA; FERNANDES, 2016), definida, na época, como: [...] a ciência que trata dos modos pelos quais o caráter geográfico dos lugares é formado por um conjunto de fenômenos de população que varia no interior deles através do tempo e do espaço, na medida em que seguem suas próprias leis de comportamento, agindo uns sobre os outros e relacionando-se com numerosos fenômenos não demográficos (ZELINSKY, 1974, p. 17) No entanto, entendemos que a geografia não possui exclusividade nos estu- dos populacionais. A população, como categoria de análise, é abordada a partir de distintas perspectivas que variam de acordo com a área de estudo, assim como as ferramentas teóricas e metodológicas em jogo (DAMIANI, 1998). Por essa razão, o papel que os estudos populacionais desempenham vai variar segundo o interesse de cada disciplina. Na geografia, por exemplo, sabemos A geografia da população: enfoques contemporâneos2 que o estudo populacional busca explicar espacialmente os fenômenos demo- gráficos; nas ciências sociais, porém, os estudos populacionais giram em torno da compreensão das relações sociais em determinados contextos históricos, econômicos e políticos e como estas podem afetar a dinâmica demográfica. A antropologia, por sua vez, vai se preocupar com o tema da cultura, dos hábitos e das relações que as populações estabelecem com o meio em que vivem e transformam (MORMUL, 2013). Por fim, a demografia dedica-se às análises tanto quantitativas quanto qualitativas da dinâmica populacional, constituindo uma disciplina fundamental para o desenvolvimento dos estudos populacio- nais em outras áreas. Com isso, embora existam componentes básicos que são transversais aos estudos populacionais em diferentes ciências — número de nascimentos, mortes, migração, estrutura etária —, eles são utilizados e interpretados para alcançar o objetivo do campo de estudo em questão. Confira a seção “Grupos de Trabalho” (GT’s) no site oficial da Associação Brasileira de Estudos Populacionais (Abep), e perceba a diversidade de temas trabalhados que variam de acordo com as áreas de pesquisa. Além disso, devemos entender que a função dos estudos populacionais varia não apenas de acordo com o campo de estudo, mas é afetado e transformado pelas circunstâncias históricas e políticas. Para entender essa relação, tomemos a ciência geográfica como exemplo. Percebemos que a trajetória da geografia é marcada por diferentes paradigmas que se consolidam por razões tanto científicas quanto políticas. Um exemplo claro disso é a geografia regional, que se forma em um contexto político e ideológico marcado acima de tudo pelos conflitos territoriais protagonizados por autoridades francesas e germânicas no século XIX (DOMINGUES, 1985). Assim, os estudos populacionais em geografia regional se dedicavam a temas como a relação entre a população e recursos, população e produtividade, assim como número de pessoas que constituíam uma nação (GEORGE, 1955 apud DAMIANI, 1998). A geografia teorética, por sua vez, direcionava seus estudos populacionais à compreensão quantitativa da distribuição populacional. Após a Segunda Guerra Mundial, os estudos populacionais adquiriram maior relevância em virtude do aumento das taxas de natalidade, o que, asso- 3A geografia da população: enfoques contemporâneos ciado às reduções na mortalidade, provocou um crescimento demográfico em escala mundial. “Tanto os capitalistas queriam entender a dinâmica popula- cional para identificar as potencialidades e vulnerabilidades para a economia quanto os socialistas queriam fundamentar os seus planos econômicos” (SILVA; FERNANDES, 2016, p. 2). Ademais, como as ciências — a exemplo da própria geografia e das ciências sociais — eram financiadas principalmente pelas autoridades estatais, seus estudos (entre esses os demográficos) objetivavam atender aos interesses políticos e territoriais do Estado. Durante a década de 1950, geógrafos como Glenn Trewartha, Jacqueline Beaujeu-Garnier e Wilbur Zelinsky se dispuseram a argumentar sobre o papel que os estudos populacionais deveriam desempenhar na geografia, defendendo, é claro, suas afiliações teóricas e metodológicas; Trewartha e Beaujeu-Garnier vinculados à geografia regional e Zelinsky à quantitativa, corrente teórica mais apreciada nas décadas de 1950 e 1960 (SILVA; FERNANDES, 2016). Para Zelinsky (1974), os estudos populacionais na geografia deveriam priorizar a compreensão da relação entre a dinâmica populacional e o espaço geográfico, em seus aspectos sociais, econômicos, políticos, técnicos, tecnológicos. Ao final do século XX, com o fortalecimento das correntes críticas da geografia, as atribuições associadas aos estudos populacionais passaram a adquirir maior complexidade, dando conta de questões históricas, políticas, econômicas e socioculturais. Em defesa de um maiorcomprometimento com os fenômenos socioespaciais, Damiani (1998) argumenta que os estudos de- mográficos não devem se limitar aos aspectos quantitativos, também buscando compreender as relações estabelecidas entre os diferentes elementos que compõem o comportamento populacional sobre o espaço. Além disso, devem entender quais são os resultados dessas relações na produção e transformação do espaço e como a própria dinâmica espacial pode influenciar as práticas sociais das populações. Mormul (2013), ao estabelecer uma relação entre a geografia da população e a geografia humana, defende que os estudos populacionais precisam considerar o contexto histórico no qual as relações humanas e socioespaciais são produ- toras e produtos (MORMUL, 2013). Os estudos populacionais, neste sentido, possuem a responsabilidade não apenas de apresentar os dados demográficos vinculados a crescimento vegetativo, mortes, nascimentos e estrutura etária, mas também de investigar e problematizar o que está por trás desses dados e quais são suas explicações do ponto de vista histórico-geográfico. Agora, quando tomamos como exemplo os anais do Encontro Nacional de Estudos Populacionais de 2018 (CAMPOS et al., 2018), percebemos que não A geografia da população: enfoques contemporâneos4 se trata exclusivamente de estudos estatísticos, mas de trabalhos dedicados a estudar realidades marcadas por aspectos sociais, econômicos, políticos e culturais. Sendo assim, as informações referentes a natalidade, mortalidade, migração, crescimento vegetativo e estrutura etária não são estáticas, mas relacionais, retratando conjunturas complexas. Por essa razão, entendemos que no contexto atual o papel dos estudos populacionais tem sido de investigar, analisar e interpretar a relação população–espaço em sua heterogeneidade e, no limite, de fornecer subsídios para a elaboração de projetos de desenvolvimento social em diferentes escalas — local, regional e nacional. 2 Componentes importantes para o estudo de populações Compreendemos que a população é um objeto de estudo bastante complexo que movimenta questões materiais, simbólicas, objetivas, subjetivas, estruturais, espaciais, entre outras, e que para compreendê-la a partir de suas múltiplas dimensões temos de percorrer um caminho analítico que parta de categorias de análises mais básicas rumo às mais complexas (DAMIANI, 1998). Ao afi rmarmos, por exemplo, que atualmente a população no Brasil diminuiu em virtude de melhorias nas condições socioeconômicas das famílias, precisa- remos deixar claro em que consistem essas condições socioeconômicas e de que forma ocorreram essas melhorias, para, fi nalmente, entender seu impacto na vida das famílias e no baixo crescimento demográfi co. Isso também significa que os estudos populacionais são multidisciplinares e realizam-se a partir de conceitos já desenvolvidos em estudos urbanos, políticos, econômicos, sociais, territoriais, entre outros, como os conceitos de “segregação” (qual é o nível educacional de uma população residente em um bairro de baixa renda?), “desenvolvimento” (quais características socio- econômicas a demografia de um país deve apresentar para alcançar um alto nível de desenvolvimento humano?) e “desigualdade” (qual é o impacto das desigualdades socioeconômicas na expectativa de vida de uma população?). Com base nessas considerações, para que os estudos populacionais, inde- pendentemente da área de estudo, possam cumprir seu papel, é necessário considerar alguns aspectos básicos (analíticos e empíricos). Mas que aspectos são esses? Neste capítulo, destacamos os aspectos sociais, socioeconômicos e políticos. Com isso, vamos especificar quais são os impactos desses fatores na dinâmica e estrutura populacional, bem como nos estudos demográficos. 5A geografia da população: enfoques contemporâneos Aspectos sociais A estrutura social pode ser compreendida como um sistema de organização social, constituído pelas relações sociais, políticas, institucionais e econômicas que estabelecemos uns com os outros. Essas relações são mediadas por normas e recursos (regras, leis, meios de produção, tecnologias) que são mobilizados e corroborados em nossas ações sociais repetitivas. O entrelaçamento dessas relações constitui o que o sociólogo Giddens (1984) chama de sistema social. Para o autor, a sociedade, em suas relações e práticas recursivas, legitimam as dinâmicas institucionais, reforçando as estruturas. As estruturas são si- multaneamente potencializadoras e limitadoras da ação humana. Em outras palavras, nós, como atores sociais, reforçamos as estruturas, ao mesmo tempo em que temos nossas ações determinadas por elas. Mas afi nal, qual é a relação disso tudo com as dinâmicas e os estudos populacionais? A estrutura social é um componente importante para os estudos popula- cionais, pois permite investigar qualitativamente como as relações sociais, as instituições e as práticas recursivas da sociedade afetam e são afetadas pela dinâmica e estrutura populacional. Podemos avaliar o impacto dos aspectos estruturais (políticos, institucionais e econômicos) de um Estado na dinâmica populacional por meio de uma diferenciação de gênero entre a população ocupada (que está trabalhando) e a população desocupada (que não está traba- lhando, mas encontra-se disposta a trabalhar) (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2014). A partir disso, poderemos questionar: existe uma discrepância entre homens e mulheres quando examinamos o percentual de população ocupada no país? Caso exista, como ela pode ser descrita, analisada e explicada? Independentemente da área de estudo, os aspectos sociais estão sempre presentes nos estudos populacionais, seja de forma explícita nos estudos de natureza qualitativa — os quais geralmente realizam uma análise da estrutura social em questão —, seja de forma implícita, a exemplo dos estudos quanti- tativos, em que os dados numéricos são priorizados na análise, mas retratam uma realidade social que pode ser examinada. Além disso, ainda que existam características transversais entre as sociedades, ou seja, elas são organizadas por Estados, instituições, leis e normas, e cada sociedade também apresenta suas especificidades históricas, políticas, culturais e geográficas que não devem ser desconsideradas nos estudos demográficos. A geografia da população: enfoques contemporâneos6 Aspectos socioeconômicos Os aspectos socioeconômicos também estão vinculados à estrutura social, mas, de uma forma mais precisa, correspondem às questões sociais e econô- micas que infl uenciam a qualidade de vida da população, além de revelar a dinâmica de desenvolvimento de um país. Vamos iniciar com um exemplo: se a média da população brasileira tiver amplas possibilidades de reprodução social e econômica, possuindo boa renda, trabalho com segurança, acesso à educação e saúde de qualidade, sua qualidade de vida aumenta. Em termos demográfi cos, essa realidade é refl etida no aumento da expectativa de vida no Brasil e, consequentemente, no seu Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). O IDH foi desenvolvimento a partir do conceito de desenvolvimento hu- mano, preconizado pelo economista Amartya Sen. Esse conceito se constrói com o objetivo de questionar a perspectiva de desenvolvimento voltada apenas para o crescimento econômico de um país. Com isso, o desenvolvimento humano corresponde à ampliação das capacidades e oportunidades que as pessoas têm e podem adquirir ao longo de sua vida para se realizarem de acordo com os seus desejos, considerando outros aspectos além do econômico, como culturais, políticos e sociais (PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO, 2020). Podemos nos perguntar novamente: o que isso tem a ver com os estudos populacionais? O IDH considera múltiplas variáveis demográficas, como a população total, urbana, rural, residente masculina e residente feminina, estrutura etária da população (número de jovens, adultose idosos), taxa de envelhecimento, taxa de longevidade, mortalidade, fecundidade, entre outros elementos capa- zes de explicar a estrutura e a dinâmica de uma população. A partir disso, busca analisar a evolução desses dados ao longo do tempo — se diminuíram, se aumentaram, assim como as causas e efeitos dessas transformações. Em termos quantitativos/qualitativos, o IDH também avalia a educação de um país, considerando o fluxo escolar por faixa etária, além das expectativas de anos de estudo, bem como renda per capita, concentração de renda, taxa de atividade, desocupação, habitação e vulnerabilidade social, além de considerar todos esses aspectos a partir dos diferenciais raciais e de gênero. Em suma, trata-se de um índice bastante denso, que contém distintos indicadores e dados oriundos de profundas pesquisas demográficas. A partir disso, também podemos considerar que o componente socioeconômico é importante para os estudos populacionais, pois mobiliza variáveis — como 7A geografia da população: enfoques contemporâneos educação, trabalho, renda per capita, escolaridade e moradia — que são comumente trabalhadas em áreas de economia, economia política, ciências sociais, geografia e saúde coletiva, que, por sua vez, permitem avaliar de forma mais circunstanciada a dinâmica demográfica de dada realidade social. Aspectos políticos As questões políticas também estão estreitamente vinculadas aos aspectos mencionados anteriormente, pois é por meio das instituições governamentais que são pensadas as estratégias de desenvolvimento social para garantir melhor qualidade de vida à população. Programas habitacionais, de transferência de renda e de erradicação da fome e extrema pobreza, entre outras políticas públi- cas, podem, futuramente, contribuir para o desenvolvimento humano em nível nacional. Agora, como isso pode infl uenciar a dinâmica populacional do país? Para responder essa pergunta, podemos considerar o seguinte exemplo: um sistema de saúde de determinado país consegue elaborar uma política de prevenção de doenças sexualmente transmissíveis e de acessibilidade e uso de métodos contraceptivos. O questionamento que um estudo populacional pode realizar a partir disso é: que impacto essa política exercerá sobre as taxas de fecundidade, natalidade e mortalidade? O crescimento populacional cairia? Entraria em estabilidade? De que forma essa política afetaria a qualidade de vida da população? Também sabemos da existência de autoridades estatais que realizam práticas de intervenção direta na dinâmica populacional, no sentido de pensar políticas de planejamento familiar, visando o controle de natalidade, como foi o caso da China entre o final da década de 1970 e 2015. O país conseguiu exercer, por 36 anos, um rigoroso controle do crescimento populacional impondo a política do filho único. O resultado dessa política, somado, é claro, a outros aspectos socioeconômicos e sociais — como a ascensão do estilo de vida urbano, melhorias nas condições econômicas das famílias, acesso à educação de qualidade, autonomia financeira e conquistas de direitos reprodutivos pelas mulheres, etc. —, foi o baixo crescimento populacional já a partir da década de 1970 (YANG; WANG, 2016). Com isso, as projeções futuras têm indicado redução da população jovem, aumento da população idosa e redução da população economicamente ativa (YANG; WANG, 2016). Com este cenário, o Estado chinês resolveu finalizar a política do filho único, estimulando a ampliação das famílias com quantos filhos queiram ter. Nesse contexto, os questionamentos produzidos pelos estudos populacio- nais podem ser: quais são os fatores envolvidos nos processos de tomada de A geografia da população: enfoques contemporâneos8 decisão das famílias em relação a ter um ou mais filhos? Em que medida é aceitável política ou moralmente intervenções governamentais sobre as esco- lhas que afetam a dinâmica econômica, social e emocional de uma família? Qual será o impacto econômico na China caso as projeções demográficas se confirmem? Enfim, são diversas e pertinentes as interrogações que podem surgir ao considerarmos os componentes políticos nos estudos populacionais. 3 A importância da diversidade de gênero, de etnia e de cultura Do ponto de vista antropológico, a cultura pode ser concebida como “[...] uma teia de signifi cados tecida pelo homem. Essa teia orienta a existência humana. Trata-se de um sistema de símbolos que interage com os sistemas de símbolos de cada indivíduo numa interação recíproca” (GEERTZ, 2003, p. 39). Nesse sentido, nossas ações individuais e sociais também são práticas culturais, que transformam o espaço que produzimos e vivemos. No âmbito geográfico, o giro cultural emergiu a partir da corrente crítica da geografia e direcionou sua crítica à modernidade e seu determinismo econômico para explicar os processos sociais e espaciais. Com isso, o giro cultural defende que os processos socioespaciais (entre eles os demográficos) estão estreitamente relacionados à cultura, que também atravessa as relações de classe, raça e gênero (NARVÁEZ MONTOYA, 2014). Os estudos de Campos et al. (2018), por exemplo, buscam compreender os padrões de mobilidade (migração) entre os grupos indígenas no Brasil, considerando tanto aspectos culturais (práticas sociais e de relação com a terra) quanto socioeconômicos (renda, região de domicílio, etc.). Além disso, a partir da perspectiva cultural na geografia, a cultura tam- bém passa a desempenhar um papel relevante na compreensão das formas de reprodução do capitalismo na sociedade (ÁLVAREZ GALLEGO, 2014). Nessa linha, busca compreender, por exemplo, como nos relacionamos com o trabalho produtivo e com o consumo. Considerando os estudos populacionais, a relação entre os aspectos cultu- rais, de gênero e etnia é fundamental, pois, por meio de análises de variáveis comuns como renda, trabalho, mortalidade e expectativa de vida, é possível compreender que a população não é homogênea, apresentando diferenciações socioeconômicas, orientadas pelas questões raciais, culturais, de gênero e classe. Nesse sentido, se nos dedicarmos a compreender a população em um nível pormenorizado, perceberemos que as pessoas estão inseridas em 9A geografia da população: enfoques contemporâneos contextos econômicos, sociais e culturais específicos, comportando-se de distintas formas ou afetadas em diferentes graus pelos mesmos problemas sociais. Por essa razão, são necessárias abordagens teóricas e metodológicas sensíveis a essas realidades e que forneçam subsídios para pensar, no debate público, projetos de desenvolvimento social, a fim de atenuar as desigualdades que podem ser agravadas e reforçadas pelas já mencionadas estruturas sociais. Retomando nossos exemplos, sabemos que o indicador renda, comumente utilizado para avaliar o índice de desenvolvimento humano em diversos países, varia conforme o grupo social, considerando que a população é compartimen- tada de acordo com as condições socioeconômicas das pessoas (estratificação social). Mas você sabia que existe no Brasil uma diferença significativa de renda entre homens e mulheres? Considerando o caso do Rio Grande do Sul, a renda per capita para o ano de 2010 entre as mulheres foi de R$704,32, enquanto para os homens foi de R$711,98 (PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO, 2020). Também é possível notar uma diferença em relação ao rendimento médio por pessoas ocupadas, que para as mulheres foi de R$1.055 e para homens, de R$1.555,29 (PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO, 2020). A diferença na taxa de desocupação e grau de formalização das pessoas ocupadas também é evidente: mulheres com 6,33% e homens com 3,08% (taxa de desocupação para o ano de 2010); e 65,44% para mulheres e 67,13% para homens (grau de formalização para o ano de 2010), respectivamente. Outra informação interessante e que dialoga com os dados apresentados é o nível educacional das pessoasocupadas: 49,57% das mulheres ocupadas têm ensino médio completo (12,9% superior completo) e 38,88% dos homens ocupados têm ensino médio completo (9,5% superior completo) (PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO, 2020). Mas como os dados referentes ao nível educacional dialogam com essa discrepância de renda? É exatamente essa pergunta que os estudos populacio- nais em diversas áreas tentam responder. Nas ciências sociais, são discutidos os impactos que as estruturas sociais exercem sobre essa dinâmica, com seus valores culturais herdados de uma época recente em que, segundo as teorias neoclássicas do trabalho, as mulheres eram pouco aptas para as atividades produtivas, em virtude da maternidade e de sua aptidão “natural” ao cuidado da família (DEGRAFF; ANKER, 2004). De acordo com a teoria neoclássica, a racionalidade dos trabalhadores faz com que eles busquem trabalhos de acordo com suas capacidades e interesses. No caso das mulheres, essa teoria aponta para a preferência por cargos com salários iniciais altos, com baixo retorno de experiência e com flexibilidade nos horários de trabalho, de forma A geografia da população: enfoques contemporâneos10 que sejam permitidas saídas temporárias, pois as mulheres são consideradas responsáveis pelo trabalho de reprodução social na casa (atividades domésticas e de cuidado familiar) (DEGRAFF; ANKER, 2004). Igualmente, os empregadores esperam que as mulheres gerem maiores cus- tos empregatícios (o que muitas vezes é incorreto), devido a uma percepção generalizada de que, devido às responsabilidades familiares, as mulheres apresentam maior absenteísmo, maior impontualidade e maior rotatividade. Desta maneira, cria-se um círculo vicioso intergeracional no qual a partici- pação na força de trabalho diferenciada por sexo e a segregação ocupacional por sexo são, ao mesmo tempo, os principais determinantes e as principais consequências da desigualdade no mercado de trabalho baseada no gênero (DEGRAFF; ANKER, 2004, p. 166). Esses valores, que são culturais, relacionais, socialmente construídos e adquiridos, se perpetuam e se transformam ao longo do tempo, com algumas rupturas — hoje em dia, um número cada vez maior de mulheres tem ensino superior e ocupa cargos de autoridades — e algumas continuidades — a população feminina ainda recebe salários menores em comparação à mascu- lina, e as donas de casa, responsáveis pelo trabalho de reprodução social, são categorizadas como “População Economicamente Inativa”. Como se não bastasse, considerando a dimensão étnico-racial, se tomamos as mesmas variáveis que utilizamos para interpretar a desigualdade de gênero, veremos que a situação não apenas permanece, como se agrava. Vale ressaltar que, sempre que falamos de desigualdades raciais no Brasil, estamos nos referindo a um problema estrutural, oriundo de um longo processo histórico, cujo início remonta ao período do escravismo colonial, que moldou e transformou econômica e socialmente o país até os dias de hoje (GORENDER, 2001; ALMEIDA 2019). Ainda considerando o recorte espacial do Rio Grande do Sul, no ano de 2010 a renda per capita entre a população negra gaúcha foi de R$558,81 e entre a po- pulação branca, R$1.038,03; os rendimentos médios entre a população ocupada foi de R$875,06 (população negra) e de R$1.414,51 (população branca). A taxa de desocupação foi de 6,43% para negros e 4,22% para brancos; e o grau de 11A geografia da população: enfoques contemporâneos formalização foi de 64,21% (negros) e 66,84% (brancos). As informações mais impressionantes são relacionadas à longevidade e à mortalidade: a expectativa de vida ao nascer é de 74,2 anos para negros e de 75,8 anos para brancos; já a mortalidade infantil é de 14,3% (negros) e de 11,8% (brancos) (PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO, 2020). Ademais, o Atlas da Violência dos anos de 2017, 2018 e 2019, elaborado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), revela que, em escala nacional, a população jovem negra é a principal vítima de homicídios no Bra- sil. Ou seja, a taxa mortalidade, componente básico para avaliar a dinâmica populacional, é maior para essa categoria social. A realidade das mulheres negras — considerando uma intersecção entre os componentes étnico-raciais e de gênero — é bastante semelhante: A desigualdade racial pode ser vista também quando verificamos a proporção de mulheres negras entre as vítimas da violência letal: 66% de todas as mulhe- res assassinadas no país em 2017. O crescimento muito superior da violência letal entre mulheres negras em comparação com as não negras evidencia a enorme dificuldade que o Estado brasileiro tem de garantir a universalida- de de suas políticas públicas (INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA, 2019, p. 39) Outro estudo, realizado pela Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais em 2015, apontou que, entre os anos de 2003 a 2013, o percentual de homicídios de mulheres negras aumentou 54% (WAISELFISZ, 2015, p. 30). A partir de uma breve interpretação desses dados, podemos retomar a definição de taxas de mortalidade em uma perspectiva diferencial, como aponta Da- miani (1998). Para a autora, é fundamental considerar as taxas de mortalidade estratificadas por condições socioeconômicas. Assim, para interpretarmos os referidos dados demográficos, podemos considerar o diferencial em termos de gênero e raça — questionando sobre as razões que explicam essa significativa discrepância entre as taxas de mortalidade e renda entre a população negra e branca no país — e em termos de localização, incluindo outras populações racializadas como os indígenas. E a partir daí, podemos vislumbrar quais são as ações possíveis para reduzir esse quadro de desigualdade social e qual é o papel dos estudos populacionais nesse processo. Enfim, consideramos importante evidenciar que a relação étnico-racial e de gênero nos estudos populacionais não deve cumprir o papel de “orna- mento teórico”, no sentido de apenas reconhecer a diversidade social. Como foi possível perceber nas considerações apresentadas nesta seção, estamos A geografia da população: enfoques contemporâneos12 falando de problemas estruturais e concretos da sociedade que devem ser analisados com a devida seriedade e cuidado. São problemáticas de natureza demográfica, social, geográfica, histórica, etc., a partir das quais o estudo populacional, revisitando suas atribuições nos estudos geográficos do século XIX, constitui uma importante forma de aproximação para interpretar esses fenômenos complexos (DAMIANI, 1998). ALMEIDA, S. L. Racismo estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro; Polén, 2019. ÁLVAREZ GALLEGO, A. Los discursos otros: crítica al universalismo occidental. Bogotá: Desde Abajo, 2014. (Colección Primeros Pasos). CAMPOS, M. B.; et al. São os indígenas mais propensos a migrarem do que os não indígenas? In: ENCONTRO NACIONAL DE ESTUDOS POPULACIONAIS, 21., 2018. Anais [...]. Poços de Caldas, 2018. p. 1–5. DAMIANI, A. L. População e geografia. 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